sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"Como todos os sonhadores confundi o desencanto com a verdade!" (Sartre)

                  


                                        Desencantos verbais

O convívio  com os livros me desencanta. Falarei de mim aqui, do que me diz respeito. A leitura é a atividade de que me ocupo cotidianamente e à qual dispenso uma grande quantidade de tempo. E quanto mais leio, quanto mais aprendo e quanto mais reconheço quão vasto é o terreno de minha ignorância, mais quero percorrê-lo. No entanto, esse percurso incita-me a levantar-me com rigor crítico em face de tudo que me permito perceber. Tudo carece de clareza: compreende os acontecimentos, as opiniões, as ideias, as imagens, os textos que se apresentam a nós como objeto de interpretação, ou seja, de leitura. Estamos a todo momento lendo o mundo, buscando apreendê-lo pela leitura da palavra. O equívoco, aos incautos, é inevitável: pensam que o texto reflete o mundo tal como é. Enganam-se: o mundo é textualizado. O texto (ou discurso) reconstrói o mundo, fornece um modelo de mundo – o modelo de mundo textual.
Parece-me que a vida perde um pouco de sua força quando abandonamos nossos projetos. O homem é um projeto, ensinara Sartre; abandonar projetos é abandonar a si mesmo. Os livros me entulham a cabeça de projetos; estimulam-me até as vísceras os pensamentos, sacode-os, fazem-nos vibrar na milionésima potência do desejo de ser mais. Ante a mim, excertos de conversas sobre o tema ateísmo. Estampados na tela do computador os enunciados diversos de participantes, mal amparados argumentativamente. Um deles é até honesto, ao confessar não ser bom com as palavras. Excogitei da ideia de escrever sobre tais contribuições a fim de patentear aos meus leitores as inconsistências, os lugares-comuns, a fragilidade dos argumentos. Fá-lo-ia com o propósito de justificar meu desencanto ao envolver-me nesses debates pouco férteis. Há, devo dizer, aqui ou ali, uns que se destacam e isso me aproveita; no entanto, a quantidade de pensamentos rasos nutridos ora no letramento científico (não suponho que seja adequado, longe disso), ora amparado no adestramento doutrinário, faz-me desistir da empresa.
Como nossas relações uns com os outros e com o mundo são mediadas pela linguagem, os desentendimentos, as más interpretações, o equívoco estão sempre virtualmente presentes. O entusiasmo com que defendo minhas posições ateístas foi incomodamente notado. Não obstante, a indiferença mútua (entre mim e os religiosos) tem sido uma espécie de terreno comum onde viceja complacência. Quando me imiscuo em debates (imiscuo-me porque os debates são “coisas” alheias), procuro uma saída, lanço luzes que alcançam os caminhos obscuros que se abriram, luzes que permitem avanços. Alguns os reconhecem e se agradam deles; outros os ignoram. Nunca sou a voz primeira (não existe uma voz primeira, adâmica!). Aprendi com a filosofia a demorar-me na observação, no exame silencioso, na contemplação, na admiração. Só tomo parte quando reconheço a oportunidade, quando uma brecha de silêncio se nota e o silêncio pede para ser preenchido com minhas palavras, que abrirão outros silenciamentos. O silêncio é fundante. A linguagem NÃO É TRANSPARENTE; pelas palavras escorrem silêncios. Explico-me: nunca dizemos tudo que temos a intenção de dizer. É por um efeito ideológico que acreditamos na suficiência da linguagem, na sua completude, na sua transparência, na sua capacidade de fechar o sentido, de dar-lhe um acabamento, de dar-lhe limites precisos no discurso que produzimos. Mas os sentidos vazam, seguem direções diversas. O trecho abaixo, colhido de As formas do silêncio (2007), de Eni Puccinelli Orlandi, ilustra bem o que venho dizendo a respeito do lugar do silêncio na linguagem:

“As palavras são cheias, ou melhor, carregas de silêncio. Não se pode excluí-lo das palavras assim como não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do silêncio só pela verbalização”.

(p. 67)

Se não se pode recuperá-lo apenas pela verbalização, então o sentido do silêncio extrapola a linguagem; está situado nos intervalos entre as palavras ou atrás delas. Está para além da materialidade do texto. Veja-se o caso das paráfrases. A paráfrase não é uma mera reprodução do significado por meio de combinações sintáticas diferentes; há sempre algo que escapa; há sempre um silêncio rico de significações. O silêncio não é o vazio, o sem-sentido, mas a condição mesma para o sentido, a fertilidade para os sentidos. Ele atravessa as palavras.
Oponho-me ferrenhamente aos discursos dogmáticos e autoritários também porque pretendem sufocar o silêncio, porque pretendem dizer o sentido definitivo, porque nos querem fazer crer que nada mais há para ser dito.
Basta-me, por ora.

2 comentários:

  1. meu amigo,
    quando comecei a ler, deparei-me com 'o homem é um projeto' e fui longe, a pensar nos meus - q não vêm ao caso...
    depois, vc falou sobre o silêncio e eu, por pouco, não segui com ele.
    tantas vezes, é o q me ocorre ao ler seus textos sempre tão convidativos ao pensar.
    tantas vezes, é o silêncio q partilho, quando saio daqui tão mais cheia de questões do q ao chegar.

    às vezes, silêncio é cumplicidade. mas to dizendo apenas por mim.

    beijos

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  2. “Aprendi com a filosofia a demorar-me na observação, no exame silencioso, na contemplação, na admiração. Só tomo parte quando reconheço a oportunidade, quando uma brecha de silêncio se nota e o silêncio pede para ser preenchido com minhas palavras, que abrirão outros silenciamentos.”

    Às vezes chego aqui leio e silencio... As suas palavras calam em mim.
    Bjusss

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