
A Morte de Deus
Ou o seu reaparecimento?
O meu empenho, na
produção deste texto, será o de aproximar a filosofia da vida. Este texto deve
ser visto como um ensaio, e não como um artigo filosófico. Meu esforço
consistirá em reduzir a formalidade linguística tanto quanto possível. Se eu
conseguir com que, ao final da leitura, o leitor veja este texto como expressão
da fórmula dos antigos segundo a qual “filosofar é aprender a viver”, já me
darei por satisfeito e contente. Não escrevo do lugar em que se situaria um
filósofo profissional, mas de um filósofo-aprendiz e dedicado ao exercício do
próprio filosofar. Escrevo como um aprendiz de filósofo. O aprendizado é a meta
de minha escrita. Ao escrever, eu reelaboro o que aprendi e reaprendo, ou mesmo
desaprendo para aprender. A norma é o prazer na aprendizagem. A meta – eu
repito – é sempre aprender.
Então,
neste texto, eu retorno a Nietzsche. Eu revisitarei sua filosofia, sem
pretender recobri-la totalmente. Meu ponto de partida é o seu postulado segundo
a qual “Deus está morto” (que aparece em A
Gaia Ciência e em Assim falou
Zaratustra). Tomo para ponto de ancoragem de minhas reflexões a morte de
Deus enunciada, ou melhor, retomada e reelaborada por Nietzsche. Até onde pude
entender, a ideia de que Deus está morto já estaria, tacitamente, presente no
pensamento dos modernos anteriores a Nietzsche, pelo menos desde o século das
Luzes (XVIII). Mas o que é novo em Nietzsche é a sua compreensão da extensão do
significado da expressão “Deus está morto” – extensão e profundidade, eu diria.
Nisso consiste o que entendo por reelaboração da questão da morte de Deus,
empreendida por Nietzsche.
Mas,
antes de atacá-la, preciso dizer também que ela se prende a outros conceitos
nietzschianos, como o do “além-do-homem” (traduzido por alguns especialistas
comumente como “super-homem”) e do Eterno Retorno. Mas não para por aí. A morte
de Deus também leva-nos a fazer incursão no seu projeto de “transvaloração de
todos os valores”. No fundo, a morte de Deus implica um olhar sobre os valores
tradicionais que precisam ser superados e, mais ainda, sobre a gênese dos
valores. O problema que ela suscita é também o problema da verdade. A verdade,
assumida pelos antigos gregos como um valor metafísico, passará à categoria de
ficção, de ilusão, de metáfora em Nietzsche. Se Deus era a verdade e se a razão
sempre foi a condição para alcançar a verdade, uma vez morto Deus, a verdade
carece de fundamento e a razão passa a atrair sobre si muita suspeita como um
caminho para atingir alguma verdade. Mas não vou me apressar.
É
preciso, antes de prosseguir, situar Nietzsche. É preciso considerá-lo
relativamente a um tempo marcado por profundas mudanças em todos os setores da
vida. É urgente, então, considerar o que significa pós-modernidade. Não pretendo dar conta da complexidade envolvida
nessa questão. O que se costuma designar como pós-modernidade é uma realidade
histórica bastante complexa e, para alguns especialistas, pouco clara. Serei
forçado a fazer referência a alguns aspectos dessa condição da existência do
homem contemporâneo, com vistas a acentuá-los em conformidade com os meus
propósitos.
A
condição pós-moderna é caracterizada por convergências e divergências
históricas em várias esferas (arte, cultura, política, economia, saber,
religião, ensino, etc.). Recobre um período, cujo início pode ser datado na
década de 1950 e cuja extensão abarca os dias atuais, que se caracteriza por
múltiplas posições e profundas inquietações. O período pós-moderno inaugura uma
série de mudanças em nossa cosmovisão e nas diversas maneiras como a realidade
se organiza. O homem pós-moderno é um sujeito extremamente inquieto em face de
uma realidade que muda incessantemente. Em meio à profusão de mudanças, em um
espaço de tempo muito curto, esse homem se vê desorientado ou perdido, porque
se dá conta de que o universo de referências em que a vida de seus antepassados
se baseava e de que é herdeiro, diluiu-se. O pós-moderno deve ser entendido
como superação do moderno. Tempos de crises são estes, decerto. Crise da razão,
crise dos valores que tradicionalmente guiaram a vida das pessoas. O
pós-moderno decreta o esgotamento do poder da razão, que tanto seduziu os
modernos, especialmente os que viveram sob os auspícios das Luzes. E o
Iluminismo (séc. XVIII) – vale dizer – compreendeu uma corrente radical do
pensamento intelectual que liberou a filosofia das amarras teológicas. Os
filósofos do século XVIII aproveitaram as ideias que animavam os avanços
científicos para questionar a maneira como o governo era pensado, o modo como a
sociedade era compreendida. Seus esforços foram orientados para a superação da
superstição, da tirania e da injustiça, para o que eles se serviam do poder da
razão. A Razão Iluminista ocupa, pois, a posição que, durante séculos, fora
ocupada por Deus. A bandeira iluminista era desfraldada sobre a necessidade de
tolerância e justiça. Somos herdeiros do século das Luzes. E, a despeito da crítica
avassaladora de Nietzsche, ainda resiste, em nossa era, pelo menos no senso
comum, uma confiança na racionalidade científica. É claro, contudo, que, na
pós-modernidade, a ciência não é mais vista como o único saber legítimo; e a
ciência de hoje é uma ciência que se coloca sempre em questão, que não cessa de
revisar seus postulados, de avaliar o alcance de seus resultados e a validade
deles. Não se admite mais que ela silencie as demais formas de saber.
A
pós-modernidade é uma era afeita ao relativismo; é infensa à ideia de uma
verdade absoluta; reina nela uma suspeita sobre o imperativo da objetividade. É
verdade que, nela, a razão está em crise, mas não é menos verdadeiro que a
crise lhe tenha sido companheira em quase todas as épocas.
Também
gostaria de lembrar, nessa rápida revisão da condição pós-moderna, que, nela, a
ideia de progresso, herdada da Modernidade (mais precisamente do período da
Renascença), e vinculada ao surgimento do método científico-tecnológico, perde
seu significado dentro de um projeto político-filosófico de emancipação do
gênero humano. O homem pós-moderno suspeita da ideia de progresso; vê nela uma
mentira que não pode mais ser sustentada como uma preciosa verdade. Como,
então, situar Nietzsche em face desse contexto sócio-histórico? Comecemos por
entender quem foi Nietzsche, atentando para o seguinte trecho, tomado a Antonio
C. Braga, em Nietzsche – o filósofo do
Niilismo e do Eterno Retorno (2011):
“Considerado
por muitos como o maior filósofo dos tempos modernos e por outros como
destruidor impiedoso de todos os valores conquistados pelo homem em toda sua
história, Nietzsche causou espécie por seus posicionamentos radicais e
inovadores no mundo da filosofia, da moral, da religião, da arte e da história.
Não resta dúvida de que foi um crítico feroz do passado e um dessacralizador
dos valores tradicionais, mas foi também como que um profeta de um mundo
renovado e inteiramente novo, de uma história futura depurada dos entulhos de
séculos e milênios, de um homem dessacralizado e embriagado de vida plena
isenta de moralismos, o super-homem (...)”.
(p.
10)
Vejamos,
então, como este dessacralizador dos valores tradicionais, atacou radicalmente
o valor supremo do homem ocidental: Deus.
Preciso aqui enfatizar que, ao declarar a morte de Deus, Nietzsche está
declarando a morte da Verdade como valor metafísico. O que está, portanto,
implicado na proposição “Deus está morto”? Dito douto modo, qual é a extensão e
profundidade de seu significado no interior do pensamento filosófico de
Nietzsche? De início, acho importante salientar que Nietzsche não conflita
apenas com o Deus cristão, ou seja, não declara apenas que ele não pode mais
servir de fundamento da verdade ou da moral; ele vai mais além: também rejeita
qualquer fundamento divino supraterrestre, o que inclui o Deus de Platão
(Demiurgo) e o de Aristóteles (Primeiro Motor Imóvel).
Em linhas
gerais, a morte de Deus parece envolver:
a) o
questionamento da verdade como valor metafísico;
b) a
busca por superar a metafísica platônica;
c) a
busca por suprimir o fundamento do sentido;
d) a
afirmação da única e verdadeira vida no aqui e agora;
e) a
rejeição como utopia de uma vida além-mundo.
Morto
Deus, cai por terra a metafísica. A morte de Deus representa o esgotamento do
sentido no coração do próprio universo. Uma vez morto Deus, o próprio universo
deixa de ter um coração. A morte de Deus é a morte da oposição entre a vida no
mundo e a vida além-mundo.
Mas cabe
questionar se a metafísica definitivamente desapareceu, estando Deus morto.
Nietzsche parece sugerir uma resposta negativa. Para compreender por que a
metafísica não desapareceu de fato, Nietzsche nos pede que consideremos o fato
de que a Ciência e a Filosofia, bem como a Verdade, foram transformadas em Deus
na Modernidade.
Em Teologia e Pós-modernidade – novas
perspectivas em teologia e filosofia da religião (2008), no artigo de
Sousa, intitulado de A morte de Deus em
Nietzsche: fim da metafísica?, compreendemos o que está envolvido na
observação de que a metafísica não desapareceu totalmente, a despeito da morte
de Deus:
“Nós,
que matamos Deus, em nome da razão, daquela mesma razão que o construíra, em
nome da ciência, em nome da filosofia. Tornamo-nos “ateus”, mas “ateus” graças
a “Deus”, porque a metafísica continuou na ciência e na filosofia, e a
metafísica chama-se “verdade”, Deus chama-se ciência e filosofia”.
(p.
64)
O novo
Deus dos ateus modernos é a Ciência, é a Razão, é a Filosofia. Deus nunca foi
completamente eliminado; ele ressurge na cena do pensamento ocidental, no
espírito da modernidade com novas roupagens.
A
pós-modernidade se nos apresenta como uma época ou um tempo em que se erige uma
suntuosa e avassaladora crítica ao valor metafísico da verdade. Ao reconhecer a
morte de Deus, Nietzsche declara a destruição do fundamento da Verdade. Se Deus
é a verdade em sua forma suprema e transcendente e se a razão é a condição para
atingir a verdade (desde Platão), então “a morte de Deus” é a morte do poderio
da verdade.
Aprendemos
com Nietzsche sobre quem estabeleceu a verdade como valor metafísico. Nossos
antepassados, decerto. Eles erigiram a verdade como valor inquebrantável e
inquestionável. Eles a impuseram a nós e, pressupondo-a como algo a ser
desvelado, nos ensinaram o caminho para o seu desvelamento.
Costuma-se
afirmar que Nietzsche é um antiplatônico, mas não convém depreender disso que
ele não reconheça o valor da filosofia de Platão, que não veja em Platão o
grande mestre da filosofia ocidental. Mas há aspectos da metafísica de Platão
que precisam ser superados. Em oposição ao homem metafísico de Platão,
Nietzsche ergue o “além-do-homem”. Compreendamos o lugar de Platão na crítica
desenvolvida por Nietzsche à metafísica e à verdade como valor metafísico.
De
início, é preciso reconhecer que a metafísica sistematizada tem sua origem em
Platão, e a mentalidade do homem ocidental se formou com base na filosofia
platônica. Um papel fundamental nessa formação do pensamento ocidental
desempenhou a Alegoria da Caverna (que consta do Livro VII, de A República). Nesse texto, Platão
introduz a concepção de que o mundo da experiência sensorial é um mundo
ilusório, um mundo de aparências, ao passo que o verdadeiro mundo é o da
experiência intelectiva, ou o mundo das Ideias perfeitas. Platão opera,
portanto, uma inversão decisiva para a constituição e desenvolvimento de toda
uma teologia cristã posterior: ele chama de ilusório o mundo tal como
conhecemos por meio de nossa percepção sensorial e de verdadeiro o mundo
acessível apenas à experiência racional, intelectiva. Está, então, estabelecida
a base sobre a qual outros dualismos podem ser desenvolvidos, tais como “corpo”
x “alma”. Aliás, a ideia de que o corpo é um cárcere da alma é uma ideia consagrada por Platão, na esteira de Pitágoras.
Na Idade
Média, com a patrística, o cristianismo incorpora grande parte do platonismo,
de tal modo que passa a ser uma espécie de platonismo para o povo. Ou seja,
Platão passa a ser conhecido para os cristãos, muito graças aos esforços de
Santo Agostinho (354-430 d.C), a quem devemos a elaboração de uma teologia de influência
platônica que constitui o coração da doutrina cristã até hoje.
O
Nietzsche de O Anticristo condena
impiedosamente a condição servil a que o homem foi destinado no cristianismo. Assim,
ao homem é negada a possibilidade de
tornar-se mais forte sem recorrer a subterfúgios supra-sensíveis. Para
Nietzsche, a moral cristã condena a vida humana à decadência, ao niilismo
resignado, porque eleva sobre esta uma outra vida a ser aguardada na fé e na
esperança. O cristianismo, nota Nietzsche, é responsável também por
desencorajar o homem a mudar sua própria condição de existência – marcada, não
raro, por dor e sofrimento -, uma vez que lhe acalenta a esperança numa
recompensa numa vida além-mundo.
Para a
superação deste homem decadente e resignado produzido pelo cristianismo,
Nietzsche postula uma transformação do próprio homem, que assumiria a forma de
um além-do-homem. Trata-se de um homem que supera a metafísica e que avança
convivendo com o desespero (perda de qualquer esperança numa vida no além). É
um homem que, consciente da falta de sentido, torna-se ele mesmo o seu sentido.
O além-do-homem é o estado do homem que superou o homem metafísico, cujas
raízes se acham no pensamento platônico.
Nietzsche
convoca, portanto, o homem a viver esta que é a vida verdadeira. Somente esta
vida é eterna. Para Nietzsche, qualquer valor metafísico religioso que produz a
crença numa vida além-mundo é uma farsa. Como era um grande estudioso da
Bíblia, o filósofo alemão não deixou de notar, evocando a mensagem de Jesus
Cristo, que o Reino dos céus é um estado do coração. Por isso, para ele,
considerá-lo uma região transcendente é um erro grosseiro de uma interpretação
posterior.
Nietzsche
também reconheceu que “o verdadeiro cristão morreu na cruz”, numa clara alusão
ao fato de que o cristianismo não foi fundado por Cristo e que coube a São
Paulo trazer a “má-nova”, uma interpretação tendenciosa da mensagem de Jesus.
Contrariamente
à crença cristã, para Nietzsche, sagrada é a vida aqui e agora, a vida do
devir. Valor, em Nietzsche, é necessariamente o que torna esta vida, aqui e
agora, mais forte – uma vida que precisa ser vivida. Qualquer valor que negue
esta vida, na verdade, não é sequer um valor.
A
filosofia de Nietzsche projeta o homem para um vir a ser. É uma filosofia do
porvir. Nesse sentido, ela se opõe também a qualquer sentimento niilista, a ela
erroneamente associado, muitas vezes. Nietzsche é, definitivamente, o contrário
de um niilista. Sua máxima é: é
necessário viver e viver mais.
O além-do-homem
é o homem que vive num mundo que é dionisíaco – um mundo em que tudo nasce,
tudo muda, tudo se transforma e morre. É um homem que vive e aceita o trágico.
E o trágico, em Nietzsche, é um caminho para a aprendizagem. É o homem que ama
a vida, que experiencia o amor fati
(amor ao destino).
A morte
de Deus, portanto, não significa, para Nietzsche, o fim da vida. É, ao
contrário, o retorno a ela. O além-do-homem se realiza neste mundo, o
verdadeiro, ao contrário do que ensinou Platão.
O
além-do-homem não é escravo; ele não precisa de um sentido para viver, ou para
crer na vida. Ele é o homem que ama o seu destino, que ama o devir, que é o
real (Heráclito). Ele é o contrário de um niilista. É criador de valores. É
homem da imanência. Se há transcendência, em Nietzsche, ela só é possível na
imanência. O homem renovado é um homem que transcende a si mesmo no mundo
dionisíaco nietzschiano. É o homem que transvalora todos os valores, que supera
os valores empedernidos que herdou de uma longa tradição metafísico-religiosa
(Sousa, 2008).
“Acima de
tudo é preciso que se viva” (Sousa, 2008: p. 79). Eis a máxima de Nietzsche. E,
anunciando-a aqui, quero, por fim, dizer algumas palavras sobre o seu conceito
de Eterno Retorno que, como vimos, está intimamente ligado ao postulado segundo
o qual “Deus está morto”.
O Eterno Retorno do mesmo recobre a ideia
de Heráclito de devir, do vir a ser contínuo. Também envolve a ideia do
além-do-homem, já que o além-do-homem, esse homem que superou o homem
metafísico, vive como quem deseja reviver cada acontecimento infinitas vezes.
Portanto, essa ideia supõe a infinitude do tempo e o retorno de vivências na
infinitude do tempo.
O Eterno
Retorno também se vincula à necessidade de dizer sim à vida infinitas vezes. É
preciso viver sem arrependimentos e remorsos. O Eterno Retorno é um critério de avaliação, pelo qual o homem
seleciona os acontecimentos que merecem ser revividos e que devem ser revividos
(Ferry, 210, p. 118). É preciso dizer que esse reviver infinitas vezes os
instantes de nossa vida inclui também os momentos de dor, os momentos de
infelicidade, muita vez, incontáveis. É desejar reviver sem concessão. O que
Nietzsche ensina aí é que devemos viver como quem tem necessidade de reviver, como quem deve desejar reviver. Devemos viver como alguém para quem desejar
reviver se coloca como um dever.
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