A construção do Cânone
Como a Bíblia foi
fabricada?
Estima-se que o número de
cristãos no mundo chegue a 2, 180 bilhões, dos quais 50,1% são católicos. O
Brasil ocuparia hoje o segundo lugar entre os países que abriga a maior
quantidade de cristãos, a maioria dos quais católicos (http://noticias.gospelmais.com.br/pesquisa-brasil-segundo-pais-cristao-mundo-28475.html).
A despeito do sincretismo que caracteriza fundamentalmente a nossa cultura, o
Brasil é hoje considerado o maior país católico do mundo. Cerca de 70 % dos
brasileiros são católicos e 89% da população do país é cristã.
Fico imaginando quantos dentre esses 151 milhões e 200 mil brasileiros
(incluindo-se nessa totalidade católicos e evangélicos (tradicionais,
pentecostais e neopentencostais)) sabem sobre os fatos de cuja exposição me
ocuparei aqui. É certo que a maioria esmagadora os ignore. Convém lembrar, no
entanto, que não escrevo sobre religião e sobre Deus com vistas a dissuadir
quem quer que seja de suas convicções de fé.
À medida que me aprofundo em meus estudos sobre essa temática instigante
e relevante (se realmente nos preocupamos com as direções que tomará o curso da
História, sempre que a fé imiscuir-se em assuntos de interesse científico,
político e social), reconheço que não será com discursos produzidos com rigor
racional e ácido espírito crítico que se levará as pessoas que, desde crianças,
têm suas percepções da realidade moldadas na visão de mundo (ideológica) da
religião, a abandonarem sua fé. Tal
reconhecimento não faz calar a pergunta sobre o porquê de os religiosos serem
tão resistentes a pôr sob o escrutínio da razão suas crenças religiosas, ou
mesmo sobre o porquê de serem infensos a qualquer iniciativa de debate sobre
questões suscitadas pela fé.
Eu escrevo, portanto, para os não religiosos (agnósticos e ateus). E,
principalmente, escrevo para elucidar a compreensão que me foi possível durante
minhas leituras. Escrevendo, sistematizo o conteúdo interpretado e
compreendido. Escrevendo, esmiúço-o, dando-lhe mais nitidez em meu espírito.
Escrever é também uma forma de compreender, tendo já terminada a primeira etapa
de compreensão pelo exercício da leitura. Escrevo pelo prazer de concatenar
ideias que afiguram bem o conhecimento adquirido. Escrevo para dar-lhe uma
ordem, uma solidez.
Vou encetar, pois, minhas reflexões com um longo excerto de Bart, em Quem
Jesus foi? Quem
Jesus não foi? (2010), que servirá para cativar o espírito do leitor, de
modo que se sinta disposto a prosseguir na leitura. Cuido ser uma estratégia de
instigação intelectual ou, se preferir, de sedução intelectiva, que me
aproveitará. Senão, vejamos:
“Quando comecei a estudar a Bíblia na adolescência,
com mais paixão que conhecimento (muita paixão, nenhum conhecimento), eu
naturalmente imaginei que o livro tinha sido dado por Deus. Meus primeiros
professores da Bíblia estimularam essa crença e a tornaram natural para mim,
com visões cada vez mais sofisticadas sobre como Deus inspirara as Escrituras,
fazendo delas uma espécie de roteiro para minha vida, me dizendo no que
acreditar, como me comportar e o que esperar que acontecesse quando este mundo
parasse de repente, em breve, com o advento de Jesus nas nuvens do céu.
Eu obviamente já não enxergo a vida assim. Em vez disso, vejo a Bíblia como um livro
muito humano, não como um inspirado por Deus. Na verdade, muitas partes
dela são inspiradoras, mas já não vejo a mão de Deus por trás de tudo. Não temos os originais que nenhum desses
autores escreveu, apenas cópias que foram alteradas por mãos humanas em todos
os pontos. E os livros que consideramos Escrituras passaram a formar um cânone
séculos após terem sido escritos. Em minha opinião, isso não foi resultado
de intervenção divina; foi resultado de líderes muito humanos da Igreja (todos
eles homens), fazendo de tudo para decidir o que era certo.”
(p. 241)
(grifos meus)
Na primeira parte dessa passagem, o autor nos conta sobre como pensava
quando sua mente era guiada pela paixão e pelo discurso de seus professores de
teologia. Na adolescência, seu espírito era facilmente fisgado por concepções
para as quais faltavam provas. Tal estado de credulidade perdurou ao longo dos
anos em que se dedicou, no Seminário Teológico de Princenton, aos estudos
bíblicos. Entretanto, à medida que se aprofundava nos estudos da Bíblia, após
sua graduação, Bart descobriu a verdade por trás das escrituras. Esse desvelar
da verdade lançou por terra sua credulidade; não mais podia sustentar a crença
em que a Bíblia fora escrita sob inspiração de Deus. Ela é uma obra humana, e
muito humana.
Bart desenvolve seus estudos sobre as origens do Cristianismo e sobre a
Bíblia numa perspectiva crítico-histórica, a qual reúne o espírito de quem
busca reconstruir os fatos (o historiador) ao espírito de quem os examina à luz
de um método hermenêutico que traga à
tona as verdades ocultadas por discursos que se foram construindo na base de
falsificações ao longo de séculos.
Dentre aqueles milhões de religiosos referidos, suponho que a grande
maioria ignore o fato de que há outros tantos evangelhos que não foram incluídos no
cânone (no conjunto de livros considerados pela corrente proto-ortodoxa como
legítimos para o estabelecimento da Igreja e das raízes da fé). Neste texto,
também vou me ocupar com a apresentação de fatos que giram em torno da
fabricação deste cânone. Afinal, como os 27 livros da Bíblia chegaram até nós?
Milhões de pessoas no mundo leem-na sem saber nada a respeito disso. Penso que
é urgente elucidá-las sobre a forma como esses livros se tornaram objeto de
adoração e signos inquestionáveis da verdade. O percurso é longo, mas tenho
certeza de que será gratificante ao leitor arguto.
1.
As diversas formas
de cristianismo primitivo
Bart D. Ehrman, em Evangelhos Perdidos (2008: 19), ensina-nos que,
nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs. Havia cristãos que
acreditavam em um único Deus, que julgavam verdadeiro. Outros tantos havia que
acreditavam que existiam dois deuses. Outros ainda acreditavam que existiam
365. Alguns acreditavam na existência de trinta.
Também nesses séculos, havia
cristãos que acreditavam que Deus é o criador do mundo. Outros, no entanto,
pensavam que este mundo fora criado por uma divindade ignorante (isso
explicaria a quantidade de dificuldades e sofrimento que recaem sobre a vida
dos que nele vivem). Havia aqueles ainda que acreditavam que o mundo fora
criado por uma divindade maligna, e o fez para aprisionar os homens e
submetê-los à dor e ao sofrimento.
Naquele tempo, existiram cristãos
que pensavam ser a Escritura Judaica (o “Velho Testamento da Bíblia cristã) um
livro que fora inspirado por Deus, o único e verdadeiro. Outros havia, porém,
que quem a inspirou foi o Deus dos judeus, que não era o Deus verdadeiro. Havia
ainda cristãos que acreditavam a inspiração provinha de uma divindade maligna. Finalmente,
outros tantos acreditavam que não houve inspiração alguma a guiar sua confecção.
As opiniões sobre a identidade de
Jesus Cristo também divergiam bastante. Havia, nos século II e III, quem
acreditasse que Jesus reunia em si duas naturezas: a humana e a divina. Cristãos
havia que acreditasse que ele era completamente divino e, o sendo, não poderia ser
também humano, já que uma natureza, necessariamente, contradiz a outra. Alguns
acreditavam que Jesus não era divino, mas que fora adotado por Deus para
filho.Outros ainda acreditavam que Jesus Cristo era homem e Deus; mas Jesus era
o homem; e Cristo, o espírito divino que habitou seu corpo durante o seu ministério.
Acreditavam que Cristo inspirou seus ensinamentos, mas abandonou seu corpo
antes da morte.
Claro é que havia aqueles que não acreditavam
que a morte de Jesus acarretou a salvação do mundo. Outros acreditavam que a
sua morte não estava relacionada à salvação. Para outros tantos cristãos, Jesus
nunca morrera.
O leitor pode, agora, estar-se
perguntando como poderia haver tanta diversidade de crenças e opiniões, àquela época?
Decerto, os textos que compõem o Novo Testamento começaram a ser escritos
anonimamente por volta do século II. No entanto, os cristãos daquele tempo não
podiam ainda ir à fonte para se certificar de qual dentre as muitas crenças que
circulavam era a correta, simplesmente porque não havia Novo Testamento. Os
textos ainda não haviam sido reunidos para compor um cânone de Escritura. Em
outras palavras, a Bíblia cristã, tal como a conhecemos hoje, ainda não existia.
Também, à época, circulavam outros
escritos (Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses) produzidos por pessoas que
se declaravam os apóstolos de Jesus. Cabe observar, a essa altura, que os
quatro evangelhos que viriam a compor o Novo Testamento foram todos escritos
anonimamente. Tempos depois é que lhes foram atribuído autoria. Sabemos, com
Bart, que os nomes que constam no cabeçalho dos quatro evangelhos (Mateus,
Marcos, Lucas, João) não correspondem aos verdadeiros apóstolos de Cristo. Tais
nomes foram dados por seus autores com vistas a angariar prestígio e
reconhecimento. Os quatro evangelhos são, portanto, produto de falsificação, prática
muito comum naqueles tempos.
Outros evangelhos também estavam
disponíveis, como um texto cuja autoria fora atribuída a Simão Pedro, outro
cuja autoria fora atribuída a Maria Madalena; outro ainda que teria sido
escrito pelo apóstolo Filipe; e outro atribuído ao irmão gêmeo de Jesus, Dídimo
Judas Tomé.
É claro que alguém, que gozava de
poder social e político, decidiu quais seriam os evangelhos, dentre os muitos
disponíveis, que viriam a compor o cânone. É desse tema que trataremos neste
texto.
Quando, finalmente, o Novo
Testamento estava acabado, a coletânea reunia Atos, que são relatos sobre o que
fizeram os discípulos após Jesus ter morrido. No entanto, havia outros Atos
disponíveis nos primeiros anos da igreja. Entre eles, havia os Atos de Pedro e
de João, os Atos de Paulo, e os Atos da companheira de Paulo, Tecla. Eles não
entraram a fazer parte da coleção de livros da Bíblia, porque quem atuou na
produção do cânone julgou que tais textos não correspondiam à visão proto-ortodoxa
de uma elite.
Sabemos que Paulo, que de
perseguidor dos cristãos, passou a ser seu principal defensor e propagador de
suas crenças, supostamente escrevera treze epístolas. Os estudiosos concordam que
Colossenses e Efésios não são de autoria de Paulo. Embora ele tenha escrito 1
Tessalonicenses, não escreveu 2 Tessalonicenses, cujo autor pseudônimo tomara a
primeira como fonte. O conteúdo de 2 Tessalonicenses é bastante diferente do
conteúdo de 1 Tessalonicenses. Elas se assemelham quanto ao estilo da escrita,
mas veiculam conteúdos ideológicos diferentes.
Há outras cartas atribuídas a Paulo,
como uma que ele enviara ao filósofo Sêneca, que não constam do cânone. Também
não figuram na Bíblia cristã uma carta considerada de autoria de Paulo escrita à
Igreja de Laodicéia, bem como 3 Coríntios (lembre-se de que na Bíblia só se
encontram 1 e 2 Coríntios).
Ehrman dá-nos a saber o desfecho do
longo processo de fabricação da Bíblia:
“Hoje,
sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos,
assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e
escriturais. Alguns deles nós temos hoje; outros, conhecemos apenas pelo nome. Somente
27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por
escribas através dos tempos, finalmente traduzidos [para o português], e agora
estão nas estantes de praticamente todos os lares [do Brasil].”
(p. 21)
2. O estabelecimento do cânone
Houve várias tentativas de estabelecimento de um cânone de Escrituras. Não
me será possível discorrer sobre elas aqui. Nesse tocante, destacarei tão-só o
papel decisivo que exerceram dois líderes da Igreja, no fim do século II e início
do século III, chamados Irineu e Tertuliano. Irineu fora o fundador da teologia
cristã e combatente contumaz das heresias cristãs. Vale lembrar que hereges
eram aqueles cujas visões teológicas divergiam da visão proto-ortodoxa de uma
pequena elite, mas originalmente, do grego haeresis,
heresia significava “escolha”, “opção”. Tertuliano fora um apologista cristão
que travou contendas com cristãos displicentes. Também ele estava interessado
em fazer predominar a visão proto-ortodoxa sobre as demais.
Coube a essas duas personagens da História defender a ideia de que uma “regra
de fé” já havia sido estabelecida pelos apóstolos de Jesus e que essa regra
deveria ser acolhida por todos os cristãos. Essa regra, ao mesmo tempo em que
passou a constituir a base da ortodoxia, rejeitava os outros pontos de vista
comuns à época. Vale dizer que a autoridade dos apóstolos é que deveria ser o
critério para estabelecer as crenças verdadeiras. Basicamente, a regra tornou
predominante as crenças segundo a quais só
há um Deus, ele é o criador do mundo, e é humano e divino. A crença
ortodoxa faz ver, hoje, para nós, como a imagem de Deus não é senão a imagem
que o homem faz de si como ser divino. Sabe-se que o Deus judaico-cristão é um
Deus antropomórfico, ou seja, definido com propriedades ou predicativos humanos
(bom, amoroso, justo, fiel, etc.). A observação desse fato talvez tenha levado
Feuerbach, em seu principal trabalho a Essência
do Cristianismo, a escrever que ”Deus é o espelho do homem” (p. 89), ou
ainda que “Deus é a essência do homem mais subjetiva, mais própria, separada e
abstraída (...) quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem da
sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser
exteriorizado” (p. 59). Assim, com Feuerbach, podemos desfazer a inversão ideológica
operada na forma “O homem foi criado a imagem e semelhança de Deus”, dando a
expressão um sentido que exprime a verdade, ou seja, o modo como se dá a relação
entre o homem e Deus: “Deus foi criado a imagem e semelhança do homem”.
Os Credos Apostólico e Niceno, escritos no século IV foram determinantes
para oficializar aquelas crenças. A essa altura, os líderes proto-ortodoxos
detinham um conjunto de crenças, outorgadas pela autoridade do bispo, e se
puseram a fazer desaparecer aquelas que julgavam estar erradas.
O estabelecimento do cânone não se deu por critérios explícitos e bem
definidos, embora haja relatos que permitem entrever alguns critérios que eram
importantes, a saber: a antiguidade dos
textos, a catolicidade, a apostolicidade e a ortodoxia.
Segundo o critério da antiguidade,
os textos, para serem aceitos num cânone, deveriam ter sido escritos nas
primeiras décadas da Igreja cristã; portanto, quanto mais antigos fossem
maiores seriam as chances de eles entrarem para o conjunto de textos
reconhecidos como expressão da fé verdadeira. Pelo critério da catolicidade, rezava-se que apenas os
textos utilizados pela igreja poderiam vir a compor o cânone; os que não
fossem, embora pudessem ser admirados, não poderiam integrar a classe dos
textos seletos. A apostolicidade
determinava que somente os textos escritos pelos apóstolos ou por amigos destes
é que podiam compor o cânone. Era o critério mais importante e explicava por
que os Evangelhos passaram a ser chamados por nomes específicos. Não se
aceitava que os textos fossem escritos por pessoas anônimas. Sucedia, contudo,
que as autoridades da época não eram instrumentalizadas para estabelecer quem
eram os verdadeiros autores das obras. Serapião, bispo proto-ortodoxo da cidade
de Antioquia, na Síria, por exemplo, decretou que o Evangelho de Pedro não
tinha sido escrito por ele mesmo Pedro, muito embora o texto alegasse ter sido
Pedro seu autor. Serapião não dispunha dos critérios de que, hoje, estudiosos
eminentes da Bíblia se valem para estudar e certificar-se da originalidade dos
textos. Ele apenas o fizeram baseando-se na ideia de que os textos rejeitados não
expressavam a visão ortodoxa aceita.
Finalmente, pelo critério da ortodoxia, Serapião rejeitou textos que não
se afinavam com o ponto de vista considerado ortodoxo. Concluiu que, se não são
ortodoxos, tais textos não haviam sido escritos pelos apóstolos. Somente textos
considerados apostólicos podiam ser aceitos.
Passaram-se pelo menos trezentos anos de debate até que o cânone
começasse a ser definido. Evidentemente, muitos livros considerados quase
ortodoxos e que alegavam ter sido escritos por um apóstolo de Jesus, não
obstante, não se tornaram candidatos à inclusão no cânone, entre os quais
estavam o Apocalipse de Pedro, a Epístola de Barnabé e 1 Clemente.
Coube a Atanásio, bispo de Alexandria e inimigo da heresia ariana, cujos
textos defendiam a fé proclamada pelo Concílio de Nicéia, em 325 d.C., determinar
os 27 livros que conhecemos hoje como representativos do cânone, em 367 d.C. Não
obstante, a determinação de Atanásio, ela não pôs fim às disputas em torno de
quais textos deveriam compor o cânone. Por muitos séculos, várias igrejas
adotaram listas um pouco diferentes, algumas das quais incluía 3 Coríntios como
canônico. À medida que avançava o século V, o conjunto de textos determinados
por Atanásio como canônico obteve unanimidade. Ensinará, pois, Ehrman, em Quem
Jesus foi? Quem
Jesus não foi? (2010):
“(...) Esses livros, e apenas eles, foram copiados
por escribas que reproduziram as Escrituras durante toda a Idade Média. E,
embora nenhum concílio mundial da Igreja tenha ratificado a lista de Atanásio
por mais de um milênio, o uso pelo povo forneceu uma espécie de ratificação de
fato, até o momento da invenção da imprensa. Quando passou a ser mais fácil
imprimir bíblias, depois da invenção dos tipos móveis, no século XV, o cânone já
estava estabelecido. A partir de então não havia dúvidas quanto a quais livros
deviam ser incluídos, e em qual ordem. Hoje, onde quer que você compre um Novo
Testamento, será sempre o mesmo conjunto de livros, na mesma sequência”.
(p. 239)
O cânone resultou de um processo lento e muitas vezes penoso, já que, em
torno dele, houve muitas manifestações de pontos de vista discordantes, que
foram debatidos, aceitos e eliminados.
“Seja lá o que os teólogos cristãos e outros crentes
sustentem sobre o ímpeto e a orientação divina por trás da canonização das
Escrituras, também está claro que foi um processo bastante humano, determinado
por um grande número de fatores históricos e culturais”.
(p. 240)
3. Ponderações finais
Por um instante, eu estava disposto a cessar de escrever este texto,
depois que fui advertido de que minha insistência em trazer à tona minhas posições
ateístas estava tornando-se enfadonha. E, para prová-lo, alegou-se que algumas
amigas atéias não mais sinalizam seu interesse por minhas publicações. Todavia,
entendi que, se isso for verdade, ainda assim não deve ser razão suficiente
para demover-me da empresa que considero válida: trazer à consciência dos não-religiosos fatos importantes sobre um
fenômeno contra o qual alguns se opõem; e sobre o qual outros tantos lançam
descréditos.
Sinto ser necessário lembrar que não posso ser comparado a certos ateus
que se limitam a expor mensagens jocosas para ridicularizar as crenças
religiosas. Não só porque discordo de que seja essa uma prática válida para
afirmar direitos e atrair reconhecimento pela maioria da sociedade, como também
porque tenho insistido em que minhas posições ateístas são fundamentadas em
estudos que empreendo habitualmente. Tornei-me ateu porque, através da leitura
de textos filosóficos, enrijeci as raízes de meu ceticismo. A filosofia
abriu-me as portas para conhecer sobre a literatura ateísta, mas antes de tomar
conhecimento dela, já cultivava em meu espírito fortes suspeitas sobre o valor
dos textos tidos como sagrados e legitimados como meios para orientação da
conduta dos cristãos. Não me importava muito com a crença de que eles teriam
sido escritos por meio da inspiração divina. Para mim, isso não fazia muito
sentido, porque sabia que cada uma das três grandes religiões monoteístas, a
saber, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, tinham seu próprio livro. Teria
Deus inspirado todos três? Se sim, porque diferem entre si em ensinamentos
fundamentais? Por que, então, as três tradições seguiram caminhos diferentes? Para
os muçulmanos, Deus inspirou a Maomé, profeta a quem coube transmitir os
ensinamentos divinos. Para os Cristãos, coube a Jesus reeducar aqueles que se desviaram
da Lei de Deus, reformando-a em alguns pontos e reinterpretando-a com uma retórica
pacifista. Já os judeus acreditam que Deus fizera um pacto eterno com o
patriarca Abraão. Os judeus negam ter sido Jesus o Messias. E as várias
correntes judaicas divergem quanto a temas como vida além-morte e Ressurreição.
Da mesma forma que os religiosos têm o direito de estampar suas
mensagens cristãs, também eu tenho o direito de expor minhas posições ateístas.
E da mesma forma que a grande maioria é indiferente a elas, também eu o sou em
relação às deles. A indiferença mútua, portanto, serve para evitar o conflito.
A mim, pouco importa que as pessoas continuem a falar em Deus, a reproduzir os
discursos que aprenderam na igreja e que vieram a moldar sua consciência de
mundo, suas formas de perceber e se relacionar com os acontecimentos da vida,
desde que esses acontecimentos toquem à esfera subjetiva. No entanto, se me é
negado o direito de expor minhas posições, porque supostamente elas incomodam,
ou se as posições religiosas venham a imiscuir-se (como o têm feito) na direção
do governo deste país, então não me privarei de manifestar minha oposição. E me
oponho sempre que não silencio em face da influência que as crenças de líderes
religiosos exercem sobre a decisão política sobre os rumos da sociedade.
Eu escrevo não com o objetivo de dissuadir ninguém de suas crenças
religiosas. Escrevo porque sinto prazer em fazê-lo e porque cuido ter talento
suficiente para tanto. Dedico-me à escrita como quem se dedica a fazer crochê:
com vagar e paciência, abstraindo-se de tudo e de todos. Tendo apenas a solidão
como berço que anima os pensamentos. Minha escrita é a forma que desenvolvi
para resistir ao mundo. Pela escrita, eu intervenho, ainda que anonimamente,
nas formas como a sociedade em que vivo e atuo como cidadão e educador me
atinge. A vida social nos interpela, mas, infelizmente, só é dado responder aos
que tiveram o privilégio de ter alcançado uma escolarização plena e de ter
conquistado o direito ao acesso aos livros. Meu compromisso como educador é
contribuir para universalizá-lo. A escrita que desenvolvo é minha defesa contra
o mundo. Apreciem-na ou não, vale-me mais a aventura do que a recompensa. Que
eu permaneça para muitos inaudível e que um dia eu seja assim sepultado. Até lá
usufruo o prazer que mo permite o talento que desenvolvi durante anos, ousando
escrever, ousando ler mais e escrever mais, listando palavras que consultava no
dicionário, empenhando-me na labuta diária que consiste em disciplinar os
pensamentos ávidos e indistintos que se vão acumulando na alma, na aridez do
terreno da modalidade escrita.
A minha vida é um suspiro de palavras!
(BAR)