
A gente não sabemos
O erro que ninguém vemos
Esta é uma cena que se repete todos os dias em nossa sociedade:
A – Eu tinha trago o caderno ontem.
B – (risos) Não se diz tinha trago. É errado. O certo é tinha trazido.
Nesta amostra representativa de uma situação
de comunicação comum em nosso dia-a-dia, o falante A usa uma forma participial negativamente avaliada pelo falante B. A forma participial “trago” é
classificada de “errada” pelo falante B,
que enuncia a forma que acredita ser a certa – “tinha trazido”.
O que nem um nem outro sabem é quais as
condições históricas que tornaram possível a eles acreditar que existem formas
linguísticas certas e formas linguísticas erradas. Esses falantes, que
representam a maioria esmagadora de nossa sociedade, acreditam que valores como
“certo” e “errado” são intrínsecos às expressões linguísticas. Na verdade, como
me esforçarei por mostrar, eles não fazem senão reproduzir uma tradição que,
tendo mais de dois mil anos, congrega atitudes e práticas que visaram a estabelecer
um padrão linguístico ideal calcado
sobre a língua em que foram escritas as grandes obras literárias da Antiguidade
Clássica. Vou apresentar, a seguir, sem pretender a exaustão, os desdobramentos
históricos que levaram à constituição do que ficou conhecido por Gramática Tradicional (doravante, GT)
entre nós, ocidentais.
Contando
a História
No Ocidente, foram os antigos gregos os
primeiros a desenvolver reflexões sobre a linguagem. No século V a.C, as
sementes de tal empreendimento encontraram no pensamento de Platão um terreno
fértil. A ele coube a distinção entre ónoma
(nome) e rhéma (verbo).
Posteriormente, Aristóteles acrescentou a essas partes do discurso os syndesmoi (unidades gramaticais); mas
foram os estóicos quem separou, nesse grupo, as formas variáveis (artigos e
pronomes) das invariáveis (advérbios e conectivos). Mais tarde, no século II-I
a.C, Dionísio da Trácia estabeleceu as oito categorias gramaticais, que compõem
as classes de palavras de nossas gramáticas hoje (substantivo, adjetivo,
advérbio, artigo, conjunção, preposição, numeral e verbo).
A gramática, como disciplina, surgiu entre os
gregos para atender a dois propósitos: um, filológico, que consistia em estudar
as produções literárias de grandes poetas e prosadores, para preservá-las, e em
identificar as regras de uso da língua em que foram escritas; o outro,
pedagógico, que consistia em estabelecer um padrão de língua que deveria ser
ensinado aos cidadãos e seguido por eles (que eram homens (seres do sexo
masculino) que tinham direito à educação e acesso à cultura letrada). Em sua
obra A Vertente Grega da Gramática
Tradicional (1987), a linguista Maria Helena de Moura Neves nota o
seguinte:
“Toda
uma situação cultural cerca esses fatos. A exigir a instalação de uma
disciplina estão as condições peculiares da época helenística, marcada pelo
confronto de culturas e de línguas, e pela consequente exacerbação do zelo pelo
que então se considerava a cultura e a língua mais puras e elevadas”.
(p.
243)
Esse caráter da gramática se manteve entre os
romanos, a quem coube divulgá-la. A situação não mudou na Idade Média. O latim
era a lingua em que se escreviam as grandes obras da Europa medieval até o
século XIII. A gramática passou a compor o trivium
das instituições acadêmicas, ao lado da dialética e da retórica. Um abade,
à época, escreveu a gramática “prepara a mente para entender tudo que possa ser
ensinado por meio das palavras” (Azeredo, 2000: p. 17). O passo de Neves
(1987), a seguir, lança luzes sobre as motivações que subjaziam ao trabalho dos
gramáticos:
“Era
para facilitar a leitura dos primeiros poetas gregos que os gramáticos
publicavam comentários e tratados de gramática, que cumpriam duas tarefas:
estabelecer e explicar a língua desses autores (pesquisa) e proteger da
corrupção essa língua “pura” e “correta” (docência), já que a língua
quotidianamente falada nos centros do helenismo era considerada corrompida. E,
servindo à interpretação e à crítica, realizava-se o estudo metódico dos
elementos da língua e compõe-se o que tradicionalmente seria qualificado como
gramática”.
(pp.
104-5)
Como se pode ver, havia um sentimento
elitista a guiar o trabalho desses gramáticos. A produção das gramáticas era
impulsionada pela crença de que a língua falada pelas camadas populares era
considerada “errada” ou “estropiada”.
Quando nos debruçamos sobre a GT, a primeira
coisa que devemos reconhecer é que ela remonta à gramática grega. A GT é um
fato da cultura helenística e representa os esforços para a preservação dessa
cultura.
Desde sua origem, a GT se preocupou com o
estabelecimento das regras consideradas as melhores para a língua escrita, para
o que se baseou no uso que dela faziam aqueles que tinham prestígio na
sociedade à época; eram eles, especialmente, os grandes escritores da
literatura, entre os quais poetas e prosadores. O uso da lingua escrita
literária serviu, portanto, originalmente, de modelo para uso “correto”,
“adequado”, “bom” do grego.
Essa tradição, preocupada em estabelecer um
padrão na base do qual o comportamento linguístico dos indivíduos deveria se
modelar, começa a ganhar corpo entre os filólogos-gramáticos alexandrinos, no
século III a.C. Nesse período, a Alexandria (que tinha esse nome devido ao seu
fundador Alexandre, O Grande), era o principal centro irradiador da cultura
clássica. Foi entre esses filólogos que a preocupação em estabelecer um padrão
de uso calcado sobre a língua escrita e em eleger uma determinada variedade da
língua como exemplar da língua “correta”, encontrou origem. A GT, portanto, tem
clara orientação elitista. Ela reforça a variedade linguística da elite, que
passa a ser valorada como boa e correta, silenciando, em contrapartida, as
variedades usadas pelas camadas populares, que, por sua vez, eram consideradas
“ruins” ou “erradas”.
Lyons chama de “erro clássico” a um
acontecimento que envolveu os filólogos alexandrinos, ou melhor, pelo qual eles
foram responsáveis: privilegiar a língua
escrita dos grandes escritores, em detrimento da língua falada pelas camadas
populares. Os filólogos alexandrinos opunham a fala à escrita de modo
radical. Eles eram grandes apreciadores da produção literária do passado
glorioso da Grécia clássica. Acreditavam que somente a língua escrita literária
merecia atenção, análise, descrição e estudo e que somente ela poderia servir
de modelo para a prescrição de normas do bem falar e escrever. Para esses
estudiosos, a fala era caótica e desregrada, era lugar de erro e equívoco, ao
passo que a escrita, vista como uma realidade homogênea, era clara e regulada.
Duas línguas eram, então, contrapostas: a língua falada no dia-a-dia da
Alexandria do século III a.C e a língua escrita literária da Atenas do século V
a.C.
Foram os gramáticos alexandrinos, portanto,
quem definiu o destino dos estudos gramaticais e da pedagogia das línguas por
mais de dois mil anos – uma pedagogia ainda muito em voga em nossa sociedade
atual. É com esses gramáticos que foi introduzido no pensamento linguístico
ocidental as noções de “certo” e “errado”, com as quais são avaliados os usos
da língua.
Dentre os discípulos dos gramáticos
alexandrinos, destaque-se Varrão (séc. I a.C), cuja contribuição
foi aplicar a gramática grega ao latim. Ele propôs uma gramática do latim
padrão, chamado latim clássico, que se opunha ao latim vulgar – a variedade
latina falada pelas classes populares da República e do Império Romano. Para
ele, a gramática “é a arte de escrever e falar corretamente e compreender os
poetas”.
Terminamos, pois, esta seção, referindo o
seguinte passo de Weedwood, em História
concisa da Linguística (2002), em que a autora esclarece-nos sobre o que é
a GT:
“(...)
a Gramática Tradicional, expressão que engloba um espectro de atitudes e
métodos encontrados no período anterior ao advento da ciência linguística. A
“tradição”, no caso, tem mais de 2000 anos de idade, e inclui os trabalhos dos
gramáticos gregos e romanos da Antiguidade clássica, os autores do Renascimento
e os gramáticos prescritivistas do século XVIII.”
(pp.
9-10)
É preciso insistir em que os estudos
compreendidos pela GT são de orientação descritivo-prescritivista e tinham finalidade pedagógico-filológica. Na esteira dessa tradição, surge e se
desenvolve a partir do século XX, com a publicação do Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, a
Linguística, uma disciplina descritiva de orientação científica, cuja
preocupação única é descrever e explicar o funcionamento e a estrutura da
língua/linguagem. É bem verdade, entretanto, que as sementes de uma
cientificidade na abordagem dos fenômenos linguísticos já se faziam presentes
nas reflexões dos gramáticos histórico-comparativistas do século XIX.
2.
Gramática normativa
Se, por um lado, a GT é o espírito, a
mentalidade, a doutrina, o sistema de crenças, de valores, de reflexões que deram
ensejo ao surgimento de uma disciplina e pedagogia de orientação
prescritivo-normativista; por outro lado, a gramática normativa dá corpo à GT
(Bagno, 2010). A gramática normativa constituirá um conjunto de regras que se
destinam a fixar uma variedade ideal de excelência (a variedade padrão) da
língua. A gramática normativa prescreve as regras dessa variedade, que devem
ser seguidas pelos usuários que pretendam falar/escrever “corretamente”.
A gramática normativa se ocupa apenas com os
fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua. Essa norma se tornou
oficial e prestigiosa para indivíduos num dado contexto sócio-histórico. A
gramática normativa, de que nossas gramáticas escolares são exemplares,
constitui um manual de regras para o bom uso da língua. Acompanhemos o que nos
ensina Bagno, em sua Dramática da Língua
Portuguesa (2010), ao nos esclarecer sobre o fato de a gramática normativa
ter-se tornado um instrumento ideológico de poder e controle sociais:
“(...)
Com a instrumentalização da gramática normativa em mecanismo ideológico de
poder e controle de uma camada social sobre as demais, formou-se essa “falsa
consciência” coletiva de que os usuários de uma língua é que precisam da
gramática normativa, como fonte mística, invisível da qual emana a língua
“bonita”, “correta” e “pura”. A língua ficou subordinada á gramática. O que não
está na gramática normativa “não é português”, assim como as palavras que não
estão no dicionário simplesmente não existem...”.
(p.
27)
Bagno nos ensina que, por um efeito
ideológico, as pessoas, em geral, passam a acreditar que quem não domina as
regras de uso prescritas pela gramática normativa não sabe falar português.
Essas pessoas acreditam também que precisam da gramática para falar
“corretamente” a sua língua materna. Daí que os usos não contemplados e
abonados por essa gramática não são considerados pertencentes à língua
portuguesa. Essas pessoas não se percebem mais como os verdadeiros agentes e
construtores linguísticos; a língua não pertence à gramática, tampouco aos seus
supostos guardiães; mas a todos os seus falantes nativos que dela se servem não
só para interagir socialmente, mas também para construir, definir e reafirmar
sua identidade (individual, linguística, social e cultural).
Carlos Franchi (2006) dá-nos a conhecer uma
definição de gramática normativa bastante concisa e lúcida, que vale referir
aqui:
“(...)
é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas
pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons
escritores”.
(p.
16)
É importante perceber, na definição de
gramática normativa, o valor assumido pelo uso da língua feito pelos
considerados “bons escritores” da literatura tomados para modelo a partir do
qual se determina uma língua padrão ou “correta”.
Quais são as razões por que determinadas
formas e usos linguísticos são inseridos ou excluídos da norma de prestígio?
Vejamo-las a seguir.
A primeira é de ordem estética. Nesse caso, são incluídas na norma as formas linguísticas
consideradas elegantes, belas, eufônicas; e dela são excluídas as formas
cacofônicas (boca dela), os pleonasmos viciosos (hoje em dia/ subir para cima),
o eco, etc. A segunda é de ordem elitista.
Esta está na base do preconceito e discriminação linguísticos. Nesse caso,
contrapõe-se o uso da língua feito pelos indivíduos pertencentes às classes
dominantes ao uso feito pelos indivíduos das classes dominadas. A terceira é de
ordem política. Nesse caso,
combatem-se os neologismos e os estrangeirismos. Valoriza-se a pureza do idioma
e a vernaculidade. A quarta é de ordem comunicacional.
Nesse caso, deve-se evitar a ambiguidade, o hermetismo, a imprecisão.
Valoriza-se a busca pela clareza, a precisão, a fim de facilitar a compreensão.
A quinta é de ordem histórica. Aqui
tem peso a tradição. Deve-se evitar as inovações e valorizar as formas
consagradas pelo uso feito pelos usuários da língua (escritores literários
clássicos) considerados de excelência. Por essa razão é que se proscrevem
formas como “vende-se carros” ou “custei a acreditar nele”.
Antes de por termo a esta seção, gostaria de
distinguir aqui entre norma padrão e norma culta, com base em Bagno (2007, p.
107). A norma padrão não pertence à
língua. É um modelo, uma entidade abstrata, uma forma ideológica que exerce
grande poder simbólico no imaginário coletivo, mormente sobre o imaginário dos
indivíduos mais escolarizados. A norma
culta é a norma real que compreende as variedades linguísticas de
prestígio, ou seja, as que são usadas pelos membros das camadas
socioeconomicamente favorecidas da população. Seus usuários são definidos por
critérios mais próximos à noção de cientificidade, quais sejam, antecedentes
biográfico-culturais urbanos e grau de escolarização superior. No entanto,
atento à problemática suscitada pelo uso do termo “culto” relativamente à
“norma”, Bagno (p. 105) prefere falar em variedades de prestígio e variedades
estigmatizadas. Assim, há diferentes normas, dentre as quais a norma de
prestígio.
3. Linguagem,
ideologia e discriminação
No trecho de Bagno, anteriormente citado,
lemos sobre a transformação da gramática normativa num mecanismo ideológico de
poder e controle sociais. Nesta seção, irei descer a pormenores sobre o papel
desempenhado pela ideologia na legitimação de práticas e atitudes que visam a
avaliar os padrões linguísticos em termos de noções como “certo” e “errado”.
Ademais, examinarei, sem, contudo, ser exaustivo, as consequências sociais
desse patrulhamento linguístico generalizado em nossa sociedade.
Assumirei a visão marxista de ideologia. Por ideologia entenderei, pois, um conjunto
de crenças, valores e atitudes culturais que servem para justificar e legitimar
o status quo. As ideologias, em
geral, refletem os interesses de grupos dominantes e servem de meio para
perpetuar sua dominação e privilégios. Elas produzem uma “falsa consciência”;
são ilusões, abstrações e inversão da realidade. Na ideologia, a realidade
assume a forma de aparecer social. No modo de representação ideológica, os
indivíduos consideram o aparecer social como se fosse a realidade social mesma.
A ideologia oculta à consciência dos indivíduos as verdadeiras causas de suas
condições de existência.
Acrescente-se também que a ideologia consiste
no processo pelo qual as ideias das classes dominantes se tornam as ideais dominantes
numa dada conjuntura social. As ideias das classes dominantes se tornam, por
força da ideologia, as ideias de todas as classes sociais. Isso é
particularmente verdade quando observamos que avaliar o comportamento
linguístico de outrem é prática comum aos indivíduos de todas as classes
sociais. Essa prática, que expressa os interesses das classes dominantes,
torna-se também uma prática dos indivíduos das classes subalternas. Sob o
embotamento da consciência provocado pela ideologia, os indivíduos não se
reconhecem mais como agentes responsáveis pelos processos sociais. Eles não
percebem que a realidade de sua classe decorre da atividade de seus membros.
Na ideologia, dá-se a inversão entre as
ideias e o real. Ao invés de o real explicar as ideias produzidas pela
consciência (que é produto socioideológico) de indivíduos que se relacionam em
condições de existência concretas, são as ideias que explicam o real. As ideias
são decalcadas do real e passam a ter existência independentemente das
condições sociais em que foram produzidas. Os indivíduos não mais percebem as
condições sócio-históricas como a verdadeira causa de suas ideias. Eles
imaginam que suas ideias independem de tais condições e que valem para todo o
sempre. Na ideologia, a realidade aparece
à consciência do sujeitos como algo dado, já pronto, acabado, para que seja
simplesmente ordenado, classificado e julgado.
É, portanto, a ideologia que nos ajuda a
explicar por que os indivíduos costumam avaliar as formas e usos linguísticos
uns dos outros na base de noções como “certo” e “errado”. Em primeiro lugar, a
ideologia mascara as condições sócio-históricas que explicam por que eles
tendem a avaliar os padrões linguísticos em termos de “certo” e “errado”.
Também é por meio dela que eles buscam, sem estar conscientes disso, justificar
tal prática. A ideologia cristaliza a crença de que existem formas linguísticas
essencialmente certas e formas linguísticas essencialmente erradas, mascarando
o fato de que as noções de “certo” e “errado” tomam a forma de valores com que
é julgado o comportamento linguístico dos indivíduos numa sociedade.
Considerar certo um determinado uso e errado outro resulta de valoração social,
em cuja origem se acha um forte sentimento de estratificação social.
Cumpre dizer algumas palavras sobre a noção
de valor cultural. O valor, entendido
no âmbito da da Antropologia Social, é uma ideia comum que sinaliza o modo como
alguma coisa é classificada, tendo em conta desejabilidade, perfeição e mérito.
Valorar é atribuir valores (bom, ruim, aceitável, desejável, etc.) a qualquer
coisa. Valores podem servir virtualmente para classificar qualquer coisa, desde
abstrações (lógica acima de intuição), a experiências e comportamentos. O que
torna uma ideia um valor é seu uso para categorizar coisas em relação a outras.
Portanto, quando se valora uma expressão linguística como errada, faz-se em
relação a outra que é avaliada como “correta”.
A autoridade dos valores transcende o
indivíduo, existe fora dele. Valores são partes importantes de todas as
culturas, porquanto influenciam a maneira como as pessoas escolhem e como os
sistemas sociais se desenvolvem e mudam.
É preciso, então, insistir, para o que serei
enfático: as formas e usos linguísticos
NÃO SÃO INERENTEMENTE certos ou errados; é a sociedade como um todo que
atribui os valores de certo e errado às expressões linguísticas e, ao fazê-lo,
refletem e reforçam os interesses das camadas sociais dominantes.
Outra lição importante: uma forma não é errada porque a gramática normativa diz que é errada; o
que essa concepção mascara é que uma forma só é errada porque é produzida por
membros de camadas sociais desprivilegiadas. Disso se segue que a avaliação
é negativa apenas porque as formas linguísticas usadas por uma pessoa não
correspondem ao ideal de correção atribuído ao comportamento linguístico de
usuários mais prestigiados. As gramáticas normativas legitimam isso fazendo-nos
crer que toda forma que não seja agasalhada pela norma avalizada por elas é
“errada” e deve, por isso, ser evitada.
Uma política e pedagogia linguísticas
comprometidas com o combate ao preconceito e a discriminação sociais, quase
nunca percebidos nas práticas de uso da linguagem, devem orientar-se pelo
reconhecimento de que a avaliação é essencialmente social e incide sobre o sujeito
social. Não é propriamente a língua que está sendo avaliada, mas a pessoa que
está usando a língua. Repito: os juízos de valor feitos sobre os usos
linguísticos não são imanentes aos usos,
mas resultam de relações sociais ou sócio-políticas marcadas por conflitos
entre classes e que expressam interesses antagônicos. Assim é que, quando se
avalia negativamente uma forma linguística como “trabaio” (típica de falantes
da zona rural), avalia-se negativamente o seu usuário e, por extensão, toda a sua
classe e origem sociocultural. Infelizmente, a grande maioria das pessoas
ignora o fato de que toda palavra é uma arena de conflitos sociais e de que a
língua é um lugar onde se encenam as lutas de classe com mais ou menos clareza.
Uma consciência clara do papel que desempenha
o uso da língua no robustecimento do preconceito e da discriminação social está
intrinsecamente ligada à percepção de que a língua é um poderoso instrumento de
controle social, de manutenção e ruptura de vínculos sociais, de inclusão e
exclusão, de constituição, legitimação, preservação e destruição de identidades
individuais (Bagno, 2007).
A ideologia também ofusca a percepção do fato
de que o uso da linguagem é inseparável das esferas de poder. Em Linguagem, Escrita e Poder (2003),
Gnerre nos lembra o seguinte:
“A
começar do nível mais elementar das relações com o poder, a linguagem constitui
o arame farpado mais poderoso para
bloquear o acesso ao poder”.
(p.
22)
(ênfase
minha)
O autor nos chama atenção para o papel
desempenhado por certas linguagens especializadas, tais como a linguagem
jurídica. Essas formas de linguagem excluem da comunicação as pessoas de
comunidades linguísticas externas ao grupo que as usa. Além disso, elas servem
para reafirmar a identidade dos membros desse grupo reduzido que tem acesso a
elas. Segundo Gnerre,
“A
linguagem pode ser usada para impedir a comunicação de informações para grandes
setores da população. Todos nós sabemos quanto pode ser entendido das notícias
políticas de um jornal Nacional por indivíduos de baixo nível de educação
(...)”.
(p.
21)
Nesse caso, apenas os indivíduos já
familiarizados com a linguagem usada e capazes de reconhecer os conteúdos
associados às informações conseguirão compreender alguma coisa. Gnerre nos
ensina que a variedade de prestígio incorpora conteúdos ideológicos que podem
ser facilmente manipulados, uma vez que as formas às quais se ligam ficam
imobilizadas (vejam-se as palavras democracia
e ditadura), o que favorece a
restrição da comunicação entre grupos que sabem a que domínio conceitual se
prendem as palavras. Disso se segue que fica garantida a impossibilidade das
grandes massas, não obstante estarem familiarizadas com a forma das palavras,
não terem acesso ao significado delas atualizado contextualmente.
4. Há
erros mais errados que outros
Gostaria de acrescentar algumas palavras,
antes de pôr termo a este texto. Bagno nos mostra que, nas múltiplas práticas
de valoração e discriminação de usos da língua, há erros que carreiam mais
desaprovação do que outros. Em outras palavras, há erros que são mais
percebidos do que outros, o que contribui para gerar uma situação
sociolinguística de valoração e discriminação bastante hipócrita, visto que a
mesma pessoa ou grupo que acusa “erros” na fala do outro, muita vez, não se dá
conta de que também comete “erros”, embora sutis ou não reconhecidos como tais.
É também com base nesse ideal de língua que muitas pessoas apreciam apontar
erros na fala de personalidades públicas de quem esperam um comportamento linguístico
adequado à norma de prestígio. O que essas pessoas não percebem é que, se tais
personalidades fazem uso de formas desaprovadas pela gramática normativa é
sinal de que tais formas já encontram abrigo na norma de prestígio, pois que
quem faz a norma são os próprios usuários da língua (evidentemente, no caso da
norma de prestígio, os que gozam de acesso à educação plena e à cultura
letrada).
Ontem, assistindo ao RJ TV, uma repórter da
Globo, durante uma reportagem, empregou, várias vezes, o verbo ter, no sentido de existir (tinha muitos buracos nesta rua). Se a repórter usa o verbo
“ter” em tal caso, é porque esse uso já é parte da norma entre os falantes mais
escolarizados. Ou seja, é já um uso abonado na norma de prestígio, em que pese
os resmungos desabonadores de gramtiqueiros de plantão. O uso do verbo “ter”,
no sentido de “existir”, é normal no português brasileiro e figura na fala de
muita gente bem educada de nosso país. Não há razões para condená-lo. A língua
varia e muda, segue sua deriva. É claro que os usos linguísticos sofrem
pressões que vão na direção da inovação, que tende à mudança, e da conservação,
que tende a refrear a mudança. Lembro novamente que a língua é palco de
conflitos.
A mesma pessoa que condena uma forma como “Eu
preocupo com você” ou uma forma como “Nós se vemos amanhã” usará, normalmente,
“Custei a acreditar que isso era verdade” ou “O ônibus que eu entrei estava
lotado”. São justamente as formas usadas por indivíduos que não pertencem à sua
classe social, que não gozam dos privilégios dessa classe, que ela condena. São
formas que ela não usa; no entanto, usa também formas que, se estivesse
realmente preocupada em basear seu comportamento linguístico pelo padrão
prescrito pela gramática, deveria evitar. Em “custei a acreditar...”, reza a
tradição que o verbo “custar” tem de ser construído com sujeito “oracional” e
que deve preservar seu sentido original de ‘ser dificultoso’ (cf. Custa-me
acreditar...). Em “custa-me acreditar”, o sujeito é a oração de infinitivo
“acreditar” e o “me” é o objeto indireto (a mim, a alguém). Já em “custei a
acreditar”, uso corrente, embora ainda mal avaliado por vários indivíduos das
classes dominantes (e, certamente, por professores e profissionais da linguagem
antiquados e ultra-conservadores), o verbo “custar” tem a acepção de “demorar
para”, “levar tempo”. Sintaticamente, ele rege a preposição “a” e se acompanha,
portanto, de um objeto indireto. Já em “O ônibus que eu entrei estava lotado”,
temos uma forma chamada de “cortadora”, já que, com a supressão da preposição
“em” regida por “entrar”, a função sintática correspondente a “o ônibus” na
oração introduzida por “que” não é atualizada (O ônibus estava lotado / Eu
entrei (que)). Analogamente, é possível ocorrer “O ônibus que eu entrei nele
estava lotado”, caso em que figura o constituinte “nele”, introduzido para
retomar a forma “ônibus” na função de adverbial locativo. O “que” é destituído
de sua função como pronome relativo e passa a funcionar como conectivo apenas.
A função anafórica é desempenhada pelo constituinte “nele” que “copia” o
sujeito “o ônibus” da oração principal na função adverbial na oração
introduzida por “que”.
Outros exemplos:
O carro que eu andei nele era um
fusca.
O menino que eu falei era irmão de minha
amiga
O homem que o filho dele falou comigo
conhece meu pai.
Nenhum comentário:
Postar um comentário