quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"O que a história pode nos ensinar de mais seguro é que nos enganávamos sobre um ponto de história" (Valéry)

                               
                                    


                                 O antijudaísmo cristão
                                  Discurso, verdade e poder


Do latim historia, que, remontando ao grego, significava “pesquisa”, “informação”, História será tomado, neste texto, na acepção de sucessão de acontecimentos. Trata-se da história-acontecimentos, os quais são produzidos por forças humanas encarnadas em disputas e em contradições. Essas disputas e contradições, que constituem elas mesmas os acontecimentos históricos, devem ser contempladas em sua relação necessária com o poder.
O termo poder é extremamente importante na discussão que empreenderei neste texto. Por isso, urge defini-lo.

1. Poder

Para Max Weber, poder é a capacidade de exercer controle sobre indivíduos, eventos ou recursos, isto é, é agir de modo tal a produzir aquilo que se quer que aconteça, não obstante obstáculos, resistência e oposição.
Há muitas divergências sobre como se deve conceituar o poder. As dificuldades de conceituação se devem, em parte, às formas diferentes que ele assume. Acrescente-se que a maneira como é definido tem efeito significativo no modo como se pensa em sistemas sociais e no seu funcionamento.
A forma de poder que me interessa, para a elaboração deste texto, é a denominada power-over (poder-sobre). O poder chamado de poder-sobre deve ser entendido como um recurso que os indivíduos possuem, tendo em vista um sistema social organizado hierarquicamente. Assim, o poder é algo que pode ser retido, retirado, capturado, perdido, cobiçado ou roubado e que é usado em relações basicamente marcadas por antagonismo. O poder-sobre assenta num conflito entre os que o têm e os que não o têm.
Destarte, as disputas históricas assumem a forma de lutas em torno do poder-sobre em sistemas sociais, compreendidos como totalidades cujos subsistemas são interdependentes e permeados de interesses que podem corresponder aos interesses do todo social ou colidir com eles. É verdadeiro para a modernidade, ao menos, que o poder produz o real, produz os domínios de objetos do saber e os rituais de verdade.
A noção de sistema social também precisa ser elucidada, a fim de que se perceba sua utilidade para a compreensão do fenômeno histórico de que este texto se ocupa.





2. Sistema social

O conceito de sistema social tem analogia com a noção de sistema nas ciências naturais, notadamente na física (sistemas mecânicos) e na biologia (sistemas orgânicos). As analogias com esses dois tipos de sistemas permitiram a construção de dois principais modelos sociológicos de sistemas sociais, embora sempre houvesse a preocupação de salientar os traços que os tornam distintos dos sistemas das ciências naturais.
Um sistema social é, portanto, a totalidade social no interior da qual coexistem inúmeros campos de ação superpostos, cada qual com sua própria dinâmica de desenvolvimento. As instituições sociais são constituídas de subsistemas do sistema social geral. Assim, devem-se distinguir os subsistemas econômico, político ou religioso, cada qual comportando uma função específica, contribuindo, desse modo, para assegurar a coesão geral do sistema social mediante o intercâmbio de energia e informação.
Todo sistema social depende do equilíbrio para manter um bom funcionamento, e o equilíbrio só se obtém quando há reciprocidade nas relações entre os diversos subsistemas. Uma dimensão importante que assegura o equilíbrio da totalidade do sistema são as interações linguísticas mediadas pelos indivíduos.
Os sistemas sociais são moldados por processos de integração e adaptação (Parsons). Assim, eles são suscetíveis de influências ambientais, as quais se expressam na forma de um fluxo constante de energia e informação (visão biológica), o que não impede que, em certas condições ambientais, um sistema possa ser estudado em estado de equilíbrio, isolado do ambiente, como se fosse um sistema estanque.

Outro conceito que ocupa um lugar importante nas reflexões que se seguirão é o de verdade. A verdade é uma moeda cara; todos nós queremos possuí-la. Seu valor é inegável tanto aos homens da ciência quanto ao homem comum. Foucault nos chamou a atenção para o fato de que a busca da verdade e o discurso da verdade se realizam através de um exercício de poder. A busca pela verdade é sempre interessada. Na modernidade, verdade, conhecimento e ciência estão, portanto, intimamente articulados ao poder.
As religiões organizadas também namoram a verdade (quando não a depravam) . Desde as origens, a fé cristã se impôs como a única fé verdadeira. Os cristãos alegavam que o seu Deus era o único deus verdadeiro. Mesmo a fé cristã que, de tempo em tempo, precisou ora articular-se à razão, ora reivindicar, em face dela, a sua superioridade, não desistiu de cobiçar a verdade. A teologia cristã se apoia em verdades reveladas. Os cristãos creem que sua Bíblia é o próprio registro dessas verdades. Decerto, desconfio demais dessas verdades, o que me impede de atribuir-lhes qualquer sentido de utilidade que não seja abusivamente ideológico. A teologia está repleta de abusos semânticos desse tipo. O uso que a doutrina cristã faz da palavra Revelação, por exemplo, para se referir a um projeto do Deus “vivo” que se fez conhecido do homem, está entre os abusos semânticos a que me refiro.
Veremos que nossa concepção de verdade provém de três ramos linguísticos: o grego, o latim e o hebreu. Isso equivale a dizer que o conceito de verdade, no pensamento ocidental ,foi legado pelas culturas matrizes da cultura ocidental: a greco-romana e a judaico-cristã.
Começarei apresentando e definindo as três concepções de verdade de que somos herdeiros; posteriormente, vou-me debruçar sobre a exposição que Adam Schaff faz do tema em seu livro História e Verdade (1983), com o objetivo de sublinhar a relação entre verdade, conhecimento e história.

3. As três concepções de Verdade

3.1. A verdade como alétheia

Em grego, verdade se diz alétheia, palavra que se constitui da combinação do prefixo “-a”, que expressa negação (cf. amoral), com a forma léthe, que significa ‘esquecimento’. Alétheia significa, portanto, o ‘não-esquecido’. Platão falava da verdade como o que é lembrado ou o que não é esquecido. Por extensão semântica, alétheia passou a significar também o ‘não-escondido’, ‘não-dissimulado’.
A verdade é, assim, o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito. Os antigos gregos concebem-na como a manifestação do que é realmente. Portanto, a verdade se opõe à falsidade, a qual é o encoberto, o ocultado, o escondido. A verdade é aquilo que se mostra plenamente para a razão. A verdade é o que é evidente. A palavra evidência quer dizer justamente o desocultamento total de algo para a visão que, portanto, o apreende completamente.
A concepção grega de verdade supõe que a realidade se manifeste, se desvele (‘remova o véu que a encobria’) à visão intelectual dos seres humanos. A verdade, assim, é uma propriedade das próprias coisas, na medida em que elas manifestam o seu próprio ser. Para os antigos gregos, conhecer é ver e dizer a verdade que se acha na realidade e que, por isso, depende de que a realidade se manifeste. Por isso, entre os gregos, o ser é o verdadeiro (estar de posse da verdade é contemplar a manifestação do ser (o que é realmente)). O falso é o parecer, ou seja, algo que apresenta ser mas que não é.


3.2. A verdade como veritas

Em latim, verdade se diz veritas e diz respeito à precisão, à exatidão de um relato. Nesse caso, diz-se que se atingiu a verdade, se o relato é fiel ao que realmente aconteceu. A verdade se acha, agora, na linguagem, compreendida como narrativa adequada aos fatos. Logo se vê que a verdade é dependente da acuidade com que os fatos são relatados. Prende-se à memória, já que resulta da fidelidade dos fatos rememorados na forma de relato ao que de fato aconteceu.
Não há mais aparência (como na acepção grega), mas mentira e falsificação. Os fatos são reais ou imaginários; e os relatos sobre eles é que são verdadeiros ou falsos.


3.3. A verdade como emunah

Em hebraico, a verdade se diz emunah, que quer dizer ‘confiança’. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem; são fiéis à palavra dada e, por isso, dignos de nossa confiança. A concepção de verdade hebraica está na origem de enunciados como “Um amigo verdadeiro não trai”, “Um verdadeiro pai cuida de sua família”, etc. Emunah é uma verdade fundada na esperança e na confiança na promessa feita; portanto, ela se reporta ao futuro. Sua forma mais elevada é a Revelação divina e a perfeição de sua expressão está na profecia.

Passando em revista as três concepções de verdade em que se baseia a compreensão ocidental de verdade, vale notar o que se segue:

Alétheia é a verdade que se encontra na realidade; é a verdade cujo acesso depende de uma automanifestação da realidade à visão racional e intelectual (evidência). O conhecimento verdadeiro é a apreensão racional dessa verdade. Dessa concepção de verdade, deriva uma teoria da verdade como evidência e correspondência, segundo a qual o critério da verdade é a adequação de nosso intelecto à realidade. Nesse caso, nossas ideias correspondem efetivamente à realidade por elas representadas. Inversamente, a verdade pode resultar da adequação da realidade ao nosso intelecto, caso em que as coisas correspondem, de fato, às ideias que a representam.
Veritas é a verdade cujo critério é o rigor e a precisão no uso da linguagem, na forma como se elabora o raciocínio, como encadeamos as ideias. Nossas ideias, nesse caso, relatam em nossa mente os acontecimentos exteriores a nós e são verdadeiras quando organizadas segundo regras e princípios lógico-semânticos e gramaticais previstos pela linguagem. Os relatos são verdadeiros quando correspondem a uma realidade externa. O critério da verdade é a coerência interna entre as ideias e as cadeias de ideias de que se compõem o raciocínio. O que marca o verdadeiro é a validade lógica dos argumentos.
Emunah é, em sua forma secular, a verdade que depende de um acordo, um pacto de confiança entre pesquisadores, que definem um conjunto de convenções universais sobre o conhecimento verdadeiro. Todos devem respeitar essas convenções. A marca da verdade é o consenso e a confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pensadores e cientistas.
O consenso é estabelecido com base em três princípios:

1) somos seres racionais e nosso pensamento é governado por princípios da razão;
2) somos seres dotados da faculdade da linguagem, e a linguagem funciona segundo regras lógicas e gramaticais convencionais;

3) os resultados auferidos numa investigação devem ser submetidos à discussão e ao exame pelos membros de comunidade de estudiosos, os quais lhes atribuirão ou não valor de verdade.


3.4. Verdade, conhecimento e história

Em seu História e Verdade (1983), Adam Schaff considera a verdade como juízo verdadeiro, cuja definição supõe a noção de reflexo. Assim, escreve Schaff “é verdadeiro um juízo do qual se pode dizer que o que ele enuncia é na realidade tal como o enuncia” (p. 92).
Schaff reconhece que a definição clássica de verdade está entre as inúmeras definições já formuladas. Além da dificuldade de conceituar a realidade, não menos embaraçoso é elucidar a relação entre o conteúdo do juízo e a realidade. Nesse tocante, propõem-se termos como adequação, correspondência, reflexo, conformidade, analogia, cópia, etc. Com vistas a descrever as condições de verdade, vários foram os esforços mobilizados para definir a verdade: alguns a viram como consentimento universal, economia de pensamento; outros a consideraram como coerência entre proposições, crenças no interior de um sistema de crenças, utilidade prática. Observa Schaff que “nenhum dos critérios mencionados (consentimento universal, coerência, etc.) garante a verdade do conhecimento (p. 93)”, o que significa dizer que não nos assegura a certeza de que o que nós enunciamos se conforme com o que é de fato.
Do ponto de vista científico, observa Schaff, um juízo é verdadeiro sempre que os pesquisadores estão convencidos (porque dispõem de provas científicas que dão sustentabilidade à sua convicção) de que o juízo está em conformidade com o objeto real. É preciso considerar uma questão que facilmente nos induz a equivocar-nos: a relação entre verdade e objetividade.
As concepções grega e romana de verdade se esteiam sobre o pressuposto da existência da realidade objetiva, de modo que toda verdade é objetiva. A objetividade do conhecimento – deve-se frisar – é seu valor universal, o qual não é afetado por alguma coloração emotiva. Trata-se, certamente, de um ideal de objetividade, já que o componente subjetivo (quem conhece é um sujeito social) não pode ser separado do componente objetivo. O oposto de uma verdade objetiva não é, portanto, uma “verdade subjetiva”, porque a verdade subjetiva não seria outra coisa senão uma falsidade (Schaff, p. 93). Em todo caso, a oposição comum entre verdade objetiva e verdade subjetiva conduz-nos a encarar outro problema relevante a toda discussão desenvolvida sobre o conceito de verdade. Trata-se do litígio entre relativistas e absolutistas. Afinal, a verdade é absoluta ou relativa? Longe de resolver a questão, procurarei aqui posicionar-me como um partidário da verdade absoluta. Dois são os problemas que se devem distinguir na questão que consiste em determinar se a verdade é absoluta ou relativa.

1º) Saber se um juízo dado é verdadeiro ou falso independentemente (visão absolutista) ou dependentemente (visão relativista) das circunstâncias, as quais recobrem os sujeitos sociais e o contexto sócio-histórico a partir do qual eles enunciam;

2º) As verdades são totais (visão absolutista) ou parciais (visão relativista).

Tendo em conta o primeiro problema, contra a posição relativista da verdade, a qual se afina com a concepção de verdade subjetiva, argumentam os partidários da visão absolutista que o problema se encontra na forma dos enunciados. Atos de fala constatativos, ou seja, que exprimem constatação pelo enunciador de um estado-de-coisas do mundo podem dispensar regularmente as marcas dêiticas de pessoa, tempo e lugar. Dizemos, por exemplo, “Está chovendo”, numa situação em que constatamos o fenômeno da chuva. Desprovido das marcas de enunciação, esse enunciado pareceria aos relativistas descrever uma verdade (consideradas as condições do mundo) relativa a quem o enuncia, ao lugar e ao tempo em que se enuncia. Na verdade, argumentam os absolutistas, especificadas as marcas dêiticas, o enunciado passa a ser verdadeiro (ou falso, consideradas as condições do mundo) independentemente da pessoa que o enuncia. Por exemplo, se o enunciado assumisse a forma “Eu percebo que está chovendo na cidade em que estou hoje”, a proposição “está chovendo na cidade em que estou hoje” é verdadeira tanto para mim quanto para o resto do mundo.
Evidentemente, a relação mundo-verdade-linguagem não é, de forma alguma, simples. Em primeiro lugar, a linguagem (o discurso) não é transparente. A linguagem não espelha o mundo. Nossos enunciados não são fotografias do mundo. Em segundo lugar, o acesso ao mundo não é direto, já que é permeado por uma complexa relação entre linguagem, cognição-percepção e cultura. Considerados a não-transparência da linguagem e o acesso mediato do mundo, a verdade parece ser efeito daquela relação e dependente de certa negociação entre os sujeitos do discurso. Ora, se nos parece simples determinar a verdade numa situação em que vejo meu cachorro correr atrás do gato e digo “o meu cachorro está correndo atrás do gato”, menos simples nos parece determinar a verdade numa situação em que alguém diz “Esse tênis é caro”. Esses dois exemplos mostram que nem todos os enunciados são passíveis de medição em termos de valor de verdade. A verdade, muito frequentemente, quando consideramos nossos discursos, está ligada ao poder de convencimento de nossos argumentos. Dizemos “é verdade”, com frequência, para enunciar nosso assentimento à crença de um enunciador, numa situação em que ouvíssemos algo como “A vida é difícil”. Essa proposição não descreve um fato do mundo; trata-se de um juízo de valor sobre a vida. Na opinião do enunciador, há muitas dificuldades na vida. E, se eu enuncio “é verdade”, estou tão somente concordando com ele.
A verdade é absoluta, na medida em que ela é o próprio desvelar do real aos olhos do espírito e do corpo; ela é absoluta e eterna, porque evidente para todos e em todas as épocas.
Consideremos o segundo problema. No que toca à divergência entre os que pensam que só há verdade total e os que admitem verdades parciais, a questão consiste em saber se é verdadeiro apenas o conhecimento total, completo, eterno e imutável, ou se a parcialidade da verdade pode ser obtida a cada etapa do conhecimento concebido como processo em desenvolvimento.
A visão relativista, nessa controvérsia, pensa que o conhecimento humano é cumulativo, que se desenvolve no tempo e que esse desenvolvimento revela, em seu curso histórico, mudança das verdades obtidas como resultado desse conhecimento. Pensemos no que se sabia, no tempo de Ptolomeu, sobre o universo e o que se sabe hoje, desde Copérnico. No tempo de Ptolomeu, acreditava-se que a Terra estava no centro do universo (crença tida como conhecimento à época). O conhecimento cosmológico, em seu desenvolvimento, atingiu o estágio em que um Copérnico trouxe à luz a verdade: “O sol está no centro do universo”.
O conhecimento de um objeto não se reduz a um único juízo verdadeiro, é claro; mas é reflexo da complexidade, das fases de desenvolvimento do próprio objeto do conhecimento. Esse conhecimento se estrutura com uma sequência de juízos. O conhecimento é um processo. Destarte, o juízo também pode sofrer mudanças, tornando-se mais completo, mais complexo, em função do desenvolvimento do conhecimento. Evidentemente, as mudanças que incidem sobre o juízo influenciam na forma do conhecimento.
No entanto, se um juízo nem sempre é visto como um processo (ele pode não sê-lo), o conhecimento é sempre um processo, em virtude da inesgotabilidade da realidade estudada. Em outras palavras, a realidade é sempre mais complexa, mais extensa e inesgotável do que o conhecimento que podemos ter dela. Por outro lado, é um processo também porque a realidade se apresenta em desenvolvimento, em fluxo sem fim.
Se não é possível um conhecimento totalizante da complexidade do real, sempre em desenvolvimento, em curso contínuo, é possível um conhecimento exaustivo de uma região delimitada do real. Sabe-se que as teorias científicas operam com base em “recortes” da complexidade do real; elas setorizam a realidade. Cada recorte teórico do real estabelece um objeto a ser estudado, descrito, explicado pela teoria. Toda teoria delimita uma “região” da realidade e a toma como objeto de estudo. As entidades de que se ocupam uma teoria são entidades teóricas, e não entidades do mundo.
Convém lembrar que a exaustividade do conhecimento não é a totalização da realidade, visto que

“(...) o objeto do conhecimento é infinito, quer se trate do objeto considerado como totalidade do real ou do objeto percebido como qualquer um dos seus aspectos e fragmentos. Com efeito, tanto o real na sua totalidade como cada um dos seus fragmentos são infinitos na medida em que é infinita a quantidade de suas correlações e das suas mutações no tempo”.
(p. 97)

É forçoso concluir do exposto que o conhecimento de um objeto cuja complexidade é infinita deve ser também infinito. Constitui ele um processo infinito: “o processo de acumulação de verdades parciais” (p. 97). Como processo infinito, o conhecimento cumula as verdades parciais que a humanidade estabelece nas diversas fases do seu desenvolvimento histórico. À medida que se vão alargando, limitando, superando essas verdades parciais, o conhecimento vai-se expandindo.


4. O lugar do discurso no social

Começo anunciando uma tese com base na qual edificarei as cadeias de pensamentos seguintes.

 O discurso existe na exterioridade do linguístico; existe no social e é marcado sócio-histórica e ideologicamente.

Situado no social, o discurso deixa ver posições divergentes porque, nesse domínio, coexistem muitos discursos. A interdiscursividade implica diferenças no que toca à inscrição ideológica dos sujeitos e grupos sociais em uma dada sociedade; por conseguinte, são inevitáveis os conflitos, as contradições, porquanto o sujeito, ao revelar-se, inscreve-se num espaço socioideológico e não em outros. O sujeito enuncia a partir do lugar dessa inscrição. De sua voz originam-se outros discursos, cuja existência situa-se na exterioridade da materialidade linguística dos enunciados produzidos.
Em Discurso e mudança social (2001), Norman Fairclough propõe que se considere o discurso, ao mesmo tempo, como um texto, um exemplo de prática social e um exemplo de prática discursiva. Vou definir essas três dimensões do discurso.
Como texto, o discurso é concebido como um fragmento de linguagem de extensão variável dotado de estrutura e significado, que cumpre uma função relevante num dado contexto sociocomunicativo.
Como prática discursiva, o discurso é uma atividade interacional entre, pelo menos, dois enunciadores e especifica processos de produção e interpretação textual.
Como prática social, o discurso é indissociável das circunstâncias institucionais e organizacionais do evento discurso. Essas circunstâncias moldam a natureza da prática discursiva, os modos como se dão as relações sociais e posicionam os diferentes sujeitos sociais.
Os discursos não apenas refletem as entidades e as relações sociais, mas, principalmente, as constroem. Essa ideia de construção das relações sociais pelo discurso é de suma importância para a compreensão do modo como o discurso se conecta com o social. Vou-me deter na noção de discurso como prática social, já que é como prática social que o discurso se caracteriza como o modo de ação, uma forma pela qual e na qual os indivíduos agem sobre o mundo e sobre os outros.
O discurso como prática social é, portanto, uma atividade interacional de produção de significados. É também um modo de representação da realidade. Como prática social, o discurso precisa ser visto em sua relação dialética com a estrutura social. A estrutura social é condição e efeito da prática social (Fairclough, p. 91).
O discurso é moldado e limitado pela estrutura social, ou seja, pelas classes sociais, pelas relações sociais diversas, gerais ou específicas em instituições particulares, como no direito, na educação, na religião; mas também por normas e convenções, quer de natureza discursiva, quer de natureza não-discursiva.
Se, do exposto, se depreende que as práticas discursivas variam estruturalmente segundo as condições sociais ou o quadro institucional em que são produzidos, é preciso reter a ideia de que o discurso é socialmente constitutivo. Ele contribui, portanto, para a constituição de todas as dimensões da estrutura social, a qual o molda direta ou indiretamente e o restringe. O discurso é uma prática; como tal, não se limita a representar o mundo. O discurso constrói a significação do mundo, ou melhor, constitui o mundo como significado. O mundo discursivizado é mundo significado.
Convém assinalar três aspectos básicos na compreensão de discurso como prática social:

1) o discurso contribui para a construção de identidades sociais e posições de sujeito para sujeitos sociais e tipos de “eu”;

2) O discurso constrói as relações sociais;

3) O discurso contribui para a construção de sistemas de conhecimento e de crenças.

Consoante Fairclough (p. 92), é indispensável que a relação entre discurso e estrutura social seja considerada dialeticamente, a fim de evitar que se faça recair indevidamente a ênfase em um dos domínios apenas. Se a ênfase recai sobre o discurso, tender-se-á a vê-lo apenas como reflexo de uma realidade social mais profunda; se, por outro lado, ela incide sobre a estrutura social, ver-se-á o discurso, de modo idealizado, como fonte do social.
O cerne da visão dialética sobre a relação entre discurso e estrutura social consiste em ver que a constituição discursiva da sociedade não resulta de um jogo livre de ideias que habitam a cabeça das pessoas, mas de uma prática social que se enraíza profundamente em estruturas sociais materiais concretas.
Fairclough ilustra essa compreensão com a relação entre pais e filhos. Essa relação se dá na família e a determinação das posições de “mãe”, “pai” e “filho”, que são socialmente disponíveis, a inserção dos indivíduos reais nessas posições, a constituição da família e do lar são construídos parcialmente no discurso. Essa construção é o resultado de processos complexos cumulativos de conversa e escrita.
Não se trata de pensar que a família seja uma entidade ideal, que brota da cabeça das pessoas (p. 93); isso porque, em primeiro lugar, as pessoas se confrontam com a família como instituição real, que se lhes afigura como ‘dada’. Essa instituição se compõe de práticas concretas, relações e identidades preexistentes, as quais foram constituídas no discurso, mas reificadas em instituições e outras práticas. Em segundo lugar, os efeitos constitutivos do discurso se articulam com outras práticas, como a distribuição das tarefas domésticas, o vestuário, os aspectos afetivos do comportamento dos membros da família. Em terceiro lugar, a constituição operada pelo discurso encontra restrições na determinação dialética do discurso realizada pelas estruturas sociais, bem como nas relações de lutas de poder particulares.

4.1. As dimensões da prática social e sua relação com o discurso

A prática social se organiza nas dimensões econômica, política, cultural e ideológica. O discurso, naturalmente, pode estar envolvido em todas elas, sem que se possa reduzi-las a ele.
O discurso como prática política estabelece, conserva e transforma as relações de poder e as comunidades entre as quais se estabelecem relações de poder (p. 94). O discurso como prática ideológica constitui, apaga, mantém e transforma os significados do mundo, apoiando-se em posições diversas nas relações de poder. A prática política e a prática ideológica estão articuladas necessariamente, já que “a ideologia são os significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder” (p.94).
É preciso acrescentar primeiramente que a prática política é superior, enquanto dimensão de lutas pelo poder. Em segundo lugar, o discurso não é tão-só o lugar da luta de poder; é também um lugar de delimitação da luta de poder. Assim, a prática discursiva se serve de convenções que mascaram as relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções. As formas como as relações de poder, as ideologias particulares e as convenções se articulam são alvo de luta.
Finalmente, vale dizer que a prática social, política, ideológica, etc. é uma dimensão do evento discursivo, tal como o é o texto.


4.2. Discurso e poder: um ponto de encontro

No seu Discurso e poder, o linguista holandês Teun A. van Dijk define o poder social como “controle de um grupo sobre outros grupos e seus membros” (p. 17). Quando esse controle se exerce sobre as ações comunicativas dos outros (sobre seus discursos, portanto), pode-se falar em controle sobre o discurso dos outros. Esse controle é uma das formas óbvias pelas quais o poder e o discurso se relacionam.

“(...) as pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre o que ou como elas querem, mas são parcial ou totalmente controladas pelos outros poderosos, tais como o Estado, a policia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da liberdade de escrita e da fala (tipicamente crítica)”.
(p. 18)


Pode suceder também que as pessoas tenham de falar ou escrever segundo os modos que lhe são prescritos. O controle é extensivo não só ao discurso como prática social, mas também às mentes daqueles que são submetidos ao controle, ou seja, aos seus conhecimentos, opiniões, atitudes, crenças, ideologias, bem como às outras formas de representações pessoais e sociais. Geralmente, esse controle da mente é indireto, embora possa ser intencional, mas apenas provável consequência do discurso.
Na medida em que as ações das pessoas são influenciadas por suas atitudes, conhecimento, ideologias, crenças, valores, normas, segue-se daí que o controle da mente redunda em controle indireto da ação. Quando a ação submetida ao controle é ação discursiva, o discurso poderoso pode, indiretamente, influenciar outros discursos que sejam compatíveis com o interesse daqueles que detêm o poder. Como observa Dijk, muito perspicazmente, “não há necessidade de coerção se se pode persuadir, seduzir, doutrinar ou manipular as pessoas” (p. 23).

5. Uma contextualização da história cristã

O tema deste texto é o antijudaísmo cristão, que teve origem na época de Costantino e que perdurou pelos séculos culminando no terror antissemita dos nazistas no século XX – o que não é o mesmo que assumir haver uma continuidade entre as duas formas de antissemitismo. Meu objetivo é patentear de que modo a prática discursiva cristã, nos quatro primeiros séculos da era cristã, contribuiu significativamente para transformar as relações entre judeus e cristãos e para posicionar os sujeitos sociais envolvidos na peleja. Para a realização desse intento, precisarei passar em revista o desenvolvimento do cristianismo nesses quatro primeiros séculos (I ao IV d.C.).
Desde já, a importância de Costantino deve ser sublinhada. O cristianismo, no seu incessante esforço por consolidar-se como religião hegemônica, deveu muito ao poder político de Constantino, convertido sinceramente ao cristianismo em 312 d.C. Sua pretensão sempre foi, desde sua vitória sobre o perseguidor Licínio, unificar todos os seus povos fazendo-os aderir à mesma concepção de Deus e livrá-los das perseguições. Constantino era declaradamente um “servidor de Deus”. Coube a ele dar forma ao cristianismo do mundo. Seus sucessores reproduziram o tom profético que dava à sua linguagem um poder de fé-verdadeira e sincera. A cristianização do mundo antigo foi uma revolução cujo impulso inicial devemos a um indivíduo, chamado Constantino, cujos objetivos foram exclusivamente religiosos (Veyne, 2011, p. 196). Dois fatores, segundo Veyne, foram fundamentais para que o cristianismo começasse a se impor ao mundo todo: o convertido Constantino, que favoreceu e sustentou o desenvolvimento da religião cristã; e o fato de essa religião estruturar-se numa Igreja forte.
Nos primeiros séculos do cristianismo, as instituições cristãs foram responsáveis por transmitir a tradição cristã estruturada com base em certos arranjos mentais presentes na época. A forma e o controle dessas estruturas mentais provinham não apenas da tradição cristã oral, mas também de filosofias e crenças religiosas de diversos povos, os quais contribuíram para sistematizar e oficializar um corpo de crenças cristãs.
Durante algum tempo, o que se sabia sobre a figura de Jesus de Nazaré e seus seguidores foi transmitido pela tradição oral. Posteriormente, escribas codificaram-na de modo a compor um conjunto de crenças consideradas oficiais por uma elite eclesial de pensadores masculinos que detinha o poder para tanto. Por isso, é impossível dizer, certamente, quem foi Jesus de Nazaré, bem como é difícil determinar a experiência pessoal e coletiva dos que se identificaram como cristãos após sua morte.
Restaram interpretações e interpretações de dados pretensamente históricos que não são senão interpretações. Há, evidentemente, nessas interpretações, algumas informações históricas de monta, como, por exemplo o surgimento de movimentos sociais e religiosos que se rebelaram contra a política e a religião do dominador romano (paganismo), por volta do século I d.C.
No século I d.C., era grande a opressão dos pobres, nas cidades e no campo, o que tornou mais acentuados os conflitos com o poder dominante. Tais condições deram origem a uma grande diversidade de movimentos de reivindicação.
O cristianismo, então chamado Movimento do Caminho e Movimento de Jesus, estava entre os movimentos de origem judaica que buscavam reanimar a esperança do povo. Os cristãos afirmavam que os famintos não tardariam em ser saciados e que os injustiçados encontrariam a justiça no Reino de Deus. Eles insistiam, ademais, na importância dos marginalizados deste mundo e procuravam assisti-los: os cegos e os leprosos eram curados; os famintos, saciados; os estrangeiros, acolhidos.
As críticas cristãs ao judaísmo do Templo e das sinagogas da época provocaram insatisfação e revolta nos romanos e nos judeus ortodoxos. Os cristãos eram considerados hereges, e o cristianismo, uma espécie de heresia no interior do judaísmo. À medida que avançava o tempo, a coexistência entre cristãos e judeus no judaísmo se tornava intolerável.
Jesus foi acusado pelas autoridades judaicas de agir de modo que só Deus poderia agir, como, por exemplo, perdoando os pecados. Jesus teria infringido as leis judaicas do sábado, foi culpado de se reunir aos impuros e de comer com os ladrões. Por isso, foi crucificado e morreu.
Alguns séculos se passaram, e a Igreja cristã, cuja diversidade, então, era enorme, enfatizou menos o nascimento histórico do cristianismo e as assistências dispensadas aos oprimidos e aos injustiçados. Enfatizou menos a crucificação e a morte injusta do líder Jesus de Nazaré por decorrência de uma conspiração político-religiosa e insistiu com vigor na obediência à vontade de Deus ou ao desígnio divino, que é eterno.
Assim, sobre a memória histórica revolucionária do movimento de Jesus foi lançado um véu que permitiu, ao longo dos séculos, o desenvolvimento da crença de que o cristianismo foi de fato, a própria intervenção espiritual de Deus na história humana. Essa intervenção estava ligada à tradição judaica codificada no Antigo Testamento, conforme veremos, segundo a qual Deus enviaria um Messias que salvaria seu povo então disperso e subjugado.
Essa mesma tradição sustentava que o Deus de Israel havia se revelado de muitas maneiras a seu povo através de acontecimentos especiais, pelas figuras de patriarcas, de profetas e profetisas e de reis cuja função era orientar e conduzir o povo ao longo da história. Essa traição afirmava também que a revelação de Deus era a expressão de seu amor pela humanidade, a qual, em virtude do pecado, havia se desviado dos justos caminhos e rompido a Aliança com ele.
Entre os primeiros cristãos, era tenaz a crença na iminência do fim dos tempos. Eles acreditavam que Deus expressou-se por meio de seu Filho, Jesus Cristo, enviando-o ao mundo para redimir o homem de seus pecados e, assim, restaurar a Aliança.
Com a vinda à Terra do Filho Jesus, nascido da Virgem Maria, Deus Pai encerrou o que tinha a dizer à humanidade. Para os cristãos, havia se completado a suprema revelação de Deus para salvar a humanidade de seus crimes e pecados. Por isso, a Igreja dos primeiros séculos estabeleceu como dogma a crença de que Jesus era o único e verdadeiro messias, quem revelou sua íntima relação com Deus Pai, criador de todas as coisas.
O Concílio de Nicéia, em 325 d.C., seguido do de Constantinopla, em 381 d.C., proclamou que o Filho Único de Deus é consubstancial ao Pai, isto é, tem a mesma substância do Pai, retomando a expressão “O Verbo se fez carne”, que figura no Evangelho atribuído a João. A Igreja primitiva denominou “Encarnação” o “fato” de o Filho de Deus ter assumido a natureza humana para habitar entre os homens e os salvar.
Consagrou-se um traço distintivo da fé cristã no momento em que a Igreja afirmou que Jesus era, ao mesmo tempo, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. O cristianismo nasceu, pois, como uma religião, ao mesmo tempo, de base humana e divina. Essa religião era entendida e explicada como a revelação definitiva de Deus ao mundo, cuja finalidade foi a salvação e a integração de todas as criaturas na unidade trina de Deus (um único Deus mas três pessoas). Donde a afirmação segundo a qual tudo provém da Trindade e retorna a ela. Essa elaboração teológica extravagante permitiu que uma teologia racional se desenvolvesse para explicar a figura de Jesus, a missão da Igreja e a finalidade da vida humana e do mundo.
Não custa lembrar que, embora muitas das afirmações feitas, com entonações diversas, tenham sido acolhidas pelo conjunto das igrejas cristãs, não deixaram de ser objeto de incessantes disputas e contestações ao longo dos séculos – contestações oriundas, nos primeiros séculos da Igreja, das próprias comunidades cristãs (arianos, nestorianos, monofisistas). Direi, com brevidade, apenas para destacar um ponto divergente dessas comunidades em relação ao cristianismo proto-ortodoxo, que os arianos negavam que o Filho fosse completamente divino; para eles, havia sido criado por Deus Pai, o que o tornaria inferior a Deus. Os nestorianos, além de afirmarem que Jesus reunia em si duas pessoas – o Verbo e o homem -, de tal modo, no entanto, que elas não se distinguiam, negavam que Maria fosse a mãe de Deus. Finalmente, os monofisistas acreditavam que Jesus encerra apenas uma natureza: a divina. Escusa dizer que essas divergências eram motivos de acirradas contendas e impasses, embora pareçam, de fundo, desgraçadamente ridículas. Essas divergências também tinham outra origem: na relutância daqueles que não aceitavam a superioridade alegada pelo cristianismo, que se apresentava como a palavra mais elevada e derradeira de Deus destinada à humanidade. Essa superioridade levou o cristianismo a ser cúmplice dos poderes imperiais e instrumento para a dominação política e religiosa.

5.1. A historicidade do Cristianismo

O cristianismo nasceu como uma seita herética no seio do judaísmo nos tempos da dominação romana. Tornou-se uma religião autônoma depois de alguns conflitos. Foi perseguido sob as ordens dos imperadores romanos, e seus mártires foram lançados como comida aos leões.
A igreja primitiva não gozava de direitos na cidade do Império, o que levava os cristãos a se reunir à surdina para celebrar a memória de Jesus em cemitérios subterrâneos, chamados de catacumbas.
A população marginalizada, especialmente, sentia-se, cada vez mais, atraída pela memória de Jesus; o número de discípulos não cessava de crescer (entre os discípulos, havia também mulheres). Os adeptos – eis um fato importante – se organizaram em comunidades, para seguir os ensinamentos daquele que era chamado o Filho Único do Deus Único.
A formação das comunidades cristãs deveu-se, em parte, ao descontentamento geral dos pobres que, não bastasse fossem explorados, tinham de prestar culto ao Império Romano. O culto a Jesus, que era um dos seus, chamá-lo Deus significava rejeitar o culto a César. Além disso, a reunião do culto a Jesus Cristo tornava possível fomentar uma esperança diferente para o presente, porquanto se acreditava que Jesus representava uma nova era destinada à satisfação e à assistência aos excluídos e aos famintos.
Foi, no entanto, apenas no século IV, quando reconhecido pelo poder do Império Romano, que o cristianismo pôde manifestar-se publicamente. Essa liberdade, no entanto, tinha um preço: teve de ajustar-se aos códigos jurídicos e precisou assumir uma atitude contrária às aspirações do movimento em sua forma original: passou a pregar a submissão aos poderes oficiais. O cristianismo tornou-se, assim, uma religião comprometida com a ordem institucionalizada e subserviente aos poderes constituídos. Por outro lado, tornara-se também uma religião mais poderosa, constituída de lógica própria, afirmando-se na forma de uma dogmática combatente e perseverante na missão de eliminar as heresias, que se multiplicavam nos primeiros séculos. Lembro que o herege é aquele que diverge da visão dogmática oficial. O termo latino haeresis significa “escolha” ou “opção”. Uma interpretação secular não vê o herege senão como alguém que tem crenças simplesmente diferentes das do sistema doutrinário instituído.
Necessário é assinalar alguns fatos. O primeiro diz respeito à aliança subserviente do cristianismo com o poder de Roma. Deve-se notar que desse acontecimento dependia o próprio estabelecimento do cristianismo como uma religião poderosa. A lógica, aqui, é clara: sirva ao poder instituído e se beneficie das concessões do poder. O segundo toca ao esforço mobilizado pelo cristianismo para se defender contra as heresias. Desse esforço resultou a elaboração dos dogmas cristãos pelas igrejas do Oriente e do Ocidente. Em outras palavras, a dogmática cristã se institui num longo esforço por silenciar outros credos concorrentes. Dogmas são uma explicação elaborada e decretada pela Igreja como verdade que deve ser aceita pelos fiéis.
A função dos dogmas era também construir uma identidade doutrinária de que todos os cristãos partilhassem, ainda que tenha reproduzido um sistema de policiamento que culminaria, mais tarde, na Inquisição. A despeito disso – o que é surpreendentemente paradoxal nessa religião -, o cristianismo se tornou uma religião para o povo.
O povo passara a organizar sua vida social por meio das festividades cristãs e desencadeou revoluções de cunho social inspiradas em ideais de liberdade enraizados na tradição fundadora. Esses movimentos sociais insurgentes ocorreram em diferentes épocas e lugares do mundo.
A esta altura, não se poderia deixar ao abrigo da duvida o fato de que a historicidade do cristianismo só se constrói por uma via única: a das instituições religiosas do poder. Somente a tradição do cristianismo oficial teve condições de ser assimilada, documentada e difundida. Tudo o que o cristianismo foi fora dessa tradição institucional é quase desconhecido, já que os registros históricos são escassos.
O cristianismo – vale dizer – pode ser compreendido como um movimento cujo desenvolvimento resultou de acontecimentos sobre a vida de Jesus de Nazaré, cujo valor de verdade é dependente de interpretações calcadas sobre a fé de seus seguidores. Por isso, é difícil saber, com segurança, o que é verdade a respeito da vida de Jesus. Não há dúvidas, por outro lado, de que a partir do homem Jesus, proclamado divino, muitas mulheres e homens construíram um significado para as suas vidas, conseguiram expressar seus desejos mais profundos e combater a opressão e a injustiça. E, certamente, malgrado as inumeráveis contradições, conseguiram afirmar sua identidade única em face de muitas outras.


5.2. Um poder avesso à diversidade

É certo que Jesus não pretendia fundar uma nova religião. Ele era judeu, vivia como um típico judeu de seu tempo, ainda que discordasse de certos preceitos e práticas de uma elite espiritual no interior do judaísmo. Foram, portanto, os seguidores do Nazareno que criaram o cristianismo. Em virtude disso, a vitalidade do movimento cristão e sua força em muitos grupos culturais levavam à elaboração de muitas reinterpretações da vida de Jesus, todas em consonância com modos de compreender e pensar o mundo moldados em seu próprio contexto. Isso significava uma ameaça à unidade institucional da Igreja.
O discurso, novamente, estava a serviço da construção da hegemonia, cuja instabilidade ou perda jamais deixara de preocupar a Igreja. Esta afirmou que suas elaborações dogmáticas contavam com a assistência do Espírito Santo. Pretendia, assim, preservar a verdade revelada pelas interpretações oficiais.
A presença do Espírito Santo entre nós assegurava, na visão da Igreja, o valor de verdade de seus ensinamentos, que eram eles mesmos portadores da verdade sobre o ser humano e sobre Jesus Cristo. Graças à proclamação dessa verdade, a Igreja podia doutrinar os fiéis e provocar-lhes a adesão incondicional.
Jesus morreu judeu. Fora perseguido pelo judaísmo oficial. Depois de sua morte, seus ensinamentos se disseminaram numa tradição oral até os anos 70 d.C, quando surgiram os primeiros escritos cristãos.
As comunidades cristãs, ao longo do tempo, se multiplicaram em diferentes regiões do Império. Com o avanço do tempo, também diversas interpretações da vida e da morte de Jesus e de sua identidade foram surgindo. Essas interpretações alteraram a imagem de Jesus, que passou de um revoltado e crítico profeta apocalíptico judeu, para o Cristo (o Messias), Filho Único de Deus, a segunda pessoa da Trindade, que nasceu da Virgem Maria, Mãe de Deus.
Sua prática de cura de enfermos, a partilha do pão, seu comportamento crítico da lei, sua amizade com pessoas de má reputação, tudo isso foi sendo relegado a segundo plano. Pouco a pouco, se ia delineando uma personalidade dotada de um poder supranatural, a ela se lhe atribuía uma natureza divina. Jesus era, pois, considerado um ser pré-existente, de consubstancia com Deus, que se assenta no trono celeste para de lá julgar os vivos e os mortos.
A filosofia grega, nesse momento, exerceu uma influência decisiva na formação e consolidação da teologia cristã. Essa filosofia lhe enxertou uma estrutura lógica por meio da qual foi possível situar a realidade de Deus num mundo à parte – o mundo das essências eternas sobre o qual escreveu Platão, mundo que se opunha ao mundo material, precário e efêmero.
Essa versão do cristianismo – a versão do neoplatonismo cristão – tornou-se oficial na Igreja, ainda que, ao longo da história, tenham ocorrido tentativas de voltar à simplicidade dos primeiros tempos da vida de Jesus.
Os dois mil anos de cristianismo conheceram sempre movimentos que tendiam para uma ou outra posição sobre qual deveria ser a versão definitiva do cristianismo. Mas as igrejas cristãs mantiveram a versão platônica como a verdade absoluta revelada por Deus, que deveria ser mantida longe do abrigo de dúvidas.
A versão teológica cristã calcada sobre a filosofia platônica, de que Santo Agostinho foi o eminente sistematizador, permanece ainda hoje como um pilar que dá sustentação ao complexo edifício doutrinário ao abrigo do qual se anima a alma e a paixão dos fiéis defensores. Desse edifício, se serviu o cristianismo para impor suas doutrinas como verdades, seus princípios de controle – pelo discurso – sobre a vida pessoal e social dos fiéis. Pelos discursos gerados nas esferas de poder eclesiástico, esses princípios são representados como diretamente emanados de Deus (embora não sejam mais do que ficções produzidas pelos próprios bispos). O cristianismo crê possuir uma espécie de procuração especial para tudo atinente às relações humanas e à fé cristã.
O rótulo cristianismo recobre a doutrina oficial cuja história foi fartamente documentada e que, por isso, conhecemos bem. Esse modo singular de se referir ao movimento cristão acabou por apagar a grande diversidade de cristianismos primitivos que sabemos terem existido. Ainda hoje, se percebe um pouco dessa diversidade, na qual cada cristianismo acentua um aspecto do que considera mais importante nas fontes bíblicas cristãs. Hoje, como outrora, a história cristã abriga muitos conflitos. Novas interpretações surgem ainda hoje, o que mostra o vigor desse fenômeno religioso, cultural, político e social, misturado às mais diferentes histórias e acontecimentos. Mas é bom ter em conta que essas “novas interpretações” não devem ser pensadas como avanços, já que o conservadorismo, em matéria de fé, é condição de possibilidade de subsistência.

5.3. O poder de um imperador

Com a conversão do então imperador Constantino, em 312 d.C., ao cristianismo, os cristãos, pelo menos até a sua morte, puderam prosperar em condições políticas bastante favoráveis.
O antissemitismo surge no período em que governava Constantino. Os judeus, tanto quanto os pagãos, eram estigmatizados. Um sucessor de Constantino perpetuará o estigma. Mas Constantino não reagiu aos judeus com vigor; manteve a legislação pagã que garantia legitimidade à religião judaica. O castigo, severo, só se aplicava nos casos em que um judeu maltratasse um irmão convertido ao cristianismo. A lei, todavia, não se aplicava aos casos em que um judeu se convertesse a uma terceira religião.
Uma triste, mas não menos surpreendente ironia, se depreende da observação de que, mesmo os judeus crendo no Deus exclusivo que não era senão o Deus dos cristãos, e mesmo sendo o livro judaico santo também para os cristãos, e mesmo o líder dos cristãos ter sido um judeu praticante do judaísmo em sua passagem pela Terra, os judeus eram considerados verdadeiros inimigos, porque não reconheciam Jesus como o Cristo (o Ungido).
Se os discursos cristãos posicionavam os pagãos como os “outros”, reservavam aos judeus um lugar mais desprezível. Os judeus eram considerados falsos irmãos.
A cristianização que se estendia por todo o Império Romano levou os judeus a se isolarem. Sua religião ia se tornando cada vez mais solipista (reclusa, solitária). À medida que o cristianismo tornava-se religião do Estado, o judaísmo ia voltando a ser uma religião nacional do povo judeu, permanecendo assim até os nossos dias. Prova a dificuldade de um não-judeu converter-se ao judaísmo.

5.6. O antijudaísmo cristão

Ainda hoje, persiste entre os cristãos conservadores um estorvado entendimento sobre o porquê de os judeus não aceitarem a alegação de que Jesus é o Messias (Ehrman, 2013, p. 147). Esses cristãos se apoiam em passagens do Antigo Testamento que, segundo creem,  dão testemunho profético da vinda de um messias. Para os cristãos, Jesus fez e experienciou tudo que fora registrado. Por exemplo, em Isaías 7, 14, se diz que o messias nasceria de uma virgem:

14. Portanto, o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel.

Em Miquéias 5, 2, diz-se que ele nasceria em Belém:

2. E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre os milhares de Judá, de ti me sairá o que governará em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade.

Os registros poderiam ser multiplicados. Basta-me, no entanto, fazer ver que os cristãos pensavam que as passagens bíblicas referiam-se ao messias que eles chamaram Jesus. Contra os cristãos, os judeus alegavam que as passagens das Escrituras hebraicas não se referiam a um futuro messias e nem expressavam qualquer previsão. Nas passagens em que, supostamente, haveria uma previsão sobre a morte e a ressurreição de Jesus, a palavra “messias”, por exemplo, nunca aparece, o que não deixa de causar perplexidade nos cristãos. Basta, contudo, consultar Isaías 53 para atestar-lhe a ausência
Por que razão, então, a maioria dos judeus rejeitava o messianismo de Jesus? A razão era que Jesus não representava, de forma alguma, as expectativas acalentadas pelos judeus acerca da identidade de um messias. Muitos judeus do mundo antigo não aguardavam ansiosamente a chegada de um salvador, embora houvesse judeus extremamente religiosos, na época de Jesus, que nutriam a crença de que Deus enviaria um messias para livrá-los de graves problemas. Todos esses grupos assentaram suas expectativas na Bíblia hebraica, o que não impedia que eles construíssem uma imagem do salvador.
Em hebraico, “messias” se diz “o Ungido”. Em suas origens, a Bíblia hebraica abrigava essa palavra para referir-se ao rei de Israel, tal como o rei Saulo, Davi ou Salomão. O rei era, de fato, ungido com óleo em sua cabeça durante a cerimônia de posse. Esse ato sinalizava que o benefício especial de Deus recaía sobre ele (Salomão 2).
Algum tempo depois, não havia mais rei em Israel, de modo que alguns judeus acreditavam que Deus enviaria um futuro rei, que seria um ungido como o grande rei Davi, que liderou os Exércitos de Israel contra os seus inimigos e erigiu Israel novamente em um Estado soberano. Esse futuro rei, por conseguinte, foi o messias, ou seja, um ser humano dotado de grande poder, um guerreiro e governante grandioso do povo de Deus.
Por outro lado, havia judeus que acreditavam que essa figura messiânica seria dotada de grande poder sobrenatural. Eles a criam um ser celestial, enviado à Terra para julgar a humanidade e enfrentar o inimigo com uma força descomunal, antes de estabelecer um reino de Deus, cujo governante seria eleito pelo próprio Deus.
Sem perder de vista a diversidade de opiniões, cabe lembrar que havia também judeus que estavam especialmente preocupados com a “religião” de Israel. Nesse caso, o domínio de suas aspirações políticas ficava embaçado pela crença em que o futuro governante do povo seria um sacerdote poderoso, que teria em mira fortalecer o povo de Israel, ensinado a ele a correta interpretação da lei judaica. O seu governo exigiria do povo de Deus a observância da lei de Deus codificado nas Escrituras.
Tendo em vista os objetivos perseguidos por esta exposição, chamo a atenção para o seguinte fato. Essas diferentes visões judaicas sobre como seria esse messias e sobre quais seriam as suas atribuições devem ser pensadas como vozes ou posições inscritas no discurso que acenam para diferentes posições ideológicas. Essa diversidade de vozes é apagada por uma visão hegemônica – a do cristianismo oficial – discursivamente estruturada. Vê-se claramente a dimensão ideológica do discurso: o discurso cristão ortodoxo, apagando as vozes judaicas, cujas interpretações eram divergentes, estabelece uma “verdade”, a qual tem efeito sobre as práticas sociais entre os cristãos uns com os outros e entre estes com os judeus.
Tratemos de elucidar de que modo o discurso religioso, como prática social, contribui para constituir relações conflituosas, posicionando os sujeitos sociais em lugares socioideológicos antagônicos. O que fizeram os seguidores de Jesus? Eles alegaram – pela produção, naturalmente, de discursos – que Jesus era o messias. E o fizeram com base em pressupostos afinados com o interesse, em última instância, de tornar o cristianismo a única religião que expressa a revelação definitiva de Deus. Suas interpretações colidiam com as interpretações feitas pelos Judeus, isto é, os sentidos cristãos não eram os sentidos produzidos pelos Judeus para suas próprias Escrituras. De imediato, trata-se de uma luta pelo controle do sentido “verdadeiro”, “correto”. Vimos que a forma mais evidente pela qual o discurso e o poder se relaciona é pelo controle sobre o discurso dos outros (nesse caso, pelo sentido passível de ser produzido). Ora, a Palavra de Deus é unívoca e inequívoca, de modo que somente um sentido é possível descobrir.
Mas pensemos em quem era Jesus. Tratava-se de um pregador pouco conhecido na atrasada Galileia, que insurgiu-se contra as autoridades judaicas, o que atraiu sobre si humilhação pública e tortura. Seu fim é bem conhecido: foi preso à cruz como criminoso onde morreu. Esse retrato breve de Jesus explica por que a maioria dos judeus não poderia admitir que tal homem fosse o messias aguardado. Ao contrário dos cristãos, os judeus alegaram que sua Bíblia nunca afirmou que o messias viria duas vezes. Eles estavam certos de que Jesus não era o glorioso ungido por Deus.

5.6.1. Intermináveis conflitos

Nos primeiros quatro séculos da era cristã, os conflitos entre cristãos e judeus se tornaram mais intensos e árduos. Inicialmente, os judeus eram muito mais numerosos e podiam, sem esforço, superar os cristãos. Todavia, estes primavam pela perserverança com que discutiam e combatiam.
Eis o rosto da contenda: muitos judeus cristãos não entendiam como judeus não-cristãos não compreendiam o “fato” de que Jesus era o messias. As provas saltavam aos olhos!
A oposição foi-se acirrando, e os cristãos começaram a dizer que os judeus que rejeitavam Jesus como o messias eram tão responsáveis pela sua morte quanto as autoridades judaicas que delataram Jesus e pediram sua morte. Para os cristãos, rejeitar Jesus equivalia a matá-lo.
Ponderemos sobre o seguinte, a fim de que compreendamos o modo como o discurso se liga às relações sociais conflituosas.
O discurso cristão posicionava os judeus não-cristãos como inimigos de Jesus, ou mais assombrosamente, como assassinos de Jesus. Os judeus eram, para os primeiros cristãos, verdadeiros cristicidas.
As relações entre cristãos e judeus se modificaram sensivelmente, muito graças, embora não só, aos modos como elas se constituíam, ao longo do tempo, pelos inumeráveis discursos produzidos com o objetivo de estabelecer e garantir a hegemonia da nova fé.
No século II, Justiniano produziu um escrito para debater com um rabino judeu, apontando-lhe os erros que a interpretação dele das próprias Escrituras revelava. No afã de estabelecer a verdade, nessa interminável polêmica teológico-política com os judeus, os cristãos não hesitavam em falsificar os próprios escritos produzidos. Neles, insistiam em que Jesus era um ser divino, e não um mero mortal, como pensavam as autoridades romanas.
Nesses escritos, tanto os romanos quanto o povo judeu, com seus líderes mais resistentes, eram posicionados como responsáveis pela morte de Jesus. Lembro que os cristãos não só insistiam em que os judeus tinham rejeitado o próprio messias Jesus e, consequentemente, repudiado o próprio Deus, mas também eram tenazes em observar que os judeus também interpretavam mal suas próprias escrituras.
Uma carta supostamente escrita por Barnabé, companheiro do apóstolo Paulo, afirma que os judeus sempre se equivocaram na interpretação da lei de Moisés. Eles eram acusados de interpretá-la literalmente, quando, na verdade, tinham de interpretá-la alegoricamente, o que permitiu aos cristãos reivindicar a autoridade sobre o Antigo Testamento.

5.6.2 O Evangelho de Nicodemos

Para encerrar, considero um exemplo de escrito cristão manifestamente antijudaico, que cristãos antigos incluíram no cânone do Novo Testamento.
Surgido nos fins do século IV d.C., o evangelho supostamente escrito por Nicodemos (sobre sua verdadeira autoria direi algumas palavras adiante) é um longo relato do julgamento, morte e ressurreição de Jesus.
Nicodemos fora um seguidor “secreto” de Jesus (João 3, 1-15). Seu livro se tornou bastante popular e exerceu grande influência por toda a Idade Média, sendo conhecido do Ocidente latino e, enfim, traduzido para quase todas as línguas da Europa Ocidental, por onde se disseminou.
Entanto, é provável que o relato tenha sido redigido em algum momento do século IV – portanto trezentos anos depois da morte de Nicodemos (considerando-se a hipótese de se tratar de um indivíduo real). Estudiosos há que creem ter sido esse livro calcado sobre histórias reunidas numa tradição oral transmitida dois séculos antes de assumir a forma escrita.
O evangelho inicia com a indicação de que Nicodemos era o verdadeiro autor da narrativa em hebraico, muito embora a narrativa pareça ter sido escrita em grego originalmente (Ehrman, 2013, p. 152). A alusão à forma original hebraica do manuscrito dava autenticidade ao documento. Isso significa que se tratava, segundo quem quer que tenha sido o autor, de um escrito muito antigo e, portanto, pretensamente baseado em um testemunho ocular.
Ehrman nota que “não há dúvida de que o relato não tem nada de histórico, já que se baseia em lendas posteriores sobre as últimas horas de Jesus, sua ressurreição e morte” (p. 152). A narrativa foi produzida com um objetivo básico: inocentar Pilatos da execução de Jesus; certamente também com o objetivo determinar os culpados: os líderes judeus e o povo judeu, os quais, porque rejeitaram Jesus, acabariam por rejeitar o próprio Deus.
Já no início da narrativa, a dimensão divina de Jesus é apresentada “em uma de suas cenas mais interessantes e divertidas” (ib.id.). Na cena do julgamento, antes, porém, de ele ser realizado, as autoridades judaicas conversam com Pilatos, tentando convencê-lo da culpa de Jesus por seus crimes. Eles queriam sua condenação.
Pilatos ordenou que seu mensageiro conduzisse Jesus até o tribunal. Dentro da sala, estavam dois escravos portando “estandartes” com a imagem de César “divino”. Assim que Jesus entrou no salão, os porta-estandartes se curvaram diante dele, de sorte que era a imagem de César que parecia lhe prestar deferência.
Qual não foi a fúria das autoridades judaicas, que trataram de lançar injúrias contra os porta-estandartes. Estes se defendiam dizendo que não fizeram aquilo: foram as imagens de César que se curvaram por livre vontade para reverenciar Jesus.
Pilatos, então, tomou uma resolução. Solicitou aos líderes judeus que escolhessem alguns dos seus, que ostentassem grande força física para segurar os estandartes. Ordenou Pilatos que retirassem Jesus da sala e que entrassem com ele outra vez. Assim fizeram os líderes judeus, escolhendo doze judeus com notável protuberância muscular, que se dividiram na execução da tarefa. Jesus retorna ao salão e, novamente, os estandartes se curvaram perante ele.
A moral da história é clara. Pilatos tentou, inutilmente, salvar Jesus, mas as autoridades judaicas, irredutíveis, declaram-no um malfeitor que merecia a morte.
Muitas foram as vezes em que as autoridades judaicas pleiteavam com Pilatos a condenação de Jesus; e outras tantas foram as vezes em que Pilatos buscava inocentá-lo.
Está claro que o discurso do evangelho atribuído a Nicodemos posiciona os judeus como responsáveis pela condenação e morte de Jesus, ao mesmo tempo em que confere a Pilatos o lugar de inocente. Nesse jogo discursivo, em que os sujeitos sociais assumem lugares diferentes, opostos, em que se estabelece um antagonismo entre culpados e inocentes, em que as responsabilidades pelos acontecimentos trocam de agentes, em que os agentes sociais passam a ter outra participação no curso da história, pelo menos à luz de uma interpretação interessada, vai-se construindo o mosaico da história, repleto de contradições ou, - para usar uma metáfora mais condizente com o devir histórico-, vai-se construindo o movimento histórico, que torna a busca por determinar a verdade uma pesquisa acurada de decifração, de identificação das estratégias com que ela foi mascarada, encoberta, transformada, negociada.
O antijudaísmo já estava presente, alguns séculos anteriores, no evangelho atribuído a Mateus.
A narrativa termina mostrando ser Jesus divino. Ele ressurge dentre os mortos e os próprios líderes judeus se veem em face de uma prova inconteste da ressurreição pelo testemunho de pessoas confiáveis.
Uma vez considerado o discurso como prática discursiva, entre outras e, como tal, responsável também pela constituição da história, é forçoso concluir que, estando claro que a literatura cristã se produziu com inúmeros escritos falsificados, vários dos quais entraram a fazer parte do cânone do Novo Testamento, segue-se que a própria história cristã é uma arena onde as lutas pelo poder, condição de apropriação da verdade, encobrem ou dificultam a contemplação da verdade por cujo valor seus protagonistas permaneceram lutando.
O evangelho atribuído a Nicodemos é um relato falsificado, escrito há cerca de trezentos anos depois dos acontecimentos que narra. Em meados do século IV, os cristãos aliaram-se aos romanos. É de esperar que os romanos fossem inocentados: o benefício do poder produz sua própria verdade.
Na Europa Ocidental da Idade Média, esse evangelho gozava de grande prestigio – nessa época, o ódio aos judeus era permanente, tornando paradoxal e perturbador o significado de ser cristão.














quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

"Quem nunca na vida foi absolutamente só não saberá o que é a necessidade da filosofia" (Sponville)

                             



                             A minha filosofia
                  primícias de uma arquitetura


A produção deste texto é motivada pela necessidade que senti de assentar os alicerces sobre os quais um pensamento filosófico que me seja próprio possa, a longo prazo, edificar-se. Pretendo, neste texto, tão-somente dar a conhecer a estrutura das fundações. Trata-se de dar bases sólidas, de estruturar uma forma de pensamento que tem sido, há muito, uma espécie de lente com a qual percebo e interpreto o mundo, o real, a existência. O percurso de minhas reflexões será traçado com o objetivo basilar de dar a conhecer a coerência não só entre o meu estar-em-relação-com-o-mundo e as formas como eu compreendo este mundo, que não me são acessíveis senão nessa relação, mas também entre formas de representação, entre posições que foram, ao longo do tempo, edificando uma plataforma filosófica que se apresenta em reação às representações sociais que dão forma à mentalidade predominante numa época. Trata-se de uma plataforma filosófica refratária ao conformismo, aos sistemas de crenças dogmáticos, às formas de pensar que não vão além do estabelecido e que, por isso, o reproduzem como um dado natural, inalterável, em face do qual não resta senão manter-se num estado de resignação intelectual.
Filosoficamente, percebo-me como um materialista. Não basta, contudo, afirmar-me como tal, sem demonstrar em que medida isso é uma verdade, pelo menos, para mim. Esforçar-me-ei por fazer-me compreender. Para tanto, é preciso que se compreenda que, uma vez se assuma uma posição ateísta em face do mundo, necessário é que se reconheça o compromisso dessa posição com uma posição materialista. Não quero sugerir que o materialismo sempre foi uma forma de ateísmo, ou que todo ateu deve, necessariamente, ser materialista. Em primeiro lugar, Epicuro, reconhecido materialista, não era propriamente ateu (lançarei, adiante, algum olhar sobre o materialismo de Epicuro). Por outro lado, um ateu pode ignorar, durante toda vida, as posições materialistas e, por isso, pode sequer cogitar de que elas lhe estejam ligadas às formas de pensar o mundo como pressupostos. No curso de minha tentativa de assentar os alicerces de meu próprio pensamento filosófico, também procurarei sinalizar a filiação entre as posições ateísta e materialista.
Para mim – já que se trata de alicerçar minha própria perspectiva filosófica, cujo desenvolvimento adequado dependerá ainda de mais alguns anos de estudo -, a assunção do ateísmo está intrinsecamente ligada a uma posição materialista que, neste texto, trato de desenvolver.
Começarei, pois, apresentando uma definição de materialismo, colhida da obra Dicionário Básico de Filosofia (2010), de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú. Pretendo, citando-a, tão-só situar o materialismo como problema de que me ocuparei doravante:

“Doutrina que reduz toda a realidade à matéria” (p. 181)


Ainda que a definição não nos esclareça muito sobre o que é o materialismo, ela nos permite inferir que o que chamaríamos de imaterial é rejeitado pelo materialismo. Assim, o materialismo nega a existência da alma ou da substância pensante cartesiana; nega também a realidade de um mundo espiritual ou divino, que existiria independentemente do mundo material. Aqui já se pode entrever sua relação com o ateísmo; mas ela se nos tornará mais clara ao longo do texto. No início da era moderna, o mecanicismo da física pode ser visto como uma variedade de materialismo, visto que busca explicar o real com base única e exclusivamente em mudanças sofridas quantitativamente pela matéria. O mecanicismo moderno sustenta que todos os fenômenos naturais devem ser explicados por alusão à matéria em movimento, entendendo-se por movimento toda modificação sofrida pelas coisas, que faz com que o mundo esteja num permanente devir.
Um dos problemas implicados no materialismo é a noção de matéria; mas deixarei para esclarecê-la numa seção mais adiante. Outro problema diz respeito à variedade de materialismos. O materialismo, nota Sponville (2001, p. 103) é uma tradição; por isso, não há apenas um materialismo, mas vários materialismos que, embora se sucedendo em intervalos de tempo extensos, revelam afinidades, solidariedades e pontos de contato.
Claro deve estar ao leitor que trato aqui do materialismo filosófico e não do materialismo na sua acepção trivial, como maneira de viver daqueles que valorizam apenas os prazeres físicos, os bens adquiridos com o dinheiro e o próprio dinheiro como signo de riqueza. Estando claro que trato do materialismo como doutrina filosófica, é urgente pensá-lo como um esforço crítico das ilusões idealistas, espirituais e religiosas. Os filósofos materialistas repensam o valor do corpo e dos seus prazeres. Se é verdade que eles também podem nutrir um ideal, não podem, contudo, se deixar iludir totalmente por ele. Para um materialista, o corpo comanda, enquanto a alma precisa ser criada.
O materialismo é uma filosofia que, elegendo como primeira a realidade do corpo, se desenvolve a partir dele. O materialismo pensa o mundo a partir do corpo (“tudo se faz no corpo como se não houvesse alma” (Sponville)). A noção de corpo aqui não se limita ao corpo humano, mas recobre toda substância material. Ser materialista é ser, em alguma medida, epicurista e antiplatônico. É, por um lado, não admitir a separação entre corpo e alma; é tratar a alma como uma substância material tanto quanto o corpo. Por outro lado, é também rejeitar a separação entre mundo sensível e mundo inteligível. O materialismo também se caracteriza por uma rejeição ao espiritualismo, embora não se reduza a isso.
Vale esclarecer o que é o espiritualismo. Trata-se da doutrina que afirma existir uma substância espiritual (a alma ou o espírito) independente da matéria, que, no homem, seria o princípio da vida. Mas o espiritualismo é uma forma de idealismo.
O materialismo erige-se e se desenvolve contrariamente a todas as filosofias que assumem a prioridade da alma sobre o corpo; nesse sentido, o materialismo é uma filosofia do corpo. Denominam-se materialistas os filósofos que afirmam que só existem seres materiais ou corpos. O materialismo é um monismo, conforme nos permite depreender a definição anteriormente referida. Isso significa dizer que o materialismo só admite uma espécie de substância, que é a própria matéria ou os corpos. Ele afirma a materialidade da alma, portanto, nega que ela tenha uma existência autônoma. Para um materialista, o pensamento resultaria de um movimento da matéria. Essa ideia não é, de modo algum, clara.
Retendo o principal até aqui, vale sublinhar que o materialismo é um monismo físico, porque entende existir apenas a matéria. Sob o rótulo de materialistas, podem-se reunir Epicuro, Demócrito, Hobbes, Diderot e Marx.


                              O materialismo de Epicuro: um esboço

Poder-se-ia objetar que Epicuro não deve ser incluído entre os materialistas, porque sua filosofia reconhece duas substâncias: a matéria e o vazio. Nesse tocante, ele segue a tradição dos atomistas da Antiguidade.
No entanto, como o vazio é nada (é um não-ser, por que se movem os átomos), segue-se que tanto para Epicuro quanto para os atomistas, só existe a matéria e nada mais. Claro é que não devemos esquecer a posição de Demócrito, para quem o nada existe tanto quanto algo. Mas, nesse caso, ainda é possível sustentar que a matéria recobre a totalidade do ser apenas, ainda que não esgote a totalidade de tudo (esse “tudo” inclui o vazio, o não-ser). Não estranhe o leitor o pleonasmo da expressão “totalidade de tudo”. Com ela, quero dizer que o ser, segundo essa interpretação, não corresponderia ao tudo, de modo que seria possível pensar que esse tudo inclui também o vazio.
Tome-se o problema da existência do pensamento à luz da doutrina materialista. Devemos ainda ter em conta Epicuro. Seria absurdo que um filósofo negasse completamente a existência do pensamento, já que, se o fizesse, negaria a si mesmo, além de pensar que não pensa, o que seria absurdo. O materialismo monista – vale frisar – não nega a existência do pensamento; nega a sua independência relativamente à matéria. O que um materialista nega é que o pensamento tenha existência autônoma. Trata-se, pois, de dizer não que o pensamento não existe, mas que ele é material como tudo o mais. O pensamento seria ele mesmo um corpo (posição dos estóicos), ou seria explicado por um “movimento sutil da matéria” (Epicuro) – ainda que essa ideia não explique nada.
Faz-se mister notar uma conclusão provisória:

São materialistas os filósofos que afirmam que tudo, exceto o vazio, é material. Nesse tudo, devemos incluir o pensamento.



                              A variedade de materialismos e a noção de matéria

Nesta seção, discutirei um problema que se revelará aporético ao termo da exposição. Lembro que a aporia é uma dificuldade lógica insolúvel. Não obstante, a compreensão dessa dificuldade ajudar-nos-á a fixar um lugar para o materialismo na história da filosofia e nos instrumentalizará para defender a posição materialista de ataques de adversários.
Há duas dificuldades que tratarei de expor e explorar: uma diz respeito à definição do próprio materialismo; a outra, à definição de matéria. Há vários materialismos, conforme já notei; e há várias opiniões acerca do conceito de matéria.
Essas dificuldades podem ser expressas nas seguintes alternativas: ou se deixa indefinida a noção de matéria e, consequentemente, também indefinido o próprio materialismo. Ou se define a matéria, não positivamente (o que suporia saber a sua natureza última, empresa esta a que renunciou, há muito, o materialismo), mas negativamente, ou seja, como não sendo pensamento ou espírito.
Acontece que, ao propor definir a noção de matéria de modo negativo, está-se a opor a matéria ao pensamento. Essa oposição não é autorizada pela definição tradicional de materialismo, cujo exemplo apresentamos anteriormente. Ora, se o materialismo é a doutrina que reduz a realidade à matéria, então não há lugar para a oposição entre matéria e pensamento, já que o próprio pensamento é corpo, forma de matéria. Para preservar o princípio de identidade, não se pode manter que haja diferença entre matéria e pensamento. Do mesmo modo, violar-se-ia o princípio de contradição se se afirmasse que tudo incluiria e, ao mesmo tempo, excluiria o pensamento. Vê-se, logo, que o materialismo seria uma anomalia lógica.
Uma primeira solução consiste em eliminar a oposição entre matéria e pensamento, afirmando que tudo é matéria e que a matéria a nada se opõe, exceto ao nada, que é o vazio. A oposição fica suprimida, pois a matéria não se pode opor ao nada. Sucede, contudo, que essa solução se nos demonstra imediatamente frágil, fazendo irromper nova dificuldade, qual seja, se a matéria não se opõe ao pensamento, então ela se torna sinônima do ser. Por conseguinte, o materialismo se apoiaria numa tautologia sem valor algum, segundo a qual tudo é do domínio do ser. É como se estivéssemos dizendo que a totalidade do ser é o ser. Sponville observa que o materialismo seria uma “espécie de pan-ontologismo (um monismo do ser), e cessaria por conseguinte de ser materialista” (p. 112).
Não há lugar para um materialismo monista radical: se existe apenas um tipo de ser (a matéria), este tipo de ser deve, necessariamente, encerrar o pensamento.
Pode-se resolver o problema, afirmando que é a matéria que pensa. A matéria e o pensamento não se distinguem como duas substâncias, mas como causa (matéria) e efeito (pensamento). Os marxistas e os materialistas do século XVIII estão de acordo nesse ponto. O espírito é, pois, o produto mais elevado da matéria. É a matéria que pensa (o cérebro, no homem, que pensa; a própria mente não seria mais do que uma função do cérebro, aquilo que ele faz); é a matéria que produz o pensamento, portanto. Eis o que se chama de primado da matéria.
Se nos detivermos a refletir sobre o problema, veremos que ele não é suprimido totalmente. De alguma forma, ele permanece. Senão vejamos. Uma vez que se admite que o pensamento é da mesma natureza que a matéria, ou seja, é material, segue-se que a matéria não produz nada além dela mesma. Assim, suprime-se o primado da matéria. Se a matéria é diferente do pensamento, suprime-se o monismo.
A aporia se instala: o materialismo chega ao seu limite. Ou só existe negando a si mesmo como monismo, caso em que terá de admitir, forçosamente, a oposição entre matéria e pensamento, ou se define como monismo, anulando-se como materialismo, caso em que não há mais primado da matéria. Lembro que só podemos falar em primado da matéria se houver lugar para o pensamento na doutrina materialista. A própria noção de primazia supõe a superioridade de um termo sobre outro.
Sponville nos fornece uma solução final. O materialismo é, segundo o autor, uma filosofia do combate. Ele supõe um adversário e se define em oposição a ele. Portanto, o materialismo não acredita nos sistemas filosóficos (entendidos como formas de pensamento que visam a atingir um saber sistemático, isto é, um saber que integra as questões da filosofia, da ciência e de vários tipos de saber numa totalidade articulada na qual as várias respostas oferecidas são vistas como diferentes facetas de um mesmo tipo de problema). Dizer que o materialismo não acredita nos sistemas é dizer que não acredita na construção de um saber totalizante do real, cujas regiões estão interligadas, de modo que uma parte remete, necessariamente, a outra. O materialismo pensa contrariamente; pensa na forma de confronto. Nas palavras de Sponville,

“O materialismo seria então contraditório (ou, se preferirmos, dialético) na mesma medida em que seria reativo. O dualismo seria seu terreno de luta (que ele compartilha necessariamente com o adversário) e o monismo, seu horizonte (que ele ainda não atinge)”.
(p. 118)


Do excerto de Sponville, segue-se que sua solução deve deixar claro que:

1) o problema da definição do materialismo não é, necessariamente, de ordem filosófica; porque coloca em questão o estatuto do pensamento. Assim, pode ser um problema para as ciências naturais;

2) o materialismo, como lugar de confronto, pode aceitar que o pensamento e o próprio pensamento materialista, às vezes, conheçam limites;

3) o materialismo reza que o substrato de tudo que existe não é da ordem do pensamento; por isso não é razoável sustentar que o pensamento deveria abranger tudo.

Em 3), fica clara a forma como o materialismo pode-se definir: em oposição ao idealismo. O materialismo não afirmaria dogmaticamente que o real se reduz à matéria, mas que, certamente, não se reduz ao pensamento.
O materialismo não aspira, de modo algum, a um saber absoluto; não se alicerça sobre a ideia de que o ser é completamente transparente ao pensamento, o que lhe permite reconhecer seus limites. Esses limites seriam, pois, formas de confirmação de sua plausibilidade.

“A ideia de um saber absoluto só tem sentido se o absoluto é da ordem de um saber; e é precisamente o que o materialismo rejeita e recusa”. (p. 119)


Está claro que o absoluto, para o materialismo, é incognoscível. Por isso, o materialismo é uma forma de pensamento que reconhece a finitude inerente a todo pensamento; reconhece-se como pensamento finito. O materialismo é um pensamento inacabado. O inacabamento de seu pensamento é justamente o que impede o término do movimento do próprio pensar: “o infinito – diz Sponville – não está no resultado mas no processo” (p. 119). Trata-se de um pensar que não conhece fim.



                              Síntese provisória

O materialismo é a doutrina que sustenta que tudo é matéria ou produto da matéria – exceto o vazio – e que, consequentemente, os fenômenos intelectuais, morais ou espirituais (ou assim supostos) têm realidade secundária e determinada. Nessa definição reúne-se um materialismo antigo ao materialismo marxista.
Por outro lado, dado que o materialismo se define em confronto, o idealismo – seu adversário -, em sentido lato, é toda doutrina que afirma ser independente, primeira e exclusiva a existência do pensamento, quer tomado como espírito subjetivo (Descartes, Bergson...), quer tomado como idealidades objetivas (Platão, Hegel...).
Compreendido dessa forma, deve-se distinguir, no materialismo, o que se segue:

a) um monismo ontológico, porque só existe uma substância, que é a matéria;
b) um realismo gnoseológico, porque a matéria é cognoscível, mas não se reduz ao conhecimento que podemos ter dela;

c) um relativismo teórico, porque não há valores absolutos (não há um Bem em si, um Belo em si...); porque todo valor é relativo a um corpo individual ou social ou à história.

O materialismo se situa, negativamente, em oposição ao dualismo e ao espiritualismo (deve-se entender que não há, para um materialista, nem mundo inteligível, nem alma imaterial). Assim, ser materialista é ser antiplatônico. O materialismo também se define em oposição ao ceticismo e ao criticismo (Kant); porquanto rejeita a ideia de que a realidade em si seja incognoscível. Um materialista não admite uma dimensão numênica do real (a coisa-em-si kantiana).
Por fim, o materialismo é incompatível com toda forma de religião fundada na crença num Deus imaterial, criador e legislador. Não se trata de opor o materialismo a qualquer forma de religião, pois que o próprio Epicuro não era ateu (ele julgava os deuses como seres materiais). O materialismo é, portanto, como sublinha Sponville, “um pensamento de recusa, de combate”. Na esteira de Lucrécio e de Marx, o materialismo é um esforço filosófico para suplantar a religião, a superstição, a ilusão em geral.
O materialismo é uma filosofia que busca explicar o espírito por recurso a processos materiais. Assim procedeu Marx, que explicou o fenômeno espiritual como produto de relações na base econômica, e Freud, que explicou o psiquismo pelas pulsões sexuais. O materialismo é um monismo pluralista (p. 121). Recusa a ideia de Um e assume como consequência da asserção de que “tudo é matéria” a proposição “tudo é múltiplo”.

Tendo em conta a coerência entre a assunção de uma visão materialista de mundo e a rejeição a certas filosofias idealistas, a cuja exposição tenho consagrado estas reflexões, notemos com Onfray (2008), que um materialista deve-se opor

a) à tradição platônica, transmitida pelo cristianismo. Nietzsche observou, a esse respeito, que o cristianismo é um platonismo para o povo;

E deve

b) dar razão a Demócrito em lugar de dá-la a Platão. A oposição ao platonismo e ao neoplatonismo cristão se expressa na forma de rejeição a uma filosofia de renúncia à existência; em suma, a uma filosofia que ensina:

“(...) as ideias, os conceitos puros que evoluem num mundo celeste, cultua uma potência demiúrgica e dá aos deuses o poder arquitetônico sobre o mundo; ensina a desviar-se do sensível, em proveito do inteligível, enfim transforma a existência em perpétua ocasião de renúncia”.
(p. 54)


Longe de instilar o pessimismo aborrecido, o materialismo se alinha bem com o hedonismo de um Hiparco, para quem a filosofia é uma oportunidade de sabedoria e reconciliação do si consigo mesmo, com os outros e com o mundo (Onfray, p. 78).




                     O que é a matéria?

As ciências da natureza nos dizem o que é matéria sem saber realmente o que ela é. Ondas ou corpúsculos? Corpo ou energia? Quais corpos? E qual energia? Quarks, léptons são as últimas realidades? É provável que a matéria seja inesgotável.
Para a filosofia materialista, importa pensar a matéria como tudo cuja existência independe do pensamento ou do espírito. A matéria é o fundo não espiritual do real. Ela carece de consciência, não tem memória, nem projeto, nem vontade. É o ser sem vida e inconsciente. É o todo que se oferece ao espírito na forma de silêncio e indiferença.
Definida assim a matéria, vê-se com nitidez a filiação do materialismo com o pensamento trágico, isto é, com a “lógica do pior”, através da qual a vida se revela sem mentira, na sua nudez verdadeira, e sem esperança, na sua irremediável fragilidade (certamente também sem alegria nem grandeza, “sobre um fundo de morte ou de nada” (Sponville, p. 132).
Na sua relação com o trágico, o materialismo não propõe uma salvação da morte (que seria a promessa da religião, ou uma forma de esperança), mas o tornar possível a realização plena do que vai morrer. Portanto, o sábio materialista vive desesperadamente a única vida possível e verdadeira; por isso o presente, para ele, é o próprio real. Por isso, ele vive o presente, e a morte, que é o fundo do próprio real, não é nada para ele. Lição materialista: o silêncio, o desespero (ausência de esperança) e o esquecimento; mas também a paz e o estímulo a viver. Todo materialismo afirma a vida, não sob a forma da esperança, da promessa ilusória, mas reconhecendo sua plenitude presente na própria impermanência a que todas as coisas estão destinadas. Afirma a vida não mascarando a morte, numa intransigente inversão valorativa: não é a certeza da morte que destitui a vida de importância; é a própria crença na eternidade além-túmulo que a torna depreciável. A inexorabilidade da morte torna a vida válida, na medida em que a percebemos como urgência que deve ser vivida no aqui e agora.

“Nascemos uma vez, não é possível nascer duas vezes, e temos de não ser mais para a eternidade: tu, portanto, que não és amanhã, tu adias a alegria; a vida perece pelo prazo; e cada um de nós morre atarefado”.

(Lucrécio, livro III)


Uma vez que o materialismo afirma o valor desta vida, uma vez que afirma que não há nada a esperar, que é urgente viver a presença plena do real, ele é compatível com uma ética da felicidade, à luz da qual a felicidade se situa no real (presente) como possibilidade da própria experiência humana. Trata-se de uma possibilidade emergente porque acessível a nós e urgente, porque jamais percebida como algo que devemos adiar para um além-mundo. Não projetar a felicidade para o futuro, mas encará-la como possibilidade presente; portanto, do próprio real.
No entanto, o materialismo, porque não se deixa seduzir pela ilusão, pelas esperanças vazias, reconhece a fragilidade tanto da vida quanto da felicidade. O real nos proporciona uma felicidade trágica – uma antítese que se impõe como consequência da relação do materialismo com o pensamento trágico. Uma vez que devolve a felicidade ao domínio do real, os materialistas, não podendo excluir, por isso, o trágico (já que o real o abriga tanto quanto a possibilidade de felicidade), buscam pensar os conflitos, as tensões, as contradições que permeiam a relação entre a felicidade como possibilidade do real e o trágico como dimensão que lhe é estruturante.
Não estão ainda amadurecidas as  reflexões que visem a demonstrar de que modo um pensamento materialista pode admitir a possibilidade da felicidade, ao mesmo tempo em que reconhece o trágico como dimensão estruturante do real. No entanto, a experiência parece nos assegurar que, apesar do trágico, a felicidade é possível a um grande número de pessoas. A mim, o trágico tanto quanto a felicidade é experiência que deve ser examinada em suas articulações, tensões com a fragilidade e efemeridade da vida.
Proponho que se reconheça que assim como não há momentos felizes (a linguagem aqui constitui uma fonte de engano), mas experiências de felicidades em circunstâncias determinadas, assim também não há acontecimentos trágicos em si, mas experiências do trágico. Trata-se de pensar o trágico não como atributo dos acontecimentos, mas como um modo de perceber e sentir o mundo. Um universo indiferente, silencioso, sem qualquer propósito ou significado em si não pode comportar o trágico, embora – o que não deixa de nos causar espanto - nos torne capazes de experienciá-lo como uma verdade para nós, mas inexistente para os demais entes. Evidentemente, se nossa consciência evoluiu de tal modo que nos permitiu também a experiência do trágico é porque o trágico é uma possibilidade do real, uma dimensão estruturante dele.  Mas o trágico só é uma ocorrência do real na medida em que nós o experienciamos como tal. A morte de milhares de pessoas num terremoto só é uma tragédia para nós, seres humanos, capazes de experienciá-la como tal. Uma natureza indiferente não reconhece o trágico.
O materialismo se harmoniza com o pensamento de Nietzsche num aspecto importante: na superação da noção de “mundo das aparências sensíveis”. Abolir o mundo sensível significa eliminar o equívoco do platonismo.
Finalmente, chamo a atenção para o fato de que a visão segundo a qual os valores são relativos, por exemplo, à história – de que um materialismo como o marxista nos é uma expressão fidedigna -  se afina com a obliteração da crença num mundo espiritual ou divino. Para um materialista, não faz sentido algum ver nos valores um fundamento supra-sensível. Na ausência de Deus como fundamento dos valores, resta ao materialista tomar o homem, no processo histórico, como o fundamento sem fundamento de todos os valores. A relatividade de todos os valores é matéria inteligível mesmo a uma consciência religiosa bem educada que, não obstante aceitá-la, pode – paradoxalmente – tomar Deus como fundamento absoluto de todos os valores.  E, nesse caso, se depõe o rigor exigido pelo trabalho do pensamento filosófico para estender-se sobre a mentalidade das pessoas o poder  das estruturas contraditórias de pensamento religioso.