quarta-feira, 7 de março de 2012

"Se estivermos sempre de acordo, é sinal de que nos acomodamos" (BAR)

                                    

                                                Conche
                                   E a felicidade da filosofia
                                             Reflexões incipientes sobre ser filósofo e ateu

Coloquei uma pilha de livros junto a mim. Terminei de ler um capítulo de um deles e, tão-logo iniciara a leitura de um capítulo de outro livro, inquietaram-me “vastas tempestades elétricas cerebrais” (Nicolelis, 2011: 55), a que chamamos de “pensamentos”. Eis aí a definição neurocientífica de pensamento. Longe de representar a experiência fenomenológica que temos de pensamento – experiência esta de base simbólica (pela força do signo) -, essa definição encerra a base neurofisiológica do pensamento. Não é este tema que me ocupará nesta nova oportunidade que tenho de escrever. Vou-me ocupar com reflexões sobre o testemunho de Marcel Conche, em seu livro Análise do Amor (livro cuja leitura recomendo a todos que me leem).
A grande maioria de meus textos que divulgo neste espaço dá testemunho da aturada convivência que tenho com os livros. A leitura me fertiliza os pensamentos. E os trechos de Conche, sobre os quais recairão minhas reflexões, vêm a propósito justamente num dia em que, há pouco, ocupava-me a alma a robusta ideia do direito que tem a voz ateísta de também fazer-se massivamente presente nas redes sociais de relacionamentos virtuais. Apercebi-me de que abundam, naqueles espaços on-line, mensagens de inspiração religiosa. Também, nós, ateus, temos o direito de manifestar nossas posições, através de pensamentos nossos ou alheios, de postagens com imagens (embora não depreciativas) que representem a(s) verdade(s) ocultada(s) pela religião.
O texto de Conche é, como dizia, um testemunho de seu amor à filosofia, um testemunho de como se tornou filósofo, de como a filosofia contribuiu significativamente para que ele se desafogasse do emaranhado de ideias, crenças e convicções lapidadas no obscurantismo, na ignorância, na falsidade da tradição cristã de que ele foi herdeiro. Assim é que, em suas palavras confessionais, plasmei uma imagem de mim. Sentia-me representado nas experiências em que ele estivera envolvido e que tratava de representar com aquelas palavras. É disso, pois, que tratarei, ao procurar reler este texto, ou melhor, parte dele. Os trechos que citarei constam do capítulo Tornar-se grego, no qual Conche conta-nos sobre sua descoberta dos sábios gregos, a cujos conhecimentos deve não só o reconhecimento do valor humano da filosofia, mas a assunção de sua condição de ateu. Sim, Conche se reconhece ateu no momento mesmo que descobre a filosofia, mormente o espírito filosófico dos gregos antigos.
Cuido poder, agora, enunciar minha tese, que tem a forma que se segue:

A superação do pensamento religioso-místico só é possível pela descoberta do espírito filosófico.

Entendo por espírito “consciência”, ou, se preferirem, “pendor”. E por que falo em “descoberta” desse pendor filosófico? Nesse tocante, minha tese é consonante com a posição de Conche, que será por mim aqui explicitada e (re)pensada. Estou de acordo com Conche quanto ao fato de o normal no homem é viver indagando, questionando, entregando-se ao exame crítico do mundo em que vive. Por isso, todos nós somos filósofos em potencial. Todos os indivíduos, sempre que lhes são dadas as condições necessárias, são capazes de descobrir esse “espírito filosófico” adormecido em sua mente. É o que sucedeu comigo, com Conche e, provavelmente, com todos que se decidiram pelo valor da razão.
Leiamos o trecho com que Conche inicia o capítulo, já referido acima:

“Filosofar parece-me a única atividade normal do homem: do homem qualquer, entendo, sem gênio particular, mas também do homem de gênio (do artista, do poeta) na medida em que é, vivo ou moribundo, um homem como outro; porque  o que é normal para o homem não é – não é simplesmente – comer, beber, dormir, amar, coisas que os bichos também fazem, não é viver – limitar-se a viver – nem trabalhar para comer e comer para viver, mas é não viver sem refletir, isto é, sem se perguntar o que faz no mundo, o que é o mundo, o que significa a vida – em suma, o que é normal para o homem é não viver sem filosofar (...). Vou contar agora como se tornar filósofo: para mim significou tornar-me grego”.

(p. 103)
(grifo meu)

Lendo este trecho de Conche, rememorei momentos remotos da minha vida (talvez, não tão remotos assim, embora por tê-los abandonados, mo pareçam) em que escrevia com desgosto pela superficialidade das vivências sociais. Em meus escritos mais antigos, eu demonstrava minha insatisfação com a convivência com pessoas psicologicamente superficiais, que vivem à superfície da vida, que, existindo, limitavam-se a boiar em seu cotidiano intelectualmente infértil. Sentia-me profundamente deslocado, dessituado. Faltava-me  conseguir afinidade intelectual, o que não encontrava nas pessoas com quem conversava. A solidão daqueles tempos fecundou-me exuberantemente o espírito, mas, ao mesmo tempo, apartou-me das convivências diárias com certas pessoas, visto que nelas não encontrava eco de intelecto que me atraísse, tão-só os assuntos de sempre, triviais e cansativos. Esse sentimento de desconforto, esse desagrado de que me imbuía inspiraram-me o pensamento “Há sempre um livro entre mim e o outro”. O leitor poderá compreendê-lo melhor agora quando resgato vivências passadas. É possível que construa outros sentidos para ele; mas eu, com ele, pretendia anunciar: convivo com pessoas para as quais o livro é um estranho, sendo eu também um estranho para elas. O leitor poderia também interpretar o livro como um silêncio que intermediava a minha relação com o “outro” (que não tem face, que poderia ser qualquer um). Sinto que, se eu me aventurar a pensar sobre o que escrevi, sobre os pensamentos que registrei no papel, iniciarei um vasto e doloroso processo de escavação de meu ser, ou desse “eu” que é um conjunto de imagens de si, que mudam e que são contraditórias. Ensinou-me isso o psicanalista J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009). Isso parece confirmar a verdade sobre nossas intuições de nós mesmos: o “eu” que não é senão uma “entidade imaginária”, uma ficção de nosso cérebro; este “eu” nos escapa, e isso explica o sentimento que temos dele como algo inexplicável. Nós não nos entendemos, desconhecemos, em profundidade, esse “eu” imagético. Convém voltar às reflexões de Conche.
Conche mostrará a importância da filosofia na formação do indivíduo como um todo complexo. Lembrar-nos-á que o indivíduo “é antes de mais nada produto de uma coletividade em que, por uma educação de caráter tradicional, não racional, ele é formado para a particularidade, tão longe da singularidade” (ibid.id.). A singularidade é alcançada tornando-se filósofo. A essa altura, num claro movimento polifônico, evoca as vozes que nos ensinam sobre a atitude filosófica, melhor seria, sobre o que é ser filósofo. Não me canso de insistir sobre essa atitude, visto que ela determina a forma como escolhemos viver: conformados ou inconformados? Resignados ou revoltados? Tolos ou argutos ? Desinteressados ou comprometidos? Alienados ou atentos? Escreverá o autor, na mesma página:

“O filósofo terá de se tornar singular e, para tanto, terá de romper com os juízos prontos, com os valores estabelecidos, com os imperativos de uma sociedade fechada, por ter feito a escolha da razão, isto é, do universal.A razão espera, em cada um de nós, que a escolhamos; ela é o poder de rejeição, de questionamento, de liberdade, inerente a cada um de nós. Porque todo indivíduo humano tem vocação para se tornar filósofo; e, no entanto, tornar-se um homem filósofo, a pressão da coletividade é tamanha que isso não acontece”.
(ibid.id.)

O século XX, após testemunhar as duas Grandes Guerras, foi também uma época marcada por acentuados questionamentos sobre o valor e o poder da razão. Parece-me que, nos dias atuais, as tempestades efusivas de ataques à razão tenham encontrado um ponto de descompressão. Estamos mais sóbrios, mas conscientes dos limites, das pretensões da razão; há esforços contínuos no sentido de discutir, por exemplo, a problemática gerada pela aplicação da tecnologia nas ciências, pela influência do que ficou conhecido por razão instrumental (objeto de crítica do filósofo Jürgen Habermas) – aquela que, servindo ao estabelecimento de meios para alcançar fins determinados, acarreta a dominação técnica do mundo, destituindo o bem de sua autonomia, que passa a ser submetido às regras que entram em jogo na dominação técnica do mundo natural -,etc.
Conche não deixa de nos lembrar a importância da razão como condição para a compreensão de nós mesmos e do mundo em que vivemos. A despeito das suspeitas lançadas sobre a razão – suspeitas que as religiões organizadas adoram alardear, para depreciar o compromisso racional que os homens tem com o mundo – ainda continuaremos a falar da razão (ou razões), que é produto histórico, porque o mundo social, natural e nossas ações fazem sentido. Onde houver a busca pelo sentido, haverá a voz da razão. A razão é, então, esta condição que nos permite compreender como se constrói os sentidos do mundo. A razão nos habilita a produzir sentidos, explicações, a compreender o mundo. Disso se segue que não falta razão aos religiosos, tampouco aos sistemas de crenças que defendem; afinal, tais sistemas procuram produzir um sentido para o universo, para a vida humana, para as relações humanas (ainda que falso). Vale dizer que o sentido na religião se trama na fantasia; só pela razão crítica é possível desconstruí-lo. Não obstante, tanto ateus quanto religiosos exibem uma atitude racional em face do mundo (embora estes últimos não o façam quando se comprometem em defender a doutrina a que aderem). Chauí, à página 84, de seu Convite à Filosofia, dá-nos a saber o seguinte:

“(...) A atitude racional de conhecer a realidade não é senão o trabalho do pensamento para apreender, compreender e interpretar o sentido das coisas, dos fatos, das ideias, ações e valores humanos. É esse ideal do conhecimento que é conservado quando continuamos a falar em razão”.

A razão permite-nos interpretar e conhecer a realidade pelo exercício do pensamento elaborador e reflexivo. A razão permite-nos construir o sentido das coisas. Nos sistemas religiosos, contudo, a razão perde autonomia, está submetida a representações da fantasia, da imaginação. Ela serve à produção da ficção. Ela é sufocada em face de construções (discursivas) de modelos de mundo imaginário. Nesse domínio, a razão se deturpa, se contamina por ideias ou crenças (já que só crenças nos movem, fazem nos comportar de uma dada maneira, por elas lutamos, e muitos de nós por elas morremos) que vão determinar a estruturação de nossos raciocínios. Estudos científicos mostram como nosso cérebro pode aceitar como verdadeiras ideias ou crenças que, libertos das pressões de determinadas formas de “lapidação social”, consideraríamos indubitavelmente falsas.
Doravante, importa ver qual não foi meu sentimento de cumplicidade com autor nas experiências que, nos trechos a seguir, nos relata. Veja-se como a voz da razão bramiu do interior de seu ser. O autor nos confessa ter nascido num ambiente católico, mas a herança cultural que recebera deixou de satisfazer o seu espírito questionador.

“Tendo nascido num país cristão, numa família católica, enquanto, de um lado, meu poder de reflexão despertava e minha vocação filosófica se revelava desde o início da minha adolescência, de outro, eu me via confrontado com as noções de “Deus”, “alma”, “imortalidade da alma”, “pecado”, “arrependimento”, “amor ao próximo”, etc., que, por efeito da pressão e da impregnação educativas haviam adquirido uma espécie de evidência”.
(p. 104)

“A pressão e impregnação educativas” ainda mantinham firmes minhas crenças religiosas, na adolescência. A descoberta do espírito filosófico deu-se em mim mais tardiamente. No entanto, o sentimento de verdadeira libertação do obscurantismo religioso, experimentado por Coche, me foi o mesmo. Preciso dizer que, a despeito de conservar minha crença em Deus, ainda na adolescência, manifestava, sempre que podia, severas críticas à doutrina e às posições da Igreja. Parecia-me ser possível (como o é para muitos ainda que acreditam em Deus) a cisão entre Deus e Igreja, de sorte que eu podia crer em Deus sem defender a Igreja e sua doutrinação (sempre que esta era tomada para parâmetro de avaliação de questões sociais sérias, como o aborto e o uso da camisinha). Sem me delongar nesse tocante, a descoberta por mim da filosofia foi determinante do abandono de uma tradição que me condicionou a aceitar ideias e crenças sem examiná-las com rigor racional. Escreve-nos Conche:

“(...) minha razão me premia a afastar a ideia de transcendência. O sofrimento das crianças, considerado mal “absoluto”, pareceu-me constituir um argumento invencível a toda e qualquer teodicéia. Como Deus sem Providência me parecia inconcebível, afastei a noção de Deus. Vi-me ateu, para grande satisfação da minha razão, talvez também para minha satisfação pessoal”.
(ib.id.)

A razão, em mim, rugiu e tomou o lugar honroso que lhe cabia. Na página seguinte (p. 105), Conche patenteia-nos o significado do cristianismo:

“O cristianismo havia significado e significava para mim o sofrimento: o sofrimento da razão, porque a ideia de Deus não é clara, as “provas” não provam, os testemunhos são duvidosos, os milagres impossíveis – mas eu tinha posto fim a tal sofrimento afastando a ideia de Deus, que agora eu sustentava que só tinha sentido se se admitisse a Revelação, logo apenas para e pela fé; em seguida, o sofrimento da alma e do coração, por eu me viver como um “pobre pecador”, isto é, sempre com uma ideia deprimente de mim mesmo”.

Desejo me deter um pouco neste trecho, porquanto entendo repercutir ele vivamente em meu espírito. É o que eu sentia também, nos momentos mais tenebrosos e aterradores de minha depressão. A imagem do “eu” que construía era demasiado negativa, aviltante. Às visões cristãs do homem, do mundo, da existência mesma pecaminosa do homem, devo as interpretações distorcidas e punitivas que eu fazia de mim mesmo. Entendamos isso. Conche nos ajuda a compreender o cristianismo como religião do sofrimento, por um lado; e religião da culpa, por outro. Nunca me esqueço do momento em que, iniciando a missa, o padre convocava a multidão a bradar em uníssono “somos culpados e reconhecemos nossa culpa”. Não me lembro exatamente da forma das expressões, ou seja, como os enunciados eram proferidos, mas a prática discursiva ainda me lembra: éramos instados a reconhecer que somos pecadores e culpados pelos nossos pecados e devíamos ali pedir perdão a Deus. O sentimento de culpa, no cristianismo, deve ser constantemente alimentado, martelado na cabeça dos fiéis, porque é esse sentimento que os mantém presos à crença na Igreja, como instituição porta-voz da Vontade de Deus, e no próprio Deus, como Juiz cósmico e absoluto. O sentimento de culpa causado pela natureza inalteravelmente pecaminosa do homem é o “arreio” que mantém preso e disciplinado o rebanho. Esse mecanismo de escravização da consciência, que consiste em infundir sentimento de culpa com vistas a conservar a adesão dos fiéis ao universo simbólico e ritualístico da sua religião (no caso especial, da religião cristã) não pode ser percebido como tal, já que ele é construção ideológica e, portanto, coerente com o sistema doutrinário e teológico, que lhe confere base explicativa. 
A doutrina capta um dos sentimentos que nós experimentamos, muita vez: o de culpa; mas ela também capta a consciência que temos de que tendemos a desobedecer a autoridades, de que tendemos a subversões, e também de que temos grande suscetibilidade às nossas paixões (somos coléricos, somos egoístas, ambiciosos, desejamos os excessos, etc.). Vejam-se os sete pecados capitais! Disso se segue que ela impõe a obediência irrestrita a Deus, ou a sua Vontade, exige muito de nós, em sacrifício de nossa natureza. Ela nos implode no íntimo (no ser), na medida em que coloca-nos imperativos que nossa natureza é incapaz de seguir, como “amar a Deus sobre todas as coisas” ou “amar ao próximo como a si mesmo”.
Insisto sempre que o cristianismo se desenvolveu com uma retórica que promove o aviltamento da condição humana. Donde se segue o anunciar que somos pecadores desde o início dos tempos. O cristianismo é a religião do excesso ou extrapolação do imperativo moral. Não nego seu valor na construção de nossa moralidade ocidental, mas quero fazer ver que, em certa medida, suas exigências excedem os padrões humanos, ou melhor, excedem os limites de nosso senso moral (que se desenvolveu, em parte, para alguns, no longo processo da evolução natural). A moralidade pode ter raízes evolutivas na espécie humana, mas claro é também que seu desenvolvimento depende de processos formativos pela cultura.  E quero insistir em que a Bíblia, se lida cuidadosamente, não pode servir de parâmetro para a moral de homens justos que vivem no ocidente do século XXI.
No cristianismo, sofrimento é uma virtude. Isso é patente quando ouvimos ou lemos coisas do tipo “o sofrimento nos faz crescer”, “o sofrimento nos fortalece”. Há, na ideologia cristã, dignidade em sofrer. Cristo encarnou essa dignidade. É ele a figura central graças à qual essa concepção pôde tornar-se o pilar da fé. O sofrimento de Cristo é um exemplo de sofrimento para os cristãos. Com a mesma força e resignação com que Cristo suportou seu suplício até a morte pela crucificação, também os cristãos deverão enfrentar seu sofrimento, seus percalços. Na lógica cristã, não devemos nos revoltar com o sofrimento que nos acomete, devemos aceitá-lo, devemos nos resignar a ele e devemos nos sentir conformados na consciência de que o merecemos, porque somos pecadores. O sentimento de culpa mantém-nos resignados ao sofrimento, porque ela fornece uma justificativa coerente. Somos culpados pelo nosso sofrimento - eis a lógica cristã: o reconhecimento da culpa ou mesmo a necessidade obsessiva de nos sentirmos culpados nos leva a aceitar o sofrimento.
A fé não se abala com o sofrimento; ao contrário, ganha mais força. Isso já foi notado por homens mais competentes do que eu, mas não nos deixa de surpreender até hoje. A fé estará sempre divorciada da razão, nesse sentido, porque não nos permite entender que o sofrimento não nos torna dignos, não nos beneficia, que todo esforço da vida segue no sentido de evitá-lo. Não há, definitivamente, recompensa alguma em sofrer. Não há benefício no sofrimento. A fé não nos permite ver isso. A razão prescreve: "se algo não lhe serve para livrá-lo do sofrimento, dispense-o!" A fé, ao contrário, prescreve: “ainda que algo não lhe sirva para afastar ou evitar o sofrimento, não o dispense, agarre-se a ele com mais força”. Isso explica porque encontramos ainda hoje aqui e ali masoquistas cristãos que se flagelam. O cristianismo é a religião do culto ao sofrimento e da dor. Assim, o cristianismo ensina que o sofrimento é justo, porque pecamos e só podemos chegar a Deus pelo reconhecimento de que somos culpados. Só  pode, contudo, se inclinar a Deus aquele que se arrependeu, após ter se reconhecido culpado. Pecado-sofrimento-culpa-arrependimento esse é o caminho torturante e aviltante, único aliás, que nos leva a Deus. A consequência pode ser desastrosa para o psiquismo humano: o pecado, um flagelo psíquico; o sofrimento, o bem necessário; a culpa, uma auto-punição reconhecida; e o arrependimento, uma dor ofertada a ideia de Deus em sacrifício. O fiel se sacrifica, é ele também o cordeiro sacrificado para a adoração da ideia de Deus.
Conche, então abandona a religião, permitindo que a filosofia ocupe o lugar que antes era ocupado por aquela:

“(...) a filosofia significava para mim a felicidade e, dia após dia, me proporcionava tal felicidade”.
(ibid.id.)

Não era, entretanto, qualquer filosofia que lhe acarretou felicidade.  Era a filosofia de Montaigne, de Lucrécio, de Epicuro, dos céticos e dos pré-socráticos. Confrontada ao espírito religioso, o espírito filosófico descoberto por Conche permitiu-lhe estimar o homem e o coração humano.

“(...) Montaigne considerava Sócrates uma figura mais elevada do que Jesus Cristo; constatei que, sendo o evangelho impotente para modificar o coração do homem, não havia cristãos de fato; perguntei-me enfim se havia sentido em propor, como Jesus Cristo, um ideal impossível aos homens. (...) senti crescer minha estima pelo homem e pelo coração humano.”

(p. 106)
(grifo meu)

Conche seguirá meditando sobre o significado de “tornar-se grego”. Observará, no decorrer de suas meditações, que há muitas filosofias gregas e que teve, por isso, de escolher umas por exclusão de outras. As preocupações do filósofo que daí se seguem não me interessarão aqui.
A esta altura, e intentando pôr um  termo a este texto, posso apresentar algumas conclusões a que se pode chegar após a leitura deste texto:

1a) clara está a influência que os livros exercem na minha formação intelectual e humana; clara está a minha intimidade com os livros, a minha insistência em recorrer a eles como espaços de abertura para o diálogo com o leitor;

2a) Uma posição ateísta bem fundamentada depende de que esteja nela pressuposto um espírito filosófico. Dele depende sua consistência. Lembro que a filosofia desanuviou-me a consciência, abrindo caminhos para que eu me tornasse ateu;

3a) Tanto a descoberta do espírito filosófico quanto a adoção do ateísmo tiveram uma repercussão muito benéfica em minha alma. Tanto uma quanto outra infundiram em mim um sentimento de profunda libertação e felicidade;

4a) Não há demérito em abandonar um conjunto de crenças e convicções sedimentadas na consciência por força de uma longa tradição cultural, para assumir um sistema de visão de mundo contrário, que nos pareça vantajoso ou útil.

A tradição não pode nos determinar, não pode ditar quem somos ou seremos. Ela não pode servir, para todos os atos de nossa vida, como parâmetro inquestionável.  Não é porque cresci e me formei numa tradição que me inculcou valores e crenças aparentemente coerentes sobre como o mundo funciona que tenho eu, forçosamente, que me agarrar a ela até a morte. Comportar-se, assim, é rejeitar a possibilidade de descobrir o espírito filosófico em si. É evitar avançar na compreensão mais profunda e sólida do mundo (eu diria “mais verdadeira”).É preciso ousar! É preciso desconfiar, ao menos uma vez, para descobri-lo. Eu ousei! Eu decidi por outros valores: não mais a Bíblia e seus discursos que, hoje, descobri resultarem de falsificações e fabricações por escribas inescrupulosos; e sim o saber filosófico com seus vastos jardins de reflexões.
Não mais o dogmatismo, mas o exercício do pensamento livre e crítico. Não mais as respostas prontas que dizem “verdades” insuspeitas, mas as questões; as dúvidas mais do que as certezas definitivas; o debate racional e equilibrado, e consistente, mais do que a pregação cansativa, as ladainhas e a martelação dos dizeres cristalizados, dos clichês vazios e enfadonhos.
Para uns, posso parecer enfadonho e desagradável; para outros, interessante e admirável. Não pretendo agradar a todos; não sou mais cristão! Ou não traz o cristianismo ainda um sentido universalizante, a saber, a pretensão de ser uma religião universal - e única verdadeira? Não sou mais o dono da verdade, não detenho verdade, mas esforço-me por buscá-la onde quer que ela esteja; julgo válida a empresa; por isso também a religião tornou-se-me dispensável e somente quando eu a abandonei repousei minha alma na felicidade filosófica.







Um comentário:

  1. [depois vc me passa a bibliografia deste primeiro livro q cita?! pode ser por email, please.;) interessei-me muito!]

    esse seu título é bem instigante...
    hj em dia, ouve-se muito e vê-se por aí coisas do tipo: se vc concorda, não tem opinião; se discorda, é um chato ou rebelde.
    difícil...

    beijos
    vou ficar meio off.

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