
O niilismo como pensamento
dessacralizador
Nesta
exposição, interessa-me retomar o tema do niilismo,
a fim de argumentar em favor da tese de que o niilismo constitui toda forma de
pensamento e/ou questionamento filosófico que põe a descoberto, que desnuda o
caráter ficcional do conjunto dos valores e instituições sociais. O niilismo,
sendo a lógica de constituição da história ocidental, é um fenômeno decisivo –
quiçá determinante - das dinâmicas sócio-históricas que permitiram o desenvolvimento,
no interior da sociologia, de uma teoria
construcionista crítica. Além de dilucidar, em linhas gerais, a tese
central de uma teoria construcionista crítica, pretendo também esclarecer em
que medida é lícito dizer que o niilismo instaura o horizonte epistêmico à luz
do qual foi possível o desenvolvimento de uma compreensão da realidade social
como resultado de uma construção humana.
Antes,
porém, de levar a efeito as duas tarefas referidas, urge dizer que o niilismo
não é um fenômeno histórico circunscrito ao século XIX. Embora seja sustentável
argumentar que os séculos XX e XXI são os períodos históricos de radicalização
do niilismo, embora devamos admitir que o niilismo é hoje a nossa condição
normal, há traços, pegadas do niilismo em quase toda a história da filosofia
ocidental e, certamente, em toda doutrina na qual o Nada aparece como problema
central (Volpi, 1999). Os primeiros registros de um pensamento niilista parecem
remontar ao movimento sofista. Tome-se, por exemplo, a contenda sofística que
põe em confronto nómos e phýsis. Nómos é a convenção dependente de um acordo estabelecido por um
grupo de indivíduos e que se torna lei para esse grupo. A phýsis é a natureza cuja ordem necessária independe da ação humana.
O niilismo como categoria crítica social começa sua carreira com o
questionamento sofístico. Os sofistas sustentaram a primazia do nómos sobre a phýsis. A moral é convenção. A igualdade e desigualdade entre os
homens são produzidas pela vida social; elas não são naturais. Pitágoras (481-
411 a.C.), advogando que de todas as coisas “ o homem é a medida”, tomou o
homem para critério da realidade. O homem é a medida de todas as coisas, das
que são, que são, e das que não são, que não são significa que é a ação humana
que faz as coisas existir tais como são; é pela ação humana que outras coisas
não existem, porquanto os homens convencionaram , por meio de leis, criadas por
eles, não as admitir. O pensamento de Protágoras se filia à invenção da
história. É no convencionalismo sofístico, na defesa sofista do nómos que se podem encontrar as
primícias do desenvolvimento do niilismo como categoria crítica social.
Górgias, por seu turno, foi o primeiro niilista da história ocidental (Volpi,
1999). Pela primeira vez, com clareza, desfaz-se a identidade entre ser, pensar
e dizer, expressa na palavra lógos.
Com Górgias, estabelece-se a diferença, a separação e a autonomia entre
realidade, pensamento e linguagem. Três são as declarações de Górgias cujas
consequências levaram à ruptura daquela identidade: 1) o ser não é ou o Nada é;
2) o ser não pode ser pensado; 3) o ser não pode ser dito. Os limites desta
exposição impedem-me de me alongar sobre essas três teses. Penso suficientes
estas considerações acerca das origens históricas do niilismo.
1. A realidade como
constructo social
Passo, pois, a partir de
agora, a me debruçar sobre as duas seguintes questões, já anteriormente
mencionadas e agora devidamente enunciadas: 1) o que defende uma teoria
construcionista crítica?; 2) em que medida o niilismo abre o horizonte
epistêmico à luz do qual tornou-se possível o desenvolvimento de reflexões,
teorias que põem a descoberto o caráter de constructo
social das instituições humanas? A fim de dar conta da primeira questão,
começo por citar Harari, que, em seu Sapiens
– uma breve história da humanidade (2018, p. 52-53), observa:
(...) grande parte de nossa história gira em torno desta
questão: como convencer milhões de pessoas a acreditarem em histórias
específicas sobre deuses nações, ou empresas de responsabilidade limitada?
Quando ouvimos, por exemplo,
o Presidente da República, falar em “nosso sentimento patriótico”, devemos
inferir daí duas conclusões: 1) há uma forte cumplicidade entre o discurso
político e o senso comum; 2) o enunciador evoca a crença, comumente partilhada,
na existência objetiva dessa entidade chamada “pátria”. A crença na existência
objetiva de tipos de coisas que são, na verdade, constructos sociais, ficções
culturais, criações da imaginação humana é indispensável não só à
constituição da realidade social, mas também à sua permanência. Conservando e
partilhando a crença no caráter objetivo dos constructos sociais, como se a
realidade social existisse independentemente da atividade humana, muitas
pessoas vivem e morrem em nome dessas ficções culturais, dessas construções
sociais. À medida que o poder de influência dessas construções imaginárias se
amplia, vai-se tornando cada vez mais claro que a própria sobrevivência de
rios, leões e matas depende de nossa crença no poder dessas criações da
imaginação que damos o nome de nações, deuses, corporações, Estado,
capitalismo, dinheiro, etc. Segundo
Harari (ibid., p. 158-159), a ordem imaginada está incrustrada no mundo
material. Embora seja criada por nossa imaginação, exista como ente da razão,
essa ordem se objetiva, sendo até mesmo gravada na pedra. A ordem imaginada
define nossos desejos, como bem assinala o autor:
(...) a maioria das pessoas não quer acreditar que a
ordem que governa a sua vida imaginária, mas na verdade cada pessoa nasce em
uma ordem imaginada preexistente, e seus desejos são moldados desde o
nascimento pelos dominantes. Nossos desejos pessoais, portanto, se tornam as
defesas mais importantes da ordem imaginada.
A ordem imaginada é
intersubjetiva, ou seja, ela é uma criação de indivíduos social e
historicamente situados e engajados em práticas sóciocognitivas-interacionais.
Conforme assinala Harari (ibid., p. 164),
[ela] existe na rede de comunicação ligando a consciência
subjetiva de muitos indivíduos. Se um único mudar suas crenças, ou mesmo
morrer, será de pouca importância. (...) Fenômenos intersubjetivos existem de
uma maneira diferente de fenômenos físicos como a radioatividade, mas seus
impacto no mundo ainda pode ser gigante.
Uma ordem imaginada só pode
ser mudada, se, primeiramente, as pessoas passarem a acreditar na possibilidade
de criar uma ordem social alternativa. Um dos postulados da teoria
construcionista crítica é sustentar que toda realidade social, por mais densa
ontologicamente que seja, por mais sólida que seja, pode ser revogada, muito
embora reconheça que o instituído, tendo se estabelecido, passa a existir
concretamente, fazendo valer seus imperativos, de modo que “a realidade
construída perdura, torna-se instituição, estrutura, moldagem, não sendo o caso
de pensá-la como de fácil demolição” (Filho, 2017, p. 38). O que uma teoria
construcionista crítica sustenta é, em suma, o seguinte:
A realidade
social existente (incluindo as dimensões imaginárias, simbólicas e
subjetivas) é uma construção que decorre
das práticas dos indivíduos, grupos, classes sociais, instituições, etc. em
sua contínua atuação nos vários espaços
em que se distribuem nas diferentes sociedades e épocas. ( grifo meu,
Filho, ibid., p. 31-32).
O construcionismo crítico mantém que nossas lutas e
disputas fazem parte da constituição do tecido histórico, mas essa constituição
da história não segue um plano racional. Em grande medida, as construções
sociais e seus resultados são involuntários e imprevisíveis. O mundo social é
permeado de instituições que não foram racionalmente concebidas ou
conscientemente planejadas. Como bem disse Cioran (2011, p. 100), “ninguém quer
aceitar que a história se desenvolveu sem nenhum motivo, independentemente de uma
direção determinada, de um objetivo”.
Cuidando esclarecida a tese
central da teoria construcionista crítica, lançarei olhares sobre a questão que
consiste em determinar em que medida o niilismo constitui um horizonte
histórico-epistêmico à luz do qual se tornou possível o desenvolvimento de uma
teoria ou de um conjunto de reflexões sociológicas, filosóficas que põem a
descoberto o caráter ficcional, artificial, imaginário da realidade social.
2. O niilismo como categoria crítica social
Consoante ensina Volpi (ibid., p. 8), “o niilismo
constitui (...) uma situação de desnorteamento provocado pela falta de
referências tradicionais, ou seja, dos valores e ideais que representavam uma
resposta aos porquês, e como tais, iluminavam a caminhada humana”.
A modernidade do século XIX
se caracterizou pela atuação de sujeitos sociais que questionavam
explicitamente valores e instituições sociais vigentes até então de um modo tal
considerado por eles revolucionário. O niilismo, a partir da década de 1860,
antes mesmo de sua teorização por Nietzsche, era relativamente difundido pela
Europa e referia-se a correntes socialistas revolucionárias atuantes na Rússia
czarista. Os questionamentos levantados pelos segmentos sociais que se opunham
a estes grupos socialistas eram muito próximos daqueles levantados
posteriormente pelos filósofos: é desejável romper com instituições
consideradas até então legítimas? Mais do que isso: é possível que o mundo
social sobreviva sem elas, sem que tornemos a viver em um estado de barbárie? A
essas questões que acenavam com o receio e a angústia em face de um futuro
catastrófico, acresce-se a dúvida acerca da possibilidade de os novos valores e
instituições que esses revolucionários pretendiam criar fornecerem um sentido sólido
para o mundo. O niilismo, nesse contexto histórico, congrega uma série de
propostas ativas, anseios, atitudes destinadas ao rompimento com os valores, as
instituições e sentidos pré-existentes na sociedade. O niilismo na Rússia da
segunda metade do século XIX desenvolveu-se no imaginário popular por força das
ações de jovens estudantes socialistas, que atuavam nas grandes cidades do
país, como São Petersburgo, Moscou e Novgorod. A intenção deles era organizar a
população camponesa para o levante revolucionário contra o Estado czarista. As
classes dirigentes da sociedade pressentiam nesses movimentos subversivos o
risco do Nada, de que é prenhe todo niilismo: a ausência de toda ordem social.
A experiência da Rússia
czarista atesta que, historicamente, o niilismo assenta na contestação e na
necessidade de ruptura com os valores sociais tradicionais, considerados como
esteios sólidos para a instituição de sentido para o mundo e a existência
humana. É justamente nesse horizonte de compreensão do niilismo que proponho se
deve vê-lo como um acontecimento histórico que determina o modo de ser do homem
que se constituiu na confluência das culturas judaico-cristã e greco-romana. O
niilismo instaura uma certa ambiência hermenêutica e epistêmica à luz da qual a
realidade social ou o mundo humano, ordenado em instituições, relações e
práticas simbólicas, costumes e atividades políticas e culturais pôde passar a
ser questionada como uma construção resultante da atividade de agentes humanos
situados historicamente. É na esteira do niilismo e graças ao seu poder de
negação, de nadificação que se pode combater e recusar as concepções
essencialistas com base nas quais se explica a existência do mundo e do homem
pela alegação da existência prévia, originária de uma instância transcendente e
eterna ou de entes sobrenaturais e criadores.
O niilismo se insurge contra
o que Michel Meffesoli chama esquema
substancialista que marcou o Ocidente, cujas figuras são a do Ser, Deus,
Estado, Instituição, Indivíduo, Identidade, Bem, entre outras. O niilismo
descerra as condições de possibilidade para o compromisso com a crítica radical
do que Meffesoli chama “Fantasma do Uno”, ou seja, uma matriz ideológica,
imaginária que, reduzindo toda a diversidade e complexidade do real (domínio
das infinitas possibilidades, das virtualidades) ao imperativo do Uno, está na
origem da fundação dos monoteísmos morais, políticos e dos autoritarismos que
culminaram com os piores totalitarismos. O niilismo, a fim de assegurar seu
poder bélico, contestatório de todas aquelas variantes do esquema
substancialista, precisa trazer à luz a insignificância radical da condição
humana, o abismo em que assenta a história, a abissal indiferença cósmica para
com nossas rixas, rivalidades, lutas e disputas pelo poder de determinar o
curso do desenvolvimento histórico que resiste a acomodar-se ao regime de um
plano racional.
Penso ter descerrado, a esta
altura, o que chamo de Lucidez niilista.
O niilismo se apresenta, pois, como uma forma de pensamento dessacralizador,
fundado na negação radical de todo ideal, de toda pretensão de segmentos
societários, que gozam do privilégio do poder instituído, de reificar, de naturalizar,
hipostasiar sentidos e valores que são historicamente produzidos, sedimentados
e conservados. O niilismo é o modus operandis de toda crítica desconstrucionista ou genealógica que visa a
“desenterrar”, a pôr sobre a terra as raízes das configurações, das conformações históricas cuja existência é justificada metaempiricamente ou
metafisicamente. Como bem nota Filho (ibd., p. 52),
(...) é o ser humano o único animal que tem consciência
antecipada de sua morte, e a ilusão produzida por ele próprio, de permanência
(reprodução, duração e eternidade) da realidade dos mundos cósmico e social
anda, em diversas culturas e até aqui, de par com a vontade de imortalidade,
invulnerabilidade à morte. Fenômeno cuja generalidade não o torna menos
constructo humano que todos os outros.
Embora não reste dúvida de que, historicamente, os seres
humanos erigiram os grandes edifícios simbólicos que constituem a ordem social
com vistas a tornar possível a sobrevivência da espécie num ambiente natural
inóspito, é sempre bom lembrar que tais edificações garantem aos homens a
proteção contra a angústia originária que, acompanhando Heidegger, dormindo no
ser-aí, pode, no entanto, ser despertada revelando o Nada – não o nada como “ao
lado” do ente em sua totalidade, mas o nada no ente como perda de mundo, como
fuga do ente em sua totalidade. O modo de ser do impessoal tende a expulsar o
nada: “quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o deixamos enquanto tal, e
tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na
pública superfície do ser-aí”. (Heidegger,
1983, p. 41).
O niilismo é o grande pensamento
da Lucidez, da mais luminosa Aurora, que descerra o horizonte do Nada, como
experiência da nulidade, da insignificância, do desamparo, da perda, do Vazio
para afirmar o real como domínio de infinitas possibilidades e a vida, na
esteira de Nietzsche, como complexo de múltiplas interpretações configuradoras,
criadoras de novas formas de existência. Sendo os seres humanos animais
simbólicos dotados de uma consciência antecipada da morte, o niilismo deve
afirmar seu poder de dessacralização sob o regime hermenêutico do signo da
Morte, à luz do qual cada indivíduo humano é lembrado de que “ganha a sua vida
como uma dádiva, surge do nada, depois sofre a perda dessa dádiva através da
morte, voltando ao nada”. É sob o regime hermenêutico do signo da Morte que o
niilismo deve lembrar aos indivíduos, contra as suas manias de grandeza, contra
seus empedernidos hábitos de rivalizar, disputar e até matar em nome de suas
crenças ilusórias, justificadas metafisicamente, contra suas aparentemente
inofensivas loucuras diárias que os fazem subservientes do falatório e de seus
dispositivos de interpretação que visam a assegurar ser o mundo, o real tal
como dele se fala – é, repito, sob o regime hermenêutico da Morte que o
niilismo deve lembrar aos indivíduos “que seu lugar e duração (...) são partes
finitas de um infinito, de um ilimitado” e que
sua
existência propriamente dita encontra-se apenas no presente, cujo escoar sem
obstáculos no passado é uma transição contínua para a morte, um sucumbir sem
interrupção (...) pois sua vida passada já terminou por inteiro, morreu e não
mais existe. (Schopenhauer, 2015, p. 360).
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