
Sobre o modo de vida
superior
Começo por
colocar aquilo que me proponho dizer em perspectiva. Não acompanho Deleuze, ao
sustentar que “o filósofo é o amigo do conceito”. Não pretendendo fazer aqui
um arrazoado crítico da concepção
deleuzeana de filosofia, contento-me em afirmar meu completo desacordo com Deleuze
no que tange à redução que faz da filosofia a uma atividade de produção de
conceitos. O filósofo não é mero criador de conceitos, embora criar conceitos
faça parte de seu trabalho. Mas Deleuze não capta o que me parece ser o
essencial da vida filosófica, do modo de ser ‘filosófico’.
Concordo, por outro lado, terminantemente, com
Pierre Hadot, ao advogar que a filosofia é exercício espiritual destinado a cunhar modos de ser. A filosofia
era experienciada na Antiguidade como "maneira de viver". Disso se
segue que o filósofo é, ao mesmo tempo, aquele em cujo ser se exterioriza a
maneira de viver filosófica e o guardião do modo de viver filosófico. Tendo a
acreditar também que a filosofia, conquanto, originalmente, pretendesse
conquistar as esferas da vida cotidiana, apresentando-se como uma série de
questões formuladas por Sócrates ao homem comum, habitante e transeunte do
"mundo da rua", ela, a filosofia, é uma experiência espiritual
aristocrática. Não creio na possibilidade de "democratização da
filosofia". Nem todos são capazes de filosofar. Pode-se discutir as razões
por que a filosofia não é uma experiência acessível a todos; mas dificilmente
se poderá negar a estranheza entre o exercício da filosofia e o homem comum.
Tendo a aceitar a ideia de que o filósofo é um ser que vive à parte, não
divorciado do real, como, aliás, pensa equivocadamente os não filósofos (a
maioria esmagadora dos homens). Ele é um ser que vive à parte, porque, como
pretendia Nietzsche, é quem deve afirmar-se como "espírito livre", a
saber, aquele cujo modo de viver liberou-se da tradição, aquele que pensa de
maneira diferente do que se poderia esperar; é ele quem questiona os valores do
seu tempo e desvela o fundamento das crenças vulgarmente aceitas como
"verdadeiras" e "inquestionáveis".
“O importante
não é viver, mas viver bem”, disse Sócrates. Quase sempre, quando sou instado a
prestar algum esclarecimento sobre para que me serve a filosofia, defronto-me
com a persistente incompreensão de meu interlocutor – incompreensão esta cuja
rígida espessura se conserva na persistência com que vigora um estado de
profunda ignorância largamente compartilhada pelo homem comum acerca do valor
existencial da filosofia. Em face dessa incompreensão inveterada do que faz um
filósofo, do que é a sua atividade, sinto que os que se dedicam à experiência
filosófica, ao estudo da filosofia, sinto que aqueles que tomam a vida
filosófica como um modo de vida superior, habitam um mundo diverso do mundo
habitado pelo homem comum. É claro que, na maioria das vezes, também o filósofo
compartilha esse mesmo mundo comum da cotidianidade mediana com os demais
homens, para os quais esse mundo esgota toda a extensão e complexidade do real.
Mas sempre que ouso dizer “bem, o real é muito mais extenso e complexo que esse
mundo cotidiano”, o choque, a colisão entre os dois mundos é inevitável. E a incomensurabilidade
entre eles se torna evidente e insuperável. Donde advém a certeza que me é assegurada
pelo sentimento que se me irrompe no espírito e o qual expresso do seguinte
modo: pareço viver como um esquizofrênico, ou seja, cindido entre dois mundos –
o mundo da filosofia e o mundo do senso comum. Como na maior parte do tempo
convivo com aqueles que vivem e pensam segundo os padrões do senso comum, tenho
necessidade premente de, na ausência daqueles que integram o círculo fechado
dos “eleitos da filosofia”, refugiar-me na ocupação diária com os livros,
ocupação, aliás, que se me afigura como um ato de resistência à impregnação da
idiotice e vulgaridade das formas de existência do homem espiritualmente
embotado pelas formas de vida em nossas sociedades da hipercomunicação, reproduzidas
em redes de relacionamentos digitais - viveiros dos lugares-comuns, máquina da
reprodução em massa dos clichês - esses cemitérios de significado. Todo clichê
é sinal de empobrecimento de significado, de esvaziamento de sentido; é a
própria morte da profundidade. Entendo bem Nietzsche, quando buscava apartar-se
das multidões para viver recluso na sua fecunda solidão, própria, aliás, dos
espíritos livres.
Termino, pois, este
atestado de fidelidade ao modo de vida filosófico com estes meus dois
aforismos, que me brotaram como duas flores na vastidão de um terreno árido e
desértico. Eles me reconduzirão ao silêncio próprio daqueles que vivem imersos
na ocupação com a leitura, mas não o farão sem a promessa de que esse silêncio
será, em breve, interrompido para que se faça auscultar o Lógos da necessidade
da filosofia.
Da necessidade da filosofia
Depois de Nietzsche, pretender que a filosofia é a busca da
verdade é sinal de um inveterado mal-entendido; no entanto, me parece ainda
justo falar da filosofia como uma experiência de profunda intimidade com o
saber. O filósofo continua sendo o verdadeiro amigo do saber, aquele para quem
a vida deve pôr-se a serviço da sabedoria, e a filosofia deve conduzi-lo na
determinação da melhor maneira de viver. Na origem da filosofia, não só
persiste a evidência de que há diferentes maneiras
de viver, como também era evidente que algumas maneiras de viver eram inferiores
e outras superiores. A filosofia era então procurada por aqueles que desejavam
se tornar os melhores seres humanos e viver tão bem quanto um ser humano
pudesse viver. Justificar uma forma de vida superior equivale, portanto, a
justificar a própria necessidade da filosofia.
Da
maturidade de espírito
A maturidade de espírito não é uma conquista da idade
avançada; ela pode se dar em tenra idade, antes mesmo de aprendermos a fazer
contas. O ápice da maturação espiritual se atinge quando cada um descobre, por
intuição, sua irrelevância. É sinal de maturidade de espírito ousar dizer a si
mesmo, todas as manhãs, "cosmologicamente, sou um ser irrelevante". A
filosofia vem, em seguida, em socorro daqueles que, alcançado a beatitude de
tal conhecimento, pretendem dignificar a irrelevância cósmica de sua
existência, precária e sem sentido último.
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