segunda-feira, 5 de maio de 2025

"Numa sociedade dominada pela produção capitalista, até o produtor não capitalista é dominado por concepções capitalistas." (Karl Marx)

                             




          O CONCEITO DE CAPITAL

 

  Breves considerações

       Não sei por que caminhos verbais trafegarão minhas reflexões, ora costuradas com o intento precípuo de retomar minha prática de escrita, tão inconvenientemente postergada por força das demandas da vida diária e da pregnância da intuição costumeira da insignificância de todas as coisas. Mesmo convencido de que tudo que fazemos, nesse universo absurdo, seja radicalmente irrelevante e sem sentido último, toda a minha constituição fisiológica e psicológica impõe-me a aceitação da crença de que ler e escrever são atividades que dão significado a minha contingente existência, de sorte que renunciar a elas é não só privar-me de um deleite, como também é manter-me atabalhoado, por tempo muito prolongado, no falatório do senso comum. 

  Com este texto, espero não apenas romper um silêncio cuja permanência se me tornou intolerável, como também discorrer sobre um tema, sobre o qual dispensei atenção e estudos por um longo período. Tema bastante complexo, dados os desdobramentos inerentes à sua constituição interna. Como sejam muitos os caminhos abertos à reflexão no tratamento desse tema, imperioso se faz operar um recorte metodológico na complexa trama temática que se vai descortinando a quem quer que dele se ocupe. Inicialmente – quero dizer, antes mesmo de iniciar a primeira linha deste texto – estava disposto a discorrer sobre a apropriação indébita da riqueza social a partir da questão “Quem são os verdadeiros donos do mundo?”. Esse tema, todavia, demandaria muito tempo e diligências teóricas para a sua exposição, e eu pretendo que este texto não exceda o número de cinco laudas. Portanto, sem mais delongas, o tema a cuja exposição o presente texto se destina é o capital. Pretendo esclarecer o que se entende por capital tanto nos domínios da pesquisa sociológica como no interior do pensamento de Marx. 

     Principio por notar que a palavra “capital” serve de base para a formação “capitalismo”. No que tange ao capitalismo, cinjo-me a dizer que se trata de um modo de produção cujo fim é a reprodução e acumulação contínua do capital mediante a exploração do trabalho assalariado. Como o que está sob foco de minhas reflexões não é propriamente o capitalismo, mas o capital, deverá ser suficiente esta definição de capitalismo. Considere-se, doravante, a polissemia do termo capital.

  No senso comum de nossa sociedade, o capital é entendido como o conjunto dos bens que um sujeito individual ou coletivo (uma empresa, por exemplo) possui em determinado momento. Falamos de “capital” quando, por exemplo, nos referimos ao patrimônio material que uma pessoa possui (carros, apartamentos, títulos públicos). Se situarmos o conceito de capital na esfera dos fenômenos produtivos, então o termo passa a recobrir o conjunto de bens produzidos pelo homem e que são utilizados pelo indivíduo ou por uma comunidade, sociedade, como meios de produzir outros bens e serviços. É nesse domínio de compreensão do conceito de capital, que a palavra capital passa a designar o conjunto dos meios de produção, a saber, os instrumentos, os utensílios, aparelhos, máquinas, edifícios que são propriedade do capitalista. Pode-se também entender o capital não só como o conjunto desses bens, mas também como o valor dos meios de produção que pertencem a uma empresa, ou seja, o valor a eles agregado, tais como o crédito, a capacidade comercial e a reputação da empresa, seus estoques, etc. 

     Antes da era moderna, sob o rótulo capital reunia-se bens como rebanho e gado possuídos por uma família. Na Idade Média, o chamado capital pecorum era a parte principal do débito, em comparação com os juros que deveriam ser pagos pelo devedor. Ainda hoje a atividade bancária usa a palavra “capital” nesse sentido. 

   No âmbito da ciência econômica, não encontramos uma definição satisfatória de capital, muito embora possamos demarcar um núcleo de sentido que torna estáveis os diferentes empregos dessa palavra. Em economia, o capital é um dos fatores de produção. O capital é formado pela riqueza (embora não se confunda com ela!) e gera renda. Ele é representado pelo dinheiro. Nesse sentido, o capital recobriria a quantidade de dinheiro aplicado que uma pessoa tem. O capital também pode ser definido como todos os meios de produção que foram criados pelo trabalho e que são utilizados para a produção de outros bens. Destarte, o capital de uma empresa ou de uma sociedade é constituído por todos os recursos produtivos que foram criados pelo trabalho humano, excluindo-se desse conjunto os recursos naturais. O que se entende por capital, portanto, recobre somente os meios de produção, ou seja, aqueles utilizados em atividades que se inserem na divisão do trabalho. Num sistema de produção capitalista, o capital, por conseguinte, abriga os recursos usados na produção de bens e serviços destinados à venda, isto é,  usados na produção de mercadorias. 

 

1. O capital como relação social

 

     Na esteira de Marx, o capital não recobre os objetos de trabalho nem o trabalho em si, mas os valores, ou mais, precisamente, os preços.  A definição de capital desenvolvida por Marx é mais radical que as definições correntes desse conceito. A radicalidade da definição marxiana de capital se prende ao termo preço. Segundo Marx, o preço  expressa precisamente a existência de uma relação social que resulta da propriedade privada dos meios de produção. Estes só são considerados capital porque são propriedade privada. 

 Ora, é porque existe propriedade privada que se pode fixar um preço ao trabalho prestado pelos trabalhadores e um outro preço, superior ao primeiro, aos bens produzidos por eles. É a existência da propriedade privada que permitirá a apropriação da diferença entre esses dois preços, e parte dessa diferença se destina ao aumento do capital.

   Destarte, observa Marx que o capital não se reduz simplesmente ao poder de dispor do trabalho, como pensava Adam Smith, mas é, essencialmente, o poder de dispor de um trabalho não remunerado. É por essa razão que o capital é uma relação de produção específica, a saber, a de produção capitalista. Convém insistir em que, para Marx, o conceito de capital não consiste na apropriação de determinados meios de produção, mas numa forma específica de relação social, que se apresenta sob a forma de objetos, tais como dinheiro, meios de produção e mercadoria. Assim, o capital é visto como produto de um tipo de sociedade, a saber, a sociedade capitalista.

   Cabe perguntar, todavia, se estaria o capital circunscrito ao modo de produção capitalista. Marx acreditava que sim. Ao definir o capital, reunindo nesse conceito os meios de produção, a propriedade privada e a sociedade burguesa, Marx nos priva de um termo que designe os meios de produção característico de um sistema social diverso. Outro problema com a definição marxiana de capital surge quando da análise da relação entre exploração – entendida como apropriação de uma parte do produto do trabalho da classe trabalhadora – e os meios de produção na sociedade burguesa. Autores de orientação marxista reconhecem que a exploração capitalista radica não no capital, mas no desenvolvimento necessário das formas senhoriais, cuja origem remonta ao modo como se constituiu o capital numa dada formação social. Dessa divergência no tocante à definição marxiana de capital, resulta a insustentabilidade da identificação do capital com a sociedade burguesa. Assim, ao termo capital restitui-se o significado de conjunto dos meios de produção que podem ser empregados com objetivos diferentes em sociedades diversamente organizadas sob o aspecto econômico e político.

 Na extensão da literatura especializada, é possível discernir entre tipos de capital; não vou, no entanto, dar a conhecê-los neste texto, visto que cuido mais importante acrescentar algumas palavras sobre as condições determinantes da formação do capital, antes de encerrar. 

 

2. A formação do capital

 

 As condições históricas que determinaram a formação do capital sempre foram muito diferentes, segundo as sociedades e as épocas, o que impede que elas sejam reduzidas a um modelo único de explicação.

   A afirmação de Marx segundo a qual a pré-história do capital constitui a transformação da pequena propriedade de muitos na grande propriedade de poucos, com a consequente expropriação da grande massa da população, dá conta das condições históricas da Europa Ocidental, anteriores à Revolução Industrial; entretanto, é insuficiente para elucidar seu aparecimento em países cujo desenvolvimento econômico é mais recente.

  Os historiadores do capitalismo moderno comungam da opinião predominante de que o capital das primeiras manufaturas foi, em grande medida, de origem agrícola, tanto na Inglaterra quanto na França, Alemanha e Itália. Esse capital agrícola foi investido em atividades industriais por grupos muito diferentes em termos de origem sociocultural, localização geográfica e ocupação. Nesses grupos, encontram-se ex-comerciantes, artesãos, mineradores, funcionários e senhores do campo. Para alguns historiadores, à formação do capital foi indispensável o desenvolvimento do comércio internacional e as empresas coloniais que transferiram crescentes fluxos de dinheiro para a Inglaterra, durante o longo período que precedeu o início da Revolução Industrial. Essa explicação, todavia, não dá conta da razão por que, a despeito de ter recebido um fluxo análogo de investimento, Itália, Espanha e Holanda, não chegaram a atingir uma acumulação de capital semelhante à que se deu na Inglaterra.

  Max Weber, por sua vez, mostrou como um dos fatores de formação do capital – o alto grau de racionalidade formal – facilitou a apropriação de todos os meios de produção. Segundo o sociólogo alemão, em empresas que não sejam muito pequenas, o cálculo do capital disponível é uma operação muito complexa, que demanda a aplicação de técnicas apuradas, sem a qual é impossível a uma empresa determinar se, depois de um ciclo produtivo, seu capital diminuiu, cresceu ou ficou constante. Uma série de condições, tais como a apropriação de todos os meios de produção, a autonomia absoluta na escolha dos dirigentes, a separação entre os postos de trabalho e os trabalhadores, por exemplo, facilita sobremaneira o emprego daquelas técnicas. A economia capitalista, segundo Weber, se aproximou daquelas condições ideais mais do quel qualquer outra.

    Não se pode ignorar que, em todas as sociedades, o controle do capital garante um elevadíssimo poder econômico e político. Embora isso não seja uma exclusividade da sociedade burguesa, em nenhuma outra que a precedeu, o capital se tornou a potência econômica que domina tudo (e cada um de nós, trabalhadores ou desempregados, aposentados, jovens ou adultos, é, diariamente, expropriado e explorado por essa onipotência econômica, chamada capital!). 

 Por fim, vale acrescentar que, à análise sociológica, interessa mostrar como o controle do capital se torna um instrumento de poder extremamente importante nos países industrializados. É parte importante da análise sociológica do capital patentear como o controle dos meios de produção é efetivamente distribuído entre os diversos grupos e classes dentro das empresas, no sistema econômico, no Estado, nos partidos políticos, e como tal distribuição desigual se transforma gradual ou bruscamente em virtude de fatores técnicos, econômicos, culturais e políticos. 

 Como mencionei anteriormente, capital e riqueza são coisas distintas. Somente um aumento do capital impulsiona - o tão aclamado pela mídia dominante e pelos partidos pró-mercado - “crescimento econômico”. Mas crescimento econômico não leva necessariamente ao aumento da riqueza de uma sociedade, porque, como riqueza não é sinônimo de capital, aquela pode aumentar simplesmente em decorrência de um aumento de “rentas”, mas a capacidade produtiva da economia pode não aumentar no mesmo ritmo da riqueza medida. Pode suceder, inclusive, que a capacidade produtiva decline, enquanto a riqueza aumenta. 

    

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