terça-feira, 17 de abril de 2012

"O pensamento é mais que um direito; é o próprio alento do homem." (Victor Hugo)


                     

                            
                                      Desassossego epidêmico


Tenho pouco tempo para escrever alguma coisa que satisfaça minha necessidade de acomodar no papel algumas palavras que inspirem jardins de reflexões. Quiçá, não possa agora oferecer jardins; uma muda ou outra de pensamentos, ao menos.
Um dos últimos livros que comprei é O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. Uma passagem chamou-me atenção por exprimir bem a dimensão abismal de nosso conformismo com o status quo. Leiamo-la com esmero:

“O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão profunda, como falsa, “democracia racial”, raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis”.

(p. 22)

(grifo meu)


Minha alma é uma engrenagem de pensamentos, uma maquinaria de emoções, uma profusão de indagações. Momentos há em que é necessário sossegar o espírito, sempre desejante. Vejo por aí, com descontentamento, uma enxurrada de lugares-comuns sobre o uso do português. Pessoas que pretendem salvar a língua de sua ruína e que se interessam por alertar os outros dos supostos “erros” cometidos ao usar sua língua materna. Avultam recomendações do tipo “não se deve dizer “menas coisas”, mas “menos coisas”, “não se deve dizer “para mim comer”, porque mim não conjuga verbo” (e desde quando o verbo está, nessa construção, flexionado?), etc. Em matéria de língua, todos se arriscam a dar palpites, a ser gramáticos, guardiões da “língua-mãe”. Esse fato está entre outros tantos contra os quais invisto no meu silêncio desalentado. 
Preciso me apressar. A higienização intelectual depende desse estado de solidão desejante, em que me encontro. Felizmente, às vezes, tenho o privilégio de estar junto de pessoas com quem entabulo conversas mais interessantes, edificantes intelectualmente. De resto, aborreço-me com aqueles que julgam o conhecimento como algo que deve ter uma utilidade prática e imediata. Desagradam-me aqueles que se relacionam com o conhecimento como o consumidor se relaciona com uma mercadoria (embora sem ter disso consciência), que deve ser consumida e/ou descartada. Assim também deve ser descartado o conhecimento, caso não sirva para solucionar, à guisa de um manual de instruções, a sua incompetência para percorrer os longos e instigantes caminhos da pesquisa que levam às soluções. E, mesmo que delas não estejamos seguros, que a dúvida nos mova para adiante! Os espíritos ávidos do saber estão cheios de dúvidas; somente os desinteressados detém certezas rijas e “sagradas”. Por que busco conhecer? Que tem de valioso o conhecimento para mim? O valor está nele mesmo, e não para além dele. O valor está no processo de conhecer, na descoberta, no desvelamento da verdade. O valor está no conhecimento em si. Busco o conhecimento porque não me contento de viver comodamente no e com o mundo. É preciso incomodá-lo e incomodar-se, ou desacomodar-se. Estranhamente, a coceira da curiosidade não é tão intensa em muitas pessoas. Para muitas, a realidade não constitui um problema para o pensamento; para muitas, os preconceitos correntes, as opiniões agastadas, os clichês e as ideologias (representações que visam a legitimar uma dada ordem social) não passam pelo crivo de uma consciência crítica. Basta-lhes reproduzi-los.
E sigamos em frente, ruminando as velhas fórmulas para viver sem nos contaminar pelo desassossego.
Agradou-me uma conversa que tive com uma amiga coordenadora, amante dos livros como eu. Falávamos da ignorância do professor de língua (particularmente, do professor de português) sobre seu papel como agente de formação cultural ampla. Tem ele o privilégio de transitar pelas diversas áreas do conhecimento, mormente pelas áreas humanas, que recobrem linguística, sociologia, antropologia, história, psicologia, filosofia, pedagogia, etc.. Ele não se identifica com um policial da gramática normativa. Uma vez que lhe compete formar indivíduos cada vez mais competentes no uso de sua língua materna, deve ele assumir o papel de mediador entre o sujeito cognoscente e os objetos de conhecimento que se funda textualmente. O trabalho sobre textos permite a ele um enriquecimento cultural de que pode e deve tirar proveito, dando aos estudantes o direito de dele participar. Pensemos numa situação em que o professor trabalhará com um texto que trate de algum aspecto da teoria de Marx, ou que a ele faça referência. Veja-se o texto O sonho dos ratos, de Rubem Alves (http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=13678&cat=Contos&vinda=S).
            Um leitor arguto e familiarizado com algumas ideias de Marx poderá empreender uma leitura que trará à tona alguns aspectos do pensamento de Marx; será, inclusive, capaz de “ver” o intertexto em “quando se estabelecer a ditadura dos ratos”. Marx advogava a necessidade de instituir-se nos países capitalistas, depois de superada sua formação socioeconômica, a “ditadura do proletariado”, metáfora com que Marx exprimia a nova forma política que assumiria a sociedade, quando o proletariado tomasse o controle do Estado (um Estado que supunha o filósofo viria a desaparecer, com a consolidação do comunismo, que não se daria sem a transição do capitalismo para o socialismo).
É preciso que os professores de português reconheçam que sua formação acadêmica possibilita-lhes as condições adequadas e necessárias para que eles tenham coragem de caminhar por outros terrenos do conhecimento humano que se entrecruzam, porque todos mediados pela linguagem, porque todos socialmente fundados em textos. Textos não são só meios de transmitir conhecimento, mas formas de cognição social, formas de constituição do conhecimento. O conhecimento socialmente circulante, assimilado, reconstruído, reinterpretado é conhecimento textualmente fundado. Preciosa é a lição de Ingedore Koch, em Introdução à Linguística Textual (2004):

“Os textos são condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explicito, de segmentá-lo, diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos, permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar, linguísticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais”.
(p. 173)

A certa altura, reconhecemos o cuidado que devemos ter nós, que dedicamos a vida ao cultivo do intelecto, de não sermos intolerantes. É que tendemos a rejeitar a mediocridade intelectual; tendemos a não suportar o convívio com pessoas a quem basta seguir as diretrizes da mídia, do consumo de massa, da publicidade, da moda, das ideologias dominantes. Eu, contudo, lhe chamei a atenção para o fato, não menos relevante, de que sobre nós recai o peso de um estereótipo, em geral associado a características tais como ser enfadonho, entediante, “sério”, pessimista, “crítico” (na acepção pejorativa do termo, ou seja, como qualidade de quem aponta os aspectos negativos de um ser ou coisa, de quem é mal-humorado). O erro aqui salta aos olhos: somos críticos, porque indivíduos habituados a analisar, julgar, examinar os fatos, os acontecimentos, as feições do real, as opiniões correntes, a vida tal como ela se nos manifesta nas suas dimensões física e humana (social, cultural, política, antropológica, histórica...). Fazer a crítica é analisar, discernir os aspectos relevantes numa dada questão, é assumir uma postura de questionamento, uma atitude de investigação para obter a verdade. A crítica é uma atividade espiritual por que o agente avalia, analisa as coisas, sem prejulgá-las, sem apoiar-se em preconceitos.
O intelectual é aquele que se dá o direito à suspeita e à dúvida. É também aquele que reconhece ser sempre proveitosos e prazerosos os voos edificantes do espírito, sem embargo de, para muitos, valer mais viver à superfície da vida.

Um comentário:

  1. nunca pensei nessa ideia da inflexão do verbo, seguido do oblíquo... interessante.

    e que o conhecimento continue sendo resultado da inquietude que move o pensar!
    que o movimento os tire do raso.

    beijos

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