O sentido do conhecimento
Em seu O que os donos do poder não querem que você
saiba (2017)[1], Eduardo Moreira observa
que “um autor raramente escreve para fazer amigos [...]. Escreve porque não
aguenta mais saber sobre algo sozinho”. (Moreira, ibidem, p. 9). Quando se me
deparou esse trecho por ocasião da releitura desse livro, ocorreu-me
imediatamente que Moreira não apenas fornecia uma razão para a prática da
escrita, mas, sobretudo, deixava entrever o fim último de todo conhecimento:
tornar-se publicizado, ou, em outras palavras, tornar-se acessível a todos.
Quem se dedica à atividade de pesquisa, de produção de conhecimento, como eu,
tem necessidade de propalar o conhecimento adquirido, construído, aprendido. O
conhecimento não pode ser um bem privado, mas um bem público, acessível e
gratuito. Ele é um bem não rival, como ensina Dowbor[2],
isto é, seu estoque não é reduzido pelo seu uso. Quando eu transfiro o
conhecimento que tenho a outra pessoa, não deixo de tê-lo, continuo com ele; nada é subtraído dele. Uma vez que, na atual fase do capitalismo, o principal fator de
produção é o conhecimento, “o principal fluxo de investimentos não resulta em
nenhuma máquina nem chaminés, e sim em capacidade de controle de conhecimento organizado”. (Dowbor, 2020, p. 35). Sem
pretender fazer incursão no tema do controle exercido pelas corporações
financeiras e seus intermediários sobre o conhecimento, para o qual apenas
chamo a atenção, o que me interessa aqui é pensar o conhecimento como produto
da atividade social, uma construção para cuja existência contribuem gerações de
seres humanos séculos a fio.
Estou convencido de que
o saber ou o conhecimento são instrumentos poderosos de emancipação
humano-social; privar uma maioria do acesso a ele significa negar a ela a
possibilidade de verdadeira emancipação e autonomia. Sim, aos poderosos, aos
donos da sociedade não interessa a democratização do conhecimento; não lhes
interessa que mais pessoas sejam capazes de questionar os poderes invisíveis,
reticulares que as governam, a legitimação dos privilégios de que aqueles gozam.
Mas é extremamente difícil esclarecer o oprimido de sua opressão; é
extremamente difícil convencê-lo de que, em sua consciência e em seus atos
cotidianos, entranha-se uma estrutura ideológica que, justificando a ordem
social estabelecida, o faz agir docilmente para a manutenção e reprodução dessa
mesma ordem.
Há entre os dominados
social, politica, cultural e economicamente aqueles que são privados das
condições necessárias para que eles tomem consciência de sua condição
subalterna; e há uma parcela considerável de dominados que, mesmo dispondo do
privilégio educacional, como os membros da classe média real, mesmo detendo o
capital cultural, ou seja, mesmo incorporando o conhecimento considerado útil e
legítimo pela sociedade[3],
contenta-se com a presunção de saber, convence-se de que sabe o que, na
verdade, não sabe. Esta parcela parece imune ao aprendizado, ao aprofundamento
da reflexão. Falta-lhe, fundamentalmente, a paixão pelo conhecimento; e essa paixão não é ensinável. Não me
refiro, naturalmente, à paixão que une os enamorados. Refiro-me ao pathos do conhecimento, uma experiência
que envolve o padecer, o sofrer, mas também o conflito, a tensão de espírito, o
horror, a angústia, o tédio, a tristeza, o desespero, a solidão, a indignação,
a raiva, a alegria, como potência de existir. Como conhecer é uma atividade,
fundamentalmente, fisiológica, como é todo o corpo que conhece, no processo do
conhecimento, nosso corpo é bombardeado de emoções, de sentimentos, nem sempre
afáveis.
Cabe aqui um
esclarecimento. O vocábulo “conhecimento”, não obstante formar-se pela anexação
do sufixo nominalizador “-mento”, que dá origem a substantivos abstratos que
denotam ‘processo’, ‘atividade’, pode ser usado com um significado que o
aproxima dos substantivos concretos. Falamos em "adquirir conhecimentos”,
dizemos que alguém dispõe de “um repertório de conhecimentos” e, nesses casos,
conceptualizamos o conhecimento como “produtos” armazenados em nossa mente/
memória. Os conhecimentos adquiridos são representados como algo que
incorporamos, mesmo que sua natureza continue sendo imaterial. Por outro lado,
podemos falar em conhecimento como processo, como atividade. Quando falamos em “práticas
de conhecimento”, “exercício de conhecimento”, ou “exercitar o conhecimento”. O
conhecimento é o ato de conhecer, é um processo ao longo do qual vão-se
formando estruturas representacionais complexas, linguístico-cognitivas, do
mundo em nossa mente/cérebro. Em qualquer das duas acepções em que tomemos a
palavra conhecimento, sempre que o tomamos como um valor a ser perseguido, a
ser cultivado, estamos expostos às suas perturbações, ou melhor, decidimo-nos
por nos engajar numa experiência arriscada, interminável, irrefreável, que nos
arrasta para uma condição a que Cioran chamou Lucidez demoníaca, de que nós não
nos apropriamos, mas da qual padecemos. Na Lucidez demoníaca, dá-se o
aniquilamento da superstição, da crença na política e na história como
movimento temporal teleologicamente orientado e dotado de sentido. Na Lucidez
demoníaca, a trama verbal da realidade se desfaz, e a própria realidade se
revela porosa e frágil. Revelada a fragilidade e porosidade da realidade,
pode-se descobrir o absurdo, que une, como um laço, segundo Camus, o homem ao
mundo.
[1] MOREIRA, Eduardo. O que os donos do poder não querem que você
saiba. São Paulo: Alaúde Editorial, 2017.
[2]
DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas
sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020.
[3] SOUZA, Jessé. A Classe média no espelho: sua história,
seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.
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