terça-feira, 27 de março de 2012

"Deus escreve errado com linhas enganosas" (BAR)




 
Condição humana

A visão caída
Dos olhos escurecidos
Não é mais capaz de ver
O invisível
Nem crer no absurdo
Morre-me a última pétala
Sob a bruma
Que me conforta
Sou filho do mistério
Do imperativo da razão
Que conjuga a emoção
Que me inunda o coração
E permite ver sem crer
Eis a inversão
Sensata límpida
No silêncio da infinita
Solidão num Universo
Indiferente!
E a morte, dantes fiel amiga
Lembra-me que meu tempo é pouco
E a vida uma corrida em direção a ela
Somos todos transeuntes
Com prazo de validade.

(BAR)

                                    A obscura maneira de pensar


       Confesso que me espanto, quando examino o discurso reproduzido pelos religiosos por força da massificante doutrinação, e reconheço as inconsistências, as contradições, os disparates, a desarmonia semântica, a falta de bom-senso. Vejamos, então. Note que a oração “se Deus encheu sua vida de obstáculos” permite-nos pressupor a proposição “Deus enche sua vida de obstáculos”. O conteúdo pressuposto é inferido pela ocorrência de “se” mais o verbo no presente do indicativo, como na frase “Se ela dança, eu danço”, em que o “se” permite pressupor a proposição “ela dança” (trata-se de um evento habitual). Assim, da frase “se Deus enche sua vida de obstáculos”, eu infiro o pressuposto “Deus enche sua vida de obstáculos”, Essa afirmação, essa proposição é admitida como consensual, verdadeira, em algum sentido. Assim, quem a produz assume que a crença em que Deus pode causar-nos obstáculos é verdadeira, é válida. Pois bem. Mas aqui se verifica o primeiro problema de ordem lógico-semântica. Esse pensamento entra em conflito com uma série de pensamentos a respeito de Deus, consensualmente válidos para a comunidade religiosa, como os que ensinam ser Deus um ser de amor, um ser que é providente, que nos quer fazer o bem, que é moralmente bom e justo (embora nem sempre os predicativos bom e justo possam ser ditos de um mesmo sujeito: alguém que é bom pode nem sempre ser justo; e, se acaso for justo, não estará necessariamente produzindo o bem extensivo a todos). Ocorre que pensamentos como “Deus pode criar obstáculos para a nossa vida” e “Deus é bom e providente” não podem coexistir numa mesma formação discursiva (se bem que a formação discursiva no domínio discursivo religioso inclui como parte de sua normatividade as lacunas, as contradições e os desvios lógico-semânticos de toda sorte). Não paremos por aí. Fiquemos mais perplexos, ao considerar o que vem depois daquele enunciado. Note que se justifica o que foi assumido como pressuposto antes. Assim, “Deus te enche a vida de obstáculos”, mas o faz “porque conhece sua capacidade de superar cada um”. Lembrou-me Freud, que ensina sobre as três fontes do sofrimento humano: a fragilidade do corpo, as relações sociais e as forças da Natureza indiferente. Bem, os religiosos acrescentam a esta uma outra fonte, a saber, Deus. Ele é também fonte de nosso sofrimento, ele o produz. E a perversidade dele é tal, que ele o produz para que demonstremos nossa força de superação, com que propósito não sabemos... Mas fico imaginando se uma mãe ou um pai amorosos, embora acreditassem ou soubessem da força que seu filho tem para superar problemas na vida, iria querer infringir-lhe sofrimento. Que pais encheriam seu filho de obstáculos, com a única razão de verificar sua força de superação? Certamente, se agissem assim, seriam moralmente censurados, já que seu comportamento estaria desafinado com os padrões morais esperados por pais que desejam a felicidade dos filhos. E mais: a ideia de que poderia existir um ser todo-poderoso que, por um capricho obscuro, pode julgar conveniente lançar-me uma série de dificuldades na já aridez da vida é, para mim, apavorante. Longe de me confortar. Ora, já não nos bastam os problemas que nos atingem casualmente, sem que sejamos por eles responsáveis?
Finalmente, se observarmos o fim da mensagem, chegaremos a uma conclusão que dispensa demasiada ponderação: NÃO É E NUNCA SERÁ O SOFRIMENTO UM OBSTÁCULO PARA A FÉ, PARA A CRENÇA NA EXISTÊNCIA DE UM DEUS BOM E TODO-PODEROSO, CHEIO DE AMOR PELA HUMANIDADE E DECIDIDAMENTE INTERESSADO PELO DESTINO DE MULHERES, HOMENS E CRIANÇAS DESTE MUNDO. REPITO: O SOFRIMENTO EM ESCALA MUNDIAL NUNCA SERÁ UM ESTORVO PARA A FÉ. AO CONTRÁRIO, É SEU COMBUSTÍVEL. A FÉ É MAIS FORTE NO SOFRIMENTO OU GRAÇAS A ELE. O SOFRIMENTO PRECISA SEMPRE SE FAZER PRESENTE PARA QUE CONTINUEMOS, PARA QUE NÃO DESISTAMOS DE ACREDITAR EM DEUS. POR ISSO, ENTRE OS RELIGIOSOS, É COMUM OUVIR “ÉS UM HOMEM DE POUCA FÉ”, SEMPRE QUE NOS VEMOS FRAGILIZADOS EM FACE DE ALGUMA DIFICULDADE. O sofrimento é uma VIRTUDE, sofrer é DESEJÁVEL para que a crença seja mais forte, mais viva, mais poderosa. E Epicuro continua inaudível, infelizmente, mas ele incomoda. Ah! Se incomoda!


"Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. 
Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus.
Se pode e não quer, é invejoso: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus.
Se nem quer nem pode, é invejoso e impotente: portanto nem sequer é Deus.
Se pode e quer, que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então existência dos males? 
Por que razão é que não os impede?"

(Epicuro)

2 comentários:

  1. hum... eu acho muito irônico tudo isto.
    conceitos dogmáticos ignoram a necessidade de compreensão; praticamente um afronta.
    é o 'poder', né?, que corrompe e molesta o mundo.

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  2. “Se Deus encheu sua vida de obstáculos...”.

    “Pare de sofrer” é o lema das igrejas evangélicas... Viva seu sofrimento com toda fé e esperança... Após a tempestade vem a bonança... Aquilo que não nos mata nos fortalece... O sofrimento é redentor... Os pobres e sofredores esses herdarão o reino de deus. É bíblico isso! São pensamentos ofensivos, repulsivos e cruéis, que subestimam a inteligência de qualquer um, mas infelizmente é real. O sofrimento ao longo da história tem sido o combustível, usado como elemento manipulador e doutrinador da FÉ dos desesperados.
    Fico pensando Bruno, o que leva esse ser benevolente, que estar no comando de tudo, tirar a vida de quatro pessoas, sendo três dessas, crianças da mesma família, lançando-lhes um raio em suas cabeças enquanto brincavam na chuva? Esse fato aconteceu há alguns dias em uma cidade aqui próxima a minha.
    Enfim, nós sabemos o que ta por trás de tudo isso, a mercadologização da fé, como disse antes, que se fortalece em cima da miséria existencial dos fiéis, que na medida que abre mão da faculdade de pensar, a sua subjetividade é subjugada ao totalitarismo dessa industria que se fortalece a cada dia. Como dizia Marx em suas concepções ideológicas do mundo do trabalho, mas acredito que cabe aqui também, a subjetividade é eliminada progressivamente do mundo e das relações sociais, pois estas devem ser alienantes e alienadoras.

    Bjusss

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