Desassossego epidêmico
Tenho
pouco tempo para escrever alguma coisa que satisfaça minha necessidade de
acomodar no papel algumas palavras que inspirem jardins de reflexões. Quiçá,
não possa agora oferecer jardins; uma muda ou outra de pensamentos, ao menos.
Um dos
últimos livros que comprei é O Povo
Brasileiro, de Darcy Ribeiro. Uma passagem chamou-me atenção por exprimir
bem a dimensão abismal de nosso conformismo com o status quo. Leiamo-la com esmero:
“O espantoso é que os brasileiros,
orgulhosos de sua tão profunda, como falsa, “democracia racial”, raramente
percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais
grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque
se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se
fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira
de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram
ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a
ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por
Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes,
dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis”.
(p. 22)
(grifo meu)
Minha
alma é uma engrenagem de pensamentos, uma maquinaria de emoções, uma profusão
de indagações. Momentos há em que é necessário sossegar o espírito, sempre
desejante. Vejo por aí, com descontentamento, uma enxurrada de lugares-comuns
sobre o uso do português. Pessoas que pretendem salvar a língua de sua ruína e
que se interessam por alertar os outros dos supostos “erros” cometidos ao usar
sua língua materna. Avultam recomendações do tipo “não se deve dizer “menas coisas”, mas “menos coisas”, “não se deve dizer “para mim comer”, porque mim não conjuga verbo” (e desde quando o
verbo está, nessa construção, flexionado?), etc. Em matéria de língua, todos se
arriscam a dar palpites, a ser gramáticos, guardiões da “língua-mãe”. Esse fato
está entre outros tantos contra os quais invisto no meu silêncio
desalentado.
Preciso
me apressar. A higienização intelectual depende desse estado de solidão
desejante, em que me encontro. Felizmente, às vezes, tenho o privilégio de
estar junto de pessoas com quem entabulo conversas mais interessantes,
edificantes intelectualmente. De resto, aborreço-me com aqueles que julgam o
conhecimento como algo que deve ter uma utilidade prática e imediata.
Desagradam-me aqueles que se relacionam com o conhecimento como o consumidor se relaciona com uma mercadoria (embora sem ter
disso consciência), que deve ser consumida e/ou descartada. Assim também deve ser descartado o conhecimento, caso não sirva para
solucionar, à guisa de um manual de instruções, a sua incompetência para
percorrer os longos e instigantes caminhos da pesquisa que levam às soluções.
E, mesmo que delas não estejamos seguros, que a dúvida nos mova para adiante!
Os espíritos ávidos do saber estão cheios de dúvidas; somente os desinteressados
detém certezas rijas e “sagradas”. Por que busco conhecer? Que tem de valioso o
conhecimento para mim? O valor está nele mesmo, e não para além dele. O valor
está no processo de conhecer, na descoberta, no desvelamento da verdade. O
valor está no conhecimento em si. Busco o conhecimento porque não me contento
de viver comodamente no e com o mundo. É preciso incomodá-lo e incomodar-se, ou
desacomodar-se. Estranhamente, a coceira da curiosidade não é tão intensa em
muitas pessoas. Para muitas, a realidade não constitui um problema para o
pensamento; para muitas, os preconceitos correntes, as opiniões agastadas, os
clichês e as ideologias (representações que visam a legitimar uma dada ordem
social) não passam pelo crivo de uma consciência crítica. Basta-lhes
reproduzi-los.
E
sigamos em frente, ruminando as velhas fórmulas para viver sem nos contaminar
pelo desassossego.
Agradou-me
uma conversa que tive com uma amiga coordenadora, amante dos livros como eu.
Falávamos da ignorância do professor de língua (particularmente, do professor
de português) sobre seu papel como agente de formação cultural ampla. Tem ele o
privilégio de transitar pelas diversas áreas do conhecimento, mormente pelas
áreas humanas, que recobrem linguística, sociologia, antropologia, história,
psicologia, filosofia, pedagogia, etc.. Ele não se identifica com um policial
da gramática normativa. Uma vez que lhe compete formar indivíduos cada vez mais
competentes no uso de sua língua materna, deve ele assumir o papel de mediador
entre o sujeito cognoscente e os objetos de conhecimento que se funda textualmente.
O trabalho sobre textos permite a ele um enriquecimento cultural de que pode e
deve tirar proveito, dando aos estudantes o direito de dele participar.
Pensemos numa situação em que o professor trabalhará com um texto que trate de
algum aspecto da teoria de Marx, ou que a ele faça referência. Veja-se o texto O sonho dos ratos, de Rubem Alves (http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=13678&cat=Contos&vinda=S).
Um leitor arguto e familiarizado com
algumas ideias de Marx poderá empreender uma leitura que trará à tona alguns
aspectos do pensamento de Marx; será, inclusive, capaz de “ver” o intertexto em
“quando se estabelecer a ditadura dos ratos”. Marx advogava a necessidade de
instituir-se nos países capitalistas, depois de superada sua formação socioeconômica, a “ditadura do proletariado”, metáfora com
que Marx exprimia a nova forma política que assumiria a sociedade, quando o
proletariado tomasse o controle do Estado (um Estado que supunha o filósofo
viria a desaparecer, com a consolidação do comunismo, que não se daria sem a
transição do capitalismo para o socialismo).
É preciso que os professores de português reconheçam que sua
formação acadêmica possibilita-lhes as condições adequadas e necessárias para
que eles tenham coragem de caminhar por outros terrenos do conhecimento humano
que se entrecruzam, porque todos mediados pela linguagem, porque todos
socialmente fundados em textos. Textos não são só meios de transmitir
conhecimento, mas formas de cognição social, formas de constituição do
conhecimento. O conhecimento socialmente circulante, assimilado, reconstruído,
reinterpretado é conhecimento textualmente fundado. Preciosa é a lição de
Ingedore Koch, em Introdução à
Linguística Textual (2004):
“Os textos são
condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explicito, de
segmentá-lo, diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos,
permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar
novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar,
linguísticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais”.
(p. 173)
A certa altura, reconhecemos o cuidado que devemos ter nós,
que dedicamos a vida ao cultivo do intelecto, de não sermos intolerantes. É que
tendemos a rejeitar a mediocridade intelectual; tendemos a não suportar o
convívio com pessoas a quem basta seguir as diretrizes da mídia, do consumo de
massa, da publicidade, da moda, das ideologias dominantes. Eu, contudo, lhe
chamei a atenção para o fato, não menos relevante, de que sobre nós recai o
peso de um estereótipo, em geral associado a características tais como ser
enfadonho, entediante, “sério”, pessimista, “crítico” (na acepção pejorativa do
termo, ou seja, como qualidade de quem aponta os aspectos negativos de um ser
ou coisa, de quem é mal-humorado). O erro aqui salta aos olhos: somos críticos,
porque indivíduos habituados a analisar, julgar, examinar os fatos, os
acontecimentos, as feições do real, as opiniões correntes, a vida tal como ela
se nos manifesta nas suas dimensões física e humana (social, cultural,
política, antropológica, histórica...). Fazer a crítica é analisar, discernir
os aspectos relevantes numa dada questão, é assumir uma postura de
questionamento, uma atitude de investigação para obter a verdade. A crítica é
uma atividade espiritual por que o agente avalia, analisa as coisas, sem prejulgá-las, sem
apoiar-se em preconceitos.
O intelectual é aquele que se dá o direito à suspeita e à
dúvida. É também aquele que reconhece ser sempre proveitosos e prazerosos os
voos edificantes do espírito, sem embargo de, para muitos, valer mais viver à
superfície da vida.
nunca pensei nessa ideia da inflexão do verbo, seguido do oblíquo... interessante.
ResponderExcluire que o conhecimento continue sendo resultado da inquietude que move o pensar!
que o movimento os tire do raso.
beijos