quinta-feira, 18 de agosto de 2011

"A alma equilibrada conjuga amor com conhecimento" (BAR)


Quando falamos coisas inteligentes


A certa altura de minhas leituras matinais habituais, se me deparou um trecho que me repercutiu vivamente no espírito, em No que acredito (2011), do filósofo Bertrand Russel. Topa-se, no capítulo segundo (A vida virtuosa), um pensamento simples, mas cuja verdade deixa-nos atônitos (pasmo foi o que senti ao lê-lo):

“A vida virtuosa é aquela inspirada pelo amor e guiada pelo conhecimento”
(p. 44)

Decerto, minha perplexidade tem mais a ver com o fato de que quem o enuncia é um filósofo do que, propriamente, com o conteúdo do enunciado, dado que conjugar numa mesma frase amor e conhecimento é uma prática linguística que me é muito peculiar. Não me resta senão concordar, nesse tocante, com Russel. E tenho, forçosamente, de concordar também com o que ele nos ensina na página seguinte a respeito do valor do amor relativamente ao conhecimento:

“Ainda que o amor e o conhecimento sejam ambos necessários, em certo sentido o amor é mais fundamental, na medida em que levará indivíduos inteligentes a buscar o conhecimento a fim de descobrir de que modo beneficiar aqueles que amam”.
(p. 45)
(grifo meu)

Não intento aqui esmiuçar os pensamentos de Russel sobre a questão da vida virtuosa. Trouxe-os à baila apenas porque eles me animaram o espírito a expor algumas reflexões sobre ideias que lhe ficaram a pulular. Deter-me-ei nelas doravante.
Para algumas pessoas, atualmente, não há, a rigor, filósofos, já que filósofos precisam do ócio. Certamente, essa imagem do filósofo é apropriada para definir os gregos antigos, os quais dispunham, como Sócrates, de tempo livre para pensar e questionar. Sócrates, aliás, ficou famoso também por seu hábito de indagar as pessoas comuns que circulavam nas ruas de Atenas sobre a validade de suas opiniões e de suas crenças. Platão nos dá testemunho das ocasiões em que aconteciam os diálogos durante os quais os participantes expunham seus pensamentos sobre diversos temas. Essas ocasiões envolviam, muitas vezes, reunião de amigos ao redor de uma mesa farta de alimentos. Comia-se, bebia-se e filosofava-se...
Em virtude de transformações históricas (que não poderiam ser aqui levantadas), entretanto, os filósofos que se formam nas universidades do mundo são chamados de “filósofos profissionais”. Eles cumulam a função de pesquisadores e de professores de filosofia; isso, contudo, não os impede de produzir a sua filosofia, especialmente quando as universidades a que estão vinculados lhes possibilitam (com financiamento e incentivo à pesquisa) condições necessárias à sua constante atividade de pensamento. O filósofo Daniel Dennett, ainda em pleno exercício de suas atividades filosóficas, é um exemplo (e para ficar só neste dentre os milhares existentes) de filósofo que produz conhecimento ao mesmo tempo que o ensina a seus alunos na Tufts University.
É claro que a observação de que hoje pode-se falar de "filósofos profissionais" sugere as condições típicas de uma sociedade capitalista, nas quais a quantidade de tempo empregado à produção é proporcionalmente inversa à quantidade destinada ao lazer ou, se quisermos, ao ócio. Em outras palavras, time is Money – é necessário empregar mais tempo ao trabalho (e aqui entra a ideologia que faz a cisão entre ‘trabalho manual’ e ‘trabalho intelectual’, fazendo do primeiro, aliás, a única forma “verdadeira” de trabalho) e reduzir o tempo livre, que poderia ser destinado, entre outras coisas, ao exercício do pensamento reflexivo. Aos que são privados de uma formação continuada e qualificada, a dependência ao imperativo de produção se agrava. Como seja mais difícil o sucesso na reivindicação de melhores salários e da diminuição da carga horário de trabalho, nessa circunstância, não vêem alternativas senão empregar sua mão-de-obra e submetê-la às condições determinadas pelo empregador (capitalista). Quanto menor a qualificação maior a submissão. E escusa dizer que vivemos na era do conhecimento e da necessidade crescente de especialização, o que torna ambos fatores determinantes de inserção e maior participação sociocultural, política e econômica dos sujeitos sociais.
A vinculação entre saber (conhecimento) e poder fica patente no ensinamento de Jean-François Lytoard, em A Condição Pós-Moderna (2009). Gostaria de citar o trecho em que o autor nos ensina sobre a importância do saber na pós-modernidade:

“O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será consumido para ser valorizado numa nova produção: nos dois casos, para ser trocado. Ele deixa de ser para si mesmo seu próprio fim; perde seu “valor de uso”. Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países mais desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em via de desenvolvimento (...)”
(p. 5)

Pode-se, sem muito custo, depreender daí as condições que tornam possível aos nossos estudantes, especialmente do nível escolar, pensar que certos conhecimentos não servem para nada. Esse é o caso, tradicionalmente, da filosofia, enquanto disciplina escolar. O conhecimento ou saber é algo que deve ser consumido e deve servir para alguma finalidade prática. Seu valor é medido pelo quanto ele é útil para angariar algum benefício imediato. Não devemos, entretanto, culpar nossos alunos de pensar assim; na verdade, muitas pessoas pensam da mesma maneira e continuam a reiterar a crença em que filosofia não serve para nada, que ela está apartada do mundo, que ela é privilégio de poucos iluminados, ou de pessoas que vivem com a cabeça na lua. Como ensinou-nos Marx, a forma como pensamos explica-se pelas condições socio-econômicas em que vivemos: o real justifica as ideias, e não o contrário (o contrário é ideologia). 
Trata-se, portanto, de ideologia ou crenças infundadas aquelas formas de pensar, frutos de uma ignorância muito comum, mesmo entre os mais escolarizados. Aliás, devo ser honesto: no tempo em que ainda era universitário, nos primeiros períodos do curso de Letras, eu também acreditava que filosofia era um discurso quase exotérico, que nada me dizia a respeito de coisas importantes. Com o passar do tempo, dei-me conta de que os filósofos se interessaram pelo estudo da linguagem (aliás, muita coisa que sabemos hoje de gramática (no sentido vulgar do termo) e que aprendemos na escola remonta às reflexões de Platão (séc. III a.C.), seguido por Aristóteles) e, desde então, aprofundando meus estudos em filosofia da linguagem, dei o “salto intelectual” que muito me beneficiou: comecei a conhecer o pensamento de grandes filósofos. Hoje, estudar filosofia é, então, um prazer.
Para o filósofo Antônio Gramsci, a faculdade de filosofar é extensiva a todos os homens. Evidentemente, é preciso que se lhes sejam dadas as condições (sociais, culturais, educacionais) necessárias para que venham a desenvolvê-la. Decerto, filosofar não é conhecer profundamente o pensamento de um ou outro filósofo. Conhecê-lo é importante num sentido dialógico: claro, nenhum de nós é um sujeito adâmico que diz a primeira palavra, que pensa o primeiro pensamento, que é a fonte de tudo que diz e pensa; pensamos e dizemos com os outros; nossas reflexões se formam na esteira de uma longa tradição de mentes que pensaram antes de nós.
Se, por um lado, é com Sócrates que aprendemos que o filósofo não se confunde com o erudito, que o filósofo é um indivíduo que, reconhecendo ser ignorante, deseja saber, deseja a verdade e, para alcançá-la, se vale da razão; por outro lado, é com Deleuze que podemos aprender sobre a matéria-prima da filosofia, a saber, o conceito.
Vou-me deter um pouco num tema importante: a criação de conceitos. Para o filósofo Deleuze, em O que é filosofia? (2009),  a filosofia é o trabalho de criação contínua de conceitos. Como veremos, essa concepção lançará algumas luzes sobre o próprio fazer filosófico, ou seja, sobre o próprio exercício de filosofia.
Deleuze ensinará que todo conceito é complexo, porque constituído de vários componentes. Não há, portanto, conceito simples. Mas disso não se pode concluir que o conceito é um todo acabado que encerra todos os componentes. Para ele, o conceito tem irregularidades. O conceito também se entende pela sua relação com os problemas. Ademais, todo conceito se relaciona a outros conceitos. Assim, todo conceito é relativo, dada a sua relação com os seus componentes e com outros conceitos, mas também absoluto, pela sua consistência e posição que ocupa num terreno conceitual, mas também pelas condições que impõe aos problemas.
Para que fique clara a complexidade de todo conceito, pensemos no conceito de ave. O conceito de ave compreende as noções de ‘animal’, ‘vertebrado’, ‘voar’, ‘penas’, ‘asas’, ‘bico’, ‘ovos’, etc. Duas noções são importantes aqui: a de extensão e a de intensão. Entende-se por extensão de um conceito o conjunto ou a classe de entidades ou objetos recoberto pelo conceito. Por exemplo, ‘ave’ é extensivo a galinha, canário, papagaio, etc. Por outro lado, intensão designa as propriedades de um conceito na base das quais ele é definido. Assim, o conceito de ‘ave’ tem uma definição intensional que inclui as noções de ‘animal’, ‘vertebrado’, ‘voar’, ‘asas’, etc.
Todo conceito só se torna operacional pela sua definição. Na verdade, sua validade depende da definição. Mas do que são feitos os conceitos? Reformulando a questão: o que é necessário para podermos construir pensamentos baseados em conceitos? Precisamos de palavras. As palavras, longe de serem etiquetas de que nos valemos para identificar ou nomear as coisas do mundo, são formas de criação de conceitos. As palavras, repito, permite-nos criar conceitos mediante os quais organizamos nossas experiências de mundo numa estrutura dotada de sentido. Não há possibilidade de existir pensamento conceitual fora dos domínios da  linguagem verbal.
Não existe uma separação entre o mundo, de um lado; e as palavras, de outro. Na verdade, o mundo, ou melhor, as nossas experiências de mundo são interiorizadas (pela consciência) e tornadas ‘dados’ de nossa consciência mediante os conceitos criados pelas palavras.
Convém aqui lembrar a função simbólica da linguagem, mediante a qual a linguagem fornece as categorias na base das quais organizamos nossas experiências de mundo e tornamo-las dados de nossa consciência, ou seja, formas de conhecimento.
Vejamos um pouco como se dá isso. Pensemos no conceito de ‘galinha’. Se assumirmos que ‘águia’ seja um protótipo (o modelo) para a categoria ‘ave’, devemos reconhecer que ‘canário’, ‘andorinha’, ‘gaivota’, ‘papagaio’ estejam mais próximos desse protótipo, ou seja, do conceito de ‘ave’, de que 'águia' é o um modelo, do que  ‘galinha’ (embora seja considerado uma ave). Mas devemos lembrar que a galinha não voa, ao contrário das espécies de aves aqui referidas. E devemos reconhecer que a categorização científica sobrepõe-se à categorização feita pelo senso-comum. Assim é que, para muitas pessoas, o morcego é uma ave, visto que voa. Mas o mínimo de instrução científica nos permitirá dizer que ele é um mamífero e, portanto, não pode ser incluído na categoria das aves (já que nenhuma ave se alimenta como os mamíferos).
O léxico é um campo muito fértil para explorarmos a função simbólica da linguagem, já que ele nos fornece as categorias que, organizadas em campos semânticos, permitem-nos construir campos cognitivos que expressam nossa compreensão da realidade. Por exemplo, ao pensar no conceito de ‘galinha’, posso desencadear um frame ou modelo cognitivo que inclui outros conceitos como ‘pinto’, ‘ovo’, ‘galinheiro’, ‘chocar’, ‘fazenda’, etc. A experiência nos dá o conhecimento de que a galinha não voa, mas caminha, anda. Logo, um enunciado como (a), embora gramaticalmente bem-formado, é, semanticamente, inaceitável, porque não descreve um estado-de-coisas do mundo tal como o conhecemos:

(a) A galinha voava para o sul.

Mas uma frase como (b) é perfeitamente aceitável, porque representa ou descreve um dado estado-de-coisas do mundo:

(b) A galinha vive no galinheiro.

Pensemos ainda nos conceitos de ‘andar’, ‘voar’ e ‘saltar’. Podemos associar o primeiro conceito a outros como ‘homem’, ‘mulher’, ‘cachorro’ e ‘carro’ (muito embora, quando associado a este último, a noção se modifica). Podemos associar ‘voar’ tanto a ‘avião’ quanto a ‘ave’, mas não a ‘carro’ ou ‘casa’. Sabemos que o sapo ‘salta’, homens e mulheres também podem saltar, mas o ‘carro’ não salta, nem a ‘pedra’  ‘chora’.  Isso é óbvio demais, mas por justamente ser óbvio demais não é pensado. A semântica estrutural nos permitirá compreender bem essas relações com a noção de semas (componentes de significado). Ora,  a forma 'chorar' só pode relacionar-se com 'seres' [+ animado], em geral [+ humano]. Portanto, chorar é um conceito que envolve o conceito de animação/humanidade. Uma pedra, como seja desprovida de animação, não pode "chorar".
Pensemos também na relação hipônimo-hiperônimo, ou seja, entre um termo mais específico e um termo mais geral. Dizemos que ‘transporte’ é hiperônimo de ‘carro’, ‘ônibus’, ‘avião’, e cada um destes é hipônimo daquele. Se pensarmos no conceito de ‘mobília’ como hiperônimo para ‘mesa’, ‘cama’ e ‘sofá’, tendemos a negar a relação dele com ‘liquidificador’ ou ‘geladeira’, que seriam mais propriamente integrantes da classe ‘eletrodoméstico’.
A filosofia, desde a antiguidade, nasce como um estudo alicerçado no logos (palavra, discurso). Tem razão os filósofos que entendem a filosofia como um discurso, mas de um tipo específico. Trata-se de uma forma de discurso que se baseia na razão (no sentido de que se submete aos seus princípios) e que está preocupado com a busca da verdade.
O discurso filosófico, racional, por excelência, opera com conceitos, sua matéria-prima. Quando um filósofo se pergunta sobre o conceito de liberdade, por exemplo, é sobre seus componentes que ele se pergunta. Aqui, a razão opera sobre o interior do conceito e, nesse sentido, ela é auto-reflexiva. Todavia, não basta fazer abstração (ou seja, isolar o conceito da realidade). O testemunho empírico, a experiência, em suma, é indispensável. Qualquer definição de liberdade não pode escusar as formas como ela tem sido experienciada ou cerceada ao longo da História.
Aprendi com a filosofia que devemos estar atentos à forma como pensamos, à forma de nossos raciocínios, aos seus conteúdos, ao modo como os concatenamos, para evitar contradições, falácias. Aprendi com a filosofia a explorar a relação intrínseca e fascinante entre linguagem e pensamento. Nesse sentido, a filosofia promove o retorno do pensamento sobre o pensamento elaborador. O pensamento reflexivo (o que “reflete”) é pensamento que se volta sobre a própria atividade pensante.
Aprendi com a filosofia (embora também seja uma exigência da forma de atividade de pensamento científico) a necessidade de definir os termos, os conceitos que empregamos em nossos discursos; em outras palavras, evitar a polissemia tanto quanto possível. Aliás, qualquer discussão só pode ir adiante se os interactantes estiverem de acordo quanto aos conceitos dos termos empregados, bem como se compartilham dos pressupostos envolvidos na discussão. 
A análise do discurso vem corroborar essa necessidade de nos situarmos no domínio discursivo e na esteira conceitual quando interagimos. Dependendo da formação discursiva, as palavras terão sentidos diferentes. Uma sigla como MST (movimento dos sem-terra) terá um sentido na boca de um representante desse movimento que reivindica o direito a usufruir da terra, e outro na boca de um latifundiário.
Evidentemente, nas conversações cotidianas, em que predomina o senso-comum, o rigor na precisão de conceitos, no acerto quanto às nossas interpretações das palavras, na delimitação de domínios conceituais, na clareza de definições é, muita vez, dispensável, muito embora certo grau de assentimento seja necessário. Ora, devemos estar de acordo quanto aos sentidos que damos às palavras que empregamos; discussões calorosas surgem, muitas vezes, dos mal-entendidos em relação aos significados que pretendemos atribuir às palavras que empregamos num dado contexto. Mas, insisto, que não pensamos como filósofos em nossas atividades triviais do cotidiano, nem os filósofos se comportam como tais.
Comportar-se de modo inteligente é saber qual o lugar da inteligência, quando e como deve ser empregada. Falamos coisas inteligentes quando os outros esperam que as falemos, do contrário, seremos pedantes. A inteligência deve atrair e não repelir; deve causar admiração e entusiasmo, e não intimidação e desconforto.

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