
O
mal-estar no amor
Ou o
excesso do amor
É do Amor que me ocuparei nesta
nova oportunidade em que me sirvo das palavras para expressar e sustentar a
tese segundo a qual vivemos um mal-estar
erótico na modernidade atual. Em que consiste esse mal-estar e qual é a sua
origem são as duas questões que procurarei, aqui, desenvolver e responder. Para
a realização desse intento, convidarei o leitor a passear comigo pelos jardins
de ideais cultivados pelo pensamento platônico sobre o amor. Vamos revisitar a
concepção de Platão sobre o amor. Sabemos que as ideias de Platão ecoam pela
voz de Sócrates, de modo que, ao falarmos do entendimento socrático, estamos
falando da compreensão platônica.
Não me
cingirei a abordar a visão platônica de amor, evidentemente. A ela reunirei
outras perspectivas conflitantes e divergentes, uma das quais – e a primeira
que mencionarei – é a do filósofo moderno Simon May, exposta e desenvolvida em
seu livro Amor – uma história (2012).
Comecemos,
portanto, pela contribuição de May. De início, é preciso frisar que, para ele,
o amor é um enlevo. O amor é, portanto, um êxtase que sentimos; amar é
sentir-se encantado, absorvido pela presença do outro que é objeto de nosso
amor. Mas o amor, enquanto enlevo, causa em nós outro sentimento. Acompanhemos
as palavras de May a seguir:
“O amor (...) é enlevo que sentimos por
pessoas e coisas que inspiram em nós a esperança de uma fundação indestrutível para a nossa vida. É um enlevo que nos faz empreender – e sustenta – a longa busca de uma relação segura entre
nosso ser e os delas.”
(p. 19)
Destaquei
em negrito alguns trechos que cuidei fundamentais para que compreendamos a
perspectiva do autor. É verdade, como podemos notar, relendo o trecho, que May
não restringe a natureza do objeto de amor à pessoa; podemos amar coisas (por
exemplo, o dinheiro, o poder, nossa casa, nosso carro, etc.). No entanto, eu
vou ignorar essas outras formas de objeto de amor e me limitarei a pensar o
amor destinado a pessoas.
Vimos que
May considera o amor um enlevo, o que nos sugere tratar-se de um sentimento que
nos provoca certo arrebatamento. O amor, enquanto êxtase (enlevo), liberta o eu
do corpo; amando é como se pudéssemos nos libertar de nós mesmos.
Experimentamos uma plenitude de ser. Poderíamos dizer que o amor, enquanto
enlevo, é potência de existir. É íntima alegria de existir mais. Se, por um
lado, poderíamos ficar tentados a ver na concepção de May alguma espécie de
elevação espiritual consequente da experiência amorosa; por outro lado, devemos
reconhecer que o enlevo inspirado pelo amor funda-nos, de modo indestrutível, a
existência neste mundo. O amor estabelece uma fundação para a nossa vida. Graças
ao amor, sentimo-nos em casa no mundo. O amor enraíza nossa vida neste mundo,
que passa a ser considerado como um lar (lugar de aconchego, de acolhida).
Não menos
importante é a ideia suscitada pelo verbo empreender, também destacado em
negrito. Esse verbo sugere que o amor é um trabalho. Ou melhor, é o que nos
impulsiona a buscar uma relação sólida, segura. Essa relação se estabelece
entre dois seres. E, aqui, convém reavivar a ideia de que “amar é fazer do ser
de um participante do ser do outro” (BAR).
Creio que
é importante entender que, segundo May, o amor não nos distancia do mundo, não
nos eleva sobre ele; não nos encarcera em alguma realidade espiritual
transcendente. Ao contrário, o amor, enquanto enlevo, produz em nós um
sentimento de pertencimento à realidade mundana, onde experienciamos profundos
bem-estar e bem-viver. O trecho a seguir parece confirmar essa interpretação:
“Se todos nós temos necessidade de amor,
é porque todos precisamos nos sentir em casa no mundo: enraizar nossa vida no
aqui e agora; dar à nossa existência solidez e validade; aprofundar a sensação
de ser; capacitar-nos para experimentar a realidade de nossa vida como
indestrutível (ainda que aceitemos também que ela é temporária e terminará na
morte)”.
(ib.id.)
A esse
sentimento de estar em casa no mundo; à percepção de que nossa existência
ganhou solidez no aqui e agora, de que nossa vida fincou raízes na realidade,
May chama enraizamento ontológico.
Ontológico nos remete à ideia de Ser. Enraizamento
de nosso ser na realidade; fundação inabalável de nossa existência no aqui e
agora – é o sentimento que nos provoca o amor. O amor ancora nossa
existência e ser no mundo. O amado encarna a promessa, para nós, de sustentação
de nossa vida no mundo, de modo que o sintamos como um lar. O amor torna o
mundo um lugar acolhedor para nós.
Antes de
trazer à baila a concepção platônica de amor, faz-se mister distinguir entre
uma visão sobre o amor fundada no imaginário e um visão sobre o amor fundada na
observação e na experiência empírica. Essa distinção nos ajuda a entender que
muito do que se diz do amor pode estribar-se em representações imaginárias. A
palavra imaginário designa o conjunto
de representações, crenças, desejos e sentimentos na base dos quais um
indivíduo ou grupo entende a realidade e a si mesmo. Parece-me que a visão de
May sobre o amor está muito mais próxima de uma visão baseada no imaginário
ocidental do que na observação das relações amorosas na contemporaneidade. Uma
visão sobre o amor calcada na experiência empírica não poderia escusar a
observação de que as relações amorosas têm se mostrado frágeis e descartáveis.
Essa visão fundada empiricamente deve levar em conta, por exemplo, as formas de
amor líquido, a que se refere Bauman. Também não pode ignorar que o amor,
enquanto relação, implica tensões, conflitos e poder. Toda relação amorosa é
uma relação de negociação do poder.
May
externa sua convicção de que o amor é uma experiência que dá significado à
nossa existência. Nesse tocante, ele faz repercutir o imaginário coletivo. São
nossos desejos, nossas crenças, nossas representações que são mobilizados na
compreensão do amor como “enlevo que produz um enraizamento ontológico”. Para
mim, erra quem supõe que May esteja enganado ou iludido a respeito do amor ou
do valor do amor; na verdade, ele faz ecoar o sentimento que a grande maioria
de nós experimenta quando amamos e somos amados. Quem negaria que o amante e o
amado, insuflados de amor, não encontram no mundo um lugar acolhedor e
aprazível? Quem negaria que esse sentimento de enraizamento ontológico inunde
seus espíritos e corações? Tem razão May ao sugerir que o valor que atribuímos
ao amor é o de nos fazer existir mais, ser mais, sentir mais nossa vida em
harmonia com o mundo. Amar é sentir-se em casa no mundo. Amar, diríamos com
May, é quando um mora no outro. O amante e o amado estão conciliados com a vida
e com o mundo quando imersos no amor recíproco.
É chegado
o momento de revisitar o pensamento de Platão sobre o amor. Desde já, o amor
platônico, tal como representado em O
banquete, nada tem que ver com a ideia de amor irrealizável, impossível.
Amor platônico não está dissociado da relação sexual, tampouco se confunde com
o culto ao amado. Compreendamos melhor esse ponto.
Quando
Alcibíades faz sua preleção no final de O
banquete, demonstra não ter entendido Sócrates. Confessa não ter alcançado
o grau mais alto na experiência do amor na pederastia, ou seja, não conseguiu
atingir o Belo ou a essência (disso tratarei adiante). Além disso, Alcibíades
demonstra-se frustrado pelo fato de Sócrates não tê-lo desejado sexualmente,
ainda que lhe tenha dado sinais de disponibilidade sexual. Esse episódio, em
que Alcibíades demonstra sua frustração dada a irrealização do desejo amoroso
levou a alguns comentadores a ver o amor platônico como um amor idealizado,
irrealizável ou distante. Essa interpretação prevaleceu no senso-comum. Popularmente,
quando se diz que uma pessoa nutre um amor platônico por outra quer-se dizer
que alimenta um sentimento que jamais será correspondido e que se conservará no plano
da ideia, sem qualquer relação com a experiência sexual com o amado. É o caso,
por exemplo, de uma jovem mulher que sinta amor pelo seu ídolo. Diz-se,
vulgarmente, que ela nutre por ele um “amor platônico”, visto que se trata de
uma amor que jamais será correspondido e vivenciado sexualmente.
Todavia,
o amor platônico é impulsionado por Eros e não está dissociado da experiência
sexual, muito embora o sexo seja um meio, não o fim desse amor. Vamos, então,
compreender melhor a concepção platônica de amor.
Para uma
adequada compreensão da visão de Platão sobre o amor, necessário se faz entender
como Platão concebe o Belo e o Bem, visto que o amor, em Platão, está
intimamente relacionado ao Belo e ao Bem.
Para
Platão, o belo é o que faz com que as coisas sejam belas. O belo é uma essência
e é independente da aparência do belo. Quando se diz “Fulana é bela”, está-se
associando a ideia de belo a um sujeito (Fulana). Nesse caso, o belo é aquilo
que está na aparência; é uma experiência estética, é um prazer desinteressado
suscitado pela contemplação de um ser. Platão não entende o belo como relativo
a um ser, como situado na aparência ou dado numa experiência estética. Em
Platão, o belo é uma ideia análoga às ideias de ser, verdade e bem (ou
bondade). O belo, para Platão, é uma realidade absoluta; é quase uma espécie de
bem ou perfeição. As coisas de que dizemos serem belas participam, em Platão,
do Belo, enquanto essência.
Intimamente
associada ao belo está a ideia de bem ou bondade. O bem equivale ao belo de
modo abstrato. Em Platão, o Bem é uma Ideia absoluta ou Ideia das Ideias; é uma
ideia elevada e magnífica; está além do ser. As coisas boas somente são boas
enquanto participantes do único Bem absoluto.
Contrariamente
à visão de Platão, para Aristóteles, embora o Bem seja uma realidade
metafísica, há que se distinguir entre o Bem em si mesmo e o Bem relativo a
outra coisa. O primeiro corresponde ao Bem puro e simples; o segundo, ao Bem
para algo ou alguém. Segundo Aristóteles, embora devamos preferir o primeiro ao
segundo, o Bem puro não se identifica necessariamente com o Bem absoluto
(Platão). Trata-se, decerto, de um Bem mais independente do que o Bem relativo.
Todavia, Aristóteles rechaça a doutrina platônica. Ao contrário de seu mestre,
o estagirita nega que o Bem seja exclusivamente uma realidade absoluta ou uma
substância. Para Aristóteles, cada coisa pode ter seu próprio bem. Vimos que
Platão pensava diferente: cada coisa só é boa por participar do Bem, enquanto
essência.
Finalmente,
vale mencionar a concepção de Agostinho, para quem o Bem em si mesmo pode
equivaler-se ao Bem metafísico. Nesse caso, o Bem e o Ser são a mesma e única
coisa. O Bem, em Agostinho, é Deus. Mas pode também, num sentido menos estrito,
suceder que as coisas criadas, incluindo o homem, participem do Bem,
especialmente quando aquele alcança um estado de fruição de Deus.
O amor
platônico, embora não despreze a experiência sexual, supõe um trabalho de
ascensão à beleza espiritual ou intelectual e à essência mesma do belo. O amor
platônico busca o Belo. Mas não se limita à beleza física. É um amor que aspira
à Beleza perene e, portanto, aspira à imortalidade.
O amor,
em Platão, busca unir-se com a beleza, a bondade e a verdade em si. Unir-se ao Belo
significa unir-se a uma realidade absoluta, imortal e imutável. O amor
platônico precisa transcender ao amor físico. Atentemos para o trecho em May
nos ensina sobre as pretensões do amor, em Platão:
“Dominados por essa visão de divina
beleza, contamos com o amor para nos levar de um mundo imperfeito, transitório,
para um reino de perfeição e eternidade. Esperamos que ele culmine numa
experiência de absoluta beleza e bondade – e que nosso bem-amado inspire em nós
tal experiência. Sua função, relata Sócrates, é “interpretar e transmitir
mensagens dos homens para os deuses e dos deuses para os homens”. De fato, o
amor permite a nós seres humanos encontrar uma completude divina; ter “o
privilégio de ser amado por Deus, e tornar-se, se algum dia um homem o poder
ser, ele próprio imortal”.
(p. 74)
Parece-me
lícito dizer que o amor, em Platão, aspira à transcendência, à eternidade, à
perfeição. Pelo amor, instaura-se uma intercomunicação entre o universo humano
e o universo divino. É uma forma de amor que busca a beleza e a bondade
absolutas. É uma forma de amor que eleva o homem a Deus, alimentando naquele o
desejo de completude com este. O amor platônico é o caminho pelo qual o homem
aspira ao puro e ao eterno. Novamente, vale ler o seguinte excerto de May, no
qual nos ensina sobre a influência que a concepção platônica de amor exerceu na
história do amor ocidental:
“ESSE QUADRO DA ASCENSÃO do amor do
físico ao divino moldou a história do amor ocidental de maneiras tão imensas e
variadas que não posso fazer mais que escolher algumas de suas influências,
embora muitas outras irão se manifestar à medida que consideramos outras concepções
de amor que, a despeito de toda sua aparente diferença, dependem decisivamente
do pensamento de Platão (seja adotando-o ou opondo-se a ele).”
(p. 73)
A
primeira influência a que se refere o autor diz respeito à transformação do
amor em um valor supremo. Na verdade, Platão assentou o terreno para que o
amor, com o advento do cristianismo, tornasse-se o valor supremo do mundo. Isso
porque, com Platão, o amor é desejo pela beleza e pela bondade mais elevada; é
também o caminho para a verdadeira virtude e para o eterno e o imutável. Na
concepção platônica, amamos o que é belo e o que é bom. Não é possível, a seu
ver, amar o que é feio e mau. Com o advento do cristianismo, que incorporou em
sua teologia os mandamentos básicos das Escrituras hebraicas, quais sejam, amar
a Deus sobre todas as coisas e amar o próximo como a si mesmo, o amor torna-se
valor supremo do mundo ocidental e significado mais elevado da vida. A crença
de que o sentido da vida é amar ou de que só o amor dá verdadeiro sentido à
existência do homem é uma crença calcada sobre a concepção cristã do amor – uma
herança deixada ao mundo ocidental.
A segunda
influência consiste em inseminar na cultura ocidental a crença segundo a qual a
relação sexual constitui apenas o limiar do caminho para o amor elevado. Ela é
o meio, mas não o fim do amor. Observa, com propriedade, May que
“surpreendentemente, nenhuma medida de liberação sexual afugentou esta visão
(p. 74)”. Para May, a grande maioria dentre nós, ainda hoje, não pensa o amor
como experiência sexual; ao contrário, tendemos a associar o amor a coisas mais
elevadas, tais como ideais ou valores que compartilhamos com o parceiro.
Acredita uma grande maioria que o amor deve concentrar-se na alma ou no ser do
outro mais do que no seu corpo.
Não se
pode tirar a razão de May; no entanto, creio necessário acrescentar que a nossa
sociedade é muito mais sexualizada, ao mesmo tempo em que se caracteriza por
uma profunda deserotização (Ghiraldelli, 2011). Segundo Ghiraldelli (p. 14), a
razão para que se dê esse excesso de sexualização de nossa sociedade está em
que as pessoas, sentindo-se embotadas mentalmente, entediadas e cansadas no
processo de trabalho, buscam preencher seu vazio com “imagens sexuais”, a fim
de estimular a sensibilidade, então arrefecida. Convém insistir que a
experiência de amor na contemporaneidade é muito distante da visão platônica de
amor. O amor de Platão é amor-Eros. É amor que aspira ao bem, ao belo; é alegre
e vivo, sem deixar de ser sexuado; no entanto, é amor que transcende o domínio
físico-sexual. No mundo contemporâneo, amor e sexo situam-se em esferas
ideológicas diferentes e dissociáveis. A título de exemplificação, lembre-se a
canção de Rita Lee Amor e sexo (“amor
é divino; sexo é animal” – numa clara evocação da visão platônica). A canção
congrega várias representações do amor que configuram o imaginário amoroso do
homem ocidental. Na canção, por exemplo, se diz que “amor é um”, o que nos leva
à visão, também presente em O banquete,
no discurso de Aristófanes, do amor como desejo de fusão. Mas deixemos a canção
de Rita Lee para nos concentrar nas seguintes palavras de Ghiraldelli, em Como a filosofia pode explicar o amor
(2011), com as quais nos dá testemunho do modo como se dá a deserotização da
sociedade moderna:
“Não raro, falamos do amor de maneira
muito abstrata, e o temos no dia a dia desse modo, de forma a fazê-lo se perder
em seu caminho, sem nenhum objeto, isto é, sem nenhum lugar de chegada. Em
outras palavras, geramos o amor sem o amado! Esse equívoco também é resultado
da deserotização”.
(p.
17)
Percebe-se,
sem muita dificuldade, que, em nossa época, homens e mulheres falam de amor de
modo muito abstrato e indefinível; não raro, se demonstram desacreditados do
amor, porque incapazes de percebê-lo (interpretá-lo). O amor é amor
interpretado, é uma interpretação que chamamos amor (Precht, 2012). No momento
em que nós não sabemos bem o que é Eros, tendemos a pensar que ele orbita
esferas muito distantes, ou representa um ideal irrealizável para a condição
humana.
Volto
rapidamente ao mito de Aristófanes, no qual nos conta de seres humanos
divididos por Zeus em busca da metade perdida. Esse mito nos ensina algo
importante: o amor não é capaz de restituir aos seres humanos divididos ao meio
a sua integridade original. A possibilidade mesma de que nunca venhamos a encontrar
a nossa metade é algo que a maturidade nos ensina (voltarei a esse ponto). É
bem verdade que o amor pode até acalentar em nós o sentimento de restituição da
metade perdida, mas ele não chega a no-la permitir completamente. Apenas os
deuses podem fazê-lo. Somente um deus poderia unir o que outro deus um dia
separou.
Convém
ficar claro que, para Sócrates/Diotima, o amor se origina na falta; para
Aristófanes, na perda. O homem não mais enfeitiçado pelo amor platônico
reconhece que o amor é fonte de demandas, mas as necessidades pressupostas no
amor nunca são plenamente satisfeitas. Sabemos disso por experiência própria.
A
terceira influência da ideia de amor platônico no mundo ocidental deve ser
compreendida considerando-se as seguintes ideias. Em primeiro lugar, o amor
platônico se vincula à imortalidade. O amor mais elevado, aquele que transcende
a mera relação sexual, deve permite-nos não só contemplar as coisas elevadas,
como também nos tornar imortais. Destarte, o amor é um caminho que conduz à
essência imutável da beleza e da bondade. Ele nos conduz a um mundo onde as
propriedades que nos humanizam, tais como a transitoriedade, a perda, o
sofrimento, o acaso, a dor, o mal já não nos definem como tais. Nesse mundo,
estamos delas livres. Essa concepção do amor como um caminho de ascensão a um
mundo de libertação de condições que nos tornam humanos exerceu grande
influência sobre a imaginação do homem ocidental. Ele passou a alimentar a
esperança de que o amor tem em si mesmo uma função salvífica e um valor
supremo.
Não
podemos ignorar as consequências que disso é possível extrair. Em primeiro
lugar, pensar o amor de modo tão majestoso, pensá-lo como um caminho que nos
conduzirá a contemplar a essência atemporal da beleza lança por terra de modo
drástico o valor do amor entre as pessoas. Em segundo lugar, o amar as pessoas
pela sua transitoriedade torna-se vicioso. As coisas transitórias, entre as
quais incluímos as pessoas, tornam-se menos dignas de amor, simplesmente por
serem impermanentes. Só a imortalidade, em cotejo com a transitoriedade, é um
valor para o amor platônico. Em terceiro lugar, não é difícil depreender daí a
possibilidade de podermos trocar a pessoa amada por outra, desde que esta
encarne ao menos o mesmo grau de beleza. Nessa visão, o ser amado torna-se um
meio para alcançar um bem maior, quais sejam, nossa imortalidade, a
contemplação da beleza imutável e eterna. Não está em mira o aprofundamento da
relação com o amado. Segundo May,
“(...) no interesse do florescimento do
próprio amante, acaba arrastando o amor mais verdadeiro do pessoal para o
impessoal, do individual para o geral e do humano para o, literalmente,
desumano”.
(p. 74)
Poderia
apenas a beleza ser necessária para nos despertar o amor? Será mesmo que só
porque uma pessoa é bela devemos amá-la? Por outro lado, não é verdadeiro que
muitas pessoas amam coisas que não são eticamente boas? Para nós, a ideia
segundo a qual o amor à beleza implica necessariamente um compromisso com o
agir de modo moralmente correto não se sustenta. Nós, modernos, não vemos uma
relação necessária entre amor à beleza e compromisso com uma retidão moral, ou
seja, com o bem.
Voltemos
aos dois mitos do Banquete e
consideremos a influência preponderante deles na sensibilidade do mundo
ocidental.
Já
comentei que Aristófanes propõe um “retorno” a um estado original de
integridade e imutabilidade. Trata-se da busca pela metade perdida. O amor é,
então, representado como desejo de fusão, desejo de completude. Em Sócrates
(Diotima), o amor pressupõe um movimento de ascensão a uma essência divina.
Ambas as visões contribuíram decisivamente para moldar a sensibilidade dos
homens e mulheres do mundo ocidental: tanto Aristófanes quanto Sócrates deram
ao amor o papel de assegurar o imutável e o eterno. Algumas consequências se
nos impõem ao espírito.
Nesse
momento, o terreno para Eros foi preparado. Eros é o maior dos impulsos de
vida; no entanto, o caminho que trilhará, doravante, é o caminho onde o impulso
de morte se enraizará. Eros deseja uma satisfação que, a rigor, envolve a
superação da vida humana, enquanto indivíduos que existem em limites temporais
e que são marcados pela transitoriedade, pela possibilidade de solidão, de
perda, de incompletude, de sofrimento e de dor. São os próprios ideias elevados
do amor platônico que o dota de uma força destrutiva, ruinosa e mortal. É,
possivelmente, no Romantismo alemão do século XVIII ao século XIX que essa
força destrutiva do amor se faz claramente marcante. Nesse período, as relações
interpessoais passaram a sobrecarregar-se de expectativas irrealizáveis. Em
tais condições, não é de surpreender que o suicídio viceje. A esse propósito,
nos ensina May:
“A elas [às relações humanas] é
atribuída a tarefa de permitir aos amantes entrar em contato com o divino e até
tornarem-se divinos; esforçar-se, através de seu amor, para alcançar a
imortalidade, e, por fim, aniquilar sua existência como indivíduos encarnados”.
(p. 77)
Claramente
aí o excesso do amor implode o ser do homem. Esse excesso é sobrecarga de
ideais cuja realização é impossível nos limites da natureza humana. O amor não
sabe bem o que quer. Interessante ver que as ideias de contemplação da essência
do belo, completude, bem eterno e imutável não passam de representações de uma
experiência mística. Nenhuma definição pode compreendê-las.
Eis que,
finalmente, uma ideia precisa enraizar-se no espírito do leitor arguto e não
mais deslumbrado e inocente: o amor é
condicional. E essa proposição vale tanto para as representações míticas do
amor em O Banquete quanto para as
experiências de amor na vida real. Também o amor, enquanto forma de relação, é
relação com o poder. É possível que amor nos conduza a atenuar as tensões nessa
relação com o poder, mas ele é incapaz de suprimi-las. Não raro, ele pode, ao
contrário, servir de combustível para robustecê-las.
É chegada
a idade da maturidade. E com ela aprendemos que o amor é um trabalho arriscado.
Há riscos em todo amor. A dura verdade que se nos revela ao coração é que
podemos nunca encontrar a nossa outra metade. E, ainda que, por ventura, a
encontremos, nem sempre seremos capazes de harmonizar nossa vida com a dela. Os
riscos envolvidos no amor é também a vulnerabilidade à perda, à dor, ao
sofrimento, ao acaso. Mas não neguemos que a dura verdade é também sinal de
maior lucidez.
“Em nossa juventude ainda não
descobrimos tampouco que o amor é um empreendimento arriscado em que podemos
nunca encontrar nossa outra metade verdadeira (...)”.
(p. 79)
Longe de
desprezar o legado das reflexões platônicas sobre o amor, homens e mulheres
modernos, certamente, caminharão com mais firmeza no desnivelado terreno
amoroso, se souberem aproveitar as lições de autores como José Luiz Furtado e
Richard David Precht. Este último, por exemplo, nos chama atenção para o espaço
destinado à excitação na experiência amorosa. Para ele, nosso desejo de amor
não se confunde, acima de tudo, com um desejo por companheirismo e compreensão,
ou por vínculo e acolhimento. Desejamos na mesma medida excitação. Nossas
expectativas em relação ao outro fazem apelo a que ele nos entenda e nos torne
mais interessante a vida (Precht, 2012,
p. 178). Ainda segundo Precht, a experiência da vida real nos ensina que não escolhemos
as pessoas mais amorosas para amar. Já Furtado (2008, p. 28) nos faz ver, entre
outras coisas, que o gozo não é a realização do amor. Com ele, aprendemos que o
amor é uma dificuldade, uma tarefa; e eu acrescentaria – uma prática, um
trabalho que envolve tensões, negociações, uma dinâmica que pode, facilmente,
produzir as condições para o predomínio do ódio. Também observa Furtado que o
amor é a crença de que de dois se possa fazer um. Mas é apenas uma crença; o
real basta para pulverizá-la. Segundo Furtado,
“(...) o sexo desfaz essa crença através
da certeza, sempre refeita em cada ato sexual, por melhor que ele seja, de que
onde há dois, há sempre e reiteradamente, dois”.
(p. 32)
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