quinta-feira, 1 de março de 2012

"O meu entusiasmo para a vida provém de minha falta de vontade para me conformar" (BAR)



Na contramão


“(...) há três tipos de autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de reminiscências, ou diretamente a partir de livros alheios. Essa classe é mais numerosa. Em primeiro lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. Esses são raros”.

(Schopenhauer, A arte de escrever, p. 57)

Escrever é uma forma de arte? Escrever é como o artesanato: demanda laborioso trabalho espiritual. Se comparada à arte, a escrita é também criação, reconstrução da realidade, também demanda uma técnica e se produz com um estilo. Escrever me é um desafio em que me envolvo habitualmente. E não pensem que eu não submeta meu texto a releituras revisionais. A peneira do intelecto é mais eficiente quando relemos nossos textos. Há sempre um pensamento extraviado da configuração semântica pretendida. Há sempre um enunciado mal arranjado na estrutura da sintaxe. Há sempre uma palavra que não está adequada, que destoa da rede conceitual materializada no texto.
Confesso que eu estaria mais propenso a afirmar-me como pertencente ao terceiro grupo de autores, a que se refere Schopenhauer. Mas o limite entre este grupo e o segundo não me parece ser tão marcado assim. Se há um limite, ele é tênue. Muitos pensamentos dignos de nota trafegam em minha alma, muitas vezes ao dia; mas seus movimentos são difusos e suas manifestações carecem de densidade; não raro, se me afiguram como uma brisa roçando a pele; são leves e fugazes. Quase não os sinto. E para pensar é preciso antes sentir. Pessoa nos ensinara: pensar é sentir. Talvez, não precisemos sentir previamente ao pensar; tem razão Pessoa: pensar é sentir, o que significa dizer que o pensamento talvez seja o sentimento capturado em palavras, corporificado verbalmente. O pensamento é um corpo verbal de sentimento. Isso explica por que os pensamentos que derramo sobre o papel são carregados de emoção, de sentimento. Há neles uma carga afetiva.
Certa vez pareceu a alguns que eu enunciava uma obviedade, ao ter declarado “as palavras são grávidas de sentimento”. Salvo o efeito literário ou poético deste enunciado, houve quem o julgasse lugar-comum. Mas um olhar mais aguçado mostra que tal não é o caso. Claro está que o enunciado aqui reproduzido foi apartado de seu contexto; e sabemos que nada na língua significa sem estar ancorado num contexto. O uso da língua é uso social contextualizado. Na ocasião, a frase figurava num debate cuja questão consistia em querer saber se as palavras valiam mais ou menos que os sentimentos. Embora isso não tenha feito muito sentido para mim, manifestei o que pensava.
Podemos escrever para adestrar os pensamentos. Podemos escrever para conferir-lhes forma, coesão, exatidão, clareza. Na mente, nem sempre eles são límpidos, fortes e coesos. Não raro, estão embaralhados, fragmentados, desencontrados; são magros, pouco encorpados.. Escrever, nesse sentido, é uma atividade que nos permite arranjá-los segundo as coerções de uma modalidade. Quiçá, não devêssemos falar em coerções da escrita, já que isso tornaria o escrever uma atividade castradora da liberdade espiritual. Longe disso: a escrita pode ser livre, subversiva. Pode romper com certos cânones do academicismo. E, de fato, não há limites rigorosos entre fala e escrita, a despeito do que comumente pensamos.
Um assunto puxa o outro, conforme vê o leitor. E este texto é escrito à medida que os pensamentos me fluem. Sinto, e isso me basta!
Nasci para viver na contramão. E haveria outra forma de melhor expressar isso senão pelo exercício do magistério? E não vão na contramão os educadores (professores, pedagogos... alguns pais)? Não cabe a nós resistir, malgrado existirem condições adversas, malgrado a existência de ideologias do desencanto, do pessimismo? Lendo o livro Política para não ser idiota, deparei com uma definição de utopia que me deixou, momentaneamente, com um assombro deleitoso: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. O enunciado é auto-explicativo. Escusa comentá-lo. Mesmo sendo o paraíso do imaginário de idealistas, a utopia nunca poderá deixar o horizonte humano. E tal como o horizonte, que não traça rigorosamente uma divisão entre céu e terra, a utopia não demarca nitidamente a separação entre o irrealizável e o realizável. Dentro de um projeto, há possibilidades de realização que excluem outras. Há sempre, contudo, uma parcela realizável e realizada. A teoria de Marx pode ser considerada como utópica; seu comunismo deveria favorecer a realização plena dos potenciais humanos, a começar pelo trabalho, que deveria ser um exercício de liberdade. A história, contudo, mostrou-nos um lado obscuro e tenebroso do comunismo que Marx não podia vislumbrar. Ele não vivera o suficiente para assistir ao sequestro de sua teoria por ditadores ambiciosos e implacáveis. O fracasso do comunismo não implica acreditar que o capitalismo é ainda o melhor sistema econômico. Talvez, consoante me disse uma vez uma amiga professora de História, o desejável fosse uma combinação do capitalismo com o comunismo. É possível que estejamos aqui diante de uma utopia, mas lembremos que é ela que nos permite caminhar...
Doravante, intentando pôr um ponto final neste texto, sem pretender que ele tenha alcançado o acabamento do sentido (os sentidos estão sempre abertos), tomo para ancoragem de minhas observações posteriores parte do último comentário de minha querida amiga Zélia, fiel leitora e enunciadora perspicaz:

Infelizmente há os aproveitadores que administram a miséria mental e espiritual dos fiéis através da sua angustia existencial. É preciso um longo processo para remover o ser humano de sua opinião cega, e sinceramente eu não acredito que isso um dia aconteça! Pois a maioria não gosta de refletir, são pessoas tão arraigadas em suas crenças, e é tão cômodo viver no conforto do senso-comum sem questionar.”

(grifo meu)

Achei a ideia de “administrar a miséria mental” uma imagem muito pertinente, pois, afinal, é disso mesmo que se trata: quando entramos para uma religião ou quando uma religião entra em nós, delegamos aos agentes da doutrinação (pastores, padres, pais, e correligionários) a administração de nossas formas de perceber o mundo, de pensá-lo e discuti-lo. Entendo “perceber” como interpretar. É na percepção que as sensações se organizam e ganham sentido. A administração se dá pela força penetrante da ideologia religiosa, que se instaura na inversão base de todas as outras formas de pensamento ilusório que configuram a doutrina: Deus criou os homens à sua imagem e semelhança. Não é difícil mostrar que esse enunciado inverte a relação entre a realidade e a ideia. Não é difícil mostrar que o real está de ponta a cabeça. É justamente o contrário. Se desfizéssemos essa inversão feita pela ideologia, as coisas ficariam mais claras ao espírito e poderíamos ver o mundo sem a bruma que nos fez recair sobre a consciência a religião. Quando assumimos que são os homens que produziram seus deuses (incluindo aqui o Deus judaico-cristão), então compreendemos, entre outras coisas, por que o número de deuses é proporcional à quantidade de culturas. Deuses são entidades culturais, portanto, produtos simbólicos; portanto, produtos da imaginação humana. Convém referir um trecho elucidativo, em O que é imaginário? (1997):

“Através do imaginário, o homem, como define H. Bérgson, “é uma máquina de produção de deuses”. A isso acrescentamos que o homem em si mesmo é fantástico, à medida que manifesta a faculdade humana de transcender o humano. Ao construir os deuses, o homem toma como referência uma realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. Nesse processo, o imaginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbólico que utiliza”.

(p. 37)

O Deus de Jesus venceu os deuses pagãos; mas esse Deus tem de conviver com Shiva (terceiro deus da trindade hindu, a quem se atribui um poder destrutivo e fecundante), mas também com  Brahma, Oxalá, Iemanjá, Oxóssi, Oxumaré e tantas outras divindades. Seriam todas estas produto de uma ilusão ou apenas o Deus judaico-cristão é o deus real e verdadeiro? Ou será mais sensato dizermos que só pensamos sê-lo porque a cultura ocidental formou-se a partir dos valores, ideias e visão de mundo da cultura judaico-cristã (não ignorando o outro afluente que é a cultura greco-latina) e por que formados nessa cultura podemos assim pensar? A máxima segundo a qual somos produtos de nossa cultura é aqui evidente. Pensamos o que pensamos porque somos antes de tudo indivíduos que compartilham um mesmo código cultural, um mesmo sistema de interpretação e compreensão de mundo. Esse sistema deve trabalhar a dialética entre homogeneidade e diversidade, convergência e divergência.
Permita-me alongar-me um pouco mais. Sabe-se que mito e religião são indissociáveis. Mito é um ingrediente indispensável à religião, visto que religião se constrói na base de histórias sobre a criação do mundo, a influência de deuses, sua natureza, sua relação com os homens, etc. É interessante descobrir que o mito da Arca de Noé, que retrata um dilúvio provocado pela ira de Deus fundiu-se com outras tradições indígenas. Na Austrália, a oeste, os aborígenes acreditam que o que sobrou da arca pode ser encontrado ao sul do rio Fitzroy. No Peru, os incas acreditavam que o deus Viracocha, não satisfeito ao tentar pela primeira vez criar os homens, lançou sobre eles um dilúvio, transformando-os em pedra. Na Grécia Antiga, acreditava-se que Zeus mandou um dilúvio sobre os homens, para puni-los em virtude da arrogância deles. O Egito antigo também possuía seus deuses: Rá, deus-sol e criador; Chu, deus do ar úmido; Geb, deus da Terra, entre outros. Também os egípcios tinham seu mito da criação e sua visão de mundo era plasmada numa mitologia demasiado complexa, em que a luta entre caos e ordem, criação e destruição constituía tema comum às suas histórias.
Devo dizer a possíveis desavisados – embora a você, amiga, não seja necessária essa advertência – que religiões são temas interessantíssimos e que merecem ser estudados. Mitos contam muito sobre nós, dizem as nossas verdades. Contam a nós como nos relacionamos com o mundo, como compreendemos a existência, que insiste em resvalar no absurdo, a despeito de insistirmos em criar deuses que nos propiciem explicações simples e fáceis para o mistério que nos abraça. Mas estes mesmos deuses são expressão de quem somos. Em alguma medida, eles representam o humano em nós. São nossos espelhos, imagens de nós que projetamos sobre a Angústia. Insisto, para que não sobre qualquer dúvida, na importância do mito como um guia, já que nos orienta em nossas relações com o mundo. No mundo antigo, ele ajudava as pessoas a encontrar sentido para as suas vidas. Ele é um elemento atuante na estrutura de nossas mentes, de sorte que se tornara ponto de partida para a psicologia. Ele esclareceu mecanismos misteriosos da mente humana e Freud e Jung reconheceram nele um fértil caminho para os estudos da mente.
Quando lemos um pouco sobre religiões, sobre suas entidades, sobre seu sistema de ideias e crenças, sobre sua simbologia, então devemos concluir que o Deus pessoal e único em que milhões de pessoas acreditam é apenas a versão de divindade moldada por um imaginário cultural específico. Ou todos os deuses referidos aqui são verdadeiros ou nenhum deles o é. Por que seria o Deus judaico-cristão o verdadeiro? Não temos critérios para estabelecer isso, a menos que recorramos à autoridade. De fato, é o que sucede. O cristianismo ganhou força, desde seu surgimento como religião organizada, pela proficiência de uma autoridade, chamada Constantino. E ainda hoje entre nós sua força e sua legitimidade são garantidas pela autoridade (do Papa, dos arcebispos, dos bispos, dos padres, dos diáconos, dos pastores...). É notável que, em nossa era, gozemos de condições favoráveis à negação de sistemas autoritários. Uma autoridade que vise a legitimar seu poder contrariamente à vontade de uma maioria tenderá a ser sobrepujado.  Temos assistido ao declínio de governos ditatoriais como na Líbia. Se a autoridade não é conferida por um consenso e se quem a assume não a exerce visando ao bem comum criará as condições para que dela destituído. Claro que isso depende de uma tomada de consciência pelas classes oprimidas. Felizmente, é o que temos assistido em países como a Líbia. A democracia não se faz da noite para o dia, é claro, mas a luta vale a pena.
Mas eu falava de religiões e queria encerrar dizendo, amiga, que é necessário que qualquer grupo de oposição ao status quo venha a compreender de que forma o aparato ideológico molda a consciência de indivíduos que aderem a determinados sistemas de crenças. No caso das religiões, vale procurar entender como a ideologia é capaz de legitimar um conjunto de crenças, universalizá-las, tornando-as inquestionáveis. O seguinte excerto colhido da obra O que é ideologia, de Marilena Chauí, dá-nos um ponto de apoio, serve-nos como uma âncora para que desenvolvamos nossas reflexões. Fica aqui um convite a leitores ateus ou simplesmente impregnados do espírito filosófico que venham a ler este texto. Tendo sempre em conta que a ideologia está a serviço do poder e que através dela o real aparece de ponta a cabeça, refletindo-se na consciência dos homens de modo abstrato e invertido, as palavras da filósofa brasileira é como um frescor em nossa ferida ardente:

“(...) segundo Marx, a inversão religiosa não “reflete” coisa alguma – sendo criação do espírito em um mundo sem espírito, a religião é produção imaginária de algo que não existe. A inversão consiste em atribuir a essa criação do espírito a origem da realidade, em lugar de compreender que é a miséria real que está produzindo a crença no espírito, numa divindade poderosa que pune e recompensa as ações humanas. A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia, e por isso ela anestesia como o ópio”.
(p. 96)
(grifo meu)

Aqui se expôs um pouco do pensamento de Marx sobre ideologia. O essencial está aqui. Autores posteriores também refletiram sobre o conceito. Importa ver o caráter universalizante da ideologia e sua capacidade de mascarar a realidade, fazendo-a aparecer à consciência de tal modo que as reais causas da formação daquela sejam apagadas. Assim é que podemos dizer que sentimos Deus nas pequenas coisas, que ele se manifesta, embora de modo “escuso” ou incompreensível, num pressentimento, numa experiência de interiorização, ou nos acontecimentos que nos deixam pasmados, ainda que a realidade nos dê, em todo momento, um tapa na cara, como quem se esforça por nos acordar de um sonho. Deus é um sonho que a realidade insiste em exorcizar. Mas muitos continuam a sonhar e a ver o mundo, a senti-lo (pensá-lo) pela lente distorcida (ideologia) que a religião cimentou em suas cabeças.
Sigamos na contramão, minha amiga, não aceitando sem examinar ideias que nos são dadas em embrulhos vistosos, atraentes; suspeitemos de seus conteúdos. A suspeita, nesse caso, anda em companhia do bom-senso. 

3 comentários:

  1. Bruno,

    Impressionante essa sincronicidade...hj acordei pensando que eu ando na contramão...enquanto lia seu artigo, antes mesmo de vc citar, pensei nos deuses hindus e suas personificações, e logo me levou aos budas tb...a mensagem que cada um traz. Eu penso muito enquanto leio , eu penso e reflito mais ainda depois que leio...

    Vc clarifica muito os obscuros caminhos por onde ando...

    Obrigada, sinceramente obrigada!!

    Continuo com a minha máxima: Minha religião é o AMOR, e isso me basta!!
    Beijo carinho e fraterno pra vc!!

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  2. Verdade meu amigo! Quando falei em administrar a miséria existencial, não pensei em Marx, mas é exatamente isso, religião e ideologia caminham juntas “religião é o ópio do povo” ela engessa, anestesia, usa de mecanismo psicológicos para arrebanhar as pessoas apelando para a espiritualidade em troca da salvação eterna, já a ideologia faz apelo à razão, de forma enganosa, com a promessa de uma vida melhor.

    Já li o livro o que é ideologia da Marilena Chauí e logo em seguida li O que é realidade de João Francisco Duarte Júnior. Acho que os dois se complementam. Recomendo!

    “(...) o sonho, a ilusão, o erro estão nas alturas; a realidade, no solo. Quando se trata de abandonar o irreal, de voltar-se ao mundo sólido e concreto, caímos na realidade, colocamos os pés no chão. O real é o terreno firme que pisamos em nosso cotidiano.” João F. D. Júnior.

    É nesse terreno firme das ideias que tenho pisado ultimamente, longe das ideologias, longe da utopia, Quando leio penso bastante, analiso, faço a reflexão, concerteza não aceito, sem examinar com cuidado o que esconde as entrelinhas. Há tempos “caí na real”.

    Amei o texto meu amigo e adorei ser sua interlocutora! rsrs
    Bjusss

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  3. Que bom, amiga, que apreciou! E seus comentários sempre primando pela lucidez. Já li o livro de João F. D. Júnior. Tenho-o em minha estante.

    Beijos, querida!
    Saudades!

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