quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A religião do Imperador

                          
                           Para fazer a crítica
                         A originalidade do Cristianismo

Todo aquele que escreve o faz pressupondo uma audiência, mas não formada por quaisquer leitores, mas de leitores tipificados. O projeto do trabalho artesanal que é a escrita deve, para lograr sucesso, prever uma classe de leitores interessados, sobretudo, no assunto de que haverá de se tratar. Creio, porém, que o bom escritor não é aquele que acerta na previsão de sua audiência (é possível que os leitores em potencial sequer tomem conhecimento do texto); o bom escritor é aquele que compõe uma obra (textos ou livros) que satisfaz a si mesmo. O ganho aí não advém da grande projeção de sua obra, que se lança à incerteza dos temperamentos, gostos e inclinações dos leitores; o ganho advém do reconhecimento pelo escritor de que, ao compô-la, auferiu avanços intelectuais. É que escrever faz avançar o conhecimento. Eu escrevo também para, meditando sobre o que aprendi, em minhas leituras diárias, consolidar conhecimentos. A escrita permite-me, pois, experimentar esses conhecimentos.
Tenho-me comprometido com a causa ateísta nos debates em redes sociais, não sem alguma insatisfação. Enfado-me com a forma agressiva como os participantes atuam na defesa de suas posições infensas à religião, particularmente cristã – uma agressividade que, em alguns, mascara o empobrecimento de uma retórica embasada culturalmente, do que resulta a enxurrada de palavreados (ou a escassez deles) que não fazem senão, basicamente, insistir na supremacia do discurso científico sobre a irracionalidade, supostamente inerente, do discurso religioso. Trata-se, aos olhos de um debatedor arguto, da disseminação sem peias da ideologia do neocientificismo, agora mais robusta e disposta a declarar guerra às aspirações “infantis” alimentadas pela religião. Ela reza o poder indiscutível de a ciência fornecer explicações amplamente aceitas sobre a nossa origem e, como se não bastasse, quer fazer crer aos religiosos que essas explicações devem ser suficientes para nos confortar em face da certeza de que morreremos, em face da consciência de que a vida se passa entre dois nadas. Essa ideologia (aliás, muito ingênua, já que ignora toda uma literatura dedicada a repensar o alcance do projeto da cientificidade) quer dissipar o absurdo, conferindo ao Nada quase a mesma qualidade que tem o sagrado, num sentido específico: tanto um quanto outro exige conformação. Temos de aceitar o fato de que viemos do nada e retornaremos ao nada, e temos de reconhecer que o sentido da vida não é transcendente, mas imanente, não é dado por um Deus grandioso, de cujo plano cósmico todos nós participamos por uma relação pessoal de amor e obediência, mas é vivido por nós e dependente da atribuição de significações feita por nós às nossas experiências de mundo.
O erro nesta postura crítica e agressiva repousa na ignorância ou desleixo na consideração da gênese cristã, da história de sua consolidação como a religião do império de Constantino (no ano 312 de nossa era), repousa também na negligência na consideração dos aspectos que tornaram o Cristianismo superior tanto ao paganismo quanto as religiões orientais. Em suma, repousa na falta de uma visão critica sobre a estrutura do que Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou cristão (2011), chamou de “fabulação” desenvolvida pelo cristianismo.
Procurarei mostrar, no que se segue, que as posições ateístas não podem limitar-se a margear a ideologia cristã; deve atingir-lhe o núcleo, deve penetrar-lhe as vísceras, e isso só é possível se conhecermos a história de sua formação, se conhecermos a sua narrativa, as forças que tornaram essa religião tão grandiosa e poderosa no mundo ocidental.

1. O contexto sócio-histórico no século IV

A conversão sincera do imperador Constantino, em 312, ao cristianismo foi um fato determinante para a ascensão dessa religião. Ela se tornou a religião digna de seu trono. Constantino fora um imperador complacente com os ritos pagãos que ainda sobreviviam, a despeito de ter assumido o cristianismo como a religião oficial do império.
Dentre os motivos que levarão o imperador a converter-se ao cristianismo, depois de um sonho em que Deus teria se revelado anunciando-lhe a vitória na batalha que visaria a tomar a Itália de Maxêncio, de quem os cristãos diziam era um perseguidor, está a crença acalentada por ele segundo a qual um grande imperador deveria ter um grande deus.
A cristianização do Império foi lenta, mas promissora graças ao poder de Constantino. O historiador Paul Veyne, cujo trabalho referi acima e no qual minhas reflexões se apoiarão, esclarece-nos:

“Graças a Constantino, a lenta porém completa cristianização do Império pôde começar; a Igreja, de “seita” proibida que tinha sido, tornou-se mais do que uma seita lícita: estava instalada no Estado e acabará um dia por suplantar o paganismo como religião integrada aos costumes. Durante os três primeiros séculos, o cristianismo permaneceu como uma seita, porém de modo algum no sentido pejorativo que os alemães dão a essa palavra (...)”.
(pp. 29-30)

O cristianismo, de fato, se tornaria superior ao paganismo, como veremos, mas não deixou de apropriar-se de alguns de seus elementos. Continuemos notando, por ora, que o cristianismo, a despeito de ter-se tornado a uma religião legal por força da adesão cordial do imperador Constantino, teve de enfrentar a hostilidade e indiferença populares, bem como passou a constituir “o grande problema religioso do século ou seu pior erro” (p. 35) na opinião de eruditos. Deve-se dizer que o cristianismo só veria a se tornar a religião oficial do Império Romano no fim do século IV com Teodósio. Mas antes mesmo de seu reconhecimento como religião oficial, o cristianismo era o tema preferido nos debates públicos. No século III, a  questão de maior interesse, que entrava na pauta das discussões sociais, era a das grandes verdades e do destino da alma. A inquietação provocada nas classes dominantes decorria da questão de saber qual era o lugar do cristianismo em relação ao paganismo.
Decerto, o cristianismo se tornou superior ao paganismo, atraindo nos séculos posteriores milhões de adeptos. Mas a questão a ser ventilada é: quais os fatores que foram determinantes do poder dessa nova religião? Ou, em outras palavras, o que explica sua grande influência sobre milhões de pessoas no mundo ainda hoje? A resposta encontra-se no reconhecimento de três principais forças com que contou o cristianismo: a autoridade de Constantino, a autoridade da Igreja e a originalidade e carisma de seu Salvador, Jesus Cristo. Vou-me deter a considerar o papel desempenhado pela figura do Salvador, articulando-o ao projeto cristão: a de ser uma religião do amor. Eis aqui a força propulsora de sua grande influência.

2. Uma religião do amor

“Poucas religiões – talvez nenhuma – conheceram no correr dos séculos um enriquecimento espiritual e intelectual igual ao do cristianismo; no século de Constantino, essa religião ainda era sumária, mas, mesmo assim, superou o paganismo”.
                                                                 (p. 35)

O cristianismo se destacou por constituir-se numa religião que professava o amor (o amor a Deus, o amor ao próximo, portanto, a fraternidade). Esse amor, entretanto, não entrava nas letras dos textos primitivos cristãos, que se ocupavam com a pregação de uma obediência à Lei de Deus. A despeito de professar o amor, o cristianismo jamais abandonou seu compromisso por estabelecer uma moral rigorosa conforme à Lei de Deus. Nesse sentido, assemelhava-se às seitas filosóficas da época; delas se distinguia, no entanto, pela promessa de uma retribuição original: a existência humana passa a ganhar uma significação metafísica, já que tornara-se parte de um plano cósmico elaborado por Deus. Esse ser era um ser vivo, absoluto e eterno.  A relação entre os indivíduos e Deus passou a ser uma relação pessoal, íntima, assentada no amor mútuo e na autoridade, que a tudo governa (mesmo que seu governo se dê por representantes determinados pela sua Vontade). Escreve Veyne:

“Graças ao deus cristão, essa vida recebia a unidade de um campo magnético no qual cada ação, cada movimento interior adquiria um sentido, bom ou mau – sentido que o próprio homem não se dava por si próprio, diferentemente dos filósofos, mas o orientava na direção de um ser absoluto e eterno, que não era um princípio, mas um ser vivo”.

(p. 37)

É preciso frisar bem o tipo de relação que o cristianismo instaura entre os homens e Deus: uma relação pessoal que se estabelece pelo interesse que Deus tem na alma de cada indivíduo. Há uma paixão mútua entre cada ser humano e Deus. Essa relação em nada se compara ao tipo de relacionamento entre homens e divindades no paganismo. Aqui os deuses viviam para si mesmos e só se interessavam pelo destino dos homens, caso houvesse algum benefício em troca. Para efeito de ilustração desse novo modelo de relacionamento entre homens e divindade instaurado pelo cristianismo, Veyne propõe-nos uma situação imaginária:

“(...) uma mulher do povo podia ir contar suas infelicidades familiares ou conjugais à Madona; se as tivesse contado a Hera ou Afrodite, a deusa se perguntaria que extravagância tinha passado pela cabeça daquela tola mulher que lhe vinha falar de coisas com as quais ela não tinha nada a ver.”

(p. 37)

A figura do Messias, o Cristo, é o elemento fulcral dessa ideologia do amor incondicional e universal propalada pelo cristianismo. É ele o representante fundamental de quem irradia esse amor. Esse amor provém de uma Família, cujos membros são o Pai, a Mãe, o Filho (Cristo) e o Irmão. Isso explica a tenaz rejeição da Igreja, em nossos tempos, à formação de famílias que se desviam desse modelo. O cristianismo instaura um modelo de Família, na figura soberana de um patriarca celestial, ao qual se subordina a mãe, o filho e o irmão; em outras palavras, se deve subordinar toda a humanidade.
O Filho – o Cristo – é o intermediário da relação entre os homens e deus. Mas vale lembrar que esse Deus, cuja Lei é inexorável e severa, está interessado no destino das almas, e não apenas na sorte dos reinos, dos governos, da humanidade.
Não é a dimensão humana de Cristo que importará, mas sua natureza sobre-humana. É este Homem-Deus que se sacrificou pela humanidade e é ele o único caminho que leva a Deus. A superioridade do cristianismo se deve também à autoridade e ao carisma do Messias. Escreverá Veyne nesse tocante:

“Uma patética relação de amor reunia de modo profundamente piedoso a humanidade e a divindade em torno do Senhor Jesus. Entretanto, por sua vez, a alma humana recebia uma natureza celeste. O paganismo não ignorara totalmente a amizade entre uma divindade e um determinado indivíduo (...); em compensação (...), ignorou qualquer relação apaixonada e mútua de amor e de autoridade, relação que não termina nunca, que não é ocasional como no paganismo, porque é essencial tanto para Deus como para o homem. Quando um cristão se punha em pensamento diante de seu deus, sabia que não deixava de ser olhado e de ser amado. Enquanto os deuses pagãos viviam antes de tudo para si mesmos.”
(p. 41)

A Cruz não é símbolo de maldição, de morte, mas da vitória de Cristo sobre ela. A cruz é símbolo de Salvação e, aos olhos dos cristãos, importa a Ressurreição do Messias, não tanto sua Paixão. Aqui vê-se insinuando a crença em que o sofrimento é um mal necessário ao alcance da Ressurreição através de Cristo. Precisamos suportar o sofrimento confiantes na palavra de Deus, de que fora testemunha Jesus Cristo, para vencermos a morte, como Cristo a venceu. Lembrará Veyne a respeito da importância de Cristo:

“(...) Cristo não era um ser mitológico vivendo em uma temporalidade feérica. Diferentemente dos deuses pagãos, ele “era real” e até humano. Ora, sua época era muito receptiva aos “homens divinos”, aos taumaturgos, aos profetas que viviam entre os homens e que muitos tomavam por mestres”.
(p. 43)


3. A natureza do Deus cristão

No Cristianismo, Deus e homens têm entre si uma relação pessoal, íntima. Esse Deus é resultado de um antropomorfismo, ou seja, pensado como um Ser a quem se atribui qualidades humanas, embora elevadas a graus não mensuráveis em termos humanos. Por um processo ideológico, a filiação entre homem e divindade, no cristianismo, tomou forma no seguinte enunciado: “o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”. Esse Deus é, ao mesmo tempo, Pai e autoridade. A ele não se deve mais render oferendas, mas obedecer à sua Lei. A moral desempenha, no cristianismo, um papel fundamental, não conhecido no paganismo.
Com um Deus absoluto e todo-poderoso, fonte de severidade e amor, criador de todas as coisas, a narrativa cristã pôde conceder à existência humana um sentido metafísico e sublime. Pôde ainda explicar a nossa origem e o nosso destino após a morte do corpo.
É interessante pensarmos mais uma vez na relação entre Deus e os homens, dentro do projeto cristão. Deus rebaixa-se tomando parte da natureza de um homem, chamado Jesus, a quem coube restaurar a aliança desfeita entre homens e divindade, devido ao pecado daqueles. Disso se segue que o Cristianismo promove uma íntima aproximação entre os homens e seu deus.
Cabe aqui tornar clara a importância do Deus cristão no fortalecimento da fé e no grande alcance que teve esta religião que, desde a origem e durante os tempos vindouros, andara de mãos dadas com o poder político. Veyne mostrará, além disso, que não é a natureza monoteísta que distingue o cristianismo do paganismo (a rigor, o cristianismo não deixa de professar um politeísmo, se considerado o valor providencial das figuras de Jesus e Maria), mas a grandiosidade de seu Deus:

“A originalidade do cristianismo não é o seu pretenso monoteísmo, mas o gigantismo de seu deus, criador do céu e da terra, gigantismo estranho aos deuses pagãos e herdeiro do deus bíblico; o deus do cristianismo é tão grande que, apesar do seu antropomorfismo (o homem pode ser feito à sua imagem), pôde se tornar um deus metafísico: sem deixar de manter seu caráter humano, vivo, apaixonado, protetor. O gigantismo do deus judeu permitirá que ele um dia assuma a função de fundamento e de autor da ordem cósmica e do Bem, função desempenhada pelo deus supremo no pálido deísmo dos filósofos gregos”.

(p. 39)
(grifo meu)
Cabe salientar as qualidades do Deus cristão: um ser absoluto, portador de qualidades humanas, de presença viva, amante de cada indivíduo, zeloso, piedoso e Pai bondoso.  Um Deus grandioso a quem os homens devem amor e obediência.


4. Uma nova era para a imaginação: a soberania da fé a despeito das inconsistências

Não é a crença na imortalidade da alma que tornou o cristianismo uma religião poderosa. Essa crença era comum a muitas doutrinas e lendas, no mundo pagão. Tampouco, segundo o autor, não parece ser correto derivar o sentimento religioso do medo da morte. No caso do cristianismo, a crença na vida além-túmulo depende da crença em Deus e na fé em sua Palavra.
A esta altura, e no que se seguirá, quero chamar a atenção dos debatedores ateus para o fato de que as inconsistências que se deixam ver na doutrina cristã não constituem, ao que parecem, um problema para a fé cristã. Veyne nos ensinará o porquê.
Nós, ateus, insistimos, por exemplo, na incompatibilidade entre o dogma do Inferno e a crença num deus bom, amoroso e piedoso. Insistimos ainda na incongruência que há entre um elemento representativo do Mal (o inferno) e um Deus que ama suas criaturas e demonstra para com elas compaixão.
O dogma do Inferno constitui um grande problema para teólogos e filósofos cristãos. Agostinho chegou a dizer que a justiça de Deus não se identifica à nossa, afirmação que não deixa de entrever uma contradição, já que entra em conflito com o antropomorfismo atribuído a Deus. Assim, Deus, embora semelhante aos homens em muitos aspectos, distingue-se deles na concepção de Justiça. A justiça de Deus não é a dos homens. Pensar assim é fugir ao problema acarretado pela crença na destinação dos ímpios ao Inferno. É ignorar o fato de que as qualidades apreciadas por nós atribuídas a Deus são qualidades nossas. O Deus cristão, sendo produto de um antropomorfismo, haverá, forçosamente, de ter um senso de justiça semelhante ao nosso, ainda que a ele possamos acrescentar a característica 'perfeita'. 
Veyne descreve o quadro dramático que se constrói com a introdução do dogma do Inferno na construção imaginária de um Deus que é bom e amoroso:

“(...) o deus de amor e de justiça é também o deus que preparou para uma infinidade de seres humanos, ao cabo de uma prova ou de uma loteria da qual era o inventor, um confinamento num campo de permanência eterna para impressionantes suplícios sem fim. Eis o que diz um teólogo atual: “É uma questão de saber por que esse Deus tão amoroso desejou uma ordem de coisas incluindo o pecado e o Inferno; definitivamente, a questão é insolúvel”.
(p. 49)

Talvez, o leitor, a esta altura, ria-se da seriedade com que o teólogo trata da suposta “questão”, sendo incapaz de ver que a incrível dificuldade a que se refere não é senão produto do pensamento humano. Enunciar “Deus é amoroso, mas Deus reservou um inferno para os descrentes” é articular proposições contraditórias. Ou Deus é amoroso e nos reserva o Paraíso, por sua piedade, ou Deus é juiz imparcial, para quem o amor pouco vale, quando tem de decidir que pena será aplicada.
O autor nos dará uma explicação para o fato de, não obstante a crença na existência do Inferno, para onde serão levadas as almas subversivas, os crentes ainda se manterem firmes na fé em Deus. Para o autor, o que explica isso é o fato de o Inferno não ser senão uma representação, uma ideia que não tem a força do amor e da fé que eles dispensam sobre Deus.

“De tal modo que, a inconsistência, além de seu grande efeito melodramático, não leva à revolta ou à descrença: nos cérebros, os afetos e as ideias não estão na mesma camada”.

(p. 49)
(grifo meu)

O amor a Deus suplanta a incoerência, ou, ao menos, a mascara aos olhos da alma. No Cristianismo, o sentimento é mais forte do que o intelecto; a inteligência é suplantada pela crença na crença em Deus (conforme sugere Daniel Dennett). O autor nos lembra ainda que “uma doutrina religiosa não é uma teoria da justiça e também não pretende ter uma coerência filosófica” (id.ibid.). Para ele, a introdução da ideia de Inferno mais valoriza a doutrina do que a prejudica, mais atrai do que repele. Considerado por ele uma espécie de best seller, ao unir amor ao terror, o cristianismo exibe sua força de atração, já que

“Os inventores do Inferno e das penas eternas em dobro (o fogo no sentido próprio da palavra, o castigo da privação de Deus) acreditaram em um thriller que obtivesse um grande sucesso: aterrorizou um grande público, porque as pessoas sempre se deixam impressionar pelas ficções apavorantes; quanto aos autores do thriller, sem dúvida lhes agradava imaginar os inimigos da Verdade sendo queimados”.

(p. 50)

É à luz da metáfora do best seller que podemos compreender dois fatos importantes relativos ao poder do cristianismo. O primeiro diz respeito à sua influência socio-histórica; o segundo à permanência de sua influência psicológica a despeito das inconsistências de sua doutrina. Para ilustrar o primeiro fato, o autor nos dá a saber a metáfora do best seller:

“O sucesso do cristianismo talvez possa ser comparado a um best seller (no caso, de uma obra-prima mundial, aos olhos do incréu que sou). Ele “agarra pelas tripas” seus leitores e, se agarrar não chega a atingir as multidões, pelo menos atinge a religião dominante precedente, no mínimo a uma elite espiritual ou ética vinda de todas as classes da sociedade, ricos e pobres, ignorantes e cultos ou semicultos, entre os quais um certo imperador”.
(p. 44)

A trama do enredo deste best seller envolve psicologicamente seus leitores (crentes). Todavia, para que seja envolvente, o best seller deve incluir, segundo o autor:

“Um pai misericordioso mas impiedoso, uma loteria do tudo ou nada, os pavores infernais que aumentam o sucesso do best seller envolvendo as imaginações (a pintura religiosa o testemunha), e que tudo isso seja santo: não pedimos mais nada”.

(p. 50)

Esse best seller inova na medida em que fornece uma representação da mundo no qual só há duas espécies: o Deus amoroso e os homens que ao poder do primeiro deve submeter-se. Esse Deus reserva um destino sublime, elevado, para eles após a morte e eles o provam em seus corações. Há um preço nisso: a adoração, a obediência, a humilhação do humano em face da grandiosidade de Deus.
Com o advento da Igreja, a palavra de ordem passou a ser obediência moral. Com a Igreja, impunha-se aos crentes a disciplina, o rigor na execução dos mandamentos de Deus, na obediência à sua Lei. Quanto ao amor, deve ele circunscrever-se ao interior, habitar as regiões mais íntimas da alma. E que lá permaneça como uma força que alimenta a fé em Deus.

Acredito ter conseguido aqui pavimentar um caminho seguro onde possam se situar as posições críticas dos ateus. Compreender as motivações que levaram o Cristianismo a gozar do status como religião predominante no mundo ocidental em nossa era é indispensável a uma argumentação que pretenda ir além dos dizeres agastados e impregnados de grande dose de agressividade, que não fazem senão caminhar em círculo.
Antes de fazer o exame, precisamos conhecer melhor o objeto sobre a qual ele recai. A crítica ateísta é infértil ou cega sempre que simplesmente martela a irracionalidade, ressalta a ilusão ou insistem em ridicularizar a ingenuidade daqueles que acreditam em deus.



Nenhum comentário:

Postar um comentário