quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O prazer da leitura



                              Leitura e resistência
                       Por que resistimos à leitura?


Em Quebrando o encanto – a religião como fenômeno natural (2006), o filósofo Daniel Dennett, escreve sobre a atividade de todo filósofo:

“Sou um filósofo, não um biólogo, um antropólogo, um sociólogo ou um teólogo. Nós, filósofos, somos melhores em fazer perguntas do que em respondê-las, e isso pode parecer, para algumas pessoas, uma cômica admissão de futilidade (...) Mas qualquer pessoa que tenha abordado um problema realmente difícil sabe que uma das tarefas mais árduas é encontrar as perguntas certas e a ordem de fazer essas perguntas”
(pp. 29-30)

Tendo em conta esse ensinamento, quero dizer algumas coisas sobre o título deste texto. Encerrará ele uma pergunta adequada? Pensei em estampar a pergunta: por que lemos pouco? Mas isso implica a pressuposição de que nós, brasileiros, lemos pouco. Há pesquisas que confirmam isso, é verdade; mas essa pressuposição encaminharia minhas reflexões em um sentido que não é o pretendido. Não estou interessado em avaliar as influências sócio-culturais, ideológicas e econômicas que dificultam o acesso à leitura ou a inibem. Muitos culpam a televisão; outros estendem a culpa à internet, ao vídeo-game, à sobrecarga de tarefas, à escassez de tempo, minguado em longas e exaustivas jornadas de trabalho, etc.
Quando se coloca como matéria de debate a influência negativa da televisão na formação de leitores, questiona-se, principalmente, o poder sedutor das imagens, ou melhor, a capacidade que elas têm de simplesmente não exigir a atividade de pensamento. Expressões como anestesiamento da consciência, regressão da consciência, semiformação, entre outras, perpassam os discursos críticos sobre a relação intricada entre televisão e livro, ou, em outras palavras, entre ver televisão e ler livro. Mas, devo esclarecer, refiro-me ao hábito de ver televisão e ao hábito de ler livros. O hábito, por definição, implica repetição, automatismo. É toda forma de comportamento que adotamos cotidianamente, de modo quase sempre irrefletido.
Tenho, contudo, de interromper o curso de minhas palavras aqui, porque não pretendo refletir sobre essa relação. Na verdade, quero pensar a leitura como uma experiência. Desse modo, pensarei a leitura relacionada à vida comum, individual; e a partir do individual, tentarei pensar sua influência sobre o coletivo.
Já deve ter ficado claro que por leitura entendo a atividade de interpretar e compreender textos. Leitura é interpretar, produzir sentido. É claro que podemos ler outros objetos passíveis de interpretação, tais como uma obra de arte (pintura, escultura), filmes, expressões corporais, o mapa astral, a mão de uma pessoa, etc. Queiramos ou não, em todo momento, estamos lendo o mundo.
É oportuno o ensinamento de Paulo Freire, quando nos ensina, em A importância do ato de ler, que a leitura do mundo deve preceder a leitura da palavra e esta leitura deve ser a continuidade daquela. Palavra e mundo se interpenetram; são indissociáveis. Não é óbvio para todos que o mundo é interiorizado em nossa consciência pelas palavras; mas é.
É na relação palavra-mundo (tão bem lembrada pelo educador brasileiro) que situo minha reflexão sobre a resistência à leitura. Como eu esteja preocupado com o individual nesse tocante, começo por contar um pouco sobre minha relação com a leitura.
Os livros, ou melhor, a leitura de livros, para mim, tornou-se extremamente importante com a maturidade de minha vida universitária. Ao final do curso, ler se transformou numa atividade indispensável à minha vida. Deixou de ser resultado de uma exigência acadêmica para uma necessidade intelectual. Creio ser essa transição uma etapa fundamental para que gostemos de ler e ler mais, e mais.
Gosto é coisa que se molda culturalmente e depende da experiência. Não podemos dizer que não gostamos de maçã, se nunca experimentamos, comemos uma maçã. E se me perguntam se eu gosto de caviar, tenho, para não incorrer em equívoco, limitar-me a dizer “não sei”. E não sei, porque nunca experimentei. Posso até não ter vontade de experimentar, certamente por força dos hábitos alimentares determinados em minha cultura. Gosto mais de feijão com arroz e não sinto necessidade de comer ovas de peixes. Não podemos negar aqui a influência da cultura: ela educa-nos também do ponto de vista alimentar, ela impõe-nos padrões alimentares aos quais nos habituamos, molda nossos gostos e preferências alimentares.
É claro que a transição a que me referi só é possível em condições sócio-culturais e educacionais que as favoreçam. Não podemos negar que a leitura, tradicionalmente, no âmbito escolar, sempre esteve relacionada à obrigação (ler para fazer testes, provas, resolver exercícios de interpretação, etc.), mas quase nunca trabalhada como uma atividade interacional, dialógica, de construção de subjetividades, de formação da consciência crítica-emancipatória, de autonomia intelectual, etc. Em geral, o leitor-aluno era um leitor passivo que se submete ao texto, que tomava o autor como senhor do que diz/escreve. E nós somos herdeiros dessa tradição. Isso, certamente, é um obstáculo àquela transição.
O tema é demasiado complexo, como se vê. Há muitas conjunturas a considerar: classes socioeconômicas, políticas educacionais que incentivem a produção cultural (como a leitura), incentivo familiar, etc. De minha parte, minha mãe deu uma grande contribuição para que eu me tornasse, hoje, um leitor inveterado de livros. Ela lia histórias infantis para mim antes de dormir, quando eu era criança. Eu apreciava ouvir aquelas histórias, que se repetiam muitas noites. Eram vários livros, mas eu gostava de um em especial: A bonequinha preta. Era a história de uma bonequinha que queria ver a rua e desobedeceu a sua mãe aproximando-se demais da janela. Ela caiu, mas foi, porsteriormente, encontrada por um feirante... A moral da história é: sempre obedeça aos seus pais.
A leitura ganhou espessura em minha vida quando reconheci que somente através dela conseguiria alcançar meus objetivos profissionais. Como minha profissão é alicerçada na leitura (professor de português tem de ser, antes de tudo, um leitor; afinal, como podemos formar leitores, se não somos leitores?), para mim não foi custoso passar por aquela transição. Fico, sinceramente, intrigado (para dizer o mínimo) quando percebo que muitos alunos fazem Letras e admitem não ter o hábito de ler. Isso é contraproducente. A condição mínima para cursar Letras é apreciar a leitura. Isso vale também para todos os cursos universitários, mas, nessa área, especificamente, é condição imprescindível, porque é nela apenas que a linguagem, mormente em sua forma escrita, é objeto de estudo, de reflexão. Não só se lê muito, mas aprende-se muito sobre como se lê, sobre como se constroem os objetos simbólicos (textos), sobre os mecanismos da linguagem, sobre as possibilidades de leitura, etc.
O fato de eu ter-me formado em Letras não é suficiente para justificar meu interesse pela leitura; apenas explica-o em parte. Evidentemente, não precisamos fazer Letras para sermos leitores experientes e gostarmos de ler. Por isso, considero que aquela transição decorreu de outras experiências que vivi.
Houve um grande período em minha vida em que os livros foram meus melhores amigos, ou substituíram-nos. Eles preenchiam um vazio, decorrente de um sentimento profundo de deslocamento em relação ao mundo. De certo modo, buscava nas páginas de livros um refúgio; elas me serviam para uma fuga. A realidade era dura demais, fria demais, indiferente demais. Nos livros, sobre os quais me debruçava, num silêncio quase sagrado (porque imperturbável), eu buscava conforto e contentamento. Mas eu não me alienava, não me alheava do mundo. Porque o mundo me chegava através dos livros.
Quando lemos, complexificamos nossas percepções de mundo, as aprofundamos, as modificamos. Lemos para compreender melhor o mundo. Lemos também para aprender a viver nele, sem nos conformamos totalmente a ele. Lemos para incomodá-lo e não para vivermos comodamente nele.
Nos momentos mais graves de meus estados depressivos, os livros me eram um amparo. Eles amparavam meus sentimentos, meus pensamentos. Evidentemente, só a leitura não bastava. Era preciso estabelecer uma ponte entre leitura e realidade. A construção dessa ponte não foi fácil, visto que quanto mais letrados ficamos tanto mais seletivos socialmente nos tornamos. Quando lemos mais, restringimos mais nossos círculos de amizade.
Por muito tempo conservei a crença em que eu só conseguiria ser feliz amorosamente se eu encontrasse reciprocidade intelectual no outro. De certo modo, quanto mais letrados ficamos mais desejamos nos relacionar com pessoas com quem possamos ter afinidade intelectual, pessoas que contribuam para o nosso aperfeiçoamento intelectual também.
Felizmente, não conservo mais essa crença não só porque não há razão para supor que haja relação necessária entre reciprocidade intelectual e prosperidade amorosa, como também porque essa forma de pensar me legava uma imagem que julgava não me ser adequada. Ao contrário do que poderiam pensar, eu sou uma pessoa bastante sociável, só me faltava a consciência do lugar da intelectualidade, do legado das leituras na convivência com as pessoas.
Devemos sempre ter em conta  que, se, por um lado, ler expande nosso espírito, alarga nossa consciência social, de mundo, torna mais complexas nossas formações de pensamentos, nossas ideias, lega-nos a necessidade do questionamento, da não-aceitação a dogmas, a crenças para as quais não é possível uma justificativa racional, nos torna mais sensíveis aos engodos das ideologias; por outro lado,  acaba por nos reorientar os modos de conviver nesse mundo,  modifica as esferas de nossa sociabilidade, fazendo com que abandonemos certos círculos de amizades, ou, ao menos, limitemos nossa atuação neles.
Creio em que, para se começar qualquer discussão sobre o valor da leitura na vida social, valeria a pena começar com a pergunta: que lugar tem a leitura em minha vida?

Nenhum comentário:

Postar um comentário