sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

"A revelação não se dá pela fé; mas pela reflexão filosófica" (BAR)

                               

                                    Por que milhões se enganam?

Decerto, a ninguém agrada ser enganado. E muitos de nós nos revoltamos quando descobrimos que estávamos sendo enganados. Por exemplo, é o caso de quem vai a um médico para buscar tratar-se de alguma enfermidade e depois descobre que esse médico fraudou seu próprio diploma. Confiamos nele como alguém que detinha a competência necessária ao exercício da medicina; dispensamos-lhe nossa (porque acreditamos que seu comportamento era a expressão de conhecimentos sólidos que adquiriu ao longo dos anos em que cursou medicina). E, num instante, cai pesadamente sobre nós o desencanto: a farsa foi descoberta! Sentimo-nos iludidos; o que acreditávamos não era real (desilusão!). Aquele homem de jaleco branco diante de nós não era um médico, era um farsante, um velhaco. Alguns de nós nos culpamos, e nos perguntamos “como pudemos ser tão ingênuos, tão crédulos?”.
Não é custoso ver que viver em sociedade exige que estabeleçamos relações assentadas em confiança. Ela não só é importante para assegurar a validade dos modelos de referência na base dos quais nossas vivências se desenvolvem mas também para que estejamos motivados a estabelecer acordos, compromissos, fazer promessas, traçar planos que poderão ser cumpridos. Por um lado, nós compartilhamos, em nossa cultura, com os outros modelos de realidade - confiamos estar num consultório médico, diante de um médico, por exemplo; confiamos estar numa sala de aula aprendendo sobre História diante de um professor devidamente capacitado para tanto - ; por outro lado, qualquer forma de agregação humana exige certo grau de confiança para que as necessidades de grupo sejam satisfeitas. A confiança é o que nos resta em face da consciência de que não podemos sempre conhecer verdadeiramente as pessoas.
  A condição básica para que tenhamos confiança é a falta de informação plena. Por exemplo, confiamos que tanto o engenheiro que elaborou a estrutura de nosso prédio (a planta) quanto os operários que trabalharam em sua construção detinham a competência necessária ao empreendimento.  Se não fosse assim, como poderíamos viver sossegados sob um teto? Não temos escolha senão confiarmos, já que, como assinala Giddens, em As consequências da Modernidade (1991),

“(...) não haveria necessidade de se confiar em alguém, cujas atividades fossem continuamente visíveis e cujos processos de pensamento fossem transparentes, ou de se confiar em algum sistema cujos procedimentos fossem inteiramente conhecidos e compreendidos”
(p. 40)

Para Giddens, a confiança une fé à crença; mas desta última se distingue, visto ser a crença uma atitude que afirma com certo grau de probabilidade ou certeza a realidade ou verdade de um dado estado-de-coisas. Comparada à crença, a confiança é, concluirá Giddens, cega.
Eu não descerei a pormenores no tocante ao conceito de confiança. Quero apenas mostrar que a confiança surge no momento em que nos vemos destituídos de conhecimentos ou informações importantes que poderiam nos dar alguma segurança nas nossas ações ou nas tomadas de decisão. Temos, em geral, boas razões para confiar em que nossos policiais foram preparados para a garantia da ordem pública. Sabemos, no entanto, que o grau de nossa confiança pode declinar sensivelmente sempre que tomamos conhecimento de casos de corrupção na corporação, quando, por exemplo, policiais se envolvem em negociatas com traficantes de droga, ou quando descobrimos que entre eles há homicidas. Como não podemos, no entanto, supervisionar a formação desses homens, como ignoramos muito sobre como são realizadas as provas e o treinamento destinado a capacitá-los, resta-nos confiar em que o serviço que nos é prestado e pelo qual pagamos satisfará as nossas necessidades de segurança. Quando isso não se verifica, desconfiamos e tendemos a protestar, reivindicar fiscalização ou reforma na instituição.
Tendo em vista o exposto, passarei, doravante, a me ocupar com o desenvolvimento do tema deste texto. Tratarei aqui de um engano; antes, porém, de fazê-lo, preciso ancorar meus pensamentos em alguns trechos colhidos da obra Quem Jesus foi, quem Jesus não foi? (2010), de Bart. D. Ehrman. O primeiro que merece nossa atenção é o trecho em que o autor apresenta-nos o tema de seu livro. Em negrito, destaco os fragmentos a que devemos dispensar atenção acurada:

“Este livro, portanto, não é sobre minha perda de fé. É, porém, sobre como certos tipos de fé – especialmente sobre a fé na Bíblia como se ela fosse algo historicamente inequívoco e a Palavra inspirada por Deus – não se sustentam à luz do que nós, como historiadores, sabemos sobre a Bíblia. Os pontos de vista que apresento neste livro são matéria comum entre os acadêmicos. Não conheço um só estudioso da Bíblia que vá aprender qualquer coisa neste livro, embora eles possam discordar de certas conclusões aqui e ali. Teoricamente, os pastores também não deveriam aprender muito com ele, já que este material é amplamente apresentado em seminários e faculdades de teologia. Mas a maioria das pessoas nas ruas e nos bancos das igrejas nunca ouviu isto antes. Isso é uma vergonha, e chegou o momento de fazer algo para resolver esse problema”.
(p. 31)

Já escrevi um texto, que postei neste blog, em que me ocupei com o que penso ser uma revelação dramática, a saber, dos 27 livros do Novo Testamento, 19 são produtos de falsificações. Exceto as sete epístolas atribuídas a Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon), bem como o Apocalipse de João (conquanto não se tenha certeza sobre quem foi esse João), os demais textos (total de 19) se distribuem em três grupos: 1. textos cujos autores não são as pessoas que alegam ser (O João do Evangelho não é o João discípulo de Jesus, outra pessoa escreveu usando o nome João; Mateus não escreveu o texto   Mateus); 2. textos cujos autores têm o mesmo nome de uma personalidade conhecida (o livro de Tiago foi escrito por alguém que se chamava Tiago, mas o autor não alega ter sido Tiago, irmão de Jesus); 3. textos cuja autoria é falsa, também chamados “pseudepigráficos”.
Antes de iniciar a produção deste texto, estava eu envolvido na leitura de mais um capítulo do livro de Ehrman, e tendo deparado com o excerto abaixo citado, apressei-me em expor os pensamentos que se desnudarão à consciência do leitor, à medida que avançar na leitura. Ehrman, no referido trecho, aponta-nos a dificuldade que mesmo os estudiosos acadêmicos têm de admitir que os textos fabricados do Novo Testamento são fraudes. Leiamos com atenção:

“Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes – afinal, é da Bíblia que estamos falando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, e é isso que eles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foi escrito por autores que alegaram falsamente ser apóstolos para enganar os leitores e fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vista que representavam”.
(p. 154)

Chamo atenção para o trecho “afinal, é da Bíblia que estamos falando”. O articulador discursivo “afinal” introduz um enunciado que encaminha para uma conclusão que se pretende consensual. O raciocínio pode ser compreendido, se distinguirmos suas partes da seguinte forma:


Premissa explícita – “Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes”
Pressuposto – A Bíblia é infalível e não questionável (senso-comum) (afinal)
Conclusão – A Bíblia não pode ser questionada.

O articulador “afinal” introduz um enunciado que encaminha à conclusão “a Bíblia não pode ser questionada”, ou seja, a Bíblia, como produto da “mente” de Deus não pode ser considerada fraudulenta. Como símbolo de poder, a Bíblia revestiu-se historicamente de uma impermeabilidade à crítica. Desqualificá-la como fraude é atrair para si reações virulentas do poder eclesiástico secular e de seus subordinados. O enunciado introduzido por “afinal” diz implicitamente “a Bíblia não pode ser questionada”. A sua "áurea sagrada" (entenda-se por "áurea sagrada" um valor atribuído pela ideologia dominante, pelo poder da Igreja primitiva) a protege contra qualquer suspeita!
Outro trecho, logo abaixo deste, será ilustrativo do engano que incide sobre milhões de pessoas no mundo que abraçam o cristianismo. Elas se enganam porque não têm consciência de que o livro que tanto adoram e no qual confiam para determinar seus valores, dirigir suas ações e revelar "verdades" eternas sobre o mundo é produto de uma fraude. E, diga-se de passagem, fraudes eram muito comuns no mundo antigo (embora fossem desaprovadas) (v. Bart, p. 132).
Os ateus têm razão ao criticar duramente pastores e padres que, de forma maliciosa, mantêm seus correligionários na ignorância, ludibriando-os, se beneficiando à custa de sua credulidade e ingenuidade. Façamos nossa crítica em forma de denúncia: denunciemos uma exploração não só econômica (sempre que nos damos conta do grande enriquecimento das igrejas), mas também intelectual. O poder é mais forte quando não pode ser questionado; isso significa dizer quando não é dado saber àqueles que se submetem às autoridades. É mais fácil legitimar o poder, que se apresenta como aceitável, pela simples manutenção da ignorância sobre suas bases. 
Leiamos as seguintes palavras de Ehrman:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo o Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério.
E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(id.ibid.)

O nosso palpite, que é o do autor também, é que simplesmente a visão de que os textos do Novo Testamento são produto de falsificações ou fraudes, embora conhecida dos pastores e  dos padres que outrora frequentaram as aulas dos seminários, não é ensinada aos crentes que sentam nos bancos das igrejas. E o engano  envolve o indivíduo desde a infância. É lamentável que crianças, adolescentes e jovens sejam estimulados a ler a Bíblia de modo devocional e sejam levados a acreditar que estão diante de textos autênticos, textos que, segundo creem, lhes revelarão verdadeiramente a “Voz de Deus”. Não é isso, definitivamente, que eles revelam. Eles revelam as vozes de muitos homens (um leitor familiarizado com os estudos linguísticos, dirá comigo, os textos são polifônicos, embora a polifonia se dê em meio a fraudes). Os textos são produtos das visões que muitos homens tinham sobre a identidade de Jesus, sobre seus ensinamentos, sobre os acontecimentos ou superstições em torno de sua vida (por exemplo, o significado da crucificação, da sua morte, da Ressurreição, etc). E estes homens não foram aqueles que o acompanharam. Eram homens que viviam em outras regiões, que partilhavam de um código cultural diferente e que, quase certamente, detinham um grau maior de instrução e conhecimento de grego (língua em que a Bíblia fora escrita originalmente e cujo conhecimento escapava aos verdadeiros apóstolos, que eram indivíduos ignorantes e falantes de aramaico).
Não é intenção de Ehrman levar o seu leitor a deixar de acreditar em Deus. Ele escreverá, à página 30, “Eu decididamente não acho que a crítica histórica leva necessariamente à perda de fé”. Isso parece ser verdade, quando ele nos dá testemunho de que há entre seus colegas acadêmicos, que se dedicam ao estudo histórico-crítico das Escrituras, aqueles que conservam sua fé e atuam em igrejas. No caso de Ehrman, sua fé deixou de ocupá-lo quando não mais conseguiu conciliar a crença em um Deus que é amoroso e bondoso com a evidência do sofrimento em larga escala no mundo. Disso ele tratará no seu instrutivo livro O Problema com Deus, onde busca discutir as respostas dadas pelos autores bíblicos à questão de por que há tanto sofrimento no mundo. Esses autores se esforçaram por dar explicações para o fato de que sofremos, a despeito de haver, como criam, um Deus bondoso e providente.
Dizer que uma análise histórico-crítica da Bíblia não leva necessariamente ao ateísmo não implica dizer que ela não leve. Ela pode levar ao ateísmo, caso o leitor já esteja habituado a assumir uma atitude filosófica diante do mundo. Dela já tratei em outro texto. A atitude filosófica é uma atitude crítico-reflexiva, assentada no questionamento, na busca pela verdade. Ela quer saber e, para tanto, indaga: o que é?,  como é?,  por que é?, para que é?.
A complexidade do fenômeno religioso excede os limites deste texto. Sob muitos aspectos, a fé religiosa tornou-se insustentável para mim. O caminho para questioná-la foi, entretanto, aberto pela filosofia. Descobri que a atitude filosófica era incompatível com a atitude de fé. A adoção do ateísmo por mim é, portanto, fundamentada em leituras aturadas, no convívio com livros de filosofia e outros. Quando assumimos a atitude filosófica, quando aprendemos com a filosofia a pôr em discussão nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes, nossas visões de mundo antes insuspeitáveis, torna-se dificultoso continuar a conformar-se às formas como a realidade se nos apresenta.
É com as palavras de Betrand Russell, em Os problemas da filosofia, citado por Marcondes, em A Filosofia: o que é, para que serve? (2001), que dou a saber ao leitor o valor da filosofia quando o descobri em minha vida:

“O valor da filosofia deve ser procurado em sua própria incerteza. O homem que não tem nenhum conhecimento de filosofia atravessa a vida aprisionado aos seus preconceitos provenientes do senso comum, das crenças habituais de seu tempo e de sua nação, e das convicções que cresceram em sua mente sem a cooperação ou o consentimento deliberado da razão. Para tal homem, o mundo tende a tornar-se definitivo, finito, óbvio; os objetos comuns não lhe trazem questões e as possibilidades desconhecidas são desdenhosamente rejeitadas. Ao contrário, tão logo começamos a filosofar, descobrimos que mesmo as coisas mais cotidianas nos trazem problemas para os quais só podemos dar respostas muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os libertam da tirania do hábito
(...)”

(pp. 14-15)

A filosofia é uma atividade em aberto; é uma forma de discurso que coloca em dúvida seu próprio significado. A filosofia questiona a si mesma. Não há uma filosofia, mas muitas filosofias, já que filosofia não é o que resulta da atividade de pensar, mas a própria forma dessa atividade; filosofia é ação que se realiza com o pensamento, com o logos (discurso, palavra).
 Um filósofo não se define como aquele que é versado em diversas filosofias. Todo homem pode ser filósofo quando assume a atitude filosófica. A competência de um filósofo não se mede pelos conhecimentos que têm da História do pensamento filosófico. Mesmo que eu seja um especialista no pensamento de Descartes, que tenha lido e relido suas obras e produzidos dissertação, tese e artigos sobre seu pensamento, não seria eu ainda um filósofo. Filósofo é aquele que não se limita a viver como se a realidade fosse algo já dado, pronto, acabado; ele se posiciona diante dela como quem a toma como um problema a ser investigado e compreendido. Ele é quem reflete, argumenta, discute. No exercício de sua atividade, importam mais as questões que levanta do que as respostas que possa vir a obter para elas. Afinal, as respostas sempre poderão vir a ser questionadas e revisadas. Importa, na atividade de filosofar, o modo como as questões são formuladas, o modo como argumentamos sobre elas; são pois, os caminhos de reflexões que abrimos que são caros na definição do que é ser filósofo. Ele não é o sábio, não é o erudito; é, como ensinou Sócrates, aquele que reconhece sua ignorância, mas munido do espírito questionador, ávido pelo saber, busca remover o véu dessa ignorância, busca pôr em xeque suas próprias convicções, bem como as crenças provenientes do senso-comum. Filosofia é sinônimo de libertação, portanto incompatível com sistemas dogmáticos, incompatível com crenças infundadas.
Não é a Bíblia que deve ser matéria nas salas de aulas de nossas escolas; mas a filosofia!

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