Mobilismo e Imobilismo
Heráclito e Parmênides em confronto
RESUMO
Dividida em cinco partes,
esta exposição se destina à apresentação e à comparação dos pensamentos dos
filósofos, chamados na tradição historiográfica, de pré-socráticos, a saber, Heráclito
de Éfeso (540-480 a.C)
e Parmênides de Eléia (504-450
a.C). Na
primeira parte, que é introdutória, damos a conhecer a primeira fase da
filosofia grega e apresentamos, em linhas gerais, as características do
pensamento pré-socrático. Também destacamos e definimos quatro conceitos que
estão à base do desenvolvimento desse pensamento. Na segunda parte, damos a
saber o pensamento de Heráclito, conferindo especial destaque ao papel
desempenhado pelo conceito de fogo na compreensão que esse filósofo
tinha do real. Na terceira parte, apresentamos o pensamento de Parmênides,
destacando o seu conceito de Ser. Na quarta parte, cotejamos o pensamento de
Heráclito ao de Parmênides, a fim de assinalar, basicamente, as características
que os distanciam, sem descurar de notar em que medida eles se aproximam. A
quinta parte recobre as conclusões deste estudo.
1. O período Cosmológico
A primeira fase da filosofia grega ficou conhecida, na tradição
historiográfica, como período cosmológico. É lugar-comum dizer que
a filosofia é, em sua aurora, uma cosmologia. Em outras palavras, a
filosofia nasce como cosmologia. Essa fase se caracteriza pelo nascimento do
pensamento científico ocidental. É o período em que germinam as primeiras
sementes do pensamento ocidental, período – vale frisar – em que grandes gênios
filosóficos produziram os primeiros conceitos filosóficos praticamente sem
contar com qualquer influência prévia. Trata-se do período em que viveram os
chamados filósofos pré-socráticos, expressão que, embora consagrada
pela historiografia oficial, não é fiel aos fatos. Um dos problemas ligados a
essa expressão é que ela faz crer que aqueles pensadores viveram antes de
Sócrates; no entanto, alguns deles foram contemporâneos de Sócrates, entre os
quais estavam Demócrito e Anaxágoras. Zenão conheceu Sócrates; e Empédocles era
mais jovem que o sofista Protágoras (contemporâneo de Sócrates). Convém,
portanto, ficar claro que os filósofos pré-socráticos são
assim chamados em virtude da natureza dos temas de que se ocuparam, e não
porque tenham vivido antes de Sócrates.
Como tenham sido os primeiros cosmólogos, os filósofos
pré-socráticos preocuparam-se em estudar a natureza ou phýsis,
entendida como estrutura fundamental do cosmo.
Por se tratar de um conceito fundamental nas investigações dos filósofos
pré-socráticos, destinaremos uma seção para definir, com mais clareza, o que
é phýsis; a este conceito reuniremos também o de arkhé, cosmo e
lógos. Phýsis, arkhé, cosmo e lógos são
conceitos cuja compreensão depende do esclarecimento sobre a problemática de
que se ocuparam os pré-socráticos. Por se interessarem em investigar as leis do
universo (cosmo) e sua estrutura, esses filósofos eram chamados, acertadamente,
de cientistas naturais.
Conquanto estivessem preocupados com questões tais como a origem
do universo e sua estrutura fundamental, não foram os pioneiros nessa seara. A
genialidade dos pré-socráticos repousava sobre a maneira como abordavam essas
questões. É justamente na maneira como eles as abordavam e respondiam a elas
que residia a singularidade do pensamento desses filósofos.
1.2. Características do pensamento
pré-socrático
Os filósofos pré-socráticos eram homens dotados de grande saber
teórico e prático, aos quais foram atribuídos feitos notáveis, como prever
eclipses, medir a distância dos navios no mar (Tales de Mileto), traçar mapas
da Terra, construir relógios de sol (Anaximandro). Esses filósofos trouxeram
uma novidade, em face das explicações míticas e das crenças populares a respeito
do mundo: o uso da especulação racional na tentativa de compreender a realidade
que se manifesta aos homens.
Os filósofos pré-socráticos empreenderam uma busca pelos primeiros
princípios. Princípio é o começo, mas também a causa de tudo. Aristóteles, por
exemplo, de cuja pena nos chegou o saber sistemático sobre a filosofia
pré-socrática, distinguia a ciência, para ele definida como conhecimento pelas
causas, da metafísica, cujo escopo são as primeiras causas ou princípios. O
princípio é, portanto, o fundamento, quer no campo da física, da ética, quer no
da lógica, quer ainda em qualquer outro campo. Princípio ou fundamento é aquilo
de que todas as outras coisas derivam, de tal modo que ele mesmo não é derivado
nem deduzido de nada.
Com vistas a conferir um caráter didático ao desenvolvimento desta
seção, apresentaremos as três características básicas do pensamento
pré-socrático, destacando-as em parágrafos distintos, não sem antes notar que
se há um problema que obsediou os gregos em geral, e os pensadores
pré-socráticos em particular, esse problema foi o da transitoriedade ou geração
e corrupção de todas as coisas.
A primeira característica diz respeito à maneira científica ou racional com que os
filósofos pré-socráticos investigavam o mundo e com que elaboravam as
explicações sobre as ocorrências dele. Assim, o mundo era visto como uma
totalidade ordenada e inteligível, cuja história apresenta um desenvolvimento
que pode ser explicado. Trata-se de um mundo cujas partes se organizavam num
sistema compreensível. Não era mais um conjunto aleatório de partes nem uma
série arbitrária de eventos. Enquanto totalidade ordenada, podia ser explicado
por meio de um sistema estruturado por princípios gerais aplicáveis aos
fenômenos. O cosmo ou universo era explicado com base em suas características
internas. Assim, um tipo de evento era explicado tendo em conta a relação que
mantinha com outro tipo de evento. Não havia, portanto, apelo a causas
exteriores, transcendentes (por exemplo, as ações dos deuses), de sorte que os
pré-socráticos se distanciaram do pensamento mítico. Essas causas eram
imanentes ao mundo.
A segunda característica notável está na forma sistemática com que se apresentavam as
explicações. Elas procuravam dar conta da totalidade dos eventos naturais por
meio dos mesmos termos e métodos. Os filósofos pré-socráticos elaboravam
princípios gerais e comuns, visando a explicar os mais diversos fenômenos
físicos.
A terceira característica diz respeito ao fato de as explicações serem econômicas, o
que significa dizer que se compunham de poucos termos, exigiam poucas operações
e davam margem a poucas lacunas. Destarte, a multiplicidade dos fenômenos se
reduzia a uma ordem simples e inteligível, de modo que a maior quantidade de
eventos possível poderia ser explicada com o mínimo de termos e operações. Por
exemplo, o filósofo Anaxímenes procurou explicar a existência de tudo,
postulando o ar como princípio originário.
Sumariando o que se expôs até aqui, a filosofia pré-socrática
surgiu como cosmologia ou física. O mundo era seu objeto de investigação.
1.3. Quatro conceitos importantes no
pensamento pré-socrático
As escolas pré-socráticas eram, assim, designadas com o objetivo
de sublinhar sua preocupação principal, cujo objeto era a phýsis.
Considerem-se, em alíneas, os conceitos de arkhé, cosmos, lógos e phýsis.
a) arkhé
Os primeiros filósofos buscavam a arkhé, ou seja, o
princípio absoluto (primeiro e último) de tudo que existe. A arkhé precede
a tudo, está no começo de tudo e no fim de tudo. É o fundo imortal e imutável,
incorruptível de todas as coisas. É o que as faz surgir e as governa. É a
origem, mas uma origem que é perene e permanente. Com a arkhé, os
primeiros filósofos evitaram uma regressão ao infinito da série explicativa
causal.
b) cosmo
Para os pré-socráticos, o cosmo é o mundo natural dotado de ordem,
harmonia e beleza. O cosmo recobre também o espaço celeste, enquanto realidade
ordenada de acordo com princípios racionais. A ideia básica pressuposta aqui é
que o cosmo é uma ordem racional, uma ordem hierárquica, na qual certos
elementos são mais básicos. O cosmo se estrutura de forma determinada e tem a
causalidade como lei principal.
O cosmo é uma ordem universal considerada boa e justa pelos
pré-socráticos. Eles também a consideravam uma ordem normativa.
c) lógos
Lógos é um conceito polissêmico; mas é correto defini-lo como
discurso. O lógos é uma explicação, na qual são apresentadas razões. É nesse
sentido que o discurso dos primeiros filósofos, que se debruçavam sobre o real,
procurando explicar suas causas naturais, é um lógos. Essas razões são produto
do pensamento humano que visa ao entendimento da natureza. O lógos é,
portanto, discurso racional, argumentado, ao longo do qual as explicações são
justificadas e estão sujeitas à crítica e à discussão.
A esta altura, impõe-se-nos dar a conhecer um pressuposto básico
da filosofia pré-socrática: a correspondência entre a razão humana e a
racionalidade do real. É essa correspondência, assumida como
pressuposta, que torna possível um discurso racional sobre o real.
d) phýsis
Phýsis é uma palavra que compreende diversos significados. Três dos quais
se destacam: a) ação de nascer, formação, produção; b) a natureza íntima e
própria de um ser, a maneira de ser de uma coisa; c) a natureza como força
criadora e produtora dos seres. A phýsis é o objeto de
investigação dos primeiros filósofos. Ela pode ser concebida como o mundo
natural, ainda que a forma “natureza”, com que se traduz, comumente, a noção de
phýsis, seja rejeitada por alguns
comentadores, dada a sua inexatidão. De resto, a phýsis designa um substrato
inesgotável e perene donde provém o cosmos. Tudo é phýsis, tudo provém da
phýsis e a ela retorna. Ela é a primeira e última realidade de todas as coisas.
Traduzida para o latim como natura, a phýsis é
a fonte originária de todas as coisas, a força que dá origem, que faz nascer,
brotar, desenvolver-se, renovar-se todas as coisas. É a realidade primeira e
última subjacente aos fenômenos que se dão à nossa experiência. Em suma, phýsis compreende a totalidade de tudo
que é: o céu, a terra, os astros,
a aurora, o crepúsculo, as estações do ano, as pedras, os animais, os homens, a
moral, a política, as ações e os próprios deuses. Assim, nada
vem do nada; tanto a arkhé quanto a phýsis são eternas.
2. Heráclito: o filósofo do devir
De início,
cumpre notar que Heráclito vivera em Éfeso. Procedia de uma família
aristocrática; era reconhecidamente um misantropo e não mantinha relações
amistosas com os seus concidadãos. Devido ao seu estilo de expressão, Heráclito
fora chamado O Obscuro. Na Antiguidade, Heráclito notabilizou-se pela
obscuridade que permeava seu discurso (Kirk et.al. 2010, p. 191).
O livro cuja
autoria lhe fora atribuída chamava-se Sobre a natureza, em virtude de
seu tema principal dividir-se em três discursos: Da política, Do universo e Da
Teologia. Heráclito o redigiu intencionalmente de forma obscura, a fim de que
só as pessoas que gozavam de prestígio e influência na sociedade de então
pudessem conhecê-lo, sem que fosse depreciado pelo populacho.
A influência
do pensamento heraclitiano atravessou os séculos e foi, particularmente
marcante, na filosofia dos estóicos, os quais tomaram Heráclito para autoridade
no tocante às questões de ordem física. Coube aos estóicos desenvolver a ideia
heraclitiana de viver conforme a Natureza. Por outro lado, os estóicos, não se
cingindo a reproduzir o pensamento de Heráclito, foram responsáveis por
reelaborar alguns de suas teses, com vistas a satisfazerem exigências de suas
próprias posições. Destarte, deve-se notar que os estóicos atribuíram a
Heráclito a ideia de que o mundo passava por uma destruição periódica pelo
fogo. Do desenvolvimento do conceito de fogo, em Heráclito, ocupar-nos-emos
mais adiante. No momento, cumpre observar que, para Heráclito, o mundo todo, a
realidade sensível, é caracterizado, fundamentalmente, pela impermanência de
todas as coisas. Tudo flui, tudo se move, muda, se transforma – eis o
corolário de todo o seu pensamento. O mundo todo é visto como um fluxo
incessante, onde só permanece estável e inalterável o lógos, que rege a
inevitável transformação de todas as coisas.
Com Kirk
et.al. (p. 192), observe-se que todos os filósofos pré-socráticos estiveram
vivazmente intereessados no predomínio da mudança no mundo da nossa
experiência. Heráclito não era diferente dos demais, nesse tocante, muito
embora pareça ter primado pela clareza com que asseverou a universalidade da
mudança. Heráclito também se destacou, em face de seus predecessores, por
conferir um valor sobremaneira importante à ideia de medida inerente à mudança,
à estabilidade que persiste por meio daquela e que a governa. Cuidamos
importante sublinhar este momento do desenvolvimento do pensamento
heraclitiano: Heráclito não nega a unidade do real. A diversidade revelada
no real, no ser não exclui a unidade, pois que, para Heráclito, o diverso é o
mesmo, ou, atenuando o paradoxo, o diverso pressupõe a unidade. Heráclito não
deixa de admitir a unidade como uma dimensão do ser; todavia, pensa a estrutura
do ser como atravessada pelo movimento, pela mutabilidade de todas as coisas,
pela luta dos contrários.
Tendo em
conta o fato de o pensamento heraclitiano ter sido, em alguma medida, alterado
pelas mãos de Platão e Aristóteles, cumpre notar o que se segue:
(...) é mais
seguro tentar a reconstituição do pensamento de Heráclito, em primeiro lugar,
com base nos fragmentos autênticos que chegaram até nós. Mesmo assim, não
podemos esperar mais do que uma compreensão muito limitada, em parte porque
Heráclito, conforme observou Aristóteles, não usou as categorias da lógica
formal, e teve tendência para descrever a mesma coisa (ou aproximadamente a
mesma coisa) ora como um deus, ora como uma forma de matéria, ora como uma
regra de conduta ou princípio que era, não obstante, um constituinte físico das
coisas (Kirk et. al., 2010, p. 192).
Estamos em
face, por conseguinte, de um pensamento que nos foi legado, naquilo que tem de
autêntico, de modo fragmentário, por um lado; e, por outro, reconstituído pela
interpretação que dele foi feita por outros pensadores. A isso se acresça o não
cumprimento por Heráclito de certas leis lógicas, o que dificulta ainda mais a
exata compreensão de seu pensamento. Em todo caso, o que se seguirá é a
interpretação, já bem assentada, feita na tradição de estudos sobre Heráclito.
Essa tradição consagrou o termo mobilismo para caracterizar a concepção
segundo a qual todas as coisas estão em movimento, em fluxo. De acordo com essa
perspectiva, a realidade se caracteriza fundamentalmente pelo movimento. A
filosofia heraclitiana tem sido caracterizada como mobilismo, portanto.
2.1. O pensamento de Heráclito
2.1.2. O governo do Lógos
O lógos
encerra o pressuposto que dá sustentação ao edifício do pensamento dos gregos,
particularmente dos cosmologistas conhecidos como pré-socráticos. Esse
pressuposto consiste na afirmação de que o lógos é a racionalidade do
real e a possibilidade de explicá-lo. O lógos é o universal, o
entendimento humano, a racionalidade ou a razão. Tudo ocorre de acordo com o lógos;
ele, o lógos, governa todos os acontecimentos.
Como
princípio que expressa a coerência subjacente às coisas, o lógos é a
ordenação comum a todas as coisas (Kirk, p. 193). Ao sustentar que tudo que
acontece no mundo é governado pelo lógos, Heráclito pretende-se portador
de uma verdade acerca da constituição do mundo, à qual os demais homens não têm
acesso devido à incapacidade deles de auscultar o lógos, que parece
codificar uma primeira verdade: todas as coisas são um. Com o lógos,
afirma-se a unidade de todas as coisas.
O lógos,
sendo uma medida comum a todas as coisas, é que sustenta e garante a unidade na
diversidade de todas as coisas. Em virtude do lógos, todas as coisas,
posto que sejam múltiplas e diversas, estão unidas numa totalidade coerente, da
qual os próprios homens participam e cujo conhecimento é necessário para que
eles conduzam suas vidas adequadamente.
O lógos
é, provavelmente, para Heráclito, o verdadeiro constituinte das coisas e, sob
muitos aspectos, coextensivo ao constituinte cósmico fundamental, que ele chama
de fogo (Kirk, p. 194).
Constituindo
todas as coisas, o lógos é ele mesmo uma razão divina, um lógos-deus,
que se identifica com a totalidade de todas as coisas. O deus a que se refere
Heráclito é imanente ao mundo. Não se trata, portanto, de um deus a que se deve
render culto e não se diferencia essencialmente do lógos. Na medida em
que o lógos divino constitui todas as coisas, torna-as também
contrárias. É o lógos que garante o equilíbrio na mudança entre os
contrários. Assim também deus é um elemento que liga todos os contrários.
2.1.3 A unidade dos contrários
Heráclito
surge como o primeiro cosmologista que, decerto, intuiu a tensão criativa
provocada pela guerra entre os opostos. Segundo o filósofo de Éfeso, quando
tomadas em conjunto, todas as coisas constituem o todo e o não-todo; são, ao
mesmo tempo, reunidas, compondo uma unidade, e separadas, formando a
diversidade; todas as coisas estão em consonância e em discordância. Dialética
heraclitiana, portanto: a unidade e o seu contrário coexistem.
Uma vez
reunidas, todas as coisas compõem um todo contínuo. Na condição de não-todo, o
que se destaca é a singularidade de todas as coisas, tomadas como simples
componentes. A unidade de todas as coisas parece constituir o domínio essencial
do real, ao passo que a diversidade de todas as coisas constitui o domínio
superficial, das aparências do real.
Heráclito
estava convencido de que os contrários nunca se dividem absolutamente. A
unidade dos contrários coexiste com a sua pluralidade, e há entre pares
diferentes uma ligação perene. O princípio defendido por Heráclito se articula a uma doutrina que
considera o devir a base da realidade (o mobilismo). O que sucede com todas as
coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam;
coisas frias esquentam; coisas secas umedecem, etc. A realidade é a
mudança; é a guerra dos opostos. A guerra, a que se referia o
filósofo, não se confunde com uma prática de violência; é a condição mesma para
a harmonia e a paz. Como pensasse a realidade de modo dialético, afirmava que a
doença é que faz da saúde algo bom e agradável; se não existisse a doença,
dizia, não haveria por que valorizar a saúde. Fique claro, portanto, a relação
recíproca entre os contrários, de modo que a existência de um deles justifica a
existência do outro.
O filósofo entendia que os opostos coincidiam como o meio e o fim,
em um círculo. Assim é que, por exemplo, a descida e a subida coincidem num
caminho, já que o mesmo caminho é para descida e para subida. O frio, assim, é
o mesmo que o quente, pois o frio é o quente quando muda; e o quente, o frio
depois de mudar. Logo, frio e quente são dois aspectos de uma mesma coisa.
Heráclito buscou estabelecer um princípio que gerava todas as
coisas; considerou-o fogo. Para ele, todas as
coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas. O
cosmos é um só e se origina do fogo, e pelo fogo é consumido, em determinados
períodos, que se repetem pela eternidade.
Gostaríamos, antes de por termo a esta seção,
de fazer ver que a concepção de real de Heráclito como conflito entre os
opostos pode ser contemplada numa canção de Lulu Santos, chamada Certas
coisas. Destaque-se apenas a primeira estrofe, da qual se depreende
uma concepção da vida que realça a natureza estruturante dos opostos (cf. som/silêncio; luz/escuridão; dia/noite;
não/sim):
Não existiria som se não
Houvesse o silêncio
Não haveria luz se não
fosse a escuridão
A vida é mesmo assim
Dia e noite
Não e sim
2.1.4. O fogo
primordial
No esforço de esclarecer o pensamento de um filósofo que recebeu a
alcunha de O Obscuro, enfatize-se a ideia de que, segundo Heráclito, a tensão
entre os contrários nunca os repele, mas lhes assegura a conexão. É por meio
dessa tensão que os opostos se ligam, compondo um todo coerente. No entanto, é
preciso ver que a coerência do todo depende da permanência de um equilíbrio
entre os contrários. Se esse equilíbrio se tornasse um desequilíbrio, a
totalidade complexa seria destruída. Por isso, a permanência do equilíbrio da
totalidade cósmica depende de uma proporção nas discordâncias infindáveis entre
os contrários (Kirk, p. 200).
“O mundo é um fogo sempre a arder” (Heráclito, apud. Kirk, p. 204). O fogo é a origem
sempre viva e eterna de todas as coisas. É uma força primordial e em movimento
que faz a partir de si todas as coisas e que se identifica com elas. O fogo é
como a chama da vela, que arde eternamente, que se extingue e acende sem
cessar.
Para os pré-socráticos, particularmente para Heráclito, a ordem do
mundo é eterna, incriada. O fogo é o princípio da dinamicidade dessa ordem
eterna e divina que é o cosmo. O fogo é o princípio da mutabilidade de todas as
coisas em todas as coisas. Tudo se transforma em tudo. Todavia, o fogo
heraclitiano não é a origem de todas coisas à semelhança da água para Tales e
do ar para Anaxímenes, mas é a origem ininterrupta de processos naturais. O
fogo é o constituinte das coisas que determina, de modo ativo, a estrutura e o
comportamento das coisas (entendidas como processos). Ele garante não apenas a
oposição entre os contrários, mas também a unidade através da discórdia. Uma
das dificuldades para compreender o pensamento de Heráclito parece residir no
fato de ele não se ter preocupado em seguir certas leis da lógica. Heráclito parece
ter assumido a contradição como essência constitutiva do movimento do real.
O fogo é a causa material ou o princípio a partir do qual tudo
nasce e perece. No entanto, não é propriamente o elemento último de todas as
transformações; o fogo parece expressar e manifestar o lógos.
Não sendo fácil a compreensão do pensamento de Heráclito, todo
esforço despendido para atingi-la deve dar conta da dinâmica constitutiva do
real. Tudo flui, tudo muda. Tudo é feito pelo fogo e tudo se dissipa no fogo.
Tudo está submetido ao destino. É o movimento que determina toda a harmonia do
mundo. O destino é a lei universal (logos)
e dá origem às coisas em decorrência do movimento dos contrários. O fogo é um
elemento e tudo se faz pelas transformações do fogo, quer por rarefação, quer
por condensação.
Heráclito chega a identificar o fogo com deus; sendo deus, o fogo
é eterno. Vimos que o logos é um Lógos divino, donde se conclui parecer
lícito dizer que fogo, lógos e deus
são três nomes com que Heráclito caracteriza o movimento incessante do real. Retomando-se
a ideia da dinamicidade do cosmo, com base nela se desenvolve a ideia de que o
mundo resulta da luta dos contrários. Essa luta chama-se guerra. O movimento
incessante do real expressa-se na descrição que Heráclito faz do modo como o
fogo atua. O fogo, uma vez condensando-se, torna-se líquido e, portanto, água;
a água, condensando-se, se transforma em terra. A terra se torna água, pela
fusão, e da água se produz todo o resto.
Não obstante, não queremos sugerir que aqueles três nomes sejam
tomados como sinônimos. O divino, para os gregos, é imanente ao mundo, mas é
transcendente em relação aos homens. Essa ordem divina que se identifica com o
cosmo era reconhecida pelos antigos como superior ao homem. Por isso, poder-se-ia
dizer que, para os gregos, o divino (theion)
é “transcendência na imanência”.
Heráclito uniu a razão humana à razão divina. É a razão divina que
governa e confere equilíbrio às coisas do mundo. Heráclito acreditava que o
homem é dotado de duas faculdades pelas quais ele poderia conhecer a verdade: a percepção sensível e a razão. Mas cuidava duvidosos os
conhecimentos adquiridos pela percepção sensível, e via a razão como critério
da verdade.
A razão a que se refere Heráclito é a razão comum e divina; é a
que nos torna todos participantes do Lógos
divino. Assim, o conhecimento que alcançamos da verdade decorre da
lembrança dessa participação. Sempre que pensamos por nós mesmos, incorremos em
erro.
2.1.5. Síntese da
doutrina de Heráclito
É possível elencar o que se reteve aqui no tangente ao pensamento
de Heráclito.
1) Afirmação da unidade de todas as coisas;
2) Todas as coisas estão em movimento incessante;
3) O movimento se realiza através da luta dos contrários;
4) O fogo governa e produz o processo cósmico;
5) O lógos é a
inteligência divina que governa o real;
6) A sabedoria humana é participante do lógos.
3. Parmênides: o filósofo do Ser
Comecemos por referir o que nos parece ser o ponto de partida para
a compreensão do pensamento de Parmênides.
A metafísica e a epistemologia de Parmênides não deixam lugar
algum para cosmologias tais como os seus predecessores jônios haviam
construído, nem certamente para qualquer espécie de crença no mundo que nos é
revelada pelos sentidos (...) (Kirk, p. 251)
O que se seguirá é, portanto, nossa tentativa de elucidar a
especificidade da filosofia parmenidiana em confronto com o pensamento
heraclitiano.
Parmênides nasceu em Eléia, entre 504 e 500 a.C. Platão diz
que Parmênides esteve em Atenas, onde se encontrou com o jovem Sócrates:
contava, na ocasião, 65 anos. Como era comum aos pré-socráticos, Parmênides
também participou ativamente da política. Ele foi o primeiro filósofo a
expressar seu pensamento em versos. Seu famoso poema, cujos poucos fragmentos
chegaram a nós, ostenta o título Sobre a natureza. Nele, o filósofo
se representa como o Escolhido, aquele que transmite a Verdade e toda a Verdade
pela Revelação que dela faz a sua Musa.
No entanto, no poema, a fala da Deusa não se expressa numa
linguagem sagrada de mistérios. Ao contrário, é a razão quem fala. O poema
apresenta uma estrutura argumentativa inteligível. O poema é filosofia. Ele se
divide em duas partes: na primeira das quais Parmênides afirma que, em qualquer
investigação, só há apenas dois caminhos possíveis, que se excluem mutuamente –
o da existência do objeto de investigação e o da inexistência desse objeto.
Após um preâmbulo, o poema se estrutura em duas partes
distinguíveis. A primeira parte ficou conhecida como a Via da Verdade (alétheia);
e a segunda como a Via da opinião (dóxa).
Muitos comentadores cuidam que o poema foi escrito em oposição ao
pitagorismo, que sustentava a dualidade ‘par-ímpar’ como origem do mundo e a
Heráclito, cuja doutrina rezava que tudo estava em fluxo permanente e que havia
uma identidade entre o uno e o múltiplo.
A filosofia de Parmênides ficou conhecida como monismo,
porque constitui uma doutrina que afirma existir uma única realidade. É
possível encontrar também o termo imobilismo para caracterizar
a sua filosofia, já que Parmênides sustentou a imobilidade do Ser, que é o real
em sentido abstrato e básico. Todo o movimento está excluído do domínio do Ser,
conforme veremos. Todavia, não nos apressemos. Continuemos a seguir o roteiro
delineado. Ao final do texto, explicitarei os pressupostos envolvidos no
monismo parmenidiano.
Retomando a consideração do poema de Parmênides, é preciso notar
que, a certa altura, ele nos diz “é necessário pensar e dizer isto: que
o ente é; pois é ser; que o nada não é, pois (é) não ser”. Eis,
portanto, a premissa única, com base na qual se constrói a argumentação de
Parmênides:o ser é; e o não ser não é. Todo o seu ensinamento sobre
o Ser repousa sobre essa premissa. Intimamente ligada a essa premissa, está
outra afirmação de Parmênides, qual seja, a da identidade entre o ser e o
pensar: “é o mesmo pensar e ser”. Esse enunciado deve ser
parafraseado como: a
racionalidade do real e a razão humana são da mesma natureza.
A doutrina do
Caminho da Verdade distingue duas possibilidades de investigação,
conforme já notamos anteriormente: a do ser e a do não-ser. A
primeira possibilidade corresponde ao caminho da certeza, visto que conduz à
verdade; a segunda é inacessível ao homem. Só há, para Parmênides, pensamento
do ser. Sua doutrina se sustenta inteiramente sobre a afirmação segundo a qual
“pensar e ser é o mesmo”.
Ao declarar a identidade entre o ser e o pensar, quis dizer
Parmênides: a) que o que pode ser dito e pensado deve ser (existir); b) que o
ser é o que pode ser pensado e dito. É necessário, no entanto, tornar patente a
radicalidade dessa compreensão parmenidiana. A identidade entre ser e pensar (e
dizer) deve ser compreendida da seguinte forma: Parmênides não diz apenas que
só podemos pensar e dizer o que existe, mas sim que o que é pensável e dizível
existe necessariamente. Por outro lado, ele não diz apenas que o nada (o
não-ser) não é pensável e dizível; ele afirma, na verdade, que o que não é
pensável nem dizível não existe.
Sumario, abaixo, as ideais de Parmênides, a fim de que as tenhamos
em conta no que se seguirá:
a) o ser é; o não-ser não é;
b) o ser pode ser pensado e dito;
c) o nada não pode ser pensado nem dito;
d) o pensar e o ser são o mesmo;
e) o nada, portanto, é não-ser e impensável;
f) dizer e ser são o mesmo;
g) portanto, o nada é não-ser e indizível.
3.1. Lógica e Ontologia: a inovação de
Parmênides
Para alguns estudiosos, Parmênides foi o primeiro pensador a
formular dois princípios lógicos fundamentais: o princípio da
identidade e o princípio da não-contradição. O
primeiro reza que “o ser é o ser”; o segundo, que, se o ser é, e o não-ser não
é, então o ser é idêntico a si mesmo e é impossível que ele seja o seu
contrário, ou seja, é impossível que ele seja o não-ser. Assim também, sendo o
nada o não-ser resulta daí que ele nunca pode ser pensado e dito. A afirmação
do ser, portanto, implica ou requer a negação do não-ser. Em Introdução
à história da filosofia – dos pré-socráticos a Aristóteles (2002), Chauí
nota que “Parmênides teria descoberto a lei fundamental do pensamento
verdadeiro, pela qual é impossível afirmar ao mesmo tempo uma coisa e seu
contrário” (pp. 90-91).
A Via da Verdade conduz ao
ser, ao uno, ao indivisível, à unidade subjacente à diversidade. A Via
da dóxa (opinião) é a via do falso. A dóxa se
caracteriza por tornar possível e estimular o confronto de ideias contrárias,
abonando a validade de ambas. A Via da opinião não observa, portanto, o
princípio da identidade e o da não-contradição. Voltarei a considerar a
oposição entre Via da Verdade e Via
da dóxa, mais adiante.
Por ora, necessário se faz considerar o aspecto ontológico do
pensamento de Parmênides. Com Parmênides, segundo alguns intérpretes, teria
surgido o estudo do Ser ou o pensamento do Ser.
3.2. O que é o Ser, para Parmênides?
Desde já, não parece difícil supor que o Ser é, para Parmênides,
a arkhé. A arkhé é o que é, é o ser, é o ente. Todavia, o Ser de
Parmênides não é um indivíduo, como na frase “o cachorro é um ser amável”. O
Ser parmediniano é o permanente, o imutável, é o real num sentido abstrato,
básico. O Ser é a única realidade verdadeira e fundamental, que subjaz a toda a
diversidade que se dá à nossa experiência sensível. Parmênides pensa o Ser
como indivisível, uno, idêntico a si mesmo, imutável, fixo, pleno,
eterno.
A compreensão do conceito de Ser depende da distinção entre dóxa e verdade,
estabelecida pelo filósofo. Parmênides, então, assumirá que a dóxa é
o caminho do não-ser. Por quê? Porque a opinião refere-se ao que parece ser. As
opiniões são formuladas a partir das aparências das coisas, ou seja, a partir
das formas como as coisas aparecem em nossa experiência
sensível. Pela opinião, exprimimos nossas preferências, sentimentos e
interesses, e eles variam de uma pessoa para outra, ou numa mesma pessoa, em
circunstâncias diferentes. As opiniões também variam de acordo com as épocas;
portanto, são mutáveis, instáveis, efêmeras. A dóxa é intimamente dependente da
variação de estados de nosso corpo e das situações de nossas vidas. Ilumina-se,
aqui, a oposição entre ser e parecer. As opiniões
pertencem ao domínio das aparências. A aparência de uma coisa
revela o modo como essa coisa se dá à nossa experiência imediata por meio dos
nossos sentidos. Mas as aparências podem deixar de ser como aparecem. As
aparências encobrem o ser, na medida em que podem não ser como parecem ser;
elas são, por isso, o não-ser.
Na medida em que o ser é idêntico a si mesmo, é imutável, ele não
pode revelar-se na experiência sensível, mas tão-só pelo pensamento. É
necessário frisar: o acesso ao ser só é possível pelo pensamento. A
aparência se mostra como tal na mudança contínua que sofre as coisas ou
no devir, no incessante vir a ser das coisas, nesse domínio em que
as coisas estão incessantemente tornando-se outras, estão mudando, se
transformando, estão tornando-se o que não são. O devir é
movimento (Kínesis – mudança qualitativa, quantitativa e locativa).
Logo, é o movimento (o devir) o domínio próprio da dóxa e da aparência. Escreve
Chauí: “(...) as coisas parecem mudar e as opiniões mudam com elas” (p. 92).
O devir, na medida em que é aparência mutável, é o não-ser.
Estamos, agora, em condições de compreender de que modo opera o
pensamento do Ser, em Parmênides. Trata-se de um pensamento puro (porque
divorciado da experiência sensorial, do mundo das aparências mutáveis), que
constrói uma argumentação cuja tese repousa na afirmação da identidade do ser
consigo mesmo, ou da unidade da realidade do ser. Ser e real é o mesmo. Apenaso
ser é real. As etapas do desenvolvimento argumentativo com que Parmênides
pretende sustentar a natureza una, imutável e eterna do Ser serão discriminadas
em subseções numeradas, a fim de que elas sejam mais bem apreendidas:
1) O ser é imóvel, ou seja, imutável. Se ele se movesse,
se ele mudasse, se tornaria aquilo que não é. Ora, o que não é o não-ser, e o
não-ser não existe; não pode ser pensado e dito, portanto;
2) O ser é eterno e indestrutível; logo não tem origem, não nasce,
não perece, nem está no futuro. Se estivesse começado, o que havia antes dele?
O não-ser, mas o não-ser não existe. Se o ser tivesse um término, também seria
o não-ser que estaria depois dele, mas, novamente o não-ser não existe, nem
pode ser pensado e dito;
3) O ser é indivisível ou contínuo, se ele fosse passível de ser
dividido, o que seriam as partes? Não poderiam ser outros seres, já que o ser é
uno, tampouco poderiam ser não-seres, já que o não-ser não existe; portanto não
pode ser pensado e dito;
4) O ser é pleno, isto é, não encerra intervalos ou fendas em seu
interior. Se não fosse pleno, o que seriam seus intervalos? O vazio? Mas o
vazio é o não-ser; e o não ser não existe e não pode ser pensado e dito.
Considerados os argumentos 2) e 4) que aludem, respectivamente, à
eternidade e à plenitude do ser, é possível inferir a ideia de que o ser é
presença em excesso ou totalidade presente (dada totalmente) no agora (já que é
eterno) e também de que é completamente fechado em si mesmo ou bastante
em si mesmo (já que é pleno e nada lhe falta). Não há carência no ser, não há
insuficiências em seu interior. Todavia, é preciso enfatizar que o ser não é
uma presença que se dá em nossa experiência sensorial, porque apenas o
pensamento pode atingi-lo.
Entre as características com que Parmênides define o Ser, não está
a infinitude. O ser não é infinito, mas limitado. Por mais estranho que nos
pareça, Parmênides não afirma que o ser é infinito. A razão porque nega ao ser
a infinitude é que, se o concebesse como infinito, acabaria por identificá-lo
com o apeíron (Anaximandro) que, para os gregos, é o indeterminado,
o infinito. O ápeiron é a arkhé de Anaximandro e designa um
princípio abstrato que significa ilimitado, indefinido e que subjaz à natureza.
Como seja indeterminado, pode crescer, reduzir-se, transformar-se
indefinidamente, o que nos impede de pensá-lo, conhecê-lo, dizê-lo. Sendo
incognoscível, o ápeiron seria o não-ser, para Parmênides. Mas
o problema atinente à definição do Ser não termina por aí; Parmênides precisava
ainda conservar a base racional das características que atribuía ao ser, quais
sejam, a imobilidade, a
eternidade, a
indivisibilidade, a
continuidade e a plenitude. Para
tanto, concebeu o ser como uma esfera, cuja circularidade é perfeita
(entenda-se totalmente acabada). O ser não tem começo, nem fim; é indivisível,
contínuo e pleno.
3.3. Breves notas sobre sua cosmologia
Parmênides
foi o primeiro a demonstrar ser a Terra esférica e a pensá-la como situada no
centro do cosmo. Para ele, existem dois elementos: o fogo e a terra. O fogo é
criador; a terra, matéria. Os homens se originaram da terra.
Espírito e
alma são, segundo ele, uma única e mesma coisa. Parmênides suprime do real a
gênese e a destruição. O ser é eterno e imutável. Deus é imóvel, limitado e
esférico. Tudo acontece por necessidade.
4. Heráclito e Parmênides: o Ser e o
devir em confronto
Nesta seção, cumprir-nos-á estabelecer uma comparação entre os
pensamentos de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia. No curso dessa
comparação, retornaremos a Parmênides, a fim de que destaquemos os aspectos de
seu pensamento que contrastam com o pensamento de Heráclito. Seguiremos,
portanto, o sentido inverso ao que vimos seguindo: recordaremos Parmênides para
recuperar, em confronto, Heráclito.
Mais uma vez, faz-se mister dizer que nada existe senão o ser. O ser
é incriado, já que não pode nascer, nem do que existe, nem do não-ser. O ser é
eternamente presente; sua natureza é perfeitamente homogênea. O ser é
perfeitamente pleno, sem vazio e sem descontinuidade. É perfeito e finito.
Parmênides de Eléia, expoente da doutrina monista, segundo a qual
existe uma única realidade base por trás do movimento percebido, introduziu e
desenvolveu a distinção entre realidade e aparência. Destarte, ele situa o
movimento no domínio da aparência; é o movimento um aspecto superficial das
coisas. A verdadeira realidade é o Ser e só pode ser conhecida pelo pensamento
que ultrapassa a experiência sensível. O Ser é imutável, não tem começo, nem
fim; é contínuo, indivisível. O Ser identifica-se com o pensamento. Assim, para
pensar o ser, o homem deve trilhar o caminho da verdade, da razão e afastar-se
da opinião, que é mutável, porque formada de hábitos, percepções, impressões
sensíveis, imprecisas e ilusórias. O Ser é o real numa acepção mais abstrata e
básica.
Para Parmênides, ao contrário de Heráclito, o movimento não define
o real. O filósofo do Ser defendia o pressuposto de que sem o permanente, o
imutável não se pode compreender o mutável. A noção de movimento pressupõe,
portanto, a de permanência. Melisso de Samos, discípulo de Parmênides, viria a
defender o monismo contra os filósofos do mobilismo, afirmando que o Ser é
eterno, imutável, atemporal e incriado (Marcondes, 2008, p.37 ).
A filosofia de Parmênides ficou conhecida pelo nome de monismo,
visto que ela se expressa na forma de uma doutrina que afirma a existência de
uma única realidade (a do ser) e, consequentemente, exclui da esfera do ser (o
real) o movimento, a mutabilidade. O monismo parmenidiano é, tradicionalmente,
entendido como uma doutrina que contrasta com o mobilismo heraclitiano.
Heráclito de Éfeso, filósofo da Escola jônica, era chamado “o
Obscuro”, em virtude da dificuldade de interpretação de seu pensamento. Ele foi
um representante do mobilismo, doutrina segundo a qual a realidade da natureza
se caracteriza por um movimento contínuo. Tudo flui, ensinará o filósofo.
Particularmente importante é o conceito de logos, em seu
pensamento, já que por meio dele pode-se explicar a unidade da realidade.
O logos é, assim, o princípio que unifica a realidade, é o
princípio de racionalidade do cosmos. O cosmos, inicialmente, designava a ordem
no mundo humano, visto que dizia respeito às ações humanas que se conformavam
ao estabelecido; posteriormente, passou a designar a ação humana que produz a
ordem no mundo; finalmente, com a filosofia, passou a designar a ordem do
mundo.
Segundo Heráclito, tudo é movimento, tudo está em fluxo
ininterrupto, mas atrás da mudança, da diversidade das coisas havia um
princípio básico de unidade. Havia uma unidade na pluralidade. Essa concepção
pode ser entendida como a expressão do conflito entre os opostos. Esse conflito
produz o equilíbrio, porque os opostos se equivalem e se reúnem (dia e noite,
calor e frio, vida e morte são opostos que se complementam). Em Heráclito, a
pluralidade do real é acessível à experiência sensível. Sua filosofia centra-se
nessa experiência. O fogo é, para ele, o elemento primordial, já que o fogo a
tudo consome e se autoconsome, enquanto energia. Ele simboliza o dinamismo
próprio da realidade.
O mobilismo, concepção segundo a qual todas as coisas estão em
movimento, em fluxo perene, caracteriza a doutrina de Heráclito. Ao contrário
de Parmênides, que afirma a imobilidade do ser, Heráclito sustenta que tudo é
movimento, tudo está em fluxo, muito embora ele não negue que a realidade
possua uma unidade básica. Não deixa de ser curiosa a afirmação heraclitiana de
que há unidade na pluralidade. Se Heráclito não deixa de admitir a unidade como
uma dimensão do ser; pensa a estrutura do ser, todavia, como atravessada pelo
movimento, pela mutabilidade das coisas, pela luta dos contrários. A unidade a
que se refere Heráclito é unidade dos opostos. O real ou o ser heraclitiano é
profundamente marcado pelo conflito e é do conflito que nasce o mais perfeito
equilíbrio. Se, em Parmênides, o devir é o não-ser; em Heráclito, o devir é o
próprio movimento do ser. Em Heráclito, o mundo todo, a realidade sensível é
caracterizada, fundamentalmente, pela impermanência de todas as coisas. Tudo
flui, tudo se move, muda, se transforma. O mundo heraclitiano é um
mundo em fluxo incessante, um mundo onde só permanece estável e inalterável o lógos,
ao qual cabe reger a inevitável transformação de todas as coisas. Se a arkhé de Parmênides pode ser vista como o
ser; a de Heráclito é o fogo, enquanto metáfora, não propriamente
(ou não apenas) como elemento natural. Pondere-se, contudo, que não está claro
como o ser parmenidiano possa ser considerado uma arkhé, tal como a pensavam seus predecessores. A arkhé pressupõe a existência de um
princípio primeiro, de algo que, existindo previamente, dá origem a tudo que
há. O ser de Parêmides não parece ter essa característica (nada existe
anteriormente a ele). O ser de Parmênides é pura e simplesmente, na sua
imediaticidade totalizante. Nada se pode dizer do ser exceto que ele é.
O fogo heraclitiano, como arkhé, representa o caráter dinâmico da
realidade. É a origem de todas as coisas; é origem eterna, é movimento
incessante. A partir do fogo, todas as coisas se formam. O fogo põe todas as
coisas em movimento e se identifica com elas.
Convém, no entanto, aqui, retornar a Parmênides, tendo em vista o
confronto com o pensamento de Heráclito. Vimos que a dóxa (opinião)
identifica-se com a Via da experiência sensorial (que também Heráclito via como
fonte de enganos). Em alguma medida, epistemologicamente, Heráclito e
Parmênides parecem concordar: o conhecimento da verdade não decorre da
percepção sensível, mas depende de que os homens auscultem o lógos (a razão divina). A Via
da Verdade, em Parmênides, é a do pensamento puro, do intelecto apartado das
sensações. O pensamento identifica ilusões onde sentimos coisas mutáveis e
contrárias entre si. Segue-se daí a oposição entre o mundo inteligível
(paremnidiano) e o mundo sensível (heraclitiano), oposição que será tematizada
e convertida em doutrina cosmológico-epistemológica por Platão. O mundo
inteligível de Platão será o mundo parmenidiano (o mundo verdadeiro, dotado de
maior grau de realidade), ao passo que o mundo sensível, que Platão
identificará com o mundo das aparências, das ilusões, é o mundo heraclitiano.
Só há o ser, que é uno, eterno, contínuo, indivisível e imóvel. Só
há o pensamento do ser; para o pensamento, o múltiplo e o movimento não são, ou
seja, pertencem ao domínio do não-ser (o devir, em Parmênides). A mudança e a
mutabilidade – vale insistir – estão excluídas do ser. O devir e o múltiplo são
o não-ser, portanto o impensável e o indizível.
Em Parmênides, vimos que o ser, o pensar e o dizer é o mesmo;
assim também o não-ser, perceber e opinar é o mesmo. Há, para Parmênides, dois
tipos de filosofia: a que se refere à verdade e a que se refere à opinião.
Identificando o pensamento com o ser, Parmênides nega ser possível pensar a
instabilidade, o imutável, de modo que, do ponto de vista epistemológico, só
haveria ciência do ser, ou seja, do imutável, do que é constante, imóvel. O
pensamento, assim, exige estabilidade, coerência, permanência e verdade; por
isso, para Parmênides, não há pensamento do devir; só há pensamento do ser.
Para o pensamento, perceber, opinar e não-ser é nada. Heráclito, aqui,
diverge de Parmênides, visto que o devir pode ser objeto de pensamento; mas é
nessa divergência que parece ser possível ver, paradoxalmente, uma convergência
entre eles, pois que Heráclito não renuncia à ideia de uma unidade subjacente à
diversidade, sem a qual a própria dinâmica dos opostos não seria pensável.
Trata-se, então, de ver explicitamente assumido e elaborado em Parmênides
aquilo que Heráclito supõe: a unidade do
real. Em Parmênides, a unidade é uma propriedade fundamental do Ser que não
se revela senão ao pensamento, essa unidade exclui a diversidade da totalidade
do Ser; em Heráclito, contudo, essa unidade é suposta como condição para pensar
o devir; daí a possibilidade de o filósofo de Éfeso poder falar em unidade dos
opostos.
5. Conclusões
Os filósofos pré-socráticos, por se preocuparem em estudar a physis,
ficaram conhecidos como physiologoi, ou físicos. De um modo geral,
eles estavam interessados em determinar um princípio primordial que teria dado
origem à ordem do mundo. Tales de Mileto, por exemplo, o primeiro filósofo, o
fundador da filosofia grega, sem fazer apelo ao sobrenatural, explicava a
natureza adotando como princípio gerador a água. Anaximandro, a seu
turno, discípulo de Tales, propunha o apeíron (o
indeterminado, o ilimitado), que é um princípio abstrato. Coube a ele falar
também em arkhé com o sentido já referido. Anaxímenes propôs o
ar como princípio primordial, ou seja, como o arkhé. Sendo um
elemento incorpóreo e invisível, o ar permitia ao filósofo dar uma explicação
de caráter mais abstrato para o real. Xenófanes, a seu turno, concebia a terra
como o princípio primordial.
Finalmente, elenco abaixo, com base em Chauí (2010, pp. 48-49 ),
as principais características do pensamento grego na sua fase pré-socrática:
1) a filosofia nascente era uma cosmologia e, como tal, estava
interessada em explicar racionalmente a ordem do mundo, o que implica
determinar suas causas, sua forma, compreender suas transformações;
2) Era uma filosofia que não admitia que tudo que existe viesse do
nada, por isso assentava no pressuposto de que “nada vem do nada e nada retorna
ao nada”. Não há, portanto, criação a partir do nada (como sucede na narrativa
do Gênesis em que o Deus judaico-cristão cria o mundo a partir do nada). Assim,
o real sempre existiu, pois que é eterno, imortal. Há uma força imperceptível,
mas imperecível que conserva a estabilidade e a permanência, malgrado a
mutabilidade da superfície das coisas;
3) Era uma filosofia que se ocupa do estudo da physis,
que é a base de tudo que existe. Ela é perene e dela tudo brota, tudo deriva;
4) Era uma filosofia que tinha de lidar com o problema do devir (a
existência inegável da mudança das coisas, do movimento, do fluir incessante)
relativamente à possibilidade de o real poder ser pensado. O pensamento só pode
pensar o imutável, o permanente, o Ser. Como o uno, o idêntico a si mesmo se
torna múltiplo, diverso? Pressupondo o uno (physis), como pode ele
produzir o diverso, o diferente de si e mutável? Pressupondo o múltiplo (kósmos),
como, então o uno é possível?
5) Finalmente, era uma filosofia que fundou a distinção,
posteriormente explorada por Platão, entre a aparência do mundo e a essência ou
verdade do mundo. O domínio da aparência é acessível à experiência sensorial; o
da essência, à experiência do pensamento, intelectiva, portanto. Pelo
pensamento, busca-se atingir (entenda-se compreender) o ser. Assim, a physis,
que é manifestação da arkhé, torna-se, manifesta ao pensamento, e
não mais só para os olhos do corpo. Com o decorrer da filosofia pré-socrática,
a physis passará a ser visível apenas para o pensamento e oculta para a
experiência sensível.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
CHAUÍ,
Marilena. Introdução à filosofia – Dos
pré-socráticos a Aristóteles. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
JAPIASSÚ,
HILTON; Danilo Marcondes. Dicionário
Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
KIRK, G.S
et. al. Os filósofos pré-socráticos – história crítica com
seleção de textos.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
MARCONDES,
Danilo. Iniciação à História da filosofia
– Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor,
2008.