O homem como animal não fixado
Supondo que qualquer discussão sobre a condição
alienada do homem relativamente à sua natureza animal ganha muito em
profundidade e relevância quando reconhecemos o papel decisivo que a linguagem
verbal e a cultura desempenham nessa alienação, pretendemos aqui definir as
bases teórico-metodológicas que acreditamos são as que podem nos guiar com mais
consistência na abordagem do que cuidamos ser uma questão para a filosofia: em
que medida a linguagem e a cultura contribuíram para tornar a animalidade uma condição
estranha ao homem? A questão, tal como a formulamos, já suscita o problema de
definir ou não a animalidade como uma condição do homem[1]. Ou não seria a própria
condição do homem, a despeito de ele ter um corpo biológico, de compartilhar
com os demais seres vivos uma mesma cepa de ancestralidade, de ser formado,
como notou o astrofísico Carl Sagan, de “poeiras das estrelas”, uma condição de
animal não fixado? Em outras palavras, seria a animalidade uma característica
definidora de nosso modo de ser ( do modo de nos exteriorizarmos, de nos
expressarmos como espécie no mundo) ou apenas uma característica constitucional
de nossa natureza biológica? Cremos que é preciso definir o escopo semântico
desse substantivo abstrato ‘animalidade’ antes mesmo de começarmos qualquer
discussão filosoficamente consistente. Não resta dúvida de que, considerando
tudo que sabemos sobre a evolução darwinista, aceitando as evidências de que
compartilhamos cerca de 98,7% de nosso DNA com bonobos e chimpanzés, somos
partes de um grande reino que abriga inumeráveis espécies de animais; e não
resta dúvida de que, por termos um corpo biológico, somos partes integrantes de
um gigantesco ecossistema; e não resta dúvida de que nós, seres humanos,
nos compomos com o universo (basta lembrar que tudo que existe, incluindo os
seres humanos, é composto de átomos). A despeito disso tudo, donde vem esse
estranhamento do homem em relação à sua natureza animal? Como foi possível que
um ser natural como o homem tenha se tornado, até certo ponto, antinatural,
periclitante, como diria Nietzsche; como veio a se tornar um ser, em suma, não
fixado? Acreditamos que essas questões devem ser levadas a sério; acreditamos
que se trata de questões bastante fecundas e que sua fecundidade deita raízes
sobre como a linguagem nos constitui, como constitui nossas experiências,
como interage com a nossa percepção-cognição e a cultura moldando nossa relação
com o mundo; acreditamos, em suma, que a tentativa de responder ou de oferecer
respostas (pois não cremos que haja uma única resposta) a essa questão passa
por uma reflexão séria e cuidadosa sobre nossa relação (metafísica) com a
linguagem, sobre a influência que a linguagem e a cultura exercem sobre não só
nosso comportamento como indivíduos em sociedade, mas, sobretudo, sobre quem
somos enquanto um ser do mundo.
Não pretendemos aqui adentrar nessas questões.
Conforme dissemos, nosso objetivo é mais modesto: queremos iluminar alguns
caminhos, descerrar trilhas, propor um itinerário teórico-metodológico. A essa
tarefa é que nos lançamos doravante.
Se o que se pretende é fazer uma crítica radical do
homem como ser alienado de sua animalidade, como ser que se constituiu pela
negação, em si, de sua animalidade, devemos, então, começar partindo do
reconhecimento daquilo que torna o homem um animal tão extravagante no seio da
natureza da qual ele se originou: o homem é um animal não fixado. O
seguinte trecho de Nietzsche, em que o homem é considerado o animal doente por
excelência, colhido de Genealogia da Moral, foi referido e
comentado por Giacoia, em seu Nietzsche: o humano como memória e
promessa (2014). Daremos a saber, em primeiro lugar, o texto de
Nietzsche; posteriormente, citaremos Giacoia, que dele nos oferece uma
interpretação que captou o que está no cerne da questão que nos ocupa.
(...) o homem é o animal doente, mais
incerto, mais mutável, mais inconsciente, é o animal doente por excelência:
donde lhe veio isto? Certamente provocou o destino e inovou mais, foi mais
teimoso, mais audaz do que os outros animais; o grande experimentador de si
mesmo insatisfeito, o insaciável, o que luta para reinar sobre os animais,
sobre a natureza e sobre os deuses; o indomável, o futuro eterno, o aguilhoado
pela espora que o futuro introduz na carne do presente, o mais valente dos
animais, o de sangue mais rico, como não havia de estar exposto a doenças mais
largas e mais terríveis?. (Nietzsche, 2011, p. 17).
Giacoia propõe uma leitura desse trecho
de Nietzsche à luz de uma chave hermenêutica antropológico-cultural. Sua
leitura descerra dois horizontes de sentido em que o texto de Nietzsche se
deixa compreender: O primeiro deles encontra formulação linguística no seguinte
excerto:
(...) a tese de Nietzsche dá ensejo a
ser interpretada como uma hipótese que tem a forma lógica da causalidade: o
homem é o animal doente, o mais prolongada e profundamente doente entre todos
os animais porque é também o animal não fixado, sendo assim o
grande experimentador consigo mesmo. (ibid., p. 24, ênfase no original).
Essa autoexperimentação do homem, vista
à luz do horizonte semântico do “não fixado”, acarreta “a instabilidade, a
flexibilidade, a multiplicidade e insegurança” (ibid.). Tudo isso pressupõe,
segundo Giacoia, “mal-estar, sofrimento, insatisfação, ânsia, insaciedade
permanente, mas também repto lançado ao destino, disputa por domínio sobre
animais, natureza e deuses (também sobretudo sobre si mesmo)”. (ibid.).
A insistência cruel com que o animal
humano escraviza, maltrata e mata os outros animais humanos e não humanos é um
sintoma de sua doença como animal não fixado, um sintoma da negação de sua
condição de animal, de seu destino animal, de ser alimento para vermes, de ter
um corpo animal deteriorável e perecível.
A segunda linha de interpretação de
Giacoia pauta-se pela afirmação de que o texto nietzschiano autoriza a inferência
segundo a qual a mutabilidade constante, a insaciabilidade irrefreável são a
natureza dividida e paradoxal do homem. Consoante nota Giacoia,
Sendo assim, faz parte desse paradoxo
um excedente de força pulsional que ultrapassa toda fixação
instintiva e faz do homem esse desafio permanente à estabilidade pensada no
conceito de natureza, esse repto à autoconservação; eterna insubsistência, que
o torna, por natureza, o animal mais exposto, o mais periclitado, o mais
ameaçado pelo “acaso”, pelo “destino”, pela “natureza”. (ibid., grifo nosso).
Portanto, consoante entende Giacoia, o
mais enfermo dos animais, é também o mais problemático, “o que é mais digno de
questão, o mais denso, profundo e pleno de futuro – um aguilhão na carne da
natureza, de todo presente” (ibid., p. 25). O ser constituído de um excedente
pulsional significa ser o homem um excesso, cujo reflexo é sua indigência
crônica como corpo animal. Admitindo usar um vocábulo anacrônico em relação ao
pensamento de Nietzsche, o autor acrescenta:
(...) diria que o homem é um animal
doente porque não é um animal instintivo, mas pulsional e,
mais ainda, provido de um excedente pulsional que o torna não
fixado, instável, cuja estabilidade e fixação só pode ser realizada por sua
própria obra, ou seja, por meio da história e da cultura, basicamente por meio
das instituições. (ibid., grifo meu).
Uma vez que é o homem provido de
um excedente pulsional, ele é um animal não especializado,
desprovido dos recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência; ele é um
animal exposto a uma tensão crônica de forças e tarefas internas e externas; é,
em suma, atravessado por uma “indigência crônica”. Outrossim, afirmar ser o
homem provido de um excedente pulsional é afirmar não ser possível reduzir sua
vida a simples atos de satisfação de necessidades animais mínimas, como a fome
e o instinto sexual. Somos desnaturados, diferentemente dos demais
animais, cuja vida é regulada, com maior preponderância, pela gramática
biológica; somos – repetimos – “infestados” pela linguagem, dominados por ela,
estamos emaranhados nela. Foi para lidar com esse seu excedente pulsional e sua
“indigência crônica” que o animal humano criou a cultura, esse mundo de
práticas e significados que lhe é próprio. Essa é a visão de Freud e da
psicanálise a partir dele, para quem o bebê precisa ser introduzido no reino da
linguagem para poder tornar-se um integrante da cultura. Pensamos ser razoável
a hipótese de que a condição constitucionalmente trágica do animal simbólico,
que é o homem, decorre do conflito insuperável entre o campo pulsional e a
cultura. Conquanto não possamos aqui, dados os objetivos e limites deste texto,
nos alongar sobre a importância do conceito de pulsão na compreensão do homem
como animal não fixado, será suficiente assinalar que a pulsão, a partir de
Freud, sendo um conceito fronteiriço entre o psíquico e o somático, sendo
sempre um representante psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo
e atingem a mente, vai constituir
uma nova realidade corporal, irredutível ao natural, ao instintivo. As pulsões
não são desvio do natural, mas diferença pura.
Retomando a interpretação de Giacoia,
é importante, para os nossos propósitos, reter a função que teriam as
instituições culturais na constituição da condição existencial desse animal não
fixado que é o homem. Assim, segundo Giacoia, as instituições
culturalmente criadas teriam por função primária a estabilização
do homem. Em outras palavras, através da cultura, o homem teria
assegurado os meios pelos quais executa as tarefas de sua estabilização,
tornando-se capaz de proteger e conservar o resultado das experiência coletivas
acumuladas, sempre ameaçado pelos efeitos corrosivos do decurso do tempo. Ainda
consoante Giacoia, “decerto, não é por meio de doutrinas, de cultura, ou
propaganda, mas somente por meio de instituições é que o ser humano
estabiliza-se de modo duradouro”. (ibid., p. 27). Se aceitamos, portanto, o
caráter não fixado do animal humano e se admitimos que é por meio das
instituições, por meio da cultura que esse animal busca estabilizar-se, busca
dar conta de sua indigência crônica, então uma crítica do homem como animal
alienado de sua animalidade deve começar por oferecer um modelo de
interpretação e explicação do papel que a linguagem e a cultura exercem nesse
processo de estabilização do homem, sob pena de reduzir-se a uma denúncia
panfletária. Usamos palavras como “cultura” e “linguagem” para designar
conceitos cuja definição apenas pressupomos, mas que, já de início, precisa
estar clara na abordagem crítica. Tanto o termo cultura quanto
o termo linguagem/língua apresentam significados variados
dependendo do teórico e das teorias a que estejam vinculados. Uma preocupação
nossa aqui é justamente definir territórios comuns, linhas de abordagem,
pressupostos teórico-metodológicos que nos ajudem a conduzir nossas reflexões
sobre a questão do homem como um animal alienado de sua animalidade.
As pessoas, em geral, ao reproduzirem,
por exemplo, a ideia de que o incêndio no Museu Nacional, ocorrido no dia 2 de
setembro de 2018, representou a perda de um “patrimônio cultural”, pressupõem,
em sua fala, o seguinte significado de “cultura”: conjunto de
instituições como a arte, a literatura, a música, a dança, a ciência, a
religião, etc. É o que Bennett, em seu Intercultural
Communication (1998), chama de “cultura objetiva”. A cultura
objetiva – também chamada de “cultura material” – encerra tudo que é
produzido pela atividade humana e que por ela é transformado. Essa dimensão da
cultura é acessível à experiência sensível dos membros de uma sociedade. Quando
as pessoas comuns falam, então, de “patrimônio cultural”, estão se referindo a
essa herança cultural material que é comum a uma sociedade. Mas cultura também
apresenta uma face subjetiva. Nesse caso, Bennett fala em “cultura subjetiva” como
o conjunto de crenças, valores, conhecimentos, ideologias; enfim, símbolos que
modelam e informam a vida das pessoas nas relações que estabelecem entre si em
sociedade. Não pretendemos fazer um inventário das inúmeras propostas de
conceituação da cultura. Queremos apenas frisar que a cultura recobre mais do
que os produtos das atividades artísticas, literárias, científicas, políticas
do homem; ela constitui um grande sistema de atitudes, valores, normas, que
estruturam as experiências do homem. Ela compreende um sistema de símbolos e
significados. É nesse domínio semântico do termo cultura que devemos reconhecer
o papel da linguagem ou do símbolo. Uma definição de cultura que pode ser
bastante profícua para uma discussão sobre a questão que se coloca no escopo
deste texto pode ser colhida na pena de Gomes, que nos ensina nesse tocante o
seguinte:
“Cultura é o modo próprio de ser do
homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte
inconscientemente, constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar,
agir, fazer, relacionar-se, posicionar-se perante o Absoluto e, enfim,
reproduzir-se”. (Gomes, 2011, p. p. 36).
Outro conceito operacionalmente válido
de cultura nos é fornecido pelo antropólogo brasileiro Roberto DaMatta. Nele, o
autor deixa entrever ser a dimensão simbólica o fundamento da cultura. O trecho
citado encontra-se no artigo publicado em 1981, no Jornal da Embratel e
acessível no endereço eletrônico que se topa em nota abaixo.[2]
Cultura é um conceito-chave para a interpretação da
vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um
receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam,
classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque
compartilham de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de
indivíduos, com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas,
transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma
totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe
forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados diante
de certas situações. (DaMatta, 1981, p. 3).
A faculdade da linguagem, ou seja, a
capacidade que os homens têm de usar uma língua constitui a condição de
possibilidade do desenvolvimento da cultura. De fato, a linguagem humana é
produto da cultura, mas, ao mesmo tempo, não existiria cultura se o homem não
fosse capaz de usar a linguagem articulada. Decerto, a cultura é um processo
cumulativo, resultante de toda uma experiência histórica das gerações
anteriores (concepção que é subjacente ao conceito de “patrimônio cultural”).
Mas esse processo cumulativo historicamente constituído não seria possível sem
a linguagem. Todo comportamento humano se origina no uso dos símbolos. Foi
graças à ordem simbólica que os nossos ancestrais antropoides se tornaram
homens. Toda cultura depende, portanto, dos símbolos. É o exercício da
faculdade de simbolização que criou a cultura e foi por meio do uso dos
símbolos (palavras) que foi possível sua perpetuação. Sem a
linguagem verbal, não haveria cultura, e o homem seria incapaz de realizar as
tarefas necessárias a sua estabilização.
De modo algum, pretendemos dar a
entender que superestimamos o aspecto cultural da condição humana em detrimento
de sua constituição animal[3]. Como todo animal, também o
homem deve manter uma relação adaptativa com o meio ambiente, a fim de
sobreviver. Mas, como seja um ser biológico destituído de instintos, o homem
precisa adaptar-se ao meio ambiente adotando outro caminho. Esse caminho é o da
produção da cultura. Seguindo também Geertz, que sustenta que todos os
homens são geneticamente aptos para receber um “programa”, o qual se
chama cultura, assumimos que a cultura se
desenvolveu simultaneamente com o equipamento biológico do homem e, por isso,
deve ser compreendida como uma das características da espécie homo
sapiens sapiens juntamente com o bipedismo e um adequado volume
cerebral.
Em virtude da linguagem e da cultura, o
homem pôde se desprender da ordem natural, tomar distância de si e do
mundo para exercitar a reflexão sobre ela, sobre o mundo e sobre si mesmo. A
ordem simbólica é que torna possível ao homem refletir sobre seu próprio lugar
no universo. É claro que, desde que o homem se tornou cindido, “rachado” como
consequência da emergência da palavra, ele se tornou um ser desnaturado e
iludido sobre sua real condição no Universo. Ora, na medida em que a linguagem
permitiu ao homem a construção de imensos edifícios de representação simbólica
que se sobrepõem e parecem se elevar à ordem natural como gigantescas presenças
de um outro mundo – o mundo do simbólico -, o homem pôde produzir os mais
diversos sistemas de significados historicamente constituídos - entre os quais
os mais importantes são a religião, a filosofia, a arte e a ciência -, a fim de
que encontrasse amparo e sentido numa existência que, se contemplada
como um acontecimento puramente biológico e/ou natural, o levaria, muito
provavelmente, à terrificante angústia e ao desespero total.
Cremos que é preciso levar em conta,
portanto, a proposta de Geertz, que adotando uma visão semiótica da cultura,
define-a como um sistema de símbolos e significados interpretáveis, e
ensina-nos: “(...) o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu”. (Geertz, 2012, p. 4). A essa observação de Geertz, pode-se
acrescentar outras duas, que constituem lições de uma inestimável sabedoria que
não devemos ignorar. A primeira dessas lições nos chega da pena de Nietzsche
que, num aforismo de Humano Demasiado Humano, retoma o problema da
linguagem, que havia sido desenvolvido em Sobre a verdade e a mentira
em sentido extramoral.
A importância da linguagem para o
desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo
próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a
partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida
em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes de coisas aeternae
virates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se
ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do
mundo. O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às
coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o
supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no
esforço da ciência. Da crença na verdade encontrada fluíram, aqui também, as
mais poderosas fontes de energia. Muito depois – somente agora – os homens
começam a ver que, em sua crença na linguagem, propagaram um erro monstruoso.
(Nietzsche, 2005, p. 20-21).
É justamente essa visão de que,
através da linguagem, “o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado de outro”
que reencontramos em Cassirer, que nos lembra, nesse tocante, o seguinte:
O homem não pode mais
confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer,
frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da
atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está,
de certo modo, conversando consigo mesmo. (Cassirer, 2012, p. 48).
Esse excerto de Cassirer nos fornece insights preciosos
para a nossa proposta de abordagem, mas sublinharemos um aspecto em especial:
desde que a linguagem se desenvolveu como uma etapa constitutiva da relação
filogênica do homem (enquanto espécie) com o mundo, os animais humanos não
podem mais ter acesso imediato à realidade. É claro que o acesso à realidade
mesma é talvez uma impossibilidade constitucional dos seres vivos mais complexos,
os quais se relacionam com o mundo pela mediação da cognição-percepção. Mas, no
caso dos animais humanos, entre eles e o mundo interpõe-se uma complexa
inter-relação entre percepção-cognição, linguagem e cultura. Foi para tratar
dessa questão que Blikstein escreveu o seu Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. Nesse livro, Blikstein estuda o papel
que desempenha a linguagem na construção da própria realidade que o homem
experiencia. A tese dele pode ser formulada como se segue: a realidade
que experienciamos é produto de uma interação contínua, na práxis social, entre
linguagem, percepção-cognição e cultura. A visão de Blikstein está
sintetizada no seguinte excerto, que se acha na contracapa de Kaspar
Hauser ou a fabricação da realidade (2003):
Para o senso comum, a realidade parece
não constituir problema algum: real é todo o universo estável e tangível de
sons, cores, formas, espaços e movimentos. Trata-se, no entanto, de uma
ilusão: na verdade o que julgamos ser a realidade não passa de um produto
da nossa percepção cultural. Percebemos os objetos que as nossas práticas
culturais já definiram previamente, em outras palavras, a realidade já foi
fabricada por toda uma rede de estereótipos culturais, que condicionam a
percepção. Tais estereótipos, por sua vez, são garantidos e reforçados pela
linguagem.
A percepção, ensina Blikstein, depende
de uma construção e de uma prática social. É na prática social ou na práxis que
reside o mecanismo que gera o sistema perceptual que fabricará o referente. A
fabricação do referente estrutura-se nas seguintes etapas, sugeridas pelo
autor: 1) realidade/ estímulos; 2) prática social ou práxis; 3)
percepção/cognição/ponto de vista; 4) referente.
O referente não deve, contudo, ser
tomado como um objeto do mundo extralinguístico; mas como uma entidade
discursiva. O mundo textualizado, o mundo reconstruído no discurso não é um
espelho do mundo de nossa experiência imediata. Não falamos, no discurso, de
objetos do mundo propriamente, mas de objetos do discurso. Não se está negando
a existência do mundo tal como nos é acessível à experiência sensorial; o mundo
“real” existe, conforme assinala Blikstein, como uma totalidade de sensações,
de estímulos, movimentos, cores, formas, etc. O que se nega é que a língua
reflita esse mundo, como um espelho que reflete nossa imagem. Quando
articulamos a linguagem ao processo de fabricação da realidade, quando a
pensamos na relação necessária com a práxis e o nosso aparelho
perceptual-cognitivo, o referente que resulta dessa interação se converte em
uma entidade do discurso. É no próprio processo discursivo que os referentes
vão sendo fabricados, estendidos, transformados, etc.
Blikstein nos lembra que “sem práxis
não há significação” (ibid., p. 54). Para ele, a língua atua sobre a práxis.
Destarte, o homem, vivendo na dimensão da práxis, desenvolve, para existir e
sobreviver, mecanismos não-verbais que lhe permitem diferenciar e identificar
as feições do continuum do real. O homem move-se no tempo e no
espaço de sua comunidade. Por isso, precisa estabelecer e articular traços de
diferenciação e identificação que o auxiliam a discriminar, reconhecer,
selecionar, dentre os estímulos do continuum do real, as
cores, as formas, as funções, os espaços e tempos indispensáveis à sua
sobrevivência. Tais traços adquirem, no contexto da práxis, um valor positivo
que se relaciona por oposição a um valor negativo ou pejorativo. Assim,
impregnados de valores positivos/negativos, eles convertem-se em traços
ideológicos.
Os traços ideológicos desencadeiam a
estruturação de “formas” ou “corredores” semânticos, por onde atravessam os
fios básicos de significação, as chamadas isotopias da cultura
de uma comunidade. Em nossa cultura, por exemplo, “em cima” é um traço de valor
positivo, enquanto “abaixo” tem um valor negativo. Esses traços ideológicos
constituem a base dos corredores semânticos ou isotópicos da
verticalidade positiva em oposição à horizontalidade pejorativa. São os
corredores semânticos ou isotópicos que vão delimitar a percepção/cognição,
gerando padrões ou modelos de percepção, chamados de “óculos sociais”.
Os óculos sociais são os estereótipos
de percepção. São com esses estereótipos que “vemos” a realidade e fabricamos o
referente. A língua age sobre a práxis e sobre os corredores isotópicos e sobre
os estereótipos perceptuais. Estabelece-se, assim, uma interação entre língua e
práxis de tal modo que, à proporção que nos socializamos, mais difícil torna-se
distinguir as fronteiras entre ambas. É na ação sobre a práxis que a língua
modela o referente. Blikstein entende que a cognição está sujeita a uma
atividade incessante de estereotipação, cuja consequência é que passamos a
considerar como real e natural a totalidade do universo de referentes e
realidades que são, na verdade, fabricados e/ou construídos.
Propomos, portanto, que um exame
filosófica, antropológica e linguisticamente consistente da questão que
consiste em indagar sobre como foi possível que o animal humano se tornasse
alienado de sua animalidade deve romper com a visão clássica e metafísica da
linguagem como sistema de representação do mundo. Em filosofia, sabemos que por
“representação” entende-se o ato de reapresentar ao espírito alguma coisa; a
representação é o ato de tornar a coisa presente na mente. Devemos à tradição
socrático-platônico-aristotélica nosso hábito comum de compreender e de nos
relacionar com a língua[4]. Para Sócrates, a língua tem
por função nos informar sobre as coisas. Para Platão, a língua/linguagem tem
por função representar não a realidade fenomênica, mas a realidade das
Essências ou Formas Imutáveis. Para Aristóteles, as palavras representam as
afecções da alma. Para ele, a linguagem opera uma dupla simbolização: ela
simboliza o pensamento, o qual, por seu turno, simboliza o real. Subjacente ao
tratamento aristotélico da linguagem, encontrar-se-ia uma espécie de mentalismo
realista. Aristóteles reduz a linguagem a mero instrumento da representação do
mundo operada pela razão. É a razão que representa o mundo, e à linguagem cabe
expressar essa representação. Há uma relação especular entre a razão e o mundo,
relação esta que a linguagem reflete. Em suma, em Aristóteles, a linguagem
torna-se o instrumento, por excelência, da razão representativa. Tanto Platão
quanto Aristóteles compartilham o pressuposto da existência de uma ordem
objetiva subjacente ao dinamismo e à variabilidade das línguas humanas que
precisa ser assegurada. Ambos rejeitam a perspectiva radicalmente pragmática da
linguagem já presente, de forma embrionária, no pensamento dos sofistas.
Comentando uma passagem em que Górgias
dá a entender que a língua apenas revela a própria língua, a linguista e
semanticista Helena Martins, faz a seguinte observação:
A linguagem não diz o real, o qual,
sabemos, para Górgias, não pode ser conhecido. Sob esse ângulo, os objetos que
se manifestam a nós não pode então ser objetos que conhecemos em algum momento
logicamente anterior ao uso da linguagem – a linguagem não representa o real
autônomo que previamente se nos dá a conhecer. O que tomamos como “o real” pode
aqui então ser visto como apenas aquilo que se manifesta para nós como tal no
discurso. A passagem de Górgias permite-nos, pois, associar ao pensamento
sofista um ponto de vista segundo o qual, em certo sentido, a existência humana
é linguisticamente articulada – um modo de ver no qual a linguagem desempenha
um papel crucial em nossa experiência de mundo. (Martins, 2005, p. 452).
Há uma visão pragmática de linguagem em
forma embrionária no pensamento sofista. Em Linguística, a pragmática recobre
os estudos que, na esteira das contribuições dos filósofos da Escola Analítica
de Oxford, como Austin, Searle e Strawson, se alinham com o princípio de que
“todo dizer é um fazer”. Ao usarmos enunciados, agimos sobre os outros. A
questão da relação entre linguagem e realidade é, na pragmática, por assim dizer,
deslocada para a relação entre os signos e os usuários desses signos.
Importa descrever e explicar o que fazemos quando usamos a língua. Ao produzir
enunciados, produzimos atos de fala ou atos de linguagem; buscamos agir sobre o
outro com vistas a modificar seu comportamento, a produzir nele alguma reação
desejada/esperada, etc. A questão da referência será então pensada em termos de
ajustes, de acordos (quase sempre tácitos, nem sempre explícitos),
internacionalmente estabelecidos, entre os usuários da língua, acerca do que as
expressões linguísticas utilizadas designam, significam, referem, com base num
conjunto de conhecimentos e crenças a cerca do mundo pressuposto como
partilhado entre eles.
Ao produzir enunciados, produzimos
também efeitos de sentido. Não há sentidos fixos que se encontram nas palavras
mesmas. Um mesmo dizer pode significar muitas coisas e o seu exato contrário,
dependendo das condições de sua produção. O segundo Wittgenstein foi um
expoente dessa concepção de linguagem como forma de ação conjunta com os
outros. Wittgenstein foi um precursor da visão pragmática da linguagem, à luz
da qual "dizer é fazer". Outros filósofos que, com ele e outros
tantos linguistas, que pensariam a linguagem de uma perspectiva não
representacional, estariam Quine, Davidson, Derrida, Habermas, Putman, entre
outros.
Se pretendemos, portanto, desenvolver uma crítica
radical da relação entre o homem e sua animalidade que vise a explicar como foi
possível ao homem negá-la, devemos rejeitar uma visão representacional,
essencialista da linguagem, à luz da qual as palavras seriam como “etiquetas”
das coisas; e a língua, um instrumento para falarmos objetivamente sobre o
mundo, com vistas a desvendar sua ordem universal imanente. É preciso, em
primeiro lugar, levar a sério a alternativa sofista com seus desenvolvimentos
ulteriores não só na Filosofia como também na Linguística. Nossa proposta se
encaminha no sentido da adoção de uma visão sociointeracionista da linguagem, à
luz da qual a língua não é um sistema de representação; mas uma práxis
histórica; a língua é uma forma de ação interativa, social, cognitiva e
situada. A língua é marcada por uma indeterminação constitutiva. À luz dos
estudos em Análise do Discurso, o dizer não tem um início verificável; e o
sentido toma múltiplas direções; está sempre em curso. A incompletude da
linguagem decorre do fato de que a própria linguagem é categorização dos
sentidos do silêncio; é um modo de domesticá-los.
A linguagem também é opaca. A opacidade
da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não
se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no
qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem
interpretação. A opacidade ou não-transparência da linguagem consiste também na
propriedade de o sentido poder ser sempre outro. Segundo a perspectiva
sociointeracionista, o sentido é produção da interação. O outro é necessário
para que saibamos o que estamos a dizer, e para construirmos interativamente o
sentido do que dizemos. É nas interações sociais por meio da língua, a qual é o
“lugar” mesmo onde a interação acontece, que emergem as significações e que são
negociados os significados atribuídos pelos interactantes às suas expressões
linguísticas. A interação é, portanto, o espaço dialógico no qual os
significados que estruturam as nossas experiências se constituem e se
objetivam. É o espaço no qual os sujeitos se constituem e buscam responder pelos
sentidos mobilizados nas suas trocas linguísticas. A visão sociointeracionista
da linguagem mantém que a língua é ação intersubjetiva. A interação verbal é a
realidade fundamental da linguagem. A língua não é simplesmente um
intermediário entre nosso pensamento e o mundo, mas é, sobretudo, ação conjunta
dos interactantes sobre o mundo; é atividade social por meio da qual eles agem
uns sobre os outros com vistas a obter determinados resultados. A adoção de uma
perspectiva sociointeracionista de linguagem é um dos ( e não o único
possível!) dos caminhos que nos permitem não só romper com a perspectiva
platônico-aristotélica que, dominante na história do pensamento ocidental,
mantém hegemônica ainda hoje, no senso comum, a concepção essencialista da linguagem
e do sentido, mas também comprometer-se filosoficamente com a crítica radical
da linguagem, empreendida por Nietzsche, ainda no século XIX, antes mesmo do
surgimento da Linguística como ciência. Nietzsche soube bem reconhecer que as
coisas como identidades, como unidades somente existem na linguagem. A palavra
não mantém uma relação de correspondência com a coisa que designa; a linguagem
não é representação do objeto. Mesmo os objetos não existem senão em função da
palavra que os nomeia, os identifica, os constrói. A impossibilidade de
correspondência entre as palavras e as coisas não resulta, portanto, apenas do
processo de redução e ficção que marca os signos. A questão fundamental, para
Nietzsche, é que não existe sentido nas coisas a ser representado no objeto.
Não há sentido fixo, mas perspectivas resultantes sempre de dinâmicas
agonística de forças. O signo é apenas uma disposição, uma abertura, uma
moldura vazada, capaz de configuração. Ele encerra uma diversidade de
possibilidades, uma luta. Com Nietzsche, busca-se superar a crença na
identidade subjacente ao que é dito: há sempre o caos do sentido que permanece
nos silenciamentos que atravessam toda palavra. As teses de Nietzsche, mormente
sobre a linguagem, tiveram desdobramentos em vários campos do saber, inclusive
na Linguística. Portanto, depois de Nietzsche e com ele, é preciso admitir que
as coisas não estão no mundo da maneira como as dizemos aos outros. A maneira
como dizemos aos outros as coisas decorre de nossas atividades intersubjetivas
sobre o mundo e de nossa inserção sociocognitiva no mundo em que vivemos. O
mundo textualizado, o mundo comunicado é sempre efeito de um agir
intersubjetivo (não voluntarista) diante da realidade externa e não de uma
identificação de realidades discretas. É preciso consentir na visão de Bakhtin
da palavra como “uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os valores
sociais de orientação contraditória”. (Bakhtin, 2006, p. 67). As palavras são
entretecidas por fios ideológicos e acumulam as entonações (valores) do diálogo
vivo dos interlocutores. Assim, seguindo de perto Bakhtin, devemos assumir que
a palavra como signo ideológico[5], é resultado do processo de
interação e ela acumula os valores atribuídos aos interlocutores ao que é dito.
Como signo ideológico, portanto, toda palavra recebe um ponto de vista; é um
lugar valorativo. Também seguindo a perspectiva bakhtiniana, será preciso
admitir que a consciência não é mero fenômeno psíquico, mas um fenômeno de
base material; ela é produto socioideológico. Ela se constrói nas relações
sociais por meio das trocas linguísticas. Sua realidade é o signo (Bakhtin). É,
portanto, pelo uso da palavra, que se constitui a consciência; é por meio da
palavra, que se dá o contato da consciência com o mundo exterior a ela. As
palavras operam tanto nos processos internos de consciência, possibilitando a
compreensão e interpretação do mundo pelo homem, quanto nos processos externos
de sua circulação em todas as esferas sociais. Não há neutralidade na palavra.
Toda palavra é pluriacentudada, ou seja, é entretecida por múltiplos acentos
contraditórios, que se cruzam no seu interior; e o sentido se constitui nesse
entrecruzamento. Hall, fazendo eco tácito a Bakhtin, observa:
As palavras são “multimoduladas”. Estas
sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento,
apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado. (...) O
significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade),
mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente
escapulindo de nós. Existem sempre significados suplementares sobre os quais
não temos qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas tentativas para
criar mundos fixos e estáveis. (Hall, 2006, p. 41).
Marcuschi, por seu turno, alinhando-se
com a perspectiva sociointeracionista de linguagem, observa que nem o mundo nem
a linguagem têm uma estabilidade a priori e prossegue:
(...) o mundo não é um grande
supermercado com gôndolas universais divinamente mobiliadas, restando aos
humanos nomearem esse mobiliário para uso coletivo. A construção histórica dos
humanos para a configuração dessas gôndolas é imensa e não desprezível. Ao lado
disso, a linguagem também não é um instrumento transparente, preciso e claro
capaz de etiquetar de forma universalmente igual cada elemento desse suposto
mobiliário. Portanto, não há uma relação direta entre linguagem e mundo e sim
um trabalho social designando o mundo por um sistema simbólico cuja semântica
vai se construindo situadamente. Repetindo: a língua é um sistema
simbólico e não um sistema ontológico nem classificatório. (Marcuschi,
2005, p. 67, ênfase no original).
É Marcuschi também quem nos diz como a
relação entre linguagem e mundo é interpretada e trabalhada numa visão
sociointeracionista de linguagem. Segundo o autor, o que se privilegia são as
relações sociais instauradas pelos interactantes mediante os recursos
linguísticos.
(...) por eles pode-se elaborar versões
públicas do mundo, em que a adequação será estabelecida praticamente em
termos de negociação pública não voluntarista, ajustes, acordos e desacordos,
etc. entre os interlocutores e o discurso não dependerá de uma presumida
relação objetiva com um mundo exterior, mas será sempre construída. (ibid., p.
71, ênfase no original).
Depreende-se da visão de Marcuschi o
fato de que é necessário observar o que os interactantes fazem e como agem para
construir um mundo publicamente estabilizado em atividades de coprodução
discursiva. Uma vez que se assuma que a relação entre discurso e mundo é
construída, os referentes de que falamos são constituídos, elaborados,
modificados, redefinidos como objetos-de-discurso. A referência é entendida
como referenciação. E referenciação é uma atividade discursiva, à luz da qual a
relação entre as palavras e as coisas dá lugar a uma relação intersubjetiva e
social de construção de objetos-de-discurso, os quais se articulam em
predicações para formar configurações significativas que constituirão versões
de mundo publicamente elaboradas e avaliadas segundo sua adequação às
finalidades práticas e às ações em curso dos interactantes. Os
objetos-de-discurso existem discursivamente, emergem de práticas linguísticas e
intersubjetivas; não se confundem com os referentes extralinguísticos. Eles se
enriquecem, são alimentados e construídos cooperativamente pelos interactantes.
Finalmente, gostaríamos de insistir em
que uma análise crítica de como foi possível a negação pelo homem de sua
animalidade não deve perder de vista a necessidade de restituir ao discurso o
seu caráter de “acontecimento” (um acontecimento sócio-histórico) e de
suspender, para falar como Foucault, a soberania do significante.
Deve-se conceber o discurso como uma
violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo
caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio
de sua regularidade. (Foucault, 2008a, p. 53).
Será preciso reconhecer, com Foucault,
que os discursos são práticas que formam sistematicamente os objetos de que
falam. Assim é que
(...) as palavras não estão
deliberadamente ausentes quanto as próprias coisas; não há nem descrição de um
vocabulário nem recurso à plenitude viva da experiência. Não se volta
ao aquém do discurso – lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas
apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta; não se vai além para
reencontrar as formas que ele dispôs e deixou atrás de si; fica-se,
tenta-se ficar no nível do próprio discurso. (...) os discursos. Tais como
podemos ouvi-los, tais como podemos lê-los sob a forma de texto, não são, como
se poderia esperar, um puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras:
trama obscura das coisas, cadeia manifesta, visível e colorida das palavras
(...). (Foucault, 2008b, p. 54, grifo nosso).
Foucault pretendia analisar os
discursos para determinar um conjunto de regras próprias da prática discursiva.
Ao longo de sua análise, ele assegurava que veríamos romper-se os laços
aparentemente fortes entre as palavras e as coisas. Mas isso é possível porque,
para Foucault, o discurso supõe um campo de saberes articulados entre si,
constituídos historicamente em meio a disputas de poder. Para Foucault, os
signos existem para além de nomear ou representar a “realidade”. Entre a
linguagem e o mundo interpõe-se uma “ordem do discurso”, de sorte que não se
analisa um discurso para se chegar às coisas como se elas fossem um tesouro
primitivo escondido atrás das palavras, como se as coisas estivessem lá e a
elas pudéssemos chegar em sua inteireza e imutabilidade. É claro que a
materialidade do discurso, uma materialidade que é histórica, pode constituir-se de vários elementos, tais como elaborações do senso comum, afirmações preconceituosas,
imagens diversas e até mesmo representações sobre um determinado objeto. Mas
essas representações são produções culturais e dizem respeito às práticas
culturais de produção de significados, aos modos pelos quais determinados
grupos aprendem a conferir significados a situações, pessoas e acontecimentos.
Esses significados produzidos culturalmente operam na construção social de
valores, na cristalização de conceitos e preconceitos, na formação do senso
comum, na constituição de identidades – de gênero, étnicas, sexuais, políticas,
etc. e na produção da subjetividade.
Uma vez que estejamos interessados em
compreender como a cultura pode amarrar o homem na teia de significados que ele
mesmo construiu, é oportuno considerar o que nos ensina Castoriadis sobre a
produção institucional da alienação. Segundo Castoriadis, “a instituição é uma
rede simbólica socialmente sancionada, onde se combinam, em proporções e em
relações variáveis, um componente funcional e um componente imaginário”.
(Castoriadis, 1982, p. 159). Assim, a alienação é, para ele, a automização e a
dominância do momento imaginário na instituição que enseja a autonomização e a
dominância da instituição relativamente à sociedade. A automização da
instituição encarna-se na materialidade da vida social, mas supõe sempre também
que os indivíduos coletivamente em sociedade vivem suas relações com as
instituições sob o regime do imaginário, isto é, não reconhecem no imaginário
das instituições seu próprio produto. Assim, é preciso atender nas seguintes
palavras desse filósofo francês de origem grega:
Cada sociedade define e elabora uma
imagem do mundo natural, do universo onde vive, tentando cada vez fazer um
conjunto significante, no qual certamente devem encontrar lugar os objetos e
seres naturais que importam para a vida da coletividade, mas também esta
própria coletividade e finalmente uma certa “ordem do mundo”. (Castoriadis,
1982, p. 179).
Esta imagem, que constitui uma visão
mais ou menos estruturada do conjunto da experiência humana disponível, embora
se valha “das nervuras racionais do dado, as dispõe segundo as significações e
as subordina a significações que como tais não dependem do racional (nem aliás
de um racional positivo), mas sim do imaginário”. (ibid., p. 179).
É o imaginário, segundo Castoriadis,
que confere à funcionalidade de cada instituição sua orientação específica;
também é o imaginário, esse estruturante originário, que sobredetermina as
escolhas e as conexões das redes simbólicas, criação de cada época histórica,
sua singular maneira de viver, ver e de fazer sua própria existência. Destarte,
“tudo o que se nos apresenta no mundo social-histórico está indissociavelmente entrelaçado
com o simbólico. Não que se esgote nele”. (ibid., p. 142). Portanto, as ações
reais dos indivíduos e dos grupos, o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a
natalidade, bem como os inumeráveis produtos materiais sem os quais é
impossível a subsistência de uma sociedade, não são nem sempre símbolos, mas
uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica. Ainda segundo
Castoriadis, as sociedades constituem seu simbolismo, mas não o fazem com
liberdade total. A ordem simbólica se crava no natural e se crava no histórico
(ao que já estava lá); participa, finalmente, do racional: “tudo isso faz com
que surjam encadeamentos de significantes e significados, conexões e
consequências, que não eram nem visadas nem previstas”. (ibid., p. 152).
Acreditamos que o caminho
teórico-metodológico descortinado por nós (não sendo, de modo algum, o único
caminho possível) pode oferecer uma grande contribuição para responder à
questão que consiste em saber como o animal humano, ao construir a teia de
significados que constitui a cultura, passou a viver sob o poder de duas formas
de autoengano: a) passou a crer que essa teia de significados esgota a
totalidade do real; b) passou a acreditar, como consequência da primeira
crença, que goza de um privilégio ontológico relativamente às demais espécies
de animais.
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[1]
Entendendo-se por “condição” aí tudo aquilo que estabelece relação com a
existência humana (veja-se nota 10 adiante).
[2]
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/877886/mod_resource/content/1/2_MATTA_Voc%C3%AA%20tem%20cultura.pdf
[3]
Novamente, a questão da ‘animalidade’ como uma
qualidade que descreve, no homem, a sua constituição morfológica, como ser vivo,
ou a sua condição existencial reaparece aqui. O fato inegável é que os
processos de hominização do animal humano tendem sempre a conter, a reprimir, a
expulsar (mas não totalmente) a ‘animalidade’ do homem, ou a reduzi-la a certas
necessidades básicas de sobrevivência, de algumas das quais o homem, inclusive,
deve sentir vergonha. E é fato inegável que, a despeito dos esforços
empreendidos, os processos formativos, educativos de inserção do homem na
cultura jamais expulsam a animalidade inerente ao corpo humano; ela subsiste,
ainda que residualmente em seu ser, na forma de tensão, de insistências, de
impulsos. Por isso, é preciso reconhecer que a condição existencial do animal
humano é uma condição tensionada entre a sua animalidade e o simbólico que o
constitui.
[4]
Por influência do inglês language,
que tanto significa ‘língua’ quanto ‘linguagem’, muitos linguistas e estudiosos
da linguagem usam o termo “linguagem” tanto para significar o que nós, falantes
de português, entenderíamos por “língua” quanto para significar “linguagem”
como uma faculdade que torna possível o uso de uma língua. Em contraste com a
linguagem, tomada nessa acepção, a língua seria a utilização social da
faculdade da linguagem. Mas essa é uma das muitas maneiras de definir a língua
e também a linguagem. Em alguns contextos, a distinção entre linguagem e língua
se impõe; mas, em outros, a prática corrente é usar o termo linguagem no lugar
de língua, ou não distinguir entre ambos os termos. Por exemplo, fala-se em
ensino de língua materna, de língua estrangeira, de segunda língua, para
designar a aprendizagem de um “sistema de signos convencionais organizado
segundo as regras e princípios de uma gramática”. Mas fala-se em “aquisição da
linguagem” ou como um processo de maturação/ aquisição de uma disposição inata
para o uso de uma língua (visão dos gerativistas), ou como um processo de
aprendizagem que se desenvolve nas atividades comunicativas de que participa a criança
(visão funcionalista). A linguagem aí seria ou uma espécie de faculdade natural
inata desenvolvida a partir da ativação de regras ou princípios/parâmetros ativados
com base numa Gramática Universal inscrita na mente/cérebro do falante (visão
sustentada pelos os gerativistas que seguem Chomsky) ou uma habilidade para o
exercício da interação social, decorrente da exposição da criança, com base num
input altamente estruturado de dados
linguísticos, a práticas linguísticas reais em contextos sociais em que a
língua, entendida como instrumento de interação social, é usada (como defendem
os funcionalistas, por exemplo).
[5]
O Círculo de Bakhtin parece ter rejeitado uma concepção bastante estrita de
ideologia como “falsa consciência”, que se consagrou a partir de certas
leituras marxistas de Marx. Para Bakhtin, ideologia pode ser entendido como
“uma tomada de posição determinada”. Ela compreende sempre interpretações e
reflexos da realidade social e natural que seriam acolhidas pelos indivíduos em
sociedade.
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