quarta-feira, 31 de agosto de 2011

"Se a morte é inevitável, a felicidade é necessária" (BAR)

                               

                           A felicidade
             Reflexões para a maturidade



      Quem quer que suponha que eu não sinta certa inquietude no momento exato em que me ponho a lançar sobre o papel minhas concatenações verbais equivoca-se redondamente. Quem quer que suponha que eu não sinto dificuldade para expressar com a devida coerência a complexidade das nebulosas de pensamentos que vão, não sem muito custo espiritual, tomando formas palpáveis e límpidas, à medida que vou dedilhando este teclado, está igualmente equivocado.
      A inquietude e a dificuldade experimentadas decorrem da seriedade com que desempenho tão laboriosa tarefa: escrever para fazer-me sentir e compreender. Uma manhã que começou ensolarada cedeu aos ventos atormentados que prenunciavam a mudança do tempo. Não tardou para que o azul do céu fosse dissipado pelo acúmulo de nuvens densas de água. Uma chuva fina caía dolorosamente como se estivesse sendo espremida pelo céu. Não sei que haja outra atmosfera favorável ao recolhimento do espírito aos espaços abertos pelas palavras. Creio ser o clima convidativo para longínquos vôos espirituais.
            Penso não errar ao dizer que todo o labor filosófico consiste em pôr em debate nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes e quase nunca questionadas. Penso ainda não errar ao afirmar que a atividade filosófica é trabalho de reflexão sobre conceitos. Eu poderia valer-me de uma autoridade como Deleuze para assegurar a validade dessa afirmação, mas já o fiz em outra oportunidade. Por isso, ficarei satisfeito se o leitor não objetar ao axioma já referido e que exprimo nestes novos termos: a filosofia é trabalho espiritual sobre conceitos.
           Não precisamos ser especialistas em filosofia para saber que toda pergunta iniciada com o que é...? é fundante em todo empreendimento filosófico. Sabemos que Sócrates inquiria seus conterrâneos sobre o que eram muitas coisas: o que é a virtude?; o que é a liberdade?; o que é a justiça, etc. Sabemos também que a palavrinha “ser” (é) foi, ao longo da vasta história da filosofia ocidental, muito cara aos filósofos. A pergunta com “ser” é a pergunta sobre a essência mesma das coisas. No entanto, como em matéria de filosofia as respostas não são tão importantes como as perguntas, ao perguntarmos sobre o quê das coisas, estamos mais preocupados com o processo discursivo, racional de avaliação e justificação de nossas afirmações, crenças sobre o mundo.
          Acrescentaria ainda mais: a filosofia ousa questionar o óbvio. Tudo que nos é óbvio raramente é (re)pensado. É óbvio que somos livres, porque não estamos encarcerados ou mantidos em cativeiro. É óbvio que o amor é preferível ao ódio, e assim por diante.
      Então, eu gostaria de convidar o leitor a refletir comigo sobre a felicidade. Lembro aqui a lição do filósofo Daniel Dennett, segundo a qual importa aos filósofos a forma como a pergunta é feita, já que os filósofos se destacam por ser grandes perguntadores. A capacidade de perguntar é o que os notabiliza. Começo, pois, com a pergunta clássica: o que é a felicidade?
            Não nos apressemos. Não convém tentar respondê-la com declarativas simplistas, tais como a felicidade é isso ou aquilo. Desde já, quero que saiba o leitor que eu não vou me delongar nas alusões ao pensamento de filósofos sobre o tema. Não quero abarrotar a sua cabeça com meditações de outras mentes que, embora reconhecidamente dignas de referências e reverências, poderiam inibir ou tornar pouco produtivas nossas reflexões. No entanto, penso ser um bom caminho inicial a posição de Aristóteles, ao pensar a felicidade como a satisfação experimentada pelo homem em seu íntimo quando se dá conta da harmonia entre suas atividades e os objetivos a que elas visam. Para o filósofo estagirita, a felicidade depende da realização do homem enquanto homem, ou seja, a realização de suas qualidades específicas, a saber, racionalidade, linguagem e sociabilidade.
       Gostaria de que o leitor retivesse essas três qualidades e percebesse a relação intrínseca entre elas, tendo ainda em conta que a linguagem é fundante, isto é, está na base da racionalidade e da sociabilidade.
     Aristóteles permite-nos situarmo-nos num terreno discursivo mais sólido, o que significa dizer que não vamos ficar a pensar a felicidade como algo abstrato, que dependa de uma comunhão do nosso eu com o astral ou qualquer dimensão metafísica imaginável. Por outro lado, também a felicidade parece estar associada a certos estados de serenidade espiritual, ou seja, estados caracterizados por ausência de preocupações. Práticas que contribuem para esvaziar o ‘eu’ como o budismo podem contribuir para a felicidade interior, mas certamente a felicidade não se reduz à mansidão.
          Há algum tempo, o programa Globo Repórter exibiu uma reportagem sobre pessoas que preferem viver apartadas do convívio social; pessoas que optam por velejar durante meses sozinhas em mar aberto. Mas havia pessoas também que, uma vez tornadas viúvas, ficaram acometidas de depressão em decorrência da solidão. Para essas pessoas, depois de muitos anos de casamento, a vida sem o parceiro amado as tornou muito infelizes. Decerto, o amor é uma fonte abundante de felicidade. E quando penso em amor o leitor deve inferir a palavra reciprocidade.
           A reportagem nos leva a pensar que a felicidade está intimamente ligada à sociabilidade. Em outras palavras, para muitos de nós, é difícil ser feliz sem estar em relação com os outros. Não podemos negar que nós somos seres para sociabilidade. Afirmar o homem é um ser social é afirmar o óbvio. No entanto, devemos ter em conta que nascemos dotados para a sociabilidade; digamos, temos uma natureza que se inclina à vida social. Mas ainda aqui teremos de nos defrontar com alguns problemas. Tenho de forçosamente trazer à cena um pouco do pensamento de Freud, em O mal-estar na cultura. Espero que o leitor paciente, porque creio contribuir para o bom encaminhamento das reflexões feitas até aqui. Antes de referir a posição de Freud, vale atentar para os pressupostos básicos de sua reflexão sobre a condição humana. Ei-los abaixo:

a) os homens são seres dotados de impulsos que visam à satisfação; uma grande dose desses impulsos são agressivos;

b) a cultura se funda na necessidade de repressão do impulso de Eros (prazer) e de Tanatos (morte);

c) é o programa do princípio de prazer que estabelece a finalidade da vida humana.

O princípio de prazer significa que o homem busca o prazer e se esforça para afastar o desprazer. Nesse tocante, nos ensinará Freud:


“(...) Esse princípio [o de prazer] comanda o funcionamento do aparelho psíquico desde o início; não cabem dúvidas quanto à sua conveniência, e, no entanto, seu programa está em conflito com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Ele é absolutamente irrealizável, todas as disposições do universo o contrariam; seria possível dizer que o propósito de que o homem seja “feliz” não faz parte do plano da Criação”
(pp. 62-63)

      
       Em o futuro de uma ilusão, Freud argumenta que todo indivíduo é inimigo da cultura e que esta é resultado de um esforço por conter-lhe as paixões, muito embora pare ele, indivíduo, se volte o interesse geral.
       O que devemos ter em conta é que: a) Freud não concebe o ser humano como inatamente propenso à fraternidade e ao amor, mas como um ser dotado de uma grande propensão à agressividade e à aversão social, sempre que seus impulsos não são satisfeitos como deseja; b) ele também entende a cultura como uma organização essencialmente repressiva, que impõe limitações à satisfação dos impulsos humanos.
        No mundo de Freud, a felicidade plena é inalcançável em virtude das próprias condições culturais da existência humana. Os seres humanos desejam a permanência do estado de prazer e dele não querem mais sair. No entanto, a cultura não pode, pela sua própria constituição repressora, tornar plenamente feliz esse homem que está destinado a ser permanentemente insatisfeito. Nesse sentido, Freud lança-nos de cara contra a nossa ilusão, ao escrever em O mal-estar na cultura:


“Aquilo que em sentido estrito é chamado de felicidade surge antes da súbita satisfação de necessidades represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como fenômeno episódico. Toda permanência de uma situação anelada pelo princípio do prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o estado. Dessa forma, nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição. Muito menores são os obstáculos para experimentar a infelicidade”
(p. 63)
(grifo meu)



         Como se vê, Freud atribui à própria constituição humana (quer psíquica, quer fisiológica, quer social) a causa das limitações de satisfação de nossa felicidade. Mas devemos deixar esse aspecto - importante, decerto – de lado, para nos atermos ao que ele afirma sobre a experiência de infelicidade.
         A experiência é, sem dúvida, um terreno seguro para fertilizar quaisquer reflexões. É razoável que nos valhamos dela para buscar a confirmação da validade de nossas crenças, para sustentar alguma verdade em nosso trabalho argumentativo. Freud defende ser a felicidade um fenômeno episódico. E devo dizer que, antes de iniciar este texto, enquanto ainda formulava alguns pensamentos sobre o tema, ocorreu-me que experienciamos uma felicidade episódica. Muitos de nós parecemos concordar com a ideia de que são raros os momentos felizes na vida e que devemos aproveitá-los intensamente. Reunir toda a família no Natal está entre esses momentos de felicidade tão cara a nós.
     Custa-me aceitar pensamentos triviais como ‘a felicidade é já estar vivo’, ‘viver já é motivo de felicidade’, já que ignoramos completamente as condições socias de existência humana. Os homens, ao longo dos tempos, buscaram muitos caminhos para a felicidade, mas acredito que certas condições básicas são necessárias à felicidade, tais como alimentação, saúde, educação, moradia e lazer. Essas condições dependem também do alicerce familiar, do amparo e amor, primeiramente, de nossos pais, mas também de nossos avós, tios, etc.
     Sabemos que não basta estar vivo para sentirmo-nos felizes. O que dirá se você estiver preocupado com a possibilidade de perder o emprego? O que dirá se você tiver um ente querido hospitalizado, padecendo de uma doença incurável? O que dirá se você  tiver experienciado o legado da traição da pessoa que você amou e a quem dedicou grande parte de sua vida? O que dirá se você estiver com o coração dolorosamente afetado pelo desprezo da pessoa com quem você compartilha uma vida conjugal? O que dirá se você estiver enfrentando a triste e difícil situação de ver um filho sucumbir ao vício de entorpecentes? Em qualquer condição referida aqui, certamente, você não estaria feliz.
        Fico tentado a trazer à cena o valor incomensurável da experiência amorosa como uma fonte de felicidade abundante. Mas vou protelar essa intenção, por ora.
      Eu não disponho de tempo nem de espaço para avaliar, com a disciplina que nos exige uma reflexão séria, se há algum sentido de verdade na afirmação freudiana sobre a existência de menos obstáculos à infelicidade. Decerto, as relações sociais são uma das causas do sofrimento (e, portanto, da infelicidade) dos seres humanos apontadas pelo próprio autor . Não podemos escapar à infelicidade e ao sofrimento; mas podemos contar com pessoas que nos ajudem a enfrentá-los.
        No prólogo de A morte da Fé,  Sam Harris põe-nos diante de nossa condição humana, aos nos lembrar:


“Não sabemos o que nos espera depois da morte, mas sabemos que vamos morrer. Obviamente, deve ser possível viver eticamente – com uma preocupação genuína pela felicidade de outros seres sencientes – sem ter a pretensão de saber coisas sobre as quais somos absolutamente ignorantes. Considere o seguinte: todas as pessoas que você já conheceu, todas as pessoas que você viu passar na rua hoje, vão morrer. Todas as que vivem bastante sofrerão a perda de amigos e parentes. Todas perderão tudo que amam neste mundo. Até que isso aconteça, por que não desejaríamos ser generosos com todas as pessoas?
(p. 263)
(grifo meu)



              É possível supor que, para Freud, essa disposição para a generosidade não se daria sem alguma retribuição satisfatória, já que os homens, ao demonstrá-la, visariam a alguma forma de benefício recompensador exterior. No entanto, deixando de lado a concepção de Freud sobre a natureza humana, o que Harris nos ensina é pertinente à reflexão que até aqui vim desenvolvendo. O autor nos lembra que o sofrimento e a infelicidade estão à nossa espreita e que afetará a todos nós, homens destinados à morte. Resta-nos, entre o nascimento e a morte, a vida; e isso, certamente, é muito, se consideramos a possibilidade de que não poderíamos estar aqui para pensar sobre isso.
      Harris nos sugere que a felicidade é um sentimento que deve ser proporcionado, possibilitado aos que conosco compartilham suas vidas. Mas, decerto, ele vai mais além: defende que a felicidade deve ser extensiva a todos os seres humanos e devemos nos esforçar para fazer os outros (mesmo os que nos são estranhos) felizes.
       Não consigo deixar de pensar na distinção entre bem-estar e felicidade. Em nosso cotidiano, experienciamos, muito frequentemente, sensações de bem-estar. Desde que não sejamos acometidos de algum aborrecimento ou enfermidade, podemos gozar de períodos longos de bem-estar (físico ou mental, ou ambos). Mas a felicidade deve habitar as zonas mais profundas e íntimas do ser. Não tem ela nada de superficial, por isso não penso a felicidade como sentimento resultante da aquisição de riqueza material. Não está no acúmulo de dinheiro e de capital (imóveis, carros, etc.).
        Não creio que possamos ser felizes em longos estados de solidão. A consciência da morte, legado de nossa condição de seres de inteligência superior, de seres racionais, leva-nos a rejeitar longos períodos de solidão. Nosso próprio nascimento inaugura as possibilidades de uma vida destinada a relacionamentos. Se encontramos um bebê abandonado por sua mãe em algum canto por onde passamos, nosso instinto para a sobrevivência e para evitar a morte de um ser inocente e indefeso nos orientará a ação. Podemos levá-lo ao primeiro hospital que encontrarmos para que lhes sejam dispensados os cuidados devidos. Ora, a solidão desse bebê o levaria à morte. Sabemos que, para ele sobreviver, deverá contar com pessoas de bom coração que o alimentem, o vistam e o acolham. Ele deverá ser destinado à adoção e, sendo adotado (caso a mãe não possa ser localizada) por uma família que lhe possibilite as condições indispensáveis ao seu desenvolvimento físico, cognitivo e emocional, ele terá grandes chances de ter experiências de felicidade.
        Se, com Freud, no que estou de acordo, a felicidade é uma experiência episódica, se só nos resta experienciar momentos de felicidade e nunca a felicidade permanente, podemos viver momentos de felicidade plena. A experiência amorosa parece prová-lo. Quando amamos, sentimo-nos plenamente felizes. E o terreno de abundante felicidade está no desejo do outro e no desejo compartilhado com o outro. É que a felicidade do amor se ancora no interior. A comunhão favorecida pelo amor é, certamente, um sentimento fértil de felicidade. Diante dela, nenhuma riqueza outra tem valor suficiente para nos contentar.
      O amor permite-nos que sejamos felizes com a felicidade do outro; ao sentir o outro feliz, também nos sentimos felizes. As outras formas de felicidade tendem a ser egoístas, porque centradas no ‘eu’ que a experiencia. Mas, no amor, a felicidade que proporciono à pessoa amada é também a minha felicidade. Quem ama, afinal, sente felicidade ao dar-se conta de que o outro é feliz.
     É claro que o amor impõe-nos, por assim dizer, um desafio à experiência de felicidade, sempre fugaz e episódica. Esse desafio consiste em reconhecer que a felicidade é um bem que deve ser partilhado e comum, ou seja, extensivo a ambos os envolvidos; uma felicidade recíproca, em suma.
    No amor, esforçamo-nos para a realização da felicidade mútua, e não individual. Certamente, podemos amar e desamar e amar quantas vezes forem necessárias para sentimo-nos felizes na felicidade do outro. Se o amor não fosse uma fonte abundante de experiências de felicidade – e de uma felicidade essencial – ele não valeria sequer uma gota de tinta da pena de nossos corações desejosos de vida.
       A felicidade está para o amor assim como a vida está para a morte: há um vínculo necessário. Uma vez vivos, morreremos; enquanto vivos, desejaremos amar para sermos plenamente felizes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário