Por que os homens não amam
Levei mais adiante a leitura do livro Homens que não conseguem amar e, portanto, gostaria de compartilhar com vocês o que os seus autores nos ensinam sobre como identificar homens que têm fobia a compromissos e sobre as razões dessa fobia. Eu pretendo me concentrar nas razões.
Como eu sugeri, no outro texto que tratava do mesmo assunto, os autores, como sejam provavelmente psicanalistas ou psicólogos, desenvolveram sua pesquisa de um ponto de vista comportamental e psicologizante. Isso fica claro quando levamos em conta a necessidade de os autores definir e explicar o comportamento fóbico, a saber, a fobia e de sugerir que os homens que fogem a compromisso, porque se sentem “presos”, ou temem sentir-se assim, comportam-se como as pessoas que têm claustrofobia. Trata-se, como se vê, de uma análise claramente psicológica ou comportamental.
Aprendi com a dialética, cujo princípio basilar se exprime na seguinte frase “a verdade é o todo”, que toda realidade é constitutivamente contraditória; e mais ainda, que a realidade é sempre mais complexa, mas diversificada do que o conhecimento que podemos ter dela. Há sempre alguma coisa que escapa às nossas sínteses. O pensamento dialético avança no sentido da totalização. É claro que há níveis de totalização, uns mais abrangentes que outros. Por exemplo, posso estar interessado em estudar a situação econômica no meu país. Então, a primeira totalidade que devo considerar é a sociedade brasileira, relativamente à economia, história, suas desigualdades sociais, etc. Todavia, se eu quisesse aprofundar a minha análise, por exemplo, procurando entender a situação do Brasil no cenário econômico mundial, então necessitaria de outro nível de totalização, um nível mais abrangente, que compreendesse as relações econômicas e de mercado em escala mundial; isso significa considerar o estágio do capitalismo atual (um capitalismo pós-industrial, etc.), sua gênese, suas contradições, etc.
Não vou discorrer sobre o pensamento dialético, é claro. Quero apenas insistir que a análise empreendida naquele livro busca explicar uma parcela da verdade, um nível da totalidade. Mas vale a lição de Émile Durkheim, ao estabelecer o objeto de estudo da sociologia, ou seja, o fato social. Escreve ele, em As Regras do método sociológico:
“Uma vez, porém, que hoje é incontestável que a maior parte das nossas ideias e tendências não são elaboradas por nós, mas antes nos vêm do exterior, elas só podem penetrar em nós impondo-se; é isto apenas o que a nossa definição significa”
(p. 33)
Deve-se ficar claro que o autor não considera a determinação social como absoluta; portanto, o indivíduo gozará de certa autonomia, mas não poderá ser pensado, em termos de seus comportamentos, pensamentos e personalidade, sem considerar as influências do meio externo, isto é, social.
Agora, vamos buscar as contribuições de Zygmunt Bauman, aquele já conhecido sociólogo a cujo pensamento recorro para assegurar minhas teses. Em seu livro Amor Líquido, o autor faz-nos ver que relacionamentos são investimentos, nos quais se entra com tempo, dinheiro, empregam-se esforços, que poderiam ser orientados para outros fins. Citarei um trecho que me parece esclarecedor:
“É claro. Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhe ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e maus momentos, na riqueza e na pobreza, “até que a morte nos separe”? Nunca olhar para os lados, onde (quem sabe?) prêmios maiores podem estar acenando?”
(p. 29)
Acho interessante a analogia que o autor faz entre o gerenciamento de um relacionamento e o gerenciamento de ações no mercado. Os acionistas detêm as ações e podem se livrar delas, de acordo com as condições do mercado de capitais. Ocorre que, num relacionamento, apenas os envolvidos podem ponderar as probabilidades e avaliar os benefícios. A menos que se contrate um especialista para aconselhamento e orientação, quem está num relacionamento deve tomar decisões, enfrentar as flutuações, as “dores de cabeça” típicas de um relacionamento.
Bauman nos ensina que, numa sociedade caracterizada pelo efêmero, pelo “presente eterno”, pela satisfação imediata, pela rejeição do “a longo prazo” e do “até que a morte nos separe”, não nos surpreenderá
“O desvanecimento das habilidades de sociabilidade [que é] reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu “valor monetário”. Na melhor das hipóteses, os outros são avaliados como companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas presença e participação ativa podem intensificar os prazeres”
(p. 96)
O cenário social em que os homens que têm fobia a compromisso vivem e atuam é um cenário ideológico, cultural e econômico caracterizado por relações efêmeras, vividas sempre num presente eterno e que devem proporcionar prazer imediato. Donde se conclui que o “para sempre” ou “até que a morte nos separe” lhes sejam ideias assustadoras. Para esse tipo de homem , estar num relacionamento com uma mulher é estar aprisionado. Numa sociedade em que as promessas de prazer eterno e imediato, de liberdade sem responsabilidade, de lazer e divertimento, de imagens que criam, estimulam e reforçam os desejos; numa sociedade em que o outro é reificado (tornado objeto de usufruto e descarte), os homens que têm fobia a compromisso não seriam senão aqueles indivíduos em que as determinações de tais condições sociais foram mais agravantes.
Voltando ao livro referido, os autores observam que o significado de compromisso se define pela ideia "envolver-se para sempre". Na modernidade líquida, os relacionamentos têm prazo de duração. Homens que têm fobia a compromisso são homens para quem o para sempre é assustador. É interessante notar que não se questiona as razões sócio-culturais que provocam essa ‘fobia’ (se é que se pode chamar tal comportamento de ‘fobia’). Como não sejam sociólogos, nem filósofos, tampouco antropólogos, os autores não poderiam alargar sua análise de modo a apreender os fatores sócio-culturais, ideológicos e econômicos que determinam esse tipo de comportamento denominado de ‘fóbico’.
Eu vou arriscar uma explicação que me parece pertinente. Desde já, reconheço minhas limitações neste campo. Consideremos o que se segue, trecho colhido do livro Os tempos hipermodernos:
“Jean –François Lytoard foi um dos primeiros a notar o vínculo entre a condição pós-moderna e a temporalidade presentista. Perda de credibilidade dos sistemas progressistas; primazia das normas de eficiência; mercantilização do saber; multiplicação dos contratos temporários no cotidiano – o que significa tudo isso senão que o centro de gravidade temporal de nossas sociedades se deslocou do futuro para o presente? A época dita pós-moderna, definida pelo esgotamento das doutrinas emancipatórias e pela ascensão de um tipo de legitimação centrada na eficiência, faz-se acompanhar do predomínio do aqui-agora”.
(p. 59)
Convém reter o seguinte:
a) temporalidade presentista;
b) multiplicação dos contratos temporários no cotidiano;
c) primazia das normas centradas na eficiência;
d) predomínio do aqui-agora.
Agora, consideremos esta outra passagem, que se acha no livro Formas da Crise – estudos de literatura, cultura e sociedade, de André Bueno.
“Como o leitor há de notar, posições que vão a contrapelo da cultura pós-moderna, que faz o elogio das superfícies, das imagens, dos simulacros, dos fragmentos soltos da vida social, da simples imersão nas aparências cotidianas da vida urbana. E o faz como um valor, algo a ser defendido e enfatizado, em termos de abertura, pluralidade, deriva, intensidade, instalando, com um passe de mágica, o reino da liberdade, em pleno reino da necessidade. Mais que isso, pondo de lado o reino da necessidade e as inúmeras resistências do real, tornando a própria necessidade uma virtude. Em resumo, a vida na caverna pós-moderna não como experiência empobrecida e mutilada, desumanização e violência, redução do campo do possível, o mundo máximo do fetiche de mercadorias, das coisas conversando com outras coisas, mas como o campo para as inúmeras escolhas, vários estilos de vida a serem consumidos”.
(p. 17)
(grifo meu)
Gostaria de lembrar que fetiche de mercadoria, uma expressão que remonta a Marx, se define em dois sentidos: por um lado, à semelhança do fetiche religioso, trata-se de uma coisa que existe em si e por si mesma. Por outro lado, ainda na concepção religiosa, trata-se de uma coisa que exerce domínio sobre seus adoradores. A mercadoria é uma força estranha que age sobre os homens e os domina.
O homem pós-moderno, seduzido pelas imagens, pelos simulacros, é aquele a quem são oferecidos serviços e produtos que se destinam à satisfação imediata do prazer e ao conforto. Esse homem é alguém que não se contenta com a monotonia e busca sempre o novo. Num universo econômico, em que “tudo é descartável”, esse homem deverá buscar cada vez mais novos bens e produtos que satisfaçam seu desejo e lhe causem prazer. Acontece que o novo provoca um estado de insaciabilidade nesse homem. Quanto mais experimenta a novidade mais insaciável fica. Mais ele deseja. Ele nunca está satisfeito. E vale lembrar que, a rigor, o desejo é criado nele; ele pensa desejar algo que lhe é indispensável, mas esse desejo é incutido nele por força dos agentes de marketing, publicidade, propaganda. Poderíamos dizer por força dos imperativos da Indústria Cultural.
Esse indivíduo moderno é alguém que aprende a imaginar e alguém para quem a imaginação é fonte de prazer. A imaginação transcende a experiência. A descartabilidade, a predominância do valor de troca sobre o valor de uso das mercadorias, a desvalorização do humano no âmbito das relações de produção (pela alienação e exploração) geram as condições para que, atingidos no domínio espiritual-emocional, pela penetração da ideologia materializada nos discursos que servem ao poder dominante, o indivíduo pós-moderno seja um indivíduo para quem qualquer forma de relacionamento, que tome formas divergentes das condições em que se dão as relações superficiais situadas no domínio dos simulacros e das imagens, que prometem prazer imediato sem custo emocional, deve ser evitado.
Minha análise pode carecer de maior fundamentação, mas creio que ela consegue dar conta do seguinte:
a) em primeiro lugar, dizer que existem homens com fobia a compromisso é dizer apenas um aspecto de uma realidade mais complexa, melhor ainda, é dizer de uma dada perspectiva (no caso a da psicanálise);
b) insiste em que existem fatores sócio-culturais, econômicos e ideológicos atuando na dimensão espiritual-emocional desse tipo de homem. Sócio-culturais, porque envolvem valores, crenças e práticas; econômicos, porque existe uma determinação, ainda que não direta, das formas de relações de produção e de consumo (alienação, exploração, produção em larga escala para consumo de massa, descarte, etc.). Ideológicos, porque responsáveis pela simbolização de tais práticas, de tal modo que as formas como elas se dão se “incorporam” discursivamente na consciência dos indivíduos, de modo a “moldá-los” segundo determinados padrões de comportamento. Aqui, deve-se levar em conta o poder ideológico da palavra. Palavras que inculcam valores, crenças...
No predomínio do efêmero, não há espaço para o compromisso, para relacionamentos que aspirem ao para sempre. Se se pode consumir e descartar, sempre que determinada coisa não satisfaz mais o desejo sempre insaciável, também se pode relacionar-se até o instante em que o prazer dure (aliás, muito pouco). Nesse mundo do consumo-descarte, não convém ficar vulnerável a “dores de cabeça”, “a aborrecimentos”. Trata-se de uma nova forma de hedonismo: um hedonismo que desumaniza em favor de um prazer sempre absoluto, se bem que humanamente empobrecido.