quinta-feira, 1 de outubro de 2020

"Um político divide os seres humanos em duas classes: instrumentos e inimigos." (Nietzsche)

                                                           



      

Bios theoretikós e bios politikos

 

Ocorreram-me agora as minhas insistentes indisposições para com os colegas que, em vez de se ocuparem com temas filosóficos, em razão dos quais nossas trocas verbais encontravam plena justificação, preferiam tagarelar sobre temas de nossa política nacional. O que me enfadava não era tanto a política como assunto, mas a lengalenga que subtraía ao tema "política" toda a sua problematicidade filosófica. Agora, pensando bem, minhas indisposições encontram apoio na tradição filosófica.

No início de nossa tradição de filosofia política, encontramos o desprezo de Platão pela política. Platão considerava que os assuntos práticos e as ações do homem não deveriam ser levados a sério. A única razão por que o filósofo interessava-se por esses assuntos repousava no reconhecimento de que o exercício da filosofia, infelizmente, dependia da boa condução deles, já que eles dizem respeito à convivência entre os homens. No começo da tradição, a política existe porque os homens vivem como mortais; mas a filosofia ocupa-se das questões eternas. Como o filósofo é também mortal, ele acaba por se interessar pela política também. Mas seu interesse não vai além da necessidade de garantir a boa condução dos negócios humanos, a fim de que o exercício da filosofia não seja perturbado ou impedido. 

O termo grego "scholè" não designa o ócio em geral, mas o ócio relativo à obrigação política. Por conseguinte, a liberdade do espírito para ocupar-se do eterno (aei on) só era possível se as necessidades básicas da vida mortal estivessem atendidas. Já com Platão, a política começou a abranger as atividades destinadas ao atendimento das necessidades básicas da vida. Assim, ao desprezo dos filósofos pelos assuntos fugazes da vida prática dos mortais, pôde-se acrescentar o desprezo especificamente grego por tudo que é necessário à mera subsistência. Em suma, quando os filósofos começaram a se preocupar com a política de maneira sistemática, ela passou a ser encarada como um mal necessário (e suspeito de que a maioria dos brasileiros hoje consentiria nesse juízo, sobretudo quando a relação entre o sistema político brasileiro e o homem comum, privando-o dos direitos de cidadania, o posiciona num lugar de mero pagador de impostos).

Decerto, não estou sugerindo que os filósofos de hoje devessem seguir a atitude grega e, especificamente, platônica, em face da política. Mas recordar essa herança filosófica de desprezo com a política contribui para advertir aos que, tendo pendor para a filosofia, preferem, no entanto, ocupar-se com a tagarelice diária sobre os assuntos políticos que o filósofo não é o político e nem o militante político e, quando o é, não ocupa mais, mesmo que por um breve momento, o lugar do filósofo. Em suma, recordar o desprezo dos antigos gregos para com a política é lembrar que a filosofia, como observa Arendt, está mais próxima da poiesis que da praxis.

 

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