A vida como
destino para a morte
“A Vida se transmite como uma lepra: criaturas
demais para um só assassino.”
Cioran
Eis o essencial:
A vida é um
trabalho permanente (batimentos cardíacos, circulação sanguínea, respiração
pulmonar) de consumo de energias durante o qual a vida é conduzida à morte.
Morte e vida são inseparáveis. Como ensina Bichat, a vida é o conjunto das
forças que resistem à morte. A vida é, portanto, também um trabalho permanente
de luta contra a morte. A vida, ao consumir suas energias, carece de se
alimentar. Assim, todos os seres vivos se esforçam para adquirir o alimento que
reponha suas energias. A evolução dotou animais de nadadeiras, ou de patas para
que alcançassem esse objetivo. Animais predadores consomem outros animais. A
atividade da vida produz a morte a que tanto resiste aniquilando outras vidas.
Nos seres pluricelulares, a morte inscreve-se em seu organismo na forma de
aniquilação das células, as quais são substituídas por outras novas. Quanto
mais complexa se tornou a vida, mais se fragilizou, mais se viu ameaçada pela
morte, mais se organizou para lhe fazer resistência. A morte é o preço pago
para viver. Na luta contra a morte, a vida devora a si mesma.
A vida é um fenômeno marginal e extraordinário no
seio do mundo físico. A vida é inteligente, engenhosa, criadora, mas também
incompreensível, absurda, insana e horrível. Se a organização dos seres vivos
exibe espantosas engenhosidade e complexidade, a vida é loucura. Quando
examinada nos detalhes e acuradamente, a vida não segreda nenhum sentido
último. O sentido da vida é a morte e viver por viver é a finalidade que se
esconde na absurdidade da vida.
A política do senso comum
Diz o ditado que “futebol, política e religião não
se discute”, e não se discute porque tais temas, supostamente, mobilizam, nos
interactantes, paixões exacerbadas, incendiárias, que poderiam levá-los
facilmente a inimizades e, no limite, a agressões mútuas que encerrariam a
discussão. Mas, no caso específico da política, o que a torna tão pouco
discutível no domínio do senso comum é que os interactantes, geralmente, estão
muito pouco capacitados para um debate equilibrado e fundamentado teoricamente.
A política, enquanto área do saber humano, também tem seus especialistas
(cientistas políticos, sociólogos, filósofos...), os quais dispõem das
ferramentas conceituais para realizar uma análise crítica do fenômeno político.
O fenômeno político, como todo fenômeno humano-histórico, é complexo e, por
isso, demanda daqueles que ousam convertê-lo em tema ou em assunto de debate
nos encontros casuais da cotidianidade mediana, certo repertório de saberes e
conceitos que devem ser sistematizados e definidos na discussão. Mas é
justamente deste repertório e desta competência para a sistematização e para a
definição dos termos empregados que carece o senso comum. E essa carência é uma
das razões por que me sinto desencorajado a me embrenhar em “discutir política”
no domínio do senso comum. No domínio do senso comum, ao se levantar um tema
político, os interactantes não especialistas fazem desfilar, em suas falas, uma
série de dislates disfarçados de bazófias, que transformam o que deveria ser um
debate num falatório de velhas rabugentas que, em certa altura, já não sabem
mais sobre o que realmente estão discutindo. A sobriedade dos espíritos que
reconhecem ser o real mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele
é, quase sempre, asfixiada pelos dizeres balofos e enervados de certezas
absolutas. Um professor de filosofia que tive, a quem admiro, certa feita,
ensinou que filósofos devem fugir de debates, de discussões cujo propósito é
decidir ao fim e ao cabo quem tem razão. Desde então, tomei esta lição como um
princípio ético-metodológico. É que aos filósofos - ele ensinou - importa o
pensamento, o exercício do pensamento. E a única coisa que não se exercita nas
cenas cotidianas de “debate político” é o pensamento. Não, exercitar o
pensamento não é vomitar lugares-comuns, preconceitos, crenças infundadas e
ideologicamente orientadas típicas do imaginário coletivo, a fim de medir
forças com o interlocutor para impor sua visão pessoal sobre um
estado-de-coisas. O senso comum aspira ao monopólio da opinião correta,
verdadeira, que deve ser tomada como dogma inquestionável. A tendência do senso
comum é sempre simplificar uma problematicidade que, por definição, é complexa.
O senso comum não admite a pluralidade de perspectivas (como nos ensina
Nietzsche), os múltiplos olhares, a dúvida como princípio metodológico. O senso
comum tem a presunção de saber tudo, de esgotar tudo o que se pode saber em
algumas concatenações verbais semanticamente insuspeitas na aparência, mas
grávidas de pressupostos equívocos. Em matéria política, o senso comum de nossa
sociedade, confunde, com frequência, conceitos que não descrevem o mesmo
fenômeno. Por exemplo, confunde Estado com Governo. E é comum que, se a questão
formalmente socrática “o que é?” é levantada neste domínio do discurso, o
silêncio predomine até o momento em que é entrecortado por dizeres evasivos de
ataque pessoal ao interlocutor... E, se um dos interlocutores ousar definir os
termos relevantes na discussão, atrairá sobre si as suposições de pedantismo.
Chamar o outro de pedante, de pernóstico, de enfatuado é a estratégia comum da
burrice que se institucionalizou neste país para desqualificar o contraditório.
É difícil, eu sei, manter um silêncio monástico quando nossos ouvidos são
atravessados e perturbados, e nosso espírito é afrontado por dizeres que
carreiam tolices, clichês, preconceitos, despautérios, mas pretender lançar
luzes sobre as avenidas escuras e os atalhos sinuosos do senso comum é
arriscar-se na paralisia do pensamento, porque o senso comum é como um lodaçal
onde o pensamento fica estagnado, atravancado, onde ele não consegue avançar,
alçar voos, onde ele não encanta, não semeia o espanto, a admiração. O homem
comum é o coveiro do pensamento, e o senso comum é seu cemitério.
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