
O mundo como Vontade
No
livro II de O Mundo como Vontade e
Representação, Schopenhauer apresenta e desenvolve o segundo ponto de vista
sob o qual o mundo é considerado: o
mundo como Vontade Ao longo de todo esse segundo livro, Schopenhauer se
dedicará, especialmente, a esclarecer o significado do termo Vontade.
É,
sobretudo, na concepção do mundo como Vontade que se pode descortinar o caráter
absurdo da existência. É também por força da categoria da Vontade, como coisa-em-si, impulso cego e sem
finalidade, à luz da qual o mundo é interpretado, que a filosofia
schopenhaueriana se constitui como uma filosofia do absurdo.
Faz-se
mister reter o seguinte: o conceito de Vontade constitui o elemento nuclear da
filosofia pessimista schopenhaueriana. Rosset
(1989, p. 21) chega, inclusive, a dizer que a Vontade é o único pensamento que Schopenhauer
se dá a pensar para compreender o mundo. O absurdo que a filosofia de
Schopenhauer põe a descoberto não repousa apenas, segundo acredita Rosset, na
concepção de Vontade, como fundamento sem fundamento, finalidade sem fim, como
impulso cego; mas também - e sobretudo - no fato de que a Vontade se apresenta
como um acontecimento necessário para que Schopenhauer explique a existência de
um mundo ordenado – ordem esta, no entanto, que se desvela, à luz do pensamento
schopenhaueriano, absurda, sem sentido.
O
que é, pois, a Vontade de que fala Schopenhauer? Num primeiro momento, não
devemos tomá-la como a vontade individual, aquilo que chamamos de nossa
vontade. A Vontade é a coisa-em-si kantiana, é a essência íntima do mundo, a
substância do fenômeno. A Vontade é eterna e infinita; é atemporal, ou seja,
escapa às condições de tempo e espaço, e ao princípio da causalidade. Ademais,
somente a Vontade é livre. Ela é o ser em si comum a todos os fenômenos e o
fundamento de todo o mundo fenomênico. A Vontade é o fundamento metafísico do
mundo; é a causa sem causa e sem finalidade do mundo fenomênico.
Como
coisa-em-si, a Vontade é absolutamente diferente do seu fenômeno (o mundo) e
das formas fenomênicas em que se manifesta e em relação às quais é
independente. Nas palavras de Schopenhauer,
A Vontade, como coisa em si, está, como dissemos, fora do
domínio do princípio de razão, sob todas as suas formas; ela é, por
consequência, sem fundamento, ainda que cada um dos fenômenos esteja
completamente submetido ao princípio de razão. (ibid., p. 122).
A
Vontade é totalmente independente da pluralidade, conquanto suas manifestações
no tempo e no espaço sejam infinitas. A Vontade, portanto, é a coisa-em-si, a
essência íntima do mundo e, embora seja de ordem metafísica, independente das
condições do tempo e do espaço, se manifesta nas diferentes formas do mundo
inorgânico e orgânico. Schopenhauer chama objetivação
da Vontade a manifestação da Vontade nas diversas formas fenomênicas do
mundo.
Ainda
que a concepção de Vontade como coisa-em-si inspire-se no conceito kantiano de coisa-em-si,
Schopenhauer, ao contrário de Kant, confere um caráter cognoscível à
coisa-em-si. É claro, conforme veremos, que a cognoscibilidade da coisa-em-si
schopenhaueriana é relativa, porque a conhecemos relativamente à experiência
que temos do nosso corpo – o meu corpo, sob esse segundo ponto de vista em que
o mundo é considerado, é a minha vontade. Em seguida, a inteligência nos leva a
apreender a Vontade no conjunto dos fenômenos do mundo inorgânico e orgânico. Tudo que existe existe como objetivação da
Vontade. Destarte, escreve Schopenhauer: “o que é em si Vontade aparece
como representação, isto é, fenômeno”. (ibid.). O absurdo da existência, que se
deixa ver na compreensão da objetidade da Vontade, ganha a espessura de um
drama existencial cujo desenvolvimento vai revelando, à proporção que o leitor
nele se aprofunda, no livro IV, o caráter trágico do destinar-se do mundo e da
existência humana. É no livro IV que Schopenhauer descerá a pormenores sobre a
dinâmica inerentemente dolorosa da vida. Destinaremos seções específicas para a
abordagem da relação entre a Vontade e o sofrimento, ou entre a Vontade e a dor
de viver. Por ora, cumpre-nos lançar algumas luzes sobre os aspectos formais do
campo conceitual em que se inscreve o conceito de Vontade no pensamento de
Schopenhauer. Esses aspectos formais (isto é, estruturais) compreende outras
noções que entram a fazer parte da composição do referido campo, entre as quais
estão o princípio de individuação, ideia, corpo
e vida. Trataremos destas noções em
duas subseções: na primeira das quais, serão contemplados em conjunto o
princípio de individuação e ideia; na segunda, ocupar-nos-emos das noções de corpo
e vida. A razão por que decidimos dar realce ao tratamento destas noções
repousa no interesse de, por um lado, pôr em evidência a importância dos
conceitos de princípio de individuação e
ideia nessa etapa da constituição da doutrina de Schopenhauer; por outro lado,
de facultar a intelecção das diferenças entre a compreensão schopenhaueriana e
nietzschiana de corpo e vida. Esperamos que a consideração dessas duas noções
em uma subseção específica facilite o acesso cognitivo do leitor à significação
dos referentes textuais ‘corpo’ e ‘vida’.
1. O princípio de individuação
Se,
conforme vimos, tempo e espaço são reunidos sob a jurisdição do princípio de
razão suficiente, quando o mundo se nos apresenta sob o ponto de vista da
representação, agora, do ponto de vista do mundo como Vontade, tempo e espaço
constituem o princípio de individuação. Temos, pois, o princípio de
individuação suprimindo do princípio de razão a causalidade e conservando o
tempo e o espaço.
Pelo
princípio de individuação, a saber, o tempo e o espaço, “aquilo que é um só e
semelhante na sua essência e no seu conceito nos aparece como diferente, como
vários, tanto na ordem da coexistência, como na da sucessão”. (Schopenhauer, ibid.,
p. 122).
Schopenhauer,
seguindo de perto Platão, tomará deste o conceito de ideia para designar os graus determinados e fixos da
objetivação da Vontade. A “ideia” designa cada grau de objetivação da
Vontade. Esses graus ou ideias se manifestam nos objetos particulares, em cada
fenômeno, como suas formas eternas (essências), como os seus protótipos. (ibid.,
p. 138).
Schopenhauer
propõe que se discriminem diversos graus (ideias) da objetivação da Vontade.
Daí se segue que as forças gerais da natureza aparecem como o grau mais baixo
da objetivação da vontade. Essas forças gerais se manifestam em toda a matéria:
a gravidade, a impenetrabilidade são exemplos de graus inferiores de
objetivação da Vontade.
A
escala de objetivação da Vontade vai-se tornando mais complexa e significativa
à medida que a Vontade se manifesta em fenômenos mais complexos. Assim, segundo
Schopenhauer, “é nos graus da objetidade da Vontade que vemos a individualidade
produzir-se de uma maneira significativa, nomeadamente no homem, como a grande
diferença de caracteres individuais, isto é, como personalidade”. (ibid., p.
139).
No
trecho acima referido, Schopenhauer quer nos fazer entender que o grau do
princípio de individuação é sensível à escalada da objetivação da Vontade.
Assim, objetivada nos animais, a Vontade deixa mais nítido e acentuado um grau
de individualidade que falta nos vegetais, ainda que a individualidade nos
animais não atinja seu grau mais elevado. É somente no homem que a
individualidade atingirá seu grau mais elevado; nele ela “exprime-se já no exterior através de uma fisionomia fortemente
acentuada, que afeta toda a forma do corpo”. (ibid., ênfase nossa).
Portanto,
a objetivação da Vontade no mundo fenomênico se faz numa escalada de graus. No
grau mais baixo de sua objetivação, quando se manifesta nas forças naturais e
no reino dos vegetais, a Vontade é um impulso cego, um esforço misterioso,
estranho a qualquer consciência. A Vontade também se manifesta na parte
vegetativa dos animais, na geração e desenvolvimento de cada animal. Também aí
ela não é mais que um impulso absolutamente inconsciente, “semelhante a uma
força obscura”. (ibid., p. 158).
Quando
a Vontade atinge graus de objetivação maior, nomeadamente nos animais, acarreta
a diversidade de fenômenos individuais que, crescendo até chegar a uma
multidão, se perturbarão mutuamente. Teremos a oportunidade de compreender de
que modo a Vontade servirá a Schopenhauer como um dispositivo explicativo da
luta pela sobrevivência que, no mundo natural, assume a forma de uma cadeia de
carnificina.
1.2. O corpo é minha vontade e a vida é
esforço contínuo
Já
vimos como Schopenhauer compreende o corpo sob o ponto de vista do mundo como
representação. Vale lembrar que, no mundo como representação, o corpo é um
objeto entre outros, é representação que constitui o ponto de partida de todo
conhecimento.
Doravante,
será necessário dilucidar o que é o corpo à luz da perspectiva do mundo como
Vontade. Schopenhauer, à página 112 de O
Mundo como Vontade e Representação, assevera: “o meu corpo e a minha vontade são apenas um”. Dizer que o meu corpo
é a minha vontade é apontar para outro modo de experienciá-lo. Esse outro modo
de experienciar o corpo é, segundo Schopenhauer, “absolutamente diferente” (ibid.,
p. 113). Em que consiste essa diferença é justamente o que trataremos de
esclarecer.
Em
primeiro lugar, o corpo é a objetivação da Vontade, ou “a minha vontade tornada
visível” (ibid., p. 117), de modo que “todo ato de meu corpo é fenômeno de um
ato da minha vontade” (ibid., p. 116). Schopenhauer mantém que a Vontade é o
conhecimento a priori do meu corpo; e
meu corpo, o conhecimento a posteriori
da Vontade. Na medida em que meu corpo é minha vontade, a Vontade é vista agora
como a essência de meu corpo; ela é o
meu próprio corpo, quando este não é objeto de intuição. Ela se manifesta nos
movimentos voluntários do corpo, visto que esses atos são apenas atos visíveis
da minha vontade. Os atos da minha vontade encontram nos motivos seu fundamento; todavia, “eles [os motivos] determinam sempre apenas o que eu quero em tal
momento, em tal lugar, em tal circunstância; e não o meu querer em geral, isto
é, a regra que caracteriza todo o meu querer”. (ibid., p. 116, ênfase
nossa). Ora, esse excerto ilustra bem a medida da influência que exerceu
Schopenhauer sobre a formulação do conceito freudiano de inconsciente. O que
Schopenhauer advoga é que não tenho consciência da essência do meu querer. Os
motivos não me dão a saber o que a Vontade em mim quer essencialmente. Os
motivos “apenas determinam as suas manifestações [a do querer] em um dado
momento”. (ibid.).
Todo
ato do meu corpo é fenômeno de um ato da Vontade. Nesse ato, exprime-se, por
força dos motivos, a minha vontade,
a qual constituirá o meu caráter.
Mas é o corpo a condição necessária e prévia da manifestação da Vontade, que é,
então, a minha vontade, que é meu corpo.
Por
fim, deve-se enfatizar que cada ato particular de meu corpo tem uma finalidade,
mas a Vontade em si não a tem. A Vontade em si é um impulso cego, inconsciente,
incausado. Consoante Schopenhauer, “a única consciência geral de si mesma que a
Vontade tem é a representação total, o conjunto do mundo que ela percebe; ele é
a sua objetidade, a sua manifestação e o seu espelho; e o que ele exprime sob
este aspecto (...)”. (ibid., p. 173).
O
meu corpo, subjetivamente experienciado, revela-se para mim como corpo
essencialmente volitivo. Essa experiência do corpo como corpo volitivo leva-nos
a concluir, por analogia, que, nos demais corpos, essa mesma essência volitiva
se faz presente. Portanto, a Vontade como coisa-em-si se manifesta na
fisiologia do corpo humano, o qual serve de locus
privilegiado a partir do qual é possível decifrar a essência íntima do mundo: a
Vontade ou o querer-viver cego e sem finalidade.
No
que toca à concepção schopenhaueriana de vida, devemos assinalar que o
significado que o conceito de vida tem no pensamento de Schopenhauer
apresenta certas tonalidades que se deixam rastrear ao longo dos livros II e
IV. Essas tonalidades, no entanto, estão articuladas à concepção geral de vida
como fenômeno, espelho da Vontade. Mas, como a Vontade é um querer viver
incessante e sem finalidade e como querer viver é fazer esforço, a vida é esforço. Todavia, a vida,
observará Schopenhauer, é também expansão livre, espontânea e irresistível dos
seres; é crescimento, abundância – concepção esta que o aproxima de Nietzsche.
Mas essa aproximação não chega a redundar num acordo; pois que, para
Schopenhauer, viver é fazer esforço, e esforço envolve dor; logo, viver é
sofrer; a vida é essencialmente dor.
Expusemos,
aqui, os traços semânticos fundamentais do significado de vida em Schopenhauer;
mas tornaremos a considerar como o conceito de vida vai-se construindo
semanticamente na doutrina desse filósofo no decorrer desta etapa de nossa
exposição. Basta, por ora, que o leitor retenha a ideia de que a vida é a
manifestação pura da Vontade e, consequentemente, que a Vontade é Vontade de
viver (Schopenhauer, aliás, diz ser redundante dizer que Vontade é Vontade de
viver, já que Vontade e Vontade de viver são a mesma coisa. (v. ibid., p.
289)).
1.3. A Vontade e a Dor de Viver
Cite-se o seguinte excerto de Schopenhauer:
(...)
o homem tem sempre uma finalidade e motivos que regulam suas ações: pode sempre
dar conta de sua conduta em cada caso. Mas perguntem-lhe por que é que ele
quer, ou por que é que ele quer ser, de uma maneira geral: não saberá o que
responder, a questão lhe parecerá mesmo absurda. (ibid., p. 172).
Esse
trecho encaminhará nossa reflexão sobre o significado do conceito de Vontade
para outro horizonte de sentido, à luz do qual a Vontade é vontade de viver. O homem não sabe dizer por que se
agarra à vida de modo tão tenaz e irresistível. Esse querer ser, esse querer
existir é irracional. Em Nos cumes do
desespero (2011, p. 49), Cioran alude a esse nosso apego irracional à vida:
“(...) não sei por que
vivo e por que não cesso de viver. A chave, provavelmente reside no fenômeno da
irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha sem motivo”. Para
Schopenhauer, a chave do mistério é a Vontade: nosso apego à vida, que resiste
a uma justificação racional, é um efeito do querer viver, do impulso cego, que
é a Vontade, em nós.
De que modo essa vontade de viver
produz como consequência inevitável e necessária a dor, o sofrimento? Esta e as
seções subsequentes serão destinadas a responder a esta questão.
Principiemos por observar que todas as
formas fenomênicas que são manifestações das ideias eternas se ligam a uma
matéria, que é constante e a mesma para todos os fenômenos. Justamente por ser
a matéria única e constante, todas as manifestações da Vontade, suas formas
fenomênicas, entram em disputa, em conflito entre si para apoderar-se dessa
matéria. Do conflito entre as formas fenomênicas origina-se uma forma superior
que sobrepuja todos os outros fenômenos mais imperfeitos que existiam antes. A
forma fenomênica mais perfeita (ou ideia mais perfeita) que logra sucesso nesse
combate adquire um novo caráter, já que subtrai às ideias vencidas um grau
análogo a um poder superior. Assim, segundo Schopenhauer,
A Vontade
objetiva-se de um modo mais compreensível; e, então, formam-se, primeiro, por
geração equívoca, e, em seguida, por assimilação ao germe existente, a seiva
orgânica, a planta, o animal, o homem. Assim, da luta dos fenômenos inferiores
resulta o fenômeno superior, que os absorve todos, mas que, ao mesmo tempo,
realiza a aspiração constante deles, em direção a um estado mais elevado (...).
(ibid., p. 154).
A objetivação da Vontade no mundo, quer
orgânico, quer inorgânico, se dá, pois, por um combate sem tréguas, por uma
luta incessante das manifestações da Vontade, as quais se esforçam por
apoderar-se da matéria. Esta luta voraz e incessante que se deixa ver por toda
a natureza é a manifestação do “divórcio essencial da vontade com ela mesma”.
(ibid., p. 155).
Assim,
em toda parte na natureza, nós vemos luta, combate, e alternativa de vitória, e
deste modo chegamos a compreender mais claramente o divórcio essencial da vontade com ela mesma. Cada grau de
objetivação da Vontade disputa ao outro a matéria, o espaço e o tempo. A
matéria deve mudar constantemente de forma, atendendo a que os fenômenos
mecânicos, físicos, químicos e orgânicos, segundo o fio condutor da
causalidade, e apressados para aparecerem, disputam-na entre si obstinadamente
para manifestar cada qual a sua ideia. (ibid., grifo nosso).
A
expressão “divórcio essencial da
vontade com ela mesma”, embora dotada
de efeitos estéticos, expressa de modo eufêmico o que está em jogo nessa luta
sem trégua pela vida. Quando contemplamos a natureza com suas formas orgânicas
travando lutas umas com as outras, o que vemos é uma vontade de viver
esfomeada, que tem de devorar sua própria carne, para lembrar aqui uma
impressionante imagem utilizada por Schopenhauer. O sofrimento do mundo animal
só pode ser justificado pelo reconhecimento do fato de que é a Vontade, como
impulso cego de vida, que devora a si mesma, o que não significa que a Vontade
em si mesma se destrua. A Vontade, como coisa-em-si, é indestrutível, eterna.
São as formas fenomênicas nas quais se objetiva a Vontade que se destroem
disputando a matéria umas com as outras.
No
mundo animal, a luta que se trava pela vontade de viver se encontra em toda
parte: num lugar, vemos um animal comendo plantas, noutro, um leão atacando e
devorando uma gazela, “e cada indivíduo serve de alimento e de presa para
outro”. (ibid.).
Se
tomarmos a chamada cadeia alimentar como uma vasta e ininterrupta cadeia de
carnificinas, estaremos ainda distante da inconsciência subjacente ao caráter
conflitual da objetivação da Vontade; pois, para a Vontade, a existência do
indivíduo nada vale. Assim, o espetáculo terrível de carnificina que nos
oferece o mundo natural é descrito por Schopenhauer com termos que buscam dar
conta da dinâmica absurda do espetáculo. Senão, vejamos:
(...)
Cada animal deve abandonar a matéria pela qual se representava a sua ideia,
para que um outro se possa manifestar, visto que uma criatura viva só pode
manter sua vida à custa de uma outra, de modo que a vontade de viver se refaz
constantemente com sua própria substância, e sob as diversas formas que
reveste, constitui o seu próprio alimento. (ibid., p. 155-156).
Esse
excerto deve nos tornar cônscios do seguinte fato: a morte é um acontecimento integrante da dinâmica da vida. A morte
não se relaciona com a vida como um polo externo contrário ao outro. A vontade
de viver se sustenta à custa da morte de outros organismos. Além disso, a morte
de um animal não é mais que uma necessidade determinada pela Vontade –
necessidade que consiste em que uma ideia deve abandonar a matéria em que se
manifestava. A Vontade que se devora a si mesma mediante a sucessiva destruição
de suas formas fenomênicas nunca se destrói. Ao contrário, ela continua
afirmando-se nas formas fenomênicas triunfantes.
Vamos
desenvolver mais um pouco a ideia de que a Vontade, a coisa-em-si, é impulso cego ou desejo cego sem finalidade
e sem qualquer limite.
Schopenhauer
reconhecerá que, conquanto o esforço da matéria possa ser contínuo, ele nunca
encontra um termo e nunca é satisfeito. Tome-se o exemplo da planta, referido
pelo próprio Schopenhauer (ibid., p. 172). A planta desenvolve-se: o bubo primitivo
dá origem à haste, às folhas, às flores, aos frutos (e quando pensamos que o
processo para aí); acontece que o próprio fruto dá origem a outro bulbo, e o
velho caminho é percorrido eternamente.
Com
o animal se passa o mesmo. O curso de sua vida encontra na procriação o seu
mais alto estágio. Cumprindo esse ato, o indivíduo genitor morre num espaço de
tempo mais ou menos longo. O indivíduo gerado assegurará à natureza a
sobrevivência da espécie, e esse processo se reinicia eternamente.
Schopenhauer
mostra que também os esforços e desejos humanos, quando contemplados à luz da
Vontade, nunca são terminantemente satisfeitos. Sempre que um desejo é, num
momento, satisfeito, outro logo toma o lugar do primeiro e assim
sucessivamente.
A
Vontade pode saber o que quer em algum momento e lugar, quando o conhecimento a
esclarece; mas o que ela quer em geral, ela ignora. Assim, “todo ato particular tem uma finalidade; a
própria Vontade não a tem”. (ibid., p. 173, ênfase nossa). Os fenômenos
naturais, que aparecem em tal ou qual lugar, têm sua causa; mas a Vontade em si
mesma não a tem, já que a causa é apenas um grau da manifestação da
coisa-em-si.
1.4. A Vontade é desejo cego
Na
seção 54, do livro IV, Schopenhauer revisa, a título de síntese, o que foi
tratado nos três primeiros livros. É oportuno dar a saber essa síntese,
dispondo em ordem vertical as ideias pertinentes que ela faz recordar:
1.
O mundo, como representação, é, para a
Vontade, um espelho em que ela toma consciência de si mesma;
2.
A perfeição e clareza com que a Vontade vê a
si mesma decrescem por grau;
3.
No homem, reside o grau superior de
objetivação e perfeição da Vontade.
Segundo
Schopenhauer,
A
Vontade sem inteligência (em si não é outra), desejo cego, irresistível, tal
como a vemos, mostra-se no mundo bruto, na natureza vegetal, e nas suas leis,
assim como na parte vegetativa de nosso corpo, essa Vontade, digo, graças ao
mundo representado, que se vem oferecer a ela e que se desenvolve para servi-la
chega a saber que quer, isto é, o que quer: é este mesmo mundo, é a vida,
justamente, tal como se realiza. (ibid., p. 288-289).
Há
neste excerto duas ideias que devemos destacar: a primeira ideia é que a Vontade é desejo cego quando não
iluminada pela inteligência; a segunda é que a Vontade quer o mundo mesmo, a vida mesma “justamente tal como se
realiza”. Schopenhauer prossegue advertindo que, como a Vontade quer sempre a
vida, como é a vida a manifestação pura da Vontade, resta redundante dizer que
Vontade é vontade de viver. Vontade e Vontade de viver são a mesma coisa. (ibid.,
p. 289).
Uma
vez que a Vontade é a coisa-em-si, o fundo íntimo, a essência do universo, a
vida e o mundo fenomênico são “apenas o espelho da Vontade” (ibid.).
Schopenhauer lança mão da imagem da sombra e do corpo para sublinhar a
indissociabilidade entre Vontade e vida. O vínculo existente entre a Vontade e
a vida é, no entanto, mais necessário que o vínculo entre a sombra e o corpo
(“a sombra não segue mais necessariamente o corpo”). Onde quer que encontremos
Vontade haverá vida, mundo.
O
indivíduo é apenas aparência. Ele nasce e morre, quando visto à luz do
intelecto submetido ao princípio de razão e ao princípio de individuação.
Consoante sublinha Schopenhauer, “nesse sentido, sim, ele recebe a vida a título
de pura dádiva, que o faz sair do nada e para ele a morte é a perda dessa
dádiva, é a nova queda no nada”. (ibid., p. 289).
No
entanto, a filosofia, ao se debruçar sobre a vida para meditar nela, tem em
mira a ideia, isto é, a forma eterna e imutável, segundo Schopenhauer. E o que
a filosofia desvela, ao contemplar a ideia, é que nascimento e morte só dizem
respeito ao fenômeno, nunca à coisa-em-si. A Vontade, a coisa-em-si, o sujeito
como espectador dos fenômenos, não são afetados por esses acidentes, que são o
nascimento e a morte.
Nascimento
e morte se prendem às aparências assumidas pela Vontade; são acidentes que
tocam à vida. A Vontade nada tem a ver com eles. Por conseguinte, Schopenhauer
começa a nos mostrar a insignificância do indivíduo em face da Vontade. A
primeira passagem em que essa insignificância se torna patente é a seguinte:
(...)
a própria essência da vontade é produzir-se nos indivíduos, que, sendo fenômenos passageiros, submetidos na
sua forma à lei do tempo, nascem e morrem: mas mesmo então eles são os
fenômenos daquilo que, em si, ignora o tempo mas que não tem outro meio de dar
à sua essência íntima uma existência objetiva (...). (ibid., p. 289, grifo
nosso).
Nascimento
e morte são acontecimentos integrantes da dinâmica da vida: “são mutuamente a
condição um do outro” (ibid.). Schopenhauer vem em socorro da validade de nossa
interpretação:
Duvidamos
ainda que a geração e a morte devem ser apenas aos nossos olhos um acidente da
vida, acidente próprio desta manifestação da vontade, apenas dela? Eis uma nova
prova: é que uma e outra são simplesmente o
próprio movimento de que a vida é feita, mas elevado a uma potência
superior. (ibid., p. 291, grifo nosso).
A
imagem da morte (e também da geração, evidentemente) como o próprio movimento constitutivo da dinâmica da vida extirpa toda
sombra de dúvida quanto à relação intrínseca da morte com a vida. Para fins de
nossa argumentação, é imprescindível assinalar mais uma variante da compreensão
que Schopenhauer tem de vida. Recorde-se que dissemos que o conceito de vida,
em Schopenhauer, exibe algumas tonalidades, que ganham investimentos semânticos
tais como esforço, dor, sofrimento, abundância, etc. Uma dessas tonalidades assume a
forma do seguinte enunciado schopenhaueriano: a vida é “um fluxo perpétuo da matéria através de uma forma que permanece
invariável” . (ibid., p. 291, ênfase nossa). A forma que permanece
invariável é a Vontade. A Vontade é eterna e indestrutível. O indivíduo, ao
contrário, é a aparência; a espécie, a forma. Esta é imortal; aquele morre
necessariamente.
Essa
definição schopenhaueriana de vida pode ser desmembrada, de modo que possamos
nos aperceber da insignificância de tudo que existe. A vida é devir: todas as
suas formas fenomênicas estão submetidas ao fluxo incessante cujo modus operandi é o da luta, do conflito,
da disputa interminável que arrasta os malogrados para o nada. Por outro lado,
a vida é a manifestação da Vontade cega e indiferente à sorte dos fenômenos nos
quais ela se produz.
1.5. A Vontade e a insignificância do
indivíduo
Esta seção e as subsequentes serão destinadas à análise
da insignificância radical do indivíduo
à luz da visão do mundo como Vontade. Vimos que a Vontade é eterna e imutável,
ao passo que os indivíduos são mortais; não são mais que aparência. Como
Schopenhauer explica então a necessidade que tem o indivíduo de morrer? Segundo
Schopenhauer, a razão por que o indivíduo tem de morrer deve ser buscada no
fato de que a forma da objetivação da Vontade é o tempo, o espaço e a
causalidade, e, por conseguinte, a individuação. Assim, o indivíduo tem de
morrer porque ele é fenômeno apenas da Vontade e porque está submetido ao
devir, à impermanência de todas as coisas. Mas a necessidade do perecimento do
indivíduo deixa incólume a Vontade. A insignificância radical do indivíduo é
patente neste trecho tomado a Schopenhauer:
(...) em
comparação com a vontade, o indivíduo é apenas uma das manifestações, um
exemplar, uma amostra; quando um indivíduo morre, a natureza no seu conjunto
não fica mais doente; a vontade também não. Não é ele, em suma, é só a espécie
que interessa à natureza (...). (ibid., p. 290).
O mundo como
Vontade é um mundo sombrio e atravessado por uma indiferença radical com
relação ao viventes, em particular, às necessidades e anseios mais profundos
que inspiram o coração do homem. E Schopenhauer dispara mais um tiro que atinge
em cheio a elevada autoestima humana. Segundo o filósofo de Dantzig, à natureza
só interessa a conservação da espécie:
(...) é pois
por ela, pela sua conservação que a natureza vela com tanta solicitude, com
tantos cuidados, desperdiçando sem contar os germes, ateando em todos os
lugares o desejo de reprodução (...). Quanto ao indivíduo, para ela não conta,
não pode contar: não tem ela diante de si essa tripla infinidade, o tempo, o
espaço, o número dos indivíduos possíveis? Assim, ela não hesita nada em deixar
desaparecer o indivíduo; não só os mil perigos da vida corrente, os acidentes
mais ínfimas, que o ameaçam de morte; está-lhe destinada desde a origem e a
natureza para lá o conduz ela mesma, uma vez que ele serviu para a conservação
da espécie. (ibid.).
O fragmento acima citado não dá margem à dúvida: o indivíduo não é mais que um instrumento a
serviço da afirmação da Vontade, sempre esmerada em perpetuar-se no mundo
fenomênico pela conservação da espécie. Uma vez garantida a conservação da
espécie, o indivíduo é descartado. Como explicar a docilidade com que os
indivíduos se prestam a conservar a espécie em detrimento de sua própria
conservação? Por que eles não se revoltam contra o regime tirânico da vontade
de viver? A resposta reside na consideração do instinto sexual chamado por
Schopenhauer de Eros. Eros é o ardil
com que a Vontade, incitando os indivíduos à reprodução, garante a conservação
da espécie e, portanto, a perpetuação de si mesma no mundo fenomênico.
1.6. Eros e a afirmação da vontade de
viver
Convém
não perder de vista que é a insignificância radical do indivíduo que está sob
foco de nossas considerações. A mais enérgica, imperiosa e irresistível forma
pela qual o homem e o animal afirmam a vontade de viver repousa na satisfação
do instinto sexual. A compreensão da maneira como funciona esse instinto
desvela, mais uma vez, a insignificância radical do indivíduo.
Partindo-se
da premissa segundo a qual a natureza tem por essência a vontade de viver (e
considerando-se que o homem é um ser integrante da natureza), segue-se que o
objetivo primeiro do homem é a sua conservação. É importante que não percamos
de vista essa inclinação premente da Vontade em Schopenhauer, já que se trata
de uma característica que não encontrará acolhida na concepção nietzschiana de “vontade
de poder”: a vontade no homem e nos
animais não humanos é esforço para a conservação. Segundo Schopenhauer, uma vez que o homem
tenha garantido sua subsistência, sua conservação, ele quererá apenas garantir
a propagação da espécie. Deve-se, no entanto, fazer aqui uma ressalva: na
verdade, não é o homem que quer conscientemente a conservação da espécie, mas a
vontade nele que a quer. Portanto,
escreve Schopenhauer “(...) a natureza, que tem por essência a vontade de
viver, impulsiona com todas as suas forças quer o animal, quer o homem a
perpetuarem-se”. (ibid., p. 346).
Reencontramos
expressa aí a insignificância radical do indivíduo: este não é mais do que um
meio a serviço da Vontade para a satisfação de seu desígnio. A Vontade é
completamente indiferente ao indivíduo.
Portanto,
a natureza que tem por essência a vontade de viver, impulsiona com todas as
suas forças quer o animal quer o homem a perpetuarem-se. Feito isso, ela tirou
do indivíduo o que queria e fica bastante indiferente a sua morte, visto que
para ela – que, semelhante à vontade de viver, apenas se ocupa com a
conservação da espécie – o indivíduo é como nada. (ibid.).
Para
Schopenhauer, os órgãos sexuais são a verdadeira sede da vontade de viver;
nenhum outro órgão está tão submetido ao império da Vontade. Essa submissão à
Vontade exclui toda a influência da inteligência. Por isso, os órgãos sexuais
(...)
são o verdadeiro foco da vontade, o polo oposto ao cérebro, que representa a
inteligência, a outra face do mundo, o mundo como representação. Eles são o
princípio conservador da vida e que lhe assegura a infinitude do tempo; é por
causa desta propriedade que eles eram adorados pelos gregos no falo, e pelos
hindus na linga: símbolo duplo da
afirmação da vontade, vemo-lo agora. Pelo contrário, a inteligência torna
possível a supressão da vontade, a salvação pela liberdade, o triunfo sobre o
mundo, o aniquilamento universal. (ibid., p. 346-347).
Schopenhauer
atribui à inteligência um papel fundamental na libertação do homem da tirania
do querer viver. Devemos, no entanto, protelar a consideração desse aspecto da
doutrina schopenhaueriana, que será examinado quando nos ocuparmos da negação
da vontade de viver.
A
sexualidade é vista por Schopenhauer como uma ilusão vital, tese esta
longamente desenvolvida em sua Metafísica
do Amor. Ela é uma ilusão vital porque procura ardentemente, à revelia dos
amantes, os atributos físicos indispensáveis à geração da criança, a qual deve
reproduzir o modelo de espécie mais resistente e adequado à perpetuação da
Vontade. Em outras palavras, os amantes creem que escolhem cuidadosamente seu
amado, que é o amor apaixonado, desinteressado que os impulsiona nessa busca,
mas, na verdade, Eros está a serviço da Vontade; é uma espécie de ardil desta,
pelo qual ela quer realizar, através dos amantes, seu desígnio, qual seja, a perpetuação da espécie. Assim, para
Schopenhauer, o homem é essencialmente instinto sexual que, tomando corpo, se
esforçará, movido pelo apetite sexual, que é a própria essência do homem, para
conservar a espécie.
O
profundo pessimismo do qual a filosofia schopenhaueriana é um sintoma vigoroso
calca-se sobre a convicção de que a essência íntima do universo é uma Vontade
cega, absurda e irracional de viver, vontade esta que impulsiona todo o mundo e
cada ser vivo a desejar incessantemente a vida. A vida do ser humano,
especialmente, é um contínuo e incessante movimento de alternância de desejos que
jamais logram satisfação plena e duradoura, do que resulta que a vida seja experienciada
pelo homem como uma trama marcada por luta sem trégua, esforços inúteis, dores
intermináveis, pálidas satisfações intermitentes e tédio profundo.
À
tirania da Vontade, impulso cego sempre diligente em perpetuar a vida, nem
mesmo Eros escapa. O amor é, para Schopenhauer, portanto, essencialmente
instinto sexual, e dele a Vontade se serve como um estratagema para perpetuar a
si própria (já que a Vontade é vontade de viver). Os protagonistas da relação
amorosa acreditam estar vivendo livremente essa relação, à qual eles associam
toda sorte de significados, anseios, valores, sem saberem que a natureza os usa
como meros instrumentos para atingir seu fim fundamental: a conservação da
espécie pela reprodução. Assim, o amor, tanto quanto o casamento, é um simples
artifício empregado para um fim. Nem um nem outro comporta qualquer valor
sagrado. Que o amor esteja submetido à Vontade cega, absurda e irracional o
prova a loucura de que está impregnada a experiência amorosa. Assim,
Schopenhauer manterá que o amor é realmente poderoso e astuto, pois sabe iludir
o ser humano com promessa de felicidade duradoura, que jamais pode ser
realizada.
O
próprio prazer sexual é efêmero e insatisfatório, porquanto a união sexual não
visa nunca a tornar felizes os amantes, mas tão só a possibilitar a geração de
novas vidas, e com esta geração garantir a preservação da espécie.
Schopenhauer, portanto, opera uma radical desmitificação do amor. Toda pessoa
apaixonada é vítima de uma ilusão, por mais que creia no caráter sublime,
etéreo, celeste, transcendente do amor, vive-o na ignorância a respeito de sua
realidade: ele é instinto sexual a
serviço da perpetuação da espécie. É através dele que se afirma de maneira
mais enérgica e imperiosa a vontade de viver. Quando um indivíduo é tomado do
instinto amoroso, é a vontade que expressa ardentemente seu desejo de se
perpetuar num ser novo e distinto. Em A
Vontade de Amar (2008, p. 16-17), assinala Schopenhauer:
O
instinto do amor é meramente subjetivo, mas sabe iludi-los, ocultando-se sob a
máscara de uma admiração objetiva. Por mais que haja o amor perfeito e
desinteressado a alguém, o supremo fim é a geração de um novo ser. É prova
disso não se satisfazer o amor com sua reciprocidade sentimental, mas ter
necessidade da posse do gozo físico.
Conclui,
pois, o filósofo de modo severo e
desalentado:
As
almas nobres, os espíritos sentimentais, ternamente apaixonados, protestarão em
vão contra o realismo rude de minha teoria; seus protestos carecem de razão. A constituição e o caráter da geração
futura é uma finalidade do amor muito mais elevada que os sentimentos
fantásticos e seus sonhos de idealismo. (ibid., p. 17, grifo nosso).
O
frenesi de que é tomado um homem que encontra numa mulher o modelo vivo de seu
ideal de beleza é tão só a forma pela qual se agita a índole da espécie, sempre
ávida de perpetuar-se. Eis então, no excerto seguinte, como se nos apresenta
outro aspecto da constante e insuperável ilusão a que estão destinados os
amantes. Note-se que o amante nutre a crença ilusória de que a natureza
trabalha para preservar a união dele com o/a amado/a; mas, na verdade, não é
isso que acontece, segundo Schopenhauer:
É
também uma ilusão a sua crença [do homem apaixonado] de que unicamente a posse
de uma mulher, entre todas do mundo, lhe assegura uma ventura infinita.
Entretanto, imaginando embora que seus esforços e trabalhos visam apenas lograr
um gozo, na realidade trabalha só para perpetuar o tipo integral da espécie,
criando um indivíduo determinado, que carece dessa união para existir. (ibid.,
2008, p. 21).
O
exame levado a efeito por Schopenhauer sobre a natureza do amor se inscreve num
horizonte de desconstrução do ideal do amor romântico, ideal cujas raízes
remontam ao cristianismo. Há, na crítica schopenhaueriana do amor, um
verdadeiro desencantamento de Eros. Esse desencantamento pode ser interpretado
como uma verdadeira dessacralização do amor, cujo resultado é devolver a Eros
sua natureza instintiva, grosseira, que, ao longo de dois mil anos, foi
encoberta por ideais que o imaginário coletivo não fez mais do que reproduzir.
Mas, na verdade, a experiência não cansa de nos mostrar que tais ideais, que
foram decisivos na construção imaginária do amor ocidental, são incompatíveis
com a sua verdadeira natureza: a de ser
instinto de reprodução, de procriação, e nada mais.
No
passo a seguir, Schopenhauer nos faz ver que o destino de todo amante é a
decepção, o desencanto. O amante se engana ao pretender colher do gozo amoroso
as mais excelsas alegrias.
Todo
amante experimenta, uma vez satisfeito o desejo, uma decepção singular.
Surpreende-se de que sua paixão só lhe proporciona um prazer efêmero seguido de
um rápido desencanto. (...) [Ele] não tem consciência de que a espécie é quem
unicamente lucra com a satisfação de seu desejo; todos os sacrifícios que
realizou voluntariamente, impelido pelo gênio da espécie, serviram para obter
uma finalidade que não era sua. (ibid., p. 22).
Se
nos for permitido empregar um vocábulo que, embora estranho ao pensamento
schopenhaueriano, caracteriza bem a condição do amante, esse vocábulo é o
adjetivo “alienado”. O amante, ao viver seu amor, o vive na inconsciência de ser um
alienado, isto é, na ignorância do fato de que jamais é ele quem se realiza no
amor, de que não é ele, amante, que realmente se beneficia do amor. Todo amante
é, portanto, um ser alienado na medida em que não tem consciência de que não é
sobre ele que recai a vantagem do amor, mas sobre a espécie, que garante, no
ato da reprodução, sua perenidade.
1.7. A essência da vida é dor
A vida é, essencialmente, dor,
sofrimento. De inspiração budista, essa proposição constitui a tese
fulcral de todo o pensamento filosófico schopenhaueriano. Nesta subseção,
continuaremos a enfocar a insignificância radical do indivíduo, nomeadamente do
ser humano individual, mas à luz de
um horizonte de compreensão da vida como um esforço incessante que se constitui
essencialmente como dor e sofrimento.
No
livro II de O Mundo como Vontade e
Representação, num certo momento da crítica da moral estoica, levada a
efeito por Schopenhauer, o filósofo assevera: “Existe uma contradição notória
em querer viver sem sofrer” (p. 100). Esse enunciado foi por nós escolhido
dentre outros que afirmam ser a dor ou o sofrimento inseparável da vida, porque
é preciso esclarecer em que consiste essa contradição, a qual não é de natureza
lógica. Evidentemente, “querer viver sem sofrer” contraria nossa mais
originária e intuitiva experiência de mundo e só pode ser um sintoma
enunciativo do desejo, contra o qual protesta a razão.
Em
outros lugares, vamos encontrar Schopenhauer afirmando que “o sofrimento é o
fundo de toda a vida” (ibid., p.326), “a
dor é natural ao ser vivo” (ibid., p.331) , “sofrer é a própria essência da
vida” (ibid., p. 334), “a dor está essencial e indissoluvelmente unida à vida”
(ibid., p. 394). Chegamos à certeza de que, como nos ensina a tradição budista,
que, juntamente do hinduísmo, muito influenciou o pensamento schopenhaueriano, viver é sofrer, por uma intuição
imediata, que dispensa o labor argumentativo. Mas, em vários momentos da vida,
a questão por que sofremos ou, numa
forma variante, por que existir implica
necessariamente sofrer não nos deixa de causar perplexidade ou terror.
Desconhecemos
outro filósofo que tenha se debruçado sobre essa questão com tamanho esmero,
obstinação e acuidade intelectual e que tenha fornecido uma resposta tão
original quanto elegante, teoricamente, além de Schopenhauer. Decerto, esse
filósofo alemão foi, sobretudo nessa matéria, um mestre insuperável.
Cabe-nos
aqui dar testemunho do que tem a nos ensinar
Schopenhauer sobre a indissociabilidade entre viver e sofrer, cientes
das limitações que nos podem perturbar uma interpretação, uma reescrita que
jamais poderão devolver ao leitor, com o devido rigor, a densidade afetiva que
animou as meditações do filósofo alemão, tampouco poderá nossa interpretação
exibir a mesma elegância e precisão de estilo que o consagraram como um mestre
da literatura filosófica.
Começo,
pois, por notar que Schopenhauer, antes de definir o sofrimento, pede ao seu
leitor que se recorde do que foi exposto no fim do livro II (ibid., p. 324).
Ora, àquela altura, Schopenhauer havia negado à Vontade qualquer finalidade ou
escopo. A Vontade, em todos os graus de sua objetivação, deseja sempre. O
desejo é o ser mesmo da Vontade (ser aí, quer dizer, “essência”). A Vontade
deseja, e esse desejar, sem o qual a Vontade deixa de ser o que é, é desejo que
nunca termina; é desejo que não alcança uma satisfação última. Ora, para
Schopenhauer, como para Platão, antes dele, desejo é carência; logo, quem tem
desejo está privado da posse do objeto desejado, ou seja, quem deseja
encontra-se num estado de carência ou privação. E a Vontade, que quer
incessantemente, que é essencialmente desejo, “é incapaz de uma satisfação
última”. (ibid.).
Sem
perder de vista a necessidade de elucidar o que Schopenhauer entende por
sofrimento, cuidamos imprescindível à compreensão exata da indissociabilidade
entre vida e dor, a que o filósofo, com semelhante precisão cirúrgica, nos
expôs, tornar cristalinos alguns pontos de sua doutrina que, quiçá, possam
ainda encontrar-se sob algumas sombras de incompreensão.
Recorde-se
o leitor que a Vontade, a coisa-em-si, se manifesta em cada ser como um querer viver. A Vontade não quer outra
coisa senão a vida. Cada ser da natureza constitui, assim, uma manifestação
visível do querer viver universal. Eis agora o que deve se tornar claro: querer viver é fazer esforço. Lembremos
que, segundo Schopenhauer, em toda parte na natureza, encontramos as diversas
forças naturais e formas vivas disputando a matéria. Ora, esse querer
apoderar-se da matéria, numa luta incessante e encarniçada, implica esforço.
Segue-se daí que a vida é esforço.
A
vida é esforço; e o esforço, para Schopenhauer, envolve dor. No entanto, pode
objetar o otimista que nem todo esforço culmina com a dor, apenas aquele esforço
que excede às forças do organismo. Além disso, poderia prosseguir o otimista, a
natureza assinala o limite em face do qual o esforço deve se deter. Esse limite
é a fadiga. Esta, por sua vez, quando experienciada, demanda repouso, descanso,
de tal sorte que a vida, nomeadamente a vida humana, obedece a um ritmo cujas
fases são o esforço, a fadiga e o repouso. Assim, contrariamente ao que não
admite Schopenhauer, existe um esforço saudável, não excedente, mensurável, que
busca alívio no repouso e que se acompanha do prazer no descanso. Por outro
lado, é certo que existe o esforço malsão, superexcitado pelas paixões, que se
precipita no sofrimento e no esgotamento. Em todo caso, fica demonstrado que a
pretensa universalidade da relação de implicação entre esforço e dor não é
outra coisa do que um sintoma do temperamento schopenhaueriano que o fez fixar
seu olhar na miséria do mundo, querendo, assim, convencer-nos de que o mundo
miserável compreende a totalidade do mundo existente.
Fica
aqui essa objeção que se pode fazer a Schopenhauer; mas ela não pode nos
incitar a viver amparado num otimismo grosseiro e ingênuo. Devemos, não
obstante, reconhecer, com Schopenhauer, que a miséria da vida, que a
experiência da dor e do sofrimento é inerente à dinâmica do devir, que não é
possível viver sem sofrer em alguma medida, que existir implica necessariamente
expor-se às tribulações de um destinar-se do mundo que se nos afigura não raro
sem sentido e que nos escapa ao controle.
Volvemos
nossa atenção para a ideia de esforço.
O esforço é a essência de cada ser existente. Esse esforço não é senão a
Vontade, que, à luz da consciência, se manifesta com a máxima clareza. No
excerto abaixo, Schopenhauer busca articular a ideia da vida como esforço à
luta pela sobrevivência. Essa luta incessante pela sobrevivência é uma
consequência inevitável do esforço contínuo despendido pelas formas vivas para
apoderar-se da matéria.
É
ainda preciso recordarmos uma teoria do segundo livro: é que em todo lugar, as
diversas forças da natureza e as formas vivas disputam a matéria; todas tendem
a usurpá-la; cada um possui justamente o que arrancou às outras; assim se
mantém uma guerra eterna, em que se trata de vida ou de morte. Daí resultam
resistências que de todos os lados opõem obstáculos a esse esforço, essência íntima de todas as coisas,
reduzem-no a um desejo mal satisfeito, sem que, contudo, ele possa abandonar
aquilo que constitui todo o seu ser, e o forçam assim a torturar-se, até que o
fenômeno desapareça, deixando o seu lugar e a sua matéria açambarcadas por
outras. (ibid., p. 324, grifo nosso).
A
Vontade é esforço, e esse esforço é uma tendência, um impulso que leva toda
coisa a afirmar a vida, a querer irresistivelmente a vida. Mas não faltam, na
luta pela sobrevivência, travada pelas formas vitais, resistências, obstáculos
de toda sorte. Disso resulta que o esforço é sempre frustrado, reduzindo-se “a
um desejo mal satisfeito” (ib.id.). Tal é então a dinâmica da vida: um
querer incessante que se realiza por um número infindável de esforços que se
chocam com um sem número de obstáculos, que reduzem todo esforço a um desejo
malogrado, até que o vivente em que o esforço afirmava o querer-viver
desapareça com a morte.
Podemos,
agora, tendo lançado alguma luz sobre as regiões da doutrina schopenhaueriana,
que, quiçá, tenham ainda permanecido nebulosas, referir, nas palavras do
próprio Schopenhauer, como o sofrimento é definido. Escreve o autor: “Se ela [a
Vontade] é travada por qualquer obstáculo requerido entre ela e o seu objeto do
momento, eis o sofrimento” (ibid., p.
325, ênfase no original).
O sofrimento
é, portanto, para Schopenhauer, a condição resultante do aparecimento de um
obstáculo que se interpõe entre a Vontade e o seu escopo momentâneo. Em outras
palavras, o sofrimento é privação, insatisfação, pois ele é o que advém quando
um obstáculo impede que a Vontade atinja seu escopo momentâneo. Há sofrimento
sempre que a Vontade é impedida de satisfazer sua tendência, seu impulso;
sempre que ela é privada de apoderar-se daquilo para o qual ela tende.
Por
outro lado, Schopenhauer chama de felicidade
ou bem-estar o estado em que a
Vontade atinge seu alvo, ou seja, quando ela encontra satisfação ao apoderar-se
daquilo para o qual ela tende. Mas a felicidade, quando contemplada como um
estado da vida humana, jamais pode ser um estado positivo, ou seja, alguma
condição que se alcança positivamente. O tema da felicidade em Schopenhauer
será escopo de nossas considerações alhures. Por ora, basta dizer que, para o
filósofo de Dantzig, a felicidade perdurável é impossível, quer a consideremos
relativamente ao homem, quer relativamente aos animais sencientes. Todo desejo,
enquanto permanece desejo, é uma falta e, portanto, é sofrimento: “todo desejo
nasce de uma falta, de um estado que não nos satisfaz, portanto, é sofrimento,
enquanto não é satisfeito”. (ibid.).
Desejo,
para Schopenhauer, é falta, carência, privação; e quem se encontra desejoso,
encontra-se em privação, carente daquilo para o qual tende o desejo; portanto,
esse estado é fonte de insatisfação; é sofrimento. Quando satisfeito o desejo,
a satisfação que daí resulta é, no entanto, débil, temporária e, tão logo, dará
lugar a novo desejo e, portanto, a novo sofrimento. É que a Vontade, que deseja
incessantemente, nunca atinge um estado de satisfação plena, durável ou
definitiva. Logo, nenhuma satisfação que possamos obter está destinada a durar
por muito tempo; toda satisfação é temporária: “é apenas o ponto de partida de
um novo desejo” (ib.id.).
Podemos,
pois, sumariar o que vimos até aqui sobre a conaturalidade do desejo ao
sofrimento, referindo as seguintes palavras de Schopenhauer: “vemos o desejo em
toda parte em luta, portanto sempre no estado de sofrimento: não existe fim
último para o esforço, portanto não existe medida, termo para o sofrimento”.
(ibid.).
O
sofrimento se torna mais evidente à medida que ascendemos na escala de
objetivação da Vontade, até chegarmos às formas fenomênicas entre as quais
estão os animais vertebrados com seu sistema nervoso mais desenvolvido. Nesse
grupo, a intensidade do sofrimento aumenta à proporção da inteligência.
Segue-se daí que:
(...)
conforme o conhecimento se ilumina, a consciência se eleva, a desgraça também
vai crescendo; é no homem que ela atinge o seu mais alto grau, e aí também se
eleva tanto mais quanto o indivíduo tem uma visão mais clara, é mais
inteligente: é aquele em que o gênio reside que mais sofre. É neste sentido,
interpretando-o como grau de inteligência, não como puro saber abstrato, que
compreendo e admito a palavra do Eclesiastes: “quem aumenta a sua ciência,
aumenta também a sua dor”. (ibid.,
ênfase no original).
1.8. As
variações da dor na existência humana
Vamo-nos
debruçar sobre o exame das formas como a experiência da dor e/ou do sofrimento,
que constitui a essência da vida, trama a malha da existência humana.
Vimos
que o esforço constitui a essência íntima de todos os fenômenos da Vontade e
que, por isso, a vida é fazer esforço contínuo, sem alvo, sem repouso; esse
esforço, nós o apreendemos já na natureza bruta. Mas no animal e no homem, esse
esforço se manifesta “muito mais evidentemente”. ( ibid., p. 327). No homem, o
esforço “é como uma sede inextinguível” (ibid.).
Dado
que todo querer tem origem numa necessidade, numa carência, numa falta,
segue-se que ele se acompanha de dor. A dor é, então, esse estado de privação,
de falta suposto em todo querer. Se, por algum momento, a Vontade encontra-se
em posse do objeto que antes lhe faltava, se, como escreve Schopenhauer, “uma
pronta satisfação lhe vier roubar todo motivo para desejar” (ibid.), não restará
senão aos homens a queda “num vazio terrível, no tédio: a sua natureza, a sua
existência pesa-lhes com um peso intolerável”. (ibid.).
Destarte,
a vida humana é, em essência, um movimento contínuo entre o sofrimento e o
tédio. O filósofo utiliza-se, de modo muito perspicaz, da conhecida metáfora do
pêndulo para descrever essa alternância entre dois estados que cingem, de ponta
a ponta, o drama da existência humana:
A vida do
homem oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio, tais são
na realidade os seus dois últimos elementos. Os homens tiveram de exprimir essa
ideia de um modo muito singular; depois de terem feito do inferno o lugar de
todos os tormentos e de todos os sofrimentos, que ficou para o céu? Justamente
o aborrecimento. (Schopenhauer, 2014, p. 35, grifo nosso).
Tornamos
a encontrar a importância que tem o corpo na metafísica schopenhaueriana da
Vontade. O corpo vivo, nomeadamente o corpo humano, carece de ser alimentado;
por isso, esse corpo é a própria vontade de viver encarnada.
Eis
por que o homem, a mais perfeita das formas objetivas dessa vontade, é também,
e como consequência, de todos os seres o mais assediado por necessidades: ele é inteiramente apenas vontade, esforço;
necessidades aos milhares, eis a própria substância de que é constituído. (Schopenhauer,
2001, ibid., grifo nosso).
É
assim, segundo Schopenhauer, que se encontra o homem sobre a terra: “abandonado
a si mesmo, indeciso a respeito de tudo, exceto das suas necessidades e da sua
escravidão” (ibid.). O homem vive continuamente ocupado de satisfazer
necessidades que, no entanto, se lhe apresentam como exigências difíceis de
serem satisfeitas, e que se renovam todos os dias.
As
descrições que Schopenhauer nos dá das formas como a essência da existência
humana se manifesta, das formas como a vida humana é vivida no seu destinar-se
absurdo no tempo poderiam muito bem inspirar um pintor que quisesse pôr em
telas imagens de uma tragédia encenada em três atos: 1. Nascimento; 2. Ciclo
interminável de necessidades, privações, dores; 3. Morte ou retorno ao nada. E
assim, como um espectador diante de uma tela pintada por um artista,
contemplando, atônitos, a representação imagética de nossa existência, somos
afetados pela conclusão, a cujo caráter irreprochável Schopenhauer quer nossa
adesão:
Entre os
desejos e as suas realizações decorre toda a vida humana. O desejo,
pela sua natureza, é sofrimento; a satisfação engendra bem depressa a
saciedade. O alvo era ilusório, a posse rouba-lhe o seu atrativo; o desejo
renasce sob uma forma nova, e com ele a necessidade; senão é o fastio, o vazio,
o tédio, inimigos mais violentos ainda do que a necessidade. (ibid., p. 329,
grifo nosso).
A
vida de todos os homens não é senão um ciclo interminável no qual se alternam
numa cadência regular e monótona desejo (dor), satisfação (temporária,
impermanente) e tédio. O homem continuamente é perturbado por desejos, cuja
satisfação ele acossa irrefletidamente. E a cada desejo que, com esforço, é
satisfeito, sobrevém outro desejo a reclamar satisfação. E esta satisfação não
tarda em converter-se em saciedade, que, por sua vez, se transforma em tédio,
só superado por um novo desejo que reinicia o ciclo interminável. A conclusão
de Schopenhauer só pode ser esta: “a dor é, portanto, inevitável; os
sofrimentos banem-se uns aos outros: este apenas vem para tomar o lugar do
precedente”. (ibid., p. 331).
Existir
é estar lançado num ciclo de esforços contínuos e necessidades, e dores que não
cessam de se renovar, sob formas diversas. É o que nos patenteia Schopenhauer
no passo a seguir:
Os
esforços incessantes do homem para banir a dor apenas conseguem fazê-la mudar
de face. Na origem, ela é privação, necessidade, preocupação com a conservação
da vida. Se conseguirem (difícil tarefa) evitar a dor sob esta forma, ela
regressa sob mil outros aspectos, mudando, com a idade e as circunstâncias: ela
faz-se desejo carnal, amor apaixonado, e tantos outros males, tantos outros!. (ibid.,
p. 330).
As
expressões “desejo carnal” e “amor
apaixonado” designam exemplos de variação da dor, ou seja, formas pelas quais
ela se manifesta. Note-se o tom lamentoso, marcado pelo sinal de exclamação na
expressão “tantos outros males, tantos outros!”. Com essa expressão e sua
entonação característica, Schopenhauer enfatiza o caráter doloroso da
existência, ao mesmo tempo que projeta seu lamento na constatação dessa
verdade. São inúteis, portanto, as defesas empregadas pelos homens para escapar
às dores, aos sofrimentos que lhes tornam a existência um fardo pesado, pois
que elas acabam por assumir “o aspecto triste, lúgubre do fastio, do
aborrecimento [tédio]”. (ibid., p. 330).
“Entre
a dor e o aborrecimento [tédio] – escreve Schopenhauer – a vida oscila sem
cessar”. (ibid., p. 331). Não obstante, os homens, em sua maioria, vivem
acalentados na crença de que muitos males que os acometem são acidentais, e
assim, não se perturba o cuidado com que perseguem sua felicidade pessoal. Toda
a sua vida é empregada para a conquista dessa felicidade, a qual, no entanto,
lhes escapa por entre os dedos e por todos os lados. Se, ao menos,
compreendessem que a dor é conatural a todo ser vivente, que é inevitável, que
ela nada deve ao acaso, que ela, enfim, é a forma sob a qual a vida se
manifesta, talvez limitassem drasticamente suas pretensões de felicidade,
alcançando a compreensão de que saber viver consiste em querer ser menos
infeliz possível.
1.9. A tirania do querer: a tragédia
schopenhaueriana de Sísifo
Nesta
subseção, tornamos a realçar a insignificância radical da vida humana, de cada
indivíduo. Além disso, dilucidaremos
o que significa a tirania do querer,
termo com que designamos a forma da vontade de viver.
Em As Dores do Mundo (2014), livro em que se
compilam diversos excertos da obra schopenhaueriana, topa-se o seguinte passo
que reúne, numa síntese, de modo bem articulado e claro, os aspectos essenciais
da teoria da Vontade como querer-viver:
Querer
é essencialmente sofrer, e, como viver é querer, toda a existência é
essencialmente dor. Quanto mais elevado é o ser, mais sofre... A vida do homem não é mais do que uma luta
pela existência com a certeza de ser vencida... A vida é uma caçada
incessante onde, ora como caçadores, ora como caça, os entes disputam entre si
os restos de uma horrível carnificina; uma história natural da dor que se
resume assim: querer sem motivo, sofrer
sempre, depois morrer e assim sucessivamente, pelos séculos dos séculos, até
que o nosso planeta se faça em bocados. (ibid., p. 39, grifos nossos).
Se
procedermos atenta e novamente à leitura, não encontraremos dificuldades de
concluir que o referido excerto encerra as lições fundamentais do pessimismo
schopenhaueriano. Querer, ou seja, desejar é
essencialmente sofrer, porque, ao desejar, o homem, cuja essência reside
nesse querer, encontra-se em estado de carência, de privação; por conseguinte,
ele, ao querer, sofre. Como a vida é manifestação da Vontade, isto é,
manifestação desse querer incessante, a vida é essencialmente dor, sofrimento.
O
homem é o fenômeno mais elevado e perfeito da Vontade. Como seja um ente dotado
de conhecimento, de uma consciência superior, a dor de viver se lhe afigura
mais intensa; ele é, por isso, o ente que mais sofre. Atentemos para as imagens
usadas por Schopenhauer na constituição de sua concepção de vida. Pondera o
autor que “a vida do homem não é mais do que uma luta...”, da qual o homem está
certo de que sairá derrotado. Todos os seus esforços, mobilizados para essa
luta, são inúteis. Não importa quanto o homem faça, o que faça: a vida é uma
experiência da qual ele será, mais cedo ou mais tarde, necessariamente privado.
O destino do homem o reduzirá inapelavelmente ao nada. A vida do homem, escreve
Schopenhauer, “é uma luta pela existência com a certeza de ser vencida”. Eis
encenado aqui o destino de Sísifo, destino comum a todo ser humano: o homem luta sempre, quer sempre e sempre,
mas, se for inquerido sobre a razão por que faz o que faz, não sabe bem
responder. Ele sabe que precisa
fazer o que faz; seu trabalho consiste em ser um combatente que morrerá
necessariamente com as armas nas mãos. Carregar pedra e recomeçar esse trabalho
árduo diariamente – trabalho que é a própria vida de que ele, homem, se
encarrega na mais profunda ignorância sobre a causa (se houver alguma ) por que
se encontra a ele obrigado e a finalidade (se houver alguma) com que o realiza,
até que a morte, credor implacável, venha-lhe tomar aquilo que a ela pertence,
é o que torna nossa condição semelhante à de Sísifo.
Essa
“história natural da dor”, que é a vida mesma, é reiniciada toda vez que vem ao
mundo uma nova criança. O instinto sexual garante, portanto, que essa história
de dor seja incessantemente repetida. Dar à luz uma criança não é mais, segundo
Schopenhauer, do que recomeçar a marcha da história humana, cuja insignificância
não escapou ao escrutínio descritivo do autor. No trecho a seguir, Schopenhauer
compara os homens a um relógio que, “uma vez montados, funcionam sem saber por
quê”. O absurdo atinge aí, talvez, seu mais alto tom de irracionalidade, fazendo
retumbar no âmago do ser humano a perplexidade esmagadora em face de sua
trágica condição:
(...)
custa a crer a que ponto é insignificante, vazio de sentido, aos olhos do
espectador estranho, a que ponto é estúpida e irrefletida, para o próprio ator,
a existência que a maior parte dos homens leva: uma espera tola, sofrimentos
estúpidos, uma marcha titubeante através das quatro idades da vida, até esse
termo, na companhia de uma procissão de ideias triviais. Eis os homens: relógios; uma vez montados, funcionam sem
saber por quê. A cada concepção, a cada geração, é o relógio da vida humana que
reanima para retomar o seu estribilho, já repetido uma infinidade de vezes,
frase por frase, medida por medida, com variações insignificantes. – Um
indivíduo, um rosto humano, uma vida humana, isso é apenas um sonho muito curto
de espírito infinito que anima a natureza dessa obstinada vontade de viver,
mais uma imagem fugidia que a brincar ela esboça na tela sem fim, o espaço e o
tempo, para aí a deixar por um momento – momento que, em comparação com
essas duas imensidões, é um zero -, depois apagá-la e dar assim lugar a outras.
Contudo, e é isto que na vida dá para refletir, cada um destes esboços de um
momento, cada um desses ímpetos paga-se: furor, sofrimentos sem número, sem
medida, depois, no fim, um desenlace durante muito tempo receado, finalmente
inevitável, essa coisa amarga, a morte, eis o que eles custam. E é por isso que
a visão de um cadáver nos torna bruscamente tão sérios. (Schopenhauer, 2001, p.
338).
O
que chamamos de tirania do querer é
– deve-se esclarecer – a forma mesma da vontade de viver. Já estudamos seu
mecanismo, mas não custa aqui recordá-lo. O homem é, essencialmente, vontade,
desejo insaciável. Porque é essencialmente desejo, o homem sofre. O objeto
desejado, uma vez possuído, jamais consegue cumprir as promessas sobre ele
projetadas quando era objeto do desejo. Nunca atingimos uma satisfação final. A
vontade em nós, a vontade que, essencialmente, somos permanece insatisfeita.
Mas, quando um desejo é satisfeito em algum momento, ele muda de forma e nos
torna a torturar. Para Schopenhauer, portanto, não há escapatória a essa forma
de tirania: ainda que todas as formas possíveis de desejo fossem satisfeitas, a
necessidade do querer sem motivo, sem alvo, permaneceria, e nos veríamos
inundados de um sentimento de vazio, paralisados pelo sentimento de perda de
significado de tudo; em uma palavra, seríamos absorvidos num tédio
insuportável.
A
insignificância de tudo, o sentimento de vanidade de todos os esforços humanos,
aos quais Cioran soube bem dar voz em seus textos, ganha carne, crueza,
espessura trágica no relato que Schopenhauer nos faz do enviar-se da vida
cotidiana e comum. O excerto seguinte constitui um exemplo de como o viver
cotidiano, quando seus eventos são submetidos à análise, apresenta-se desbotado
de qualquer sentido e importância. Segundo Schopenhauer, tomada na totalidade,
a vida de cada indivíduo, realçados os acontecimentos danosos, é uma tragédia;
todavia, quando a contemplamos em seus pormenores, “ela toma uma aparência de
uma comédia”. (ibid.).
(...)
Cada dia traz o seu trabalho, a sua preocupação; cada instante, o seu novo
engano, cada semana, o seu desejo, o seu temor; cada hora, os seus
desapontamentos, visto que o acaso está lá, sempre à espreita, para fazer
qualquer maldade: tudo isto são puras cenas cômicas. Mas os desejos nunca
atendidos, a dor sempre gasta em vão, as esperanças quebradas por um destino
impiedoso, os desenganos cruéis que compõem a vida inteira, o sofrimento que
vai aumentando, e, na extremidade de tudo, a morte, eis o bastante para fazer
uma tragédia”. (ibid.).
Para
Schopenhauer, a vida de cada indivíduo é uma patografia (ibid., p. 340). Como
“viver é esgotar uma série de grandes e pequenas infelicidades” (ibid.), longe
de causar comiseração nos outros, o sofrimento de um indivíduo só pode causar a
satisfação daquele que desse sofrimento foi poupado. Qual não é o contentamento
daqueles que se dão conta dos males que não os acometeram?! Schopenhauer só
pode daí concluir, contrariamente à doutrina do Eterno Retorno, que “no fundo,
talvez, não encontrássemos um homem no fim de sua vida, e ao mesmo tempo
refletido e sincero, que desejasse recomeçá-la e não preferisse antes um
absoluto nada”. (ibid.). Esse retrato trágico da condição humana oferecido por
Schopenhauer pode ser completado pelo espanto de Becker, em seu A negação da morte (2012, p. 228), com o
fato de as pessoas suportarem fazer o que fazem.
Houve
época em que eu ficava imaginando como é que as pessoas aguentavam trabalhar em
torno daqueles infernais fogões em cozinhas de hotéis, o frenético torvelinho
de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um
agente de viagens no auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o
dia inteiro na rua com uma perfuratriz peneumática, num verão calorento. A
resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas
atividades é exatamente a da condição humana. Elas estão “certas”
para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura diária
desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura de hospício. Veja a
alegria e a disposição com que os trabalhadores voltam das férias para suas
rotinas compulsivas. Mergulham no seu trabalho com tranquilidade e alegria,
porque o trabalho abafa algo mais sinistro. Os homens têm que ficar protegidos
contra a realidade. Tudo isso levanta outro gigantesco problema para um
marxismo sofisticado, ou seja: qual é a natureza das obsessivas negações da
realidade que uma sociedade utópica irá proporcionar, para evitar que os homens
enlouqueçam. (grifo nosso).
Como
se poder ver, o autor descreve o mundo fático da ocupação humana. E categoriza
as atividades que nesse mundo se realizam como “a loucura da condição humana”.
Mas essa “loucura”, que é própria da condição humana, não é, no entanto,
percebida como tal pelo homem comum[1]. Ao contrário, o homem
comum identifica essas atividades rotineiras, nas quais se envolve por
necessidade de sobrevivência, com o próprio viver. Quem negaria que viver, em
grande medida, é isto: empregar diariamente o corpo e a alma num trabalho que
nos consome quase o dia inteiro? “Ocupação” é, aqui, a
palavra-chave para compreender o modo originário de existir no mundo (modo
originário tal como pensado por Heidegger). A ocupação nos previne contra “o
desespero total”. Tanto quanto na descrição trágica de Schopenhauer, podemos
ver, na referência que Becker faz ao modo como os homens se engajam em suas
atividades cotidianas, a imagem, como se projetada num espelho intemporal, do
forçoso trabalho de Sísifo.
Retomando
o fio discursivo, cuidamos estar claro que, em consonância com a lição de
Schopenhauer, o sofrimento é a matéria-prima de que se constitui a vida.
Todavia, parece-nos oportuno elucidar aqui como o sofrimento pode ser
justificado na filosofia schopenhaueriana.
Schopenhauer
argumentará que o mundo é como é porque a Vontade da qual ele é a manifestação
“é o que é e quer o que quer”. (ibid., p. 347). O sofrimento é, portanto, a
consequência inescapável, inevitável da essência da Vontade. Segundo
Schopenhauer, “a Vontade afirma-se mesmo por ocasião deste fenômeno [o
sofrimento]”. (ibid.). Disso se retira uma conclusão imperiosa: o sofrimento se justifica como uma
consequência necessária da afirmação da Vontade. Esta é a razão por que a
ética schopenhaueriana assumirá o princípio da negação da Vontade como meio de,
senão eliminar totalmente a dor de viver, aliviá-la significativamente. Do
reconhecimento de que o sofrimento é como um sintoma inevitável da afirmação da
Vontade, Schopenhauer conclui haver uma Justiça Eterna.
A Justiça
Eterna reside na essência do
universo. Mas poderíamos protestar, perplexos: é justo que os seres vivos
sofram? Schopenhauer responderia: da perspectiva da Vontade, certamente é
justo, porque “o tribunal do universo é o próprio universo”. ( ibid., p. 369).
Acompanhemos,
nesse tocante, o raciocínio de Schopenhauer, que tem como compromisso revelar a
verdade sobre o mundo e não interpretar o mundo tal como desejamos que ele
fosse. O mundo é, insiste Schopenhauer, a expressão objetivada da Vontade de
viver universal. A Vontade é o primeiro princípio (arkhé) do qual se origina o mundo com todas as suas formas de ser.
Essa Vontade absolutamente livre é todo-poderosa. A Vontade se objetiva em cada
coisa, segundo a determinação que dá a si mesma. Conquanto se objetive nos
fenômenos do mundo, a Vontade é atemporal. O mundo – dirá Schopenhauer – “é
apenas seu espelho”, de sorte que “todas as limitações, todos os sofrimentos,
todas as dores que ele encerra são apenas uma tradução daquilo que ela quer,
são apenas aquilo que ela quer” (ibid.). Lembre-se novamente que o mundo é como é porque a Vontade assim o
quer.
Sucede
que a existência é tanto a existência da espécie quanto a do indivíduo, tal
como se apresentam ambas em circunstâncias dadas no mundo governado pelo acaso
e pelo erro, mundo este “submetido à lei do tempo, transitório e sofredor” (ibid.).
Os obstáculos que cada ser topa em seu caminho estão aí “com justa razão”,
porque o modo como o mundo se constitui é determinado pelo querer da própria
Vontade. Somente a essa Vontade devemos atribuir a razão pela existência do
mundo tal como é. A Vontade não faz julgamento moral. Considerado em sua
totalidade, o destino dos homens nada vale para ela. Esse destino é marcado,
essencialmente, de “necessidade, miséria, lamento, dor e morte”. (ibid., p.
369). A Vontade iguala todos os seres em insignificância. Resulta daí a
conclusão, terrível, decerto, para as sensibilidades de uma época ainda marcada
pela crença numa Providência divina, mas inegavelmente e racionalmente afinada
com a crueza do real, tal como ele é: “se fosse possível colocar numa balança,
num dos pratos, todos os sofrimentos do mundo, e no outro, todas as faltas do
mundo, a agulha da balança ficaria perpendicular, fixamente”. (ibid., p. 370).
Cumpre
ainda dizer que Schopenhauer não deixou de enfrentar o seguinte problema: se há
uma Justiça Eterna que distribui equitativamente o sofrimento, por que vemos
aquele que pratica o mal, a despeito de sua maldade, viver na alegria, gozar de
prazeres, ao passo que a vítima de violência, o oprimido, tem de suportar uma
vida dolorosa, sem encontrar um justiceiro?
Schopenhauer
considera uma ilusão esse modo de ver as coisas. Esse modo ilusório de ver o
mundo resulta da submissão dos indivíduos ao princípio de razão. A visão deles,
encoberta pelo véu de Maya, não alcança a essência íntima do mundo. O indivíduo
comum “vê o mal, vê a maldade no mundo, mas como está longe de ver que isso são
as duas faces diferentes, e nada mais, nas quais a Vontade universal de viver
aparece”. (ibid., p. 370).
Esse
indivíduo cuja vida está submetida ao princípio de individuação é incapaz de
ver que “o carrasco e a vítima são apenas um”. (ibid., p. 372). Na medida em
que a Vontade existe em todo fenômeno, o sofrimento seja o que se inflige, seja
o que se suporta, prende-se ao mesmo ser, essência do mundo. Não importa que
apareça em indivíduos diferentes. Veja-se, no trecho abaixo, com mais clareza,
o que Schopenhauer entende por Justiça Eterna:
Aquele
que sabe, vê que a distinção entre o indivíduo que faz o mal e aquele que o
sofre é uma pura aparência que não atinge a coisa em si, que esta, a vontade,
está ao mesmo tempo viva em ambos; apenas, enganada pelo entendimento, seu
servidor natural, esta vontade desconhece-se a si mesma; num dos indivíduos a
que manifestam, ela procura um acréscimo de seu bem-estar, e ao mesmo tempo, em
outro, ela produz um sofrimento penetrante. Na sua violência, ela enterra os dentes em sua própria carne, sem ver
que é ainda a si que se rasga; e, desta forma, graças à individuação, ela
patenteia essa hostilidade interior que traz na sua essência. (ibid., p. 372,
grifo nosso).
Para
compreender o que Schopenhauer entende por Justiça Eterna, devemo-nos despir de
nossos julgamentos morais (sobretudo, não devemos submeter a Vontade a qualquer
julgamento moral) e nos ater à lição, já
referida, de Schopenhauer, segundo a qual a Vontade se afirma produzindo
sofrimento como consequência inevitável dessa afirmação. Schopenhauer sustenta
a indiferença da Vontade quanto ao destino dos seres vivos em que ela se
manifesta, mas não endossa uma indiferença como princípio ético. É justamente
porque do ponto de vista da Vontade é indiferente quem sofra e quem faz sofrer
que devemos nos compadecer com o sofrimento do justo, do inocente, da vítima,
do oprimido. O mundo não é criação de um Deus Providente, Sumo Bem; mas a
objetivação da Vontade. E a Vontade é um querer-viver cego, irracional, por
isso ela “enterra os dentes em sua própria carne, sem ver que é ainda a si que
se rasga”. Ela não pode fazer distinção moral entre o criminoso e a vítima,
entre quem pratica o mal e quem o sofre. Por isso, é sob esta nova luz que
podemos compreender as palavras suplicantes e lamentosas de Jesus em Lucas 23:
34 – “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem
o que fazem” – ao contemplarmos a obstinação com que os homens fazem sofrer
uns aos outros. Eis, pois a lição de Schopenhauer: o homem que causa dor a seu
semelhante o faz na ignorância do fato de que através dele afirma-se a vontade
de viver, uma Vontade para quem ele é apenas um fenômeno através do qual ela
busca perpetuar o mundo tal como é: mundo repleto de misérias, ao qual esse
homem foi enviado sem compreender o porquê, sem ter consciência de tê-lo
merecido.
No
entanto, só chega a compreender a Justiça Eterna aquele que se desliga do
princípio da razão suficiente, o qual liga o todo ao particular, e se eleva até
a visão das ideias, escapando ao princípio da individuação, para, então,
convencer-se de que as realidades consideradas em si mesmas não podem
atrelar-se às formas fenomênicas.
Uma
das principais fontes de sofrimento é o egoísmo. Segue-se daí que a superação
do princípio de individuação é a condição necessária para que o homem se
liberte do egoísmo. Ora, o egoísmo, observa Schopenhauer, é resultado da
submissão da Vontade ao princípio de individuação, sem o qual ela não poderia
objetivar-se no mundo. O egoísmo, ao se manifestar no mundo, assume uma forma
determinada. Torna-se Eris: “a guerra
entre todos os indivíduos”. (p. 349). É assim que a contradição da Vontade
consigo mesma se expressa: a Vontade é
dividida em duas partes inimigas entre si.
Quando
se pretende evidenciá-la, em toda a sua clareza, sem intermediário, há um meio
cruel para isso: são os combates de feras. Esta divisão, este rasgão, é como a
inesgotável fonte dos sofrimentos; as barreiras que o homem imaginou para
detê-la são inúteis (...). (ib.id.).
2. A felicidade é negativa e a dor é real
É
impossível ao homem fruir a felicidade positiva. A impossibilidade de atingir
uma felicidade positiva significa que o homem jamais pode gozar a felicidade
como um estado de bem-estar, pleno de prazeres, alegrias, que seja a satisfação
duradoura de seus mais profundos anseios de viver confortavelmente sobre a
terra. Uma felicidade assim pretendida não é mais do que uma quimera, sublinha
Schopenhauer. Sempre que o homem estabelece como objetivo de sua vida a busca
dessa felicidade positiva, algo que supõe passível de ser conquistada fora de
si mesmo, ele se expõe ao perigo da infelicidade, da decepção, da dor que não
deve ser ignorado. Resulta daí, consoante ensina Schopenhauer, que:
(...)
o caminho da sabedoria de vida
consiste em partir da convicção de que toda felicidade e todo prazer são de
natureza apenas negativa, enquanto a dor e a indigência têm caráter real e
positivo. Partindo-se desse pressuposto, todo projeto de vida direciona-se com
a intenção de evitar a dor e de afastar a indigência; nesse sentido, pode-se
obter algum resultado, mas isso só é possível com certa segurança se o projeto
não sofre a interferência da aspiração à quimera da felicidade positiva”. (ibid.,
p. 62, grifo nosso).
Ao
contrário do homem comum, que persegue obstinadamente a felicidade como um
estado de bem-estar duradouro no qual pretende se instalar permanentemente e
faz disso seu projeto de vida, o sábio evita os males, consistindo nesse
esforço sua própria felicidade. Assim, viver feliz “somente pode ter o sentido de viver de maneira menos infeliz possível,
ou, em poucas palavras, viver de maneira
suportável”. (ibid., ênfase nossa).
Para
Schopenhauer, o critério da medida de felicidade é a ausência de dor: sou tanto
mais feliz quanto mais liberto estou da dor, quanto mais imperturbável me
encontro. A única felicidade possível ao homem é a que se dá sob a forma da ataraxia – ausência de dor e perturbação
da alma.
Que
preço pagamos ao pretender fruir uma felicidade positiva? Na máxima 16, de A arte de viver (2001b, p. 46-47), que
reproduzimos na íntegra, Schopenhauer no-lo revela:
Todos
nós nascemos na Arcádia, todos viemos ao mundo cheios de pretensões de
felicidade e de prazer, e conservamos a insensata esperança de fazê-las valer,
até o momento em que o destino nos aferra bruscamente e nos mostra que nada é
nosso, mas tudo é dele, uma vez que ele detém um direito incontestável não
apenas sobre nossas posses e nossos ganhos, mas também sobre nossos braços e
nossas pernas, nossos olhos e nossos ouvidos, e até sobre nosso nariz no centro
do rosto. A experiência vem em seguida e
nos ensina que a felicidade e o prazer
não passam de uma quimera, mostrada a distância por uma ilusão, enquanto o sofrimento e a dor são reais
e manifestam-se diretamente per si só, sem a necessidade da ilusão e da espera.
Se seu ensinamento se mostra frutífero, deixamos de buscar a felicidade e o
prazer e passamos a nos preocupar apenas em fugir ao máximo do sofrimento e da
dor [“o homem sábio não persegue o que é agradável, mas a ausência de dor”.
Aristóteles, Ética a Nicômaco, VII,
12, 1152b 15-6]. Reconhecemos que o melhor que o mundo nos pode oferecer é um
presente suportável, tranquilo e sem dor; se isso nos é concedido, sabemos
apreciá-lo e cuidamos bem para não estragá-lo ansiando sem trégua alegrias
imaginárias ou preocupando-nos temerosos com um futuro sempre incerto que, a
despeito de nossos esforços, depende totalmente do destino”.
A
sabedoria de vida proposta por Schopenhaeur pauta-se pelo princípio segundo o
qual a pretensão a uma felicidade positiva é ameaçada pelas vicissitudes da
fortuna. Jamais podemos estar seguros de alcançá-la, porque o curso das coisas,
as formas como se dá o destinar-se da vida escapam ao nosso controle,
independem de nossa vontade. Além das flutuações de um destino indiferente às
nossas aspirações de felicidade duradoura, a impossibilidade de fruí-la se
prende à maneira como se constitui nosso aparelho psíquico, a qual inviabiliza
o gozo da satisfação plena e duradoura do desejo. Escusa dizer que desejo é,
para Schopenhauer, privação, carência; é a condição preliminar para o prazer,
de modo que, satisfeito o desejo, o prazer cessa.
Portanto,
a satisfação, o contentamento, poderiam ser apenas um alívio em relação a uma
dor, a uma necessidade: sob este nome, não se deve entender, com efeito, apenas
o sofrimento efetivo, visível, mas toda espécie de desejo que, pela sua importunação,
perturba o nosso repouso, e (também o tédio, que mata, que faz da nossa
existência um fardo. Mas, é uma empresa difícil de obter, conquistar um bem
qualquer: não existe objeto que não esteja separado de nós por dificuldades,
trabalhos sem fim; sobre o caminho, a cada passo, surgem obstáculos (...). (
Schopenhauer, op.cit., p. 335).
Levemos
a cabo esta seção, insistindo, com Schopenhauer, que toda felicidade possível
ao homem é tão-somente uma felicidade negativa, a saber, uma felicidade que se
experiência na imperturbabilidade da alma e do corpo, na cessação da dor.
Devemo-nos contentar com a lembrança do sofrimento passado que conseguimos
afastar. Nossa felicidade encontra nessa recordação seu único nutriente. Somos
tanto mais felizes quanto mais afastados estamos das dores, perturbações,
preocupações, inquietudes e sofrimentos. O que Schopenhauer quer que
compreendamos, em suma, é que a Vontade não tem qualquer interesse em garantir
a nossa felicidade. A vida humana, sendo apenas uma manifestação de uma Vontade
cega e irracional, reduz-se “a um esforço sem alvo, sem fim” (ibid., p. 337).
Cientes de que estamos abandonados ao acaso num mundo em cuja origem está uma
Vontade que quer a vida tal como ela é – repleta de misérias e de sofrimentos
incontáveis -, é melhor para nós reduzir ao máximo nossas pretensões de
felicidade; em suma, devemos nos esforçar por viver o menos infelizes possível.
2.1. A negação da Vontade e o tipo asceta
Nesta
última seção atinente à abordagem do pensamento schopenhaueriano, no presente
estudo, cumpre-nos demonstrar de que modo a filosofia de Schopenhauer visa a
realizar uma verdadeira conversão no modo de viver do homem. Intentamos
patentear as características que fazem da filosofia schopenhaueriana um exemplo
moderno de exercício espiritual
destinado a cunhar um modo de ser e de viver. A conversão cuja realização se
propõe a filosofia schopenhaueriana está prefigurada no que o filósofo chama negação da vontade, e o tipo vital
humano que personifica o grau máximo da negação da vontade é o tipo asceta.
De
passagem, ressalte-se que, nos capítulos seguintes, ao longo dos quais nos
ocuparemos de examinar a filosofia de Nietzsche, à luz da concepção de filosofia
como exercício espiritual, não
descuraremos de realçar os aspectos contrastantes ou mesmo antagônicos entre o
tipo asceta, cujo modo de vida tem em mira a filosofia schopenhaueriana, e o
tipo dionisíaco, representado na figura do além-do-homem, em Nietzsche.
Duas
observações devem aqui ser enunciadas, já que servirão para orientar a análise
que se seguirá: 1) Schopenhauer
considera o asceta “o fenômeno maior, o mais importante, o mais significativo
que alguma vez se manifestou no mundo” . (ibid., p. 404-405); 2) à doutrina da negação da vontade articulam-se
certos valores cristãos e essa doutrina se reapropria de certas categorias
neotestamentárias como “salvação”, “conversão”, “redenção”, etc.
Tal
é a proximidade de sua filosofia com a ética cristã, que o próprio Schopenhauer
chega mesmo a dizer que sua doutrina pode ser considerada como uma verdadeira
filosofia cristã. Para o filósofo de Dantzig, nos apóstolos cristãos, se acham
os primeiros graus da ascese ou da negação da vontade.
Vamo-nos
lançar ao exame do modo como a filosofia schopenhaueriana se propõe a realizar
uma verdadeira conversão naquele que nela se exercita, principiando com a
questão premente, cuja resposta constitui o escopo de nossas reflexões: o que é a negação da vontade, para
Schopenhauer? A negação da vontade nada tem que ver com a prática do
suicídio, que Schopenhauer condenará como inútil. A negação da vontade é a
mortificação do querer; ela recobre um conjunto de práticas destinadas à
renúncia de si, a acalmar a sede do desejo através da imolação da vontade. A
realização máxima da negação da vontade é a ascese (ou ascetismo), que Schopenhauer define como se segue:
Pela palavra ascetismo (...) entendo o
aniquilamento refletido do querer que se obtém pela renúncia aos prazeres e
pela procura do sofrimento; entendo uma penitência voluntária, uma espécie de
punição que a pessoa se inflige para chegar à mortificação da vontade. (ibid.,
p. 410).
A
ascese (ou o ascetismo) é o modo de vida do homem verdadeiramente livre, porque
é o modo de viver do homem que alcançou o conhecimento da essência íntima do
mundo; porque é o modo de viver do homem que compreendeu que essa essência é a
Vontade. Tendo a consciência iluminada por esse conhecimento, o tipo humano
asceta apazigua o querer-viver, faz calar todo desejo.
Embora
a ascese, segundo Schopenhauer, seja um modo de vida apenas acessível a um pequeno
número de homens, encontram-se nesse grupo até aqueles culpados dos piores
crimes, que buscam uma expiação voluntária. Nesse grupo, se acham também “os
infelizes que aprenderam a conhecer o amargor do sofrimento”. (p. 412), e,
tendo perdido completamente a esperança, convertem-se a uma vida calcada sobre
uma completa resignação. Destarte,
Eles
amam os seus sofrimentos e a sua morte, visto que entraram na negação do
querer-viver; muitas vezes recusam mesmo a salvação que se lhes oferecem e
morrem voluntariamente, com tranquilidade e felicidade. Foi porque o último
segredo da vida se lhes revelou, mesmo no excesso do sofrimento; compreenderam
que a dor e o mal, o sofrimento e o ódio, o crime e o criminoso, que se
distinguem tão profundamente no conhecimento submetido ao princípio de razão,
são, no fundo, apenas uma só e mesma coisa, a manifestação dessa única vontade
de viver, que objetiva a sua luta consigo mesma por meio do princípio de
individuação. (ibid.).
Do
excerto acima, depreende-se que a vida ascética pressupõe uma mudança de
conhecimento (mudança que já estava prevista na vida ética). Mas o modo de vida
ascético constitui um estágio superior ao modo de vida calcado na virtude da
compaixão. É que o tipo asceta compreendeu como seus todos os sofrimentos de
que são acometidos todos os viventes, já que esses sofrimentos decorrem da
afirmação da mesma vontade de viver que permeia e anima todo o universo. O modo
de vida ascético é o mais elevado também para o enfrentamento de uma vida
trágica, da grande catástrofe que foi o nascimento. Aquele que chega à negação
da vontade de viver compreende a futilidade da existência. Schopenhauer cita
entre os que atingiram tal saber os monges e os anacoretas, bem como os
diversos santos da tradição cristã.
A negação
da vontade “não é outra coisa senão a resignação ou a santidade absoluta, [e]
resulta sempre daquilo que acalma o querer”. (ibid., p. 415-416). Recorde-se
aqui que o quer-viver, a Vontade, se afirma na forma de um conflito com ela
mesma, do qual resulta um número infindável de dores e sofrimentos. Quanto mais
violenta é essa luta da Vontade, sempre obstinada na afirmação da vida, tanto
mais intensos são os sofrimentos, de sorte que quem chega à negação completa do
querer-viver atinge a libertação efetiva da vida e, portanto, da dor.
Dissemos
que a vida ascética constitui um modo de vida mais elevado, em cotejo com o
modo de vida calcado sobre a virtude da compaixão. A isso acrescente-se que a
negação da vontade é o estágio último da ética schopenhaueriana. Assim como a
negação da vontade não deve realizar-se como suicídio, assim também não deve
ser confundida com o nirvana dos budistas.
A
negação da vontade, compreendida como renúncia de si, é o único meio possível
de conversão do homem a uma vida liberta da tirania da Vontade. Por
conseguinte, o tipo asceta personifica o ideal da negação máxima da vontade de
viver. O grau máximo da negação da vontade chegará à niilização da vida, do
próprio universo. Por conseguinte, “(...) para aqueles que se converteram e
aboliram a Vontade, é o nosso mundo atual, este mundo tão real com todos os
seus sóis e todas as suas vias lácteas, que é o nada”. (ibid., p. 431).
Schopenhauer
não se esquiva a assumir as consequências de sua doutrina. Quando o homem chega
à negação e ao sacrifício da Vontade, todos os fenômenos são extintos. Eis,
então, a niilização da vida, que Nietzsche reprova ferrenhamente como o fim a
que visa toda moral decadente de que a filosofia de Schopenhauer, pelo menos
aos olhos do filósofo dionisíaco, não deixou de ser uma continuação:
(...) suprimidas tanto a impulsão como a evolução sem
objetivo e sem termo que constituem o mundo em todos os graus de objetidade,
suprimidas essas formas diversas que seguiam progressivamente. Da mesma forma
que o querer, suprimida igualdade a totalidade do fenômeno, suprimida, enfim,
as formas gerais do fenômeno, o tempo e o espaço; suprimida a forma suprema e
fundamental da representação, a de sujeito e objeto, já não existe nem vontade,
nem representação, nem o universo. (ibid. p. 430).
E ao
termo dessa série de extinções, acrescenta Schopenhauer: “resta diante de nós
apenas o nada”. Mas o nada de que fala Schopenhauer não é o estado de nulidade
que sobrevém à morte, tampouco à morte voluntária pelo suicídio. Também não é
esse nada a aniquilação do universo num Apocalipse. O nada de que fala
Schopenhauer é o que resta quando se extingue o querer-viver, a contínua
afirmação da Vontade. O nada aí supõe uma elevação da pessoa daqueles cuja
vontade atingiu a mais alta consciência de si mesma. Neles, a vontade se
reconhece em tudo que existe. Tais homens estão inundados de uma paz oceânica,
de uma quietude abissal, de uma serenidade inquebrantável, de tal modo que nós
“sentimos uma profunda e dolorosa melancolia quando comparamos este estado ao
nosso”. (p. ibid.).
Consoante
Schopenhauer, “aqueles que se elevaram acima do mundo” esperam
imperturbavelmente o momento em que a aniquilação do próprio corpo acarretará a
supressão da única marca da Vontade que ainda restava. É somente nesse
aniquilamento total da Vontade pela morte do corpo em que ela se objetivava, do
corpo que já nada mais quer, que o nada se investe de sua força máxima de
niilização – niilização que só pode ser levada a efeito pelo grau máximo da
negação da vontade personificado no tipo asceta, de quem devemos dizer que
alcançou a verdadeira salvação: a
libertação da tirania da vontade de viver.
À
guisa de conclusão, reforcemos as características que compõem o tipo humano
asceta, que constitui a personificação mais elevada do modo de vida para cuja
realização se destina a filosofia schopenhaueriana na condição de exercício espiritual. O tipo asceta é aquele que experimenta
uma repulsa pela vontade de viver, essência de um mundo repleto de penúria e
sofrimentos. Esse tipo humano nega a Vontade, vive num estado contínuo e
imperturbável de resignação e indiferença com relação a tudo; ele mortifica o
corpo, rejeitando qualquer satisfação sexual.
O
tipo humano asceta compreendeu que os sofrimentos de todos os viventes são
também seus sofrimentos, em virtude do reconhecimento de que eles decorrem da
afirmação da mesma Vontade que anima todo o mundo. Faz-se mister enfatizar,
portanto, que a conversão de que a filosofia schopenhaueriana pretende ser um
exercício vivido supõe ou envolve uma transformação radical da personalidade
através de uma mudança de conhecimento; porquanto o tipo asceta é aquele que
chegou ao conhecimento de que o mundo fenomênico é o espelho da Vontade, do
querer-viver cego e insaciável, fonte donde jorra toda dor e sofrimento. Tendo
a consciência iluminada por esse saber, o tipo asceta experimenta uma
inabalável paz celestial.
O
tipo asceta é, portanto, um tipo humano resignado, porquanto deixa de querer,
aceita viver recusando todo ímpeto volitivo, abstendo-se de desejar o que quer
que seja. Em suma, o tipo asceta é aquele cujo modo de viver é a própria
realização da santidade: alforriado da desgraçada opressão da tirania da
Vontade, ele experiencia o repouso e está preparado para absorver-se na paz do
Nirvana.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECKER, Ernest. A negação da morte: uma abordagem psicológica
sobre a condição humana. Rio de Janeiro: Record, 2013.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto,
2001a.
_______________. A arte de ser feliz. São Paulo: Martins Fontes, 2001b.
________________. A vontade de amar. Hemus: Curitiba, 2008.
_________________. As dores do mundo. São
Paulo: Edipro, 2014.
[1] O que chamamos de “homem comum” é
o gênero de homem que vive imerso na cotidianidade mediana, assumindo as
crenças, os preconceitos, os comportamentos, os significados partilhados por
todos os demais com quem convive num espaço sócio-político-cultural. Trata-se
do tipo humano culturalmente bem ajustado, cuja vida, na maioria das vezes, é orientada
pelos significados produzidos e disponibilizados pela cultura a que pertence,
os quais, quase nunca, são questionados.
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