Breves considerações
Não sei por que caminhos verbais trafegarão minhas
reflexões, ora costuradas com o intento precípuo de retomar minha prática de
escrita, tão inconvenientemente postergada por força das demandas da vida diária e
da pregnância da intuição costumeira da insignificância de todas as coisas.
Mesmo convencido de que tudo que fazemos, nesse universo absurdo, seja
radicalmente irrelevante e sem sentido último, toda a minha constituição
fisiológica e psicológica impõe-me a aceitação da crença de que ler e escrever
são atividades que dão significado a minha contingente existência, de sorte que
renunciar a elas é não só privar-me de um deleite, como também é manter-me
atabalhoado, por tempo muito prolongado, no falatório do senso comum.
Com este texto, espero
não apenas romper um silêncio cuja permanência se me tornou intolerável, como
também discorrer sobre um tema, sobre o qual dispensei atenção e estudos por um
longo período. Tema bastante complexo, dados os desdobramentos inerentes à sua
constituição interna. Como sejam muitos os caminhos abertos à reflexão no
tratamento desse tema, imperioso se faz operar um recorte metodológico na
complexa trama temática que se vai descortinando a quem quer que dele se ocupe.
Inicialmente – quero dizer, antes mesmo de iniciar a primeira linha deste texto
– estava disposto a discorrer sobre a apropriação indébita da riqueza social a
partir da questão “Quem são os verdadeiros donos do mundo?”. Esse tema,
todavia, demandaria muito tempo e diligências teóricas para a sua exposição, e
eu pretendo que este texto não exceda o número de cinco laudas. Portanto, sem
mais delongas, o tema a cuja exposição o presente texto se destina é o capital.
Pretendo esclarecer o que se entende por capital tanto nos domínios da pesquisa
sociológica como no interior do pensamento de Marx.
Principio
por notar que a palavra “capital” serve de base para a formação “capitalismo”.
No que tange ao capitalismo, cinjo-me a dizer que se trata de um modo de
produção cujo fim é a reprodução e acumulação contínua do capital mediante a
exploração do trabalho assalariado. Como o que está sob foco de minhas
reflexões não é propriamente o capitalismo, mas o capital, deverá ser
suficiente esta definição de capitalismo. Considere-se, doravante, a polissemia
do termo capital.
No senso comum de nossa
sociedade, o capital é entendido como o conjunto dos bens que um sujeito
individual ou coletivo (uma empresa, por exemplo) possui em determinado
momento. Falamos de “capital” quando, por exemplo, nos referimos ao patrimônio
material que uma pessoa possui (carros, apartamentos, títulos públicos). Se
situarmos o conceito de capital na esfera dos fenômenos produtivos, então o
termo passa a recobrir o conjunto de bens produzidos pelo homem e que são
utilizados pelo indivíduo ou por uma comunidade, sociedade, como meios de
produzir outros bens e serviços. É nesse domínio de compreensão do conceito de
capital, que a palavra capital passa a designar o conjunto dos meios de
produção, a saber, os instrumentos, os utensílios, aparelhos, máquinas,
edifícios que são propriedade do capitalista. Pode-se também entender o capital
não só como o conjunto desses bens, mas também como o valor dos meios de
produção que pertencem a uma empresa, ou seja, o valor a eles agregado, tais
como o crédito, a capacidade comercial e a reputação da empresa, seus estoques,
etc.
Antes da era
moderna, sob o rótulo capital reunia-se bens como rebanho e gado possuídos por
uma família. Na Idade Média, o chamado capital pecorum era a parte principal do
débito, em comparação com os juros que deveriam ser pagos pelo devedor. Ainda
hoje a atividade bancária usa a palavra “capital” nesse sentido.
No âmbito da
ciência econômica, não encontramos uma definição satisfatória de capital, muito
embora possamos demarcar um núcleo de sentido que torna estáveis os diferentes
empregos dessa palavra. Em economia, o capital é um dos fatores de produção. O
capital é formado pela riqueza (embora não se confunda com ela!) e gera renda.
Ele é representado pelo dinheiro. Nesse sentido, o capital recobriria a
quantidade de dinheiro aplicado que uma pessoa tem. O capital também pode ser
definido como todos os meios de produção que foram criados pelo trabalho e que
são utilizados para a produção de outros bens. Destarte, o capital de uma
empresa ou de uma sociedade é constituído por todos os recursos produtivos que
foram criados pelo trabalho humano, excluindo-se desse conjunto os recursos
naturais. O que se entende por capital, portanto, recobre somente os meios de
produção, ou seja, aqueles utilizados em atividades que se inserem na divisão
do trabalho. Num sistema de produção capitalista, o capital, por conseguinte,
abriga os recursos usados na produção de bens e serviços destinados à venda,
isto é, usados na produção de mercadorias.
1. O capital como relação social
Na esteira
de Marx, o capital não recobre os objetos de trabalho nem o trabalho em si, mas
os valores, ou mais, precisamente, os preços. A definição de capital
desenvolvida por Marx é mais radical que as definições correntes desse
conceito. A radicalidade da definição marxiana de capital se prende ao termo
preço. Segundo Marx, o preço expressa precisamente a existência de uma
relação social que resulta da propriedade privada dos meios de produção. Estes
só são considerados capital porque são propriedade privada.
Ora, é porque existe
propriedade privada que se pode fixar um preço ao trabalho prestado pelos
trabalhadores e um outro preço, superior ao primeiro, aos bens produzidos por
eles. É a existência da propriedade privada que permitirá a apropriação da diferença
entre esses dois preços, e parte dessa diferença se destina ao aumento do
capital.
Destarte, observa
Marx que o capital não se reduz simplesmente ao poder de dispor do trabalho,
como pensava Adam Smith, mas é, essencialmente, o poder de dispor de um
trabalho não remunerado. É por essa razão que o capital é uma relação de produção
específica, a saber, a de produção capitalista. Convém insistir em que, para
Marx, o conceito de capital não consiste na apropriação de determinados meios
de produção, mas numa forma específica de relação social, que se apresenta sob
a forma de objetos, tais como dinheiro, meios de produção e mercadoria. Assim,
o capital é visto como produto de um tipo de sociedade, a saber, a sociedade
capitalista.
Cabe perguntar,
todavia, se estaria o capital circunscrito ao modo de produção capitalista.
Marx acreditava que sim. Ao definir o capital, reunindo nesse conceito os meios
de produção, a propriedade privada e a sociedade burguesa, Marx nos priva de um
termo que designe os meios de produção característico de um sistema social
diverso. Outro problema com a definição marxiana de capital surge quando da
análise da relação entre exploração – entendida como apropriação de uma parte
do produto do trabalho da classe trabalhadora – e os meios de produção na
sociedade burguesa. Autores de orientação marxista reconhecem que a exploração
capitalista radica não no capital, mas no desenvolvimento necessário das formas
senhoriais, cuja origem remonta ao modo como se constituiu o capital numa dada
formação social. Dessa divergência no tocante à definição marxiana de capital,
resulta a insustentabilidade da identificação do capital com a sociedade
burguesa. Assim, ao termo capital restitui-se o significado de conjunto dos meios
de produção que podem ser empregados com objetivos diferentes em sociedades
diversamente organizadas sob o aspecto econômico e político.
Na extensão da literatura
especializada, é possível discernir entre tipos de capital; não vou, no
entanto, dar a conhecê-los neste texto, visto que cuido mais importante
acrescentar algumas palavras sobre as condições determinantes da formação do capital,
antes de encerrar.
2. A formação do capital
As condições históricas
que determinaram a formação do capital sempre foram muito diferentes, segundo
as sociedades e as épocas, o que impede que elas sejam reduzidas a um modelo
único de explicação.
A afirmação de Marx
segundo a qual a pré-história do capital constitui a transformação da pequena
propriedade de muitos na grande propriedade de poucos, com a consequente
expropriação da grande massa da população, dá conta das condições históricas da
Europa Ocidental, anteriores à Revolução Industrial; entretanto, é insuficiente
para elucidar seu aparecimento em países cujo desenvolvimento econômico é mais
recente.
Os historiadores do
capitalismo moderno comungam da opinião predominante de que o capital das
primeiras manufaturas foi, em grande medida, de origem agrícola, tanto na
Inglaterra quanto na França, Alemanha e Itália. Esse capital agrícola foi investido
em atividades industriais por grupos muito diferentes em termos de origem
sociocultural, localização geográfica e ocupação. Nesses grupos, encontram-se
ex-comerciantes, artesãos, mineradores, funcionários e senhores do campo. Para
alguns historiadores, à formação do capital foi indispensável o desenvolvimento
do comércio internacional e as empresas coloniais que transferiram crescentes
fluxos de dinheiro para a Inglaterra, durante o longo período que precedeu o
início da Revolução Industrial. Essa explicação, todavia, não dá conta da razão
por que, a despeito de ter recebido um fluxo análogo de investimento, Itália,
Espanha e Holanda, não chegaram a atingir uma acumulação de capital semelhante
à que se deu na Inglaterra.
Max Weber, por sua vez,
mostrou como um dos fatores de formação do capital – o alto grau de
racionalidade formal – facilitou a apropriação de todos os meios de produção.
Segundo o sociólogo alemão, em empresas que não sejam muito pequenas, o cálculo
do capital disponível é uma operação muito complexa, que demanda a aplicação de
técnicas apuradas, sem a qual é impossível a uma empresa determinar se, depois
de um ciclo produtivo, seu capital diminuiu, cresceu ou ficou constante. Uma
série de condições, tais como a apropriação de todos os meios de produção, a
autonomia absoluta na escolha dos dirigentes, a separação entre os postos de
trabalho e os trabalhadores, por exemplo, facilita sobremaneira o emprego
daquelas técnicas. A economia capitalista, segundo Weber, se aproximou daquelas
condições ideais mais do quel qualquer outra.
Não se pode ignorar que, em todas as sociedades, o controle do capital garante um elevadíssimo poder econômico e político. Embora isso não seja uma exclusividade da sociedade burguesa, em nenhuma outra que a precedeu, o capital se tornou a potência econômica que domina tudo (e cada um de nós, trabalhadores ou desempregados, aposentados, jovens ou adultos, é, diariamente, expropriado e explorado por essa onipotência econômica, chamada capital!).
Por fim, vale acrescentar
que, à análise sociológica, interessa mostrar como o controle do capital se
torna um instrumento de poder extremamente importante nos países
industrializados. É parte importante da análise sociológica do capital
patentear como o controle dos meios de produção é efetivamente distribuído
entre os diversos grupos e classes dentro das empresas, no sistema econômico,
no Estado, nos partidos políticos, e como tal distribuição desigual se
transforma gradual ou bruscamente em virtude de fatores técnicos, econômicos,
culturais e políticos.
Como mencionei
anteriormente, capital e riqueza são coisas distintas. Somente um aumento do
capital impulsiona - o tão aclamado pela mídia dominante e pelos partidos
pró-mercado - “crescimento econômico”. Mas crescimento econômico não leva
necessariamente ao aumento da riqueza de uma sociedade, porque, como riqueza
não é sinônimo de capital, aquela pode aumentar simplesmente em decorrência de
um aumento de “rentas”, mas a capacidade produtiva da economia pode não
aumentar no mesmo ritmo da riqueza medida. Pode suceder, inclusive, que a
capacidade produtiva decline, enquanto a riqueza aumenta.
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