Bios theoretikós e bios politikos
Ocorreram-me
agora as minhas insistentes indisposições para com os colegas que, em vez de se
ocuparem com temas filosóficos, em razão dos quais nossas trocas verbais
encontravam plena justificação, preferiam tagarelar sobre temas de nossa
política nacional. O que me enfadava não era tanto a política como assunto, mas
a lengalenga que subtraía ao tema "política" toda a sua
problematicidade filosófica. Agora, pensando bem, minhas indisposições
encontram apoio na tradição filosófica.
No início de nossa tradição de
filosofia política, encontramos o desprezo de Platão pela política. Platão
considerava que os assuntos práticos e as ações do homem não deveriam ser
levados a sério. A única razão por que o filósofo interessava-se por esses assuntos
repousava no reconhecimento de que o exercício da filosofia, infelizmente,
dependia da boa condução deles, já que eles dizem respeito à convivência entre
os homens. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem como
mortais; mas a filosofia ocupa-se das questões eternas. Como o filósofo é
também mortal, ele acaba por se interessar pela política também. Mas seu
interesse não vai além da necessidade de garantir a boa condução dos negócios
humanos, a fim de que o exercício da filosofia não seja perturbado ou
impedido.
O termo grego "scholè"
não designa o ócio em geral, mas o ócio relativo à obrigação política. Por
conseguinte, a liberdade do espírito para ocupar-se do eterno (aei on)
só era possível se as necessidades básicas da vida mortal estivessem atendidas.
Já com Platão, a política começou a abranger as atividades destinadas ao
atendimento das necessidades básicas da vida. Assim, ao desprezo dos filósofos
pelos assuntos fugazes da vida prática dos mortais, pôde-se acrescentar o desprezo
especificamente grego por tudo que é necessário à mera subsistência. Em suma,
quando os filósofos começaram a se preocupar com a política de maneira
sistemática, ela passou a ser encarada como um mal necessário (e suspeito de
que a maioria dos brasileiros hoje consentiria nesse juízo, sobretudo quando a
relação entre o sistema político brasileiro e o homem comum, privando-o dos
direitos de cidadania, o posiciona num lugar de mero pagador de impostos).
Decerto, não estou sugerindo que os
filósofos de hoje devessem seguir a atitude grega e, especificamente,
platônica, em face da política. Mas recordar essa herança filosófica de
desprezo com a política contribui para advertir aos que, tendo pendor para a
filosofia, preferem, no entanto, ocupar-se com a tagarelice diária sobre os
assuntos políticos que o filósofo não é o político e nem o militante político
e, quando o é, não ocupa mais, mesmo que por um breve momento, o lugar do
filósofo. Em suma, recordar o desprezo dos antigos gregos para com a política é
lembrar que a filosofia, como observa Arendt, está mais próxima da poiesis que
da praxis.
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