
Extrapolações
matinais
A partir das 6 da manhã, a cama se me
torna intolerável. Pensamentos vão-se-me empilhando na alma, produzindo um
desconforto tal, que me expulsa do único estado em que me é possível esquecer a
vida mesma para experienciar outras vivências, a que se segue, quase sempre, um
sentimento de decepção, porquanto não sejam reais, num sentido forte. Sonhos
compensam o estar vivo ou, como poderia dizer Freud (não exatamente com estes termos), são as formas pelas quais o
inconsciente se expressa ou se declara. E eu tenho sonhado bastante. Mas o pior
sonho é aquele que sonhamos em vigília e do qual despertamos. Esse sonho em
vigília, quase sempre, tem outra natureza: é
uma ilusão.
O drama que se me encena na alma é agravado
pelo fato de aos pensamentos perturbadores associarem-se altos níveis de
ansiedade e frustração. Não confundamos ansiedade aqui com sofreguidão. Em
psicologia, ansiedade não é sofreguidão. Refiro-me à ansiedade básica, que remonta à infância, e que inclui sentimento
de solidão e impotência em face de um mundo hostil. É desse desconforto
familiar no estar-no-mundo que se trata. Por frustração, também à luz da
psicologia, entendo o estado emocional que resulta do impedimento, da decepção,
de um interdito à realização de um desejo. E nossos amores modernos são
celeiros fartos de frustrações.
A sabedoria antiga já rezava, muito
antes da psicanálise surgir à cena no mundo ocidental, que a mulher é um
enigma. Quase nunca se pode estar certo do que ela quer. Ela é um esconderijo
que dissimula alguma coisa. Mas que coisa? Freud, seguido por Lacan,
posteriormente, viria a endossar a tese de que só há um sexo: o falo, muito embora haja dois modos de
gozo. A Lacan devemos uma frase que se tornou famosa: “A mulher não existe”. Freud
insistirá ainda que a sexualidade feminina é, em essência, masculina, pois só
há uma libido e essa libido é a masculina. Muitas feministas chiaram contra
Freud (e contra Lacan?), por considerarem sua teoria da sexualidade feminina fruto
de uma ideologia patriarcal predominante entre nós ainda. Especialistas em Freud já notara uma tendenciosidade masculina na abordagem da sexualidade feminina proposta por ele.
Mas deixemos Freud, o que é ser mulher
e a sexualidade de lado. O que aprendi, em minhas leituras de psicanálise, é
que os homens (não sei se todos, mas alguns) buscam encontrar numa mulher a anima deles, ou seja, seu lado feminino.
Esse “lado feminino” supõe que saibamos sua definição ou que essa definição
descreva uma natureza feminina objetivamente. Mas deixarei a cargo do leitor os
questionamentos. No amor romântico, há justamente essa busca: o homem deseja
encontrar na amada sua anima. Alguns,
ao contrário, não têm encontrado senão o silêncio do desconhecido, o escuro do
desejo que não sabem por quê. Não livro nem homens nem mulheres da
responsabilidade por seus infortúnios amorosos, pela sua desnutrição amorosa.
Ah! Estes seres bípedes sempre insatisfeitos! Prisioneiros do desejo. Gosto do trecho do texto Psicanálise, que consta da série O que é, em que o psicanalista Fabio Herrmann descreve a relação
contraditória dos seres humanos com o desejo:
“(...) a casa que construíram,
como a grande casa que a humanidade vem construindo para si, representa bem
demais a realização de seu desejo. Ora, o problema é que nós não desejamos o
que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos. Na
verdade, nós, humanos, não sabemos bem o que desejamos. Veja um exemplo. Antes
de mais nada, nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que
desejo é o nome daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece
vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se
pode dizer até que “somos desejados” desta ou daquela maneira. Somos desejados
ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a
humanidade deseja-se como é; e dizia, constrói-se o seu mundo de acordo com tal
desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim,
tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa, acha que não está ainda
bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto,
o tempo é longo demais, as guerras muito frequentes. Ora, se o tempo e o espaço
são demais infinitos, é que os homens
têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida.
Quanto às guerras, quem as faz?”
(pp. 54-55, grifo meu)
Como se vê, os homens são excesso e
estão constantemente insatisfeitos, não porque o mundo criado por eles esteja
em desacordo com o desejo (ao contrário, como sugere Herrmann, o mundo humano
corresponde exatamente ao desejo humano). O homem constrói um mundo que reflete
bem o seu desejo, tanto no que diz respeito àquilo que nele aprecia, quanto no
que toca àquilo que nele odeia. Mas, ao olhar para a obra criada e para as
coisas que nela odeia, o homem diz a si que não foi seu autor, que essas coisas
precisam ser humanizadas. Sua insatisfação decorre do fato de acreditar que o
mundo domesticado não corresponde ao que desejou. A insatisfação se nutre desse
engano, encontra nele sua fonte. Daí a insistência com que culpa o mundo, a
sociedade, a família, a cultura, esquecendo-se de que na origem de tudo isso se
encontra o próprio excesso do homem e seu desejo criativo, mas tedioso.
Por ora, é o que temos para hoje. A
satisfação, ao contrário do que sugere o mercado capitalista que engendra o
consumismo, nunca está garantida. E sigamos como famintos (de amor?) pedindo
socorro a que forças superiores desconhecemos, porque elas mesmas não são senão
fumaças do incêndio de nosso desejo.
"Vivemos num mundo no qual o homem deve esperar milagres apenas de si mesmo". Simone Weil
ResponderExcluirO desejo humano, segundo Platão, tem a mania de querer o que não tem: o ausente e o distante são sempre mais desejáveis do que o presente; o longínquo, mais amável que o próximo; e a grama é sempre mais verde no jardim do vizinho... O platonismo em uma pílula: “aquilo que nós não temos, aquilo que nós não somos, aquilo que nos falta, eis os objetos do desejo e do amor...” Que tristeza seria viver, se Platão tivesse razão e se todos os amores fossem platônicos!
ResponderExcluirPois conceber o desejo como falta, como faz a tradição filosófica platônica-cristã, é condenar o homem a um destino de Sísifo, bem ilustrado pela imagem da condição humana pintada por Schopenhauer, um dos pessimistas-mor da história do pensamento: “Toda nossa vida oscila, como um pêndulo, da esquerda à direita, do sofrimento ao tédio.” Enquanto desejamos o que não temos, sofremos com esta falta; quando conquistamos o que desejávamos, logo nos entediamos – e segue em sua marcha avante o desejo insaciável.