

A
disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica: natureza e
diferenças
1. As disposições
afetivas trágica e pessimista
O
conceito de afeto, tanto quanto o de disposição,
cumprirá um papel importante no horizonte hermenêutico em que se inscreve este
texto. Afeto é um conceito que encontramos na Ética de Spinoza. Nesse livro, afeto relaciona-se a pathos (paixão) e recobre a ideia de aquilo
que nos põe em movimento, em relação com o mundo[1].
O afeto descreve certo modo de relação que estabelecemos com o mundo. Afeto “é,
ao mesmo tempo, o sentimento e a impressão que causamos nos outros e o que os
outros causam em nós” (Schöpke, 2010, p. 16). A categoria de afeto cumprirá a função de um
dispositivo de interpretação com o qual buscaremos compreender as filosofias de
Schopenhauer e de Nietzsche como exercícios espirituais destinados a cunhar
dois tipos vitais humanos radicalmente distintos.
O conceito de disposição, por seu turno, encontra registro na obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Nesse
livro, disposições se definem como “estados de caráter formados devido aos
quais estamos bem ou mal dispostos em relação às paixões”[2].
Como no excerto aristotélico a “disposição” se define como ‘estados do caráter’,
e o caráter, para os gregos, combina entre si os aspectos psicológico e moral,
buscamos em Jung uma definição de disposição
que não abriga em seu campo intensional qualquer referência à moral. A
definição proposta por Jung tem a vantagem de ser descritivamente adequada à
compreensão do que entendemos por disposição
afetiva. Para Jung, “disposição
é uma propensão da psique para realizar algo determinado, para agir e reagir em
determinada direção. (...) Pode-se definir disposição como uma ordenação – quer inata quer resultante da experiência – dos
elementos orgânicos ou dos elementos mentais, ou de ambos”. (ênfase nossa).[3] Duas “fatias” do
significado de disposição nos
interessam para efeito de aplicação à proposta interpretativa em curso neste
trabalho: propensão para e ordenação. Tendo em conta a compreensão
jungiana de disposição como propensão para e ordenação dos elementos
orgânicos quer inatamente fixada,
quer decorrente da experiência, propomos subsumir o conceito de disposição no
de destino. Mas destino não deverá ser entendido como ‘poder mais ou menos
personificado que determina de modo irremediável o curso dos acontecimentos’.
Ao tomar disposição como destino,
aproveitamos as noções de propensão para
e ordenação orgânico-mental, para
construir dois significados que se fundem no conceito de destino: 1) como destino, a
disposição caracteriza certo modo de estar afetado pelo enviar-se, pelo
destinar-se da vida, cuja dinâmica de forças produz tais ou quais efeitos
psicofisiológicos sobre um corpo vital humano; 2) como destino, a disposição não está sob o nosso
controle, no sentido de que não escolhemos ser constituído
psicofisiologicamente de tal ou qual modo[4].
Vale dizer que do fato de que não
escolhemos a disposição que nos constitui não resulta que seja ela
absolutamente inalterável. Não obstante, a alteração de uma disposição não
depende de um ato deliberativo da vontade. Para que a alteração da disposição
se dê, necessário é que o enviar-se da dinâmica da vida nos afete de modo
diferente, que as conformações do enviar-se da vida modifiquem a estrutura
afetiva de nosso corpo.
Entenderemos, portanto, por disposição afetiva um modo de ordenação
dos afetos que nos predispõem, que nos fazem propensos a sentir e a perceber o
mundo em consonância com o modo como o destinar-se da dinâmica da vida nos
afeta e incide sobre nós, vale dizer, sobre nosso corpo, enquanto totalidade
psicofisiológica.
Crendo esteja esclarecido o conceito de disposição afetiva, vamo-nos debruçar
sobre a apresentação das características distintivas, das quais nos dá
testemunho Rosset (1989), das visões pessimista e trágica. O esclarecimento
dessas características deverá contribuir para que não se confundam as duas
visões de mundo, muito embora elas não se diferenciem absolutamente. Conquanto
seja pertinente, do ponto de vista teórico e metodológico, a maneira como Rosset
as diferencia, no que nos diz respeito, será mais importante sublinhar a forma
distinta como as duas disposições afetivas – a disposição afetiva pessimista e a disposição afetiva trágica – respondem aos dois pressupostos
básicos, os quais as cosmovisões pessimista e trágica compartilham entre si:
1º pp. uma produção enunciativa sobre o
pior;
2º
pp. o reconhecimento da inerência do sofrimento ou da dor à dinâmica da vida.
Em outras palavras, tanto a cosmovisão
pessimista quanto a cosmovisão trágica concordam em que: 1) é possível desenvolver um pensamento do
pior; 2) a dor ou o sofrimento são experiências inerentes à dinâmica da vida.
Doravante, lancemos olhares sobre o modo
como Rosset nos apresenta a distinção entre o pensamento trágico e o pensamento
pessimista. Rosset começa por notar que subjaz a todo pensamento filosófico um
desejo; esse desejo reside na origem da filosofia. No caso particular da
filosofia trágica, o filósofo é movido por algo que “quer o trágico”. Nietzsche
é uma expressão paradigmática desse querer, pois seu querer assume a forma de
um “sim” incondicional à vida. Não cabe aqui esclarecer o que significa, para
Nietzsche, dizer sim incondicionalmente à vida. É forçoso protelar o tratamento
desse ponto para que não nos desviemos demais do objetivo a que visamos nesta
seção, qual seja, o de dilucidar a diferença entre as disposições afetivas
pessimista e trágica. Não deixaremos, no entanto, de tecer considerações esclarecedoras
no que toca ao caráter incondicionalmente afirmativo da filosofia trágica de
Nietzsche.
Rosset prossegue afirmando que “a
intenção trágica [sic.] não é comandada por uma visão pessimista do mundo”.
(Rosset, 1989, p. 19). Disso não resulta que o pensamento trágico não seja
expressão de uma visão de mundo “mais pessimista que qualquer pessimismo”. (ibid.).
O que o pensamento trágico produz é uma interpretação deveras pessimista do
real, mas essa interpretação não se encaminha no sentido da desaprovação do
mundo, muito pelo contrário. O pensamento trágico, a despeito de pôr a nu o
caráter doloroso da existência, a miséria da condição humana, a inexorabilidade
do destino humano que, posto sob a consciência crítica, se revela irracional,
sustentará uma aprovação jubilosa da existência.
Rosset se refere a duas diferenças
maiores entre o pensamento trágico e o pensamento pessimista: a diferença de conteúdo e a diferença de intenção. Do ponto de
vista da diferença de conteúdo, o pessimista supõe a existência de uma
natureza, do ser, de uma ordem do real, a qual considerará má e insatisfatória.
É nesse sentido que o pessimista afirma o pior. O pessimismo realça e condena a
incoerência do já ordenado: o mundo deve ser desaprovado, porque sua ordem é
má. Para Rosset, a filosofia pessimista é uma filosofia que, assumindo o
‘dado’, ou seja, o mundo já ordenado, dotado de uma “natureza” (essência),
reputá-lo-á mau, tenebroso, um erro que não deveria ser. Por outro lado, o
pensamento trágico, negando a existência do ‘dado’, isto é, do mundo ordenado,
se constitui num pensamento do acaso.
Nas palavras de Rosset,
Não somente o pessimista não acede ao
tema do acaso, como ainda a negação do acaso é a chave-mestra de todo
pessimismo, assim como a afirmação do acaso é aquela de todo pensamento
trágico. O mundo do pessimista está constituído
de uma vez por todas; donde a grande palavra do pessimista: “Não se
escapa”. O mundo trágico não foi constituído;
donde a grande questão trágica: “Aí não se entrará jamais” (...). (ibid. p. 20,
ênfases no original).
Ainda segundo o autor, não é nem o humor,
nem o afeto que distinguem entre os dois pensamentos. O pensador trágico e o pensador
pessimista encontram-se em igualdade de humor e afetos.
Se não são os afetos nem o humor que
estão na base da diferenciação entre o pensamento trágico e o pessimista, em
que termos se deve expressar tal diferença? Do que se expôs, fica claro que a
filosofia trágica e a filosofia pessimista se diferenciam relativamente à
afirmação ou à recusa de uma ordem do mundo já dada. O pensamento trágico a
recusa; o pensamento pessimista a supõe e afirma a irracionalidade dessa ordem
dada. Assim, para o pensador pessimista, o que existe não é objeto adequado
para o pensamento. Segundo Rosset, o pensamento pessimista é a grande filosofia
do ‘dado’, isto é, a filosofia pessimista assume a existência de um mundo já
ordenado, cuja natureza é má. O pessimismo filosófico, na medida em que é uma
filosofia do ‘dado’ enquanto já ordenado, coincide com a filosofia do absurdo.
Deveríamos concluir do que precede que a
categoria do absurdo é um traço
distintivo importante na caracterização dos pensamentos pessimista e trágico?
Será que estamos autorizados a dizer, a partir de Rosset, que a filosofia
trágica nega a absurdidade da existência? Uma tal conclusão é autorizada por
Rosset, consoante podemos ler no seguinte passo:
Esta filosofia do absurdo [a filosofia
pessimista] não é tanto contrária ao pensamento trágico quanto sem relações com
ele. Trata-se aí, com efeito, de uma absurdidade segunda, condicionada, que se
sustenta no sentido uma vez constituído:
mostra-se que os “sentidos” apresentados pelo mundo existente recobrem outro
tanto de não-sentido em relação a tudo aquilo que o homem se pode representar
em matéria de finalidade”. (ibid., p. 22-23, ênfase no original).
Devemos, pois, reter que o pensamento
pessimista, porquanto supõe a existência de um mundo já ordenado, pressupõe que
esse ordenamento está investido de um sentido já constituído. Mas esse sentido
já constituído pelo fato mesmo de haver ‘ordem’, uma natureza do mundo, se
imiscui com uma vasta facha de sem-sentido. Em outras palavras, por mais que o
homem possa “ver” uma ordem teleologicamente constituída no mundo, há sempre
uma grande parte dessa ordem que se mostra desprovida de qualquer sentido.
Para o pensador pessimista, o absurdo
está aí, já constituído, já instalado nas formas como o sem-sentido irrompe na
malha do sentido, de tal modo que o pretenso sentido da ordem do mundo não
elide as tribulações do sem-sentido, sempre persistente e perturbador daquela
ordem. Destarte, o pensamento pessimista, seguindo a compreensão que tem dele
Rosset, assume um sentido dado, a partir do qual esse pensamento explorará a
fragilidade, a insuficiência desse sentido. O pensador pessimista denuncia o
caráter insensato da ordem ontológica vigente. A ordem do mundo, no entanto,
vige, mesmo que se apresente como desordem, como absurda (isto é, sem sentido).
Por seu turno, o pensamento trágico
afirma a inexistência de um sentido já dado, mesmo que o mais absurdo. O pensador
trágico sustenta a insignificância de
tudo. Sendo afirmação do acaso, o pensamento trágico “é não somente sem relações com a filosofia do absurdo, como
ainda é incapaz de reconhecer o menor não-sentido; o acaso sendo, por
definição, aquilo a que nada pode
desobedecer”. (ibid., p. 23, grifos nossos).
Consideremos, agora, a diferença entre a
filosofia pessimista e a filosofia trágica do ponto de vista da intenção. Em
consonância com esse ponto de vista, a sabedoria pessimista se caracteriza pela
constatação, resignação e sublimação mais ou menos compensatória. A sabedoria
trágica, por outro lado, recusa a constatação, ou, melhor ainda, se orienta
pela impossibilidade de constatação. Tampouco é uma sabedoria que se erige “ao
abrigo da ilusão” (ibid.). Também não afirma uma felicidade “ao abrigo do
otimismo” (ibid.). Segundo Rosset, o pensamento trágico busca “uma coisa
inteiramente outra: loucura controlada
e júbilo”. (ib.id.). Façamos eco às
palavras de Pascal, embebidas na loucura jubilosa do homem trágico, que cai no
abismo dançando: “Nós somos tão
necessariamente loucos que seria estar louco por uma outra espécie de loucura,
não estar louco”. (...) “Alegria, alegria, lágrimas de alegria”. (apud.
Rosset, p. 23-24).
Em que medida as considerações de Rosset
sobre a diferença entre a sabedoria trágica e a sabedoria pessimista ajudam-nos
a determinar a orientação diversa, não coincidente, das disposições afetivas a
que já aludimos? Da compreensão de Rosset da diferença entre as duas
sabedorias, colheremos as noções de acaso
e absurdo, aprovação incondicional e desaprovação.
Em consonância com a lição de Rosset,
diremos que a disposição afetiva trágica
afirma e/ou celebra o júbilo na insignificância radical da existência, a
coragem no enfrentamento do caráter deveniente da vida, a qual se revela como
fluxo incessante que arrasta tudo que existe para o aniquilamento. A disposição
afetiva trágica sustenta a aprovação
jubilosa da existência.
A disposição
afetiva pessimista, por sua vez, é movida pela resignação em face da
crueldade do real, pela constatação do caráter insatisfatório, absurdo e
aterrador da existência. A resignação pessimista pode vir acompanhada de uma
proposta compensatória ou consoladora, animada, no entanto, pela negação da vida sem concessão, pela recusa da existência como irremediavelmente
má, pela desaprovação da ordem do
mundo considerada como desprovida de qualquer sentido último.
Acresce-se que as duas disposições
afetivas afirmam o desespero, mas o
fazem em sentidos diversos: a disposição
afetiva trágica afirma o desespero jubiloso que quer o real tal como é.
Para a disposição afetiva trágica, o devir, que caracteriza a impermanência de
todas as coisas, que torna todas as coisas destituídas de densidade ontológica,
não constitui razão para a negação do mundo. Por isso, o pensador trágico dará
sua aquiescência ao fluxo incessante, ao destinar-se inexorável de tudo que
existe ao aniquilamento. Um exemplo desse espírito trágico está muito claramente
sumariado no seguinte trecho de Ecce Homo
(2013, p. 107-108):
A afirmação do fluir e da destruição, elemento decisivo numa
filosofia dionisíaca; o dizer “sim” à contradição e à guerra; o devir, com uma
recusa radical do próprio conceito de “ser”- nisso tenho de reconhecer, em
qualquer circunstância, o que está mais próximo de mim dentre o que até agora
se tem pensado.
Consoante afirma Rosset (2000, p. 35), a
sabedoria trágica enuncia “(...) uma fidelidade incondicional à nua e crua
experiência do real”.
A disposição
afetiva pessimista afirma o desespero
como desesperança desorientadora, quanto à possibilidade de encontrar qualquer
sentido último para a existência. Esse desespero aterrador inspira no espírito
pessimista o pensamento de recusa do real tal como é, ao mesmo tempo em que lhe
inspira a força com que denuncia o caráter insatisfatório, contraditório e mau
da existência. O desespero pessimista orienta-se sempre no sentido da negação do mundo: desespero-me de buscar um sentido para a existência – diz o pessimista
-, logo a existência é um inconveniente, um desastre, um acontecimento absurdo
ao qual só posso dar minha desaprovação.
A lenda do rei Midas, relatada por Nietzsche em O nascimento da tragédia, e referida antes por Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação,
merece ser evocada aqui como um exemplo paradigmático do espírito pessimista,
vale dizer, da negação da existência que caracteriza fundamentalmente o
pensamento pessimista. Escreve Nietzsche:
(...) Reza a antiga lenda que o rei Midas
perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio
SILENO, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas
mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais
preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que,
forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas
palavras: - “Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por
que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor
de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada
ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”. (Nietzsche, 2007, p.
33).
2. A influência de Schopenhauer na formação do pensamento
de Nietzsche
Escapa à alçada desta exposição
discorrer em pormenores sobre a influência que a filosofia de Schopenhauer
exerceu sobre o pensamento de Nietzsche. Nosso intento é mais modesto: queremos
apenas assinalá-la de tal modo, que se torne possível o conhecimento da dívida
que o pensamento de Nietzsche tem, sobretudo nos anos de juventude desse autor,
para com a filosofia de Schopenhauer. A influência da filosofia de Schopenhauer
sobre a formação do pensamento nietzschiano não deve ser interpretada de modo
reducionista como a presença de marcas, de “pegadas” schopenhauerianas que
sinalizam uma reapropriação e ressignificação pelo pensamento de Nietzsche de
domínios de significado do pensamento de Schopenhauer. A influência se deixa
ver também nos pontos claros de desacordo entre esses dois filósofos, na
insistência com que Nietzsche cita Schopenhauer para censurá-lo, para marcar os
pontos de discordância entre seu pensamento (de Nietzsche) e o pensamento desse
filósofo pessimista. Assim, a marca de influência
de um pensador e/ou autor sobre outro se deixa ver não apenas nos rastros de
continuidade que podemos identificar, mas também nos rastos de ruptura, de
dissensão entre os dois pensamentos.
A descoberta da filosofia de
Schopenhauer por Nietzsche se dá quando da leitura que este faz do livro O Mundo como Vontade e Representação.
Àquela altura, Nietzsche frequentava os cursos de filologia do professor
Ritschl, mestre a quem acompanha ingressando na universidade de Leipzig, em
1865.
Na leitura de O Mundo (publicado em 1819), Nietzsche se dá conta do sentido
filosófico da tragédia. Ele não deixa de se admirar da concepção
schopenhaueriana de mundo como manifestação de uma Vontade cega, sem finalidade
e irracional. Em grande medida, é na filosofia schopenhaueriana que Nietzsche
encontrará a matriz de sua metafísica
trágica[5].
Consoante Rosset (1989), essa visão trágica já se deixa ver no pensamento
schopenhaueriano. Recorde-se que a Vontade em Schopenhauer é o fundamento sem
fundamento da existência. Essa “verdade trágica” será radicalizada por
Nietzsche na elaboração de sua experiência dionisíaca de mundo, “cuja
descoberta não suportaríamos sem o socorro da arte e das aparências”. (Rocha,
2003, p. 46).
O leitor familiarizado com o pensamento
nietzschiano pode discordar – não sem razão – de que haja uma metafísica em
Nietzsche. É verdade que um pensamento que toma o mundo como destituído de ser
é ele mesmo antimetafísico. Não resta dúvida, portanto, de que “[a] concepção
de existência como desprovida de ser atravessa toda a obra de Nietzsche”.
(Rocha, 2003, p. 45). Não obstante, em O
Nascimento da Tragédia, obra que se situa entre os escritos de juventude de
Nietzsche e onde é mais flagrante a influência de Schopenhauer sobre Nietzsche,
há uma concepção metafísica que se expressa na admissão de uma essência
dionisíaca subjacente às aparências. Todavia, nota Rocha (ibid.), essa essência
não deve ser tomada como fundamento do mundo, “mas, ao contrário, é uma
instância privada de toda medida e inteligibilidade”. Se a filosofia do jovem
Nietzsche pode ser considerada “metafísica”, isso se deve à preservação do
horizonte de interpretação do mundo à luz do qual este é explicado a partir da
postulação de uma instância subjacente às aparências. Não obstante, a
metafísica que aí se afigura é “intrinsecamente paradoxal, já que esta
instância é desprovida de todos os atributos que se supõem caracterizarem uma
essência”. (p. 46). Paradoxal ou não essa metafísica, deixando de lado as
sutilezas semânticas envolvidas nos termos linguísticos que entram a fazer
parte da discussão, acreditamos que, sob a influência schopenhaueriana, a esta
altura do desenvolvimento do pensamento de Nietzsche, ainda está presente o
dualismo ‘aparência x essência’ que caracteriza o modo de pensar metafísico
(dualismo que Nietzsche tratará de superar ao longo da produção posterior de
sua obra).
A influência de Schopenhauer sobre o
pensamento de Nietzsche não se reduz à apropriação que este faz do termo
Vontade, cujo conceito divergirá, no entanto, completamente do conceito
schopenhaueriano de Vontade. Nietzsche admirou Schopenhauer por ter este
produzido um pensamento superior, que nada devia às influências de poder. A
admiração nietzschiana por Schopenhauer é de tal vulto que a este um texto é
dedicado. A terceira consideração intempestiva, que recebe o título Schopenhauer Educador, é um elogio ao
filósofo de Dantzig, reputado por Nietzsche como um filósofo exemplar, que
representou o modelo de homem lúcido, altivo e idealista, capaz de subverter as
convenções e de lançar por terra as ilusões ao abrigo das quais a maioria dos
homens vive. O trecho a seguir nos dá testemunho do tom elogioso com que
Nietzsche fala de Schopenhauer:
O que eu relato é somente a primeira
impressão, de algum modo fisiológica, que sobre mim produz Schopenhauer (...).
Ele é probo porque fala e escreve para si mesmo; é alegre porque conquistou
pelo pensamento a mais difícil das vitórias; é constante porque não pode não
sê-lo. Sua força cresce vigorosamente e sem esforço, como uma chama no ar
calmo, segura de si, sem tremular, sem inquietude”. (Nietzsche, 2008, p.
29-30).
Outro ponto de aproximação entre
Nietzsche e Schopenhauer reside no reconhecimento de que ambos os filósofos
conceberam a Vontade como constitutiva tanto do homem quanto da existência em
geral, fora de uma perspectiva espiritualista. Ainda que sejam inegáveis as diferenças
que se deixam ver quando cotejamos entre si os pensamentos desses dois
filósofos, é igualmente inegável que ambos se notabilizaram como grandes
perscrutadores da existência, “do fundo sombrio e doloroso da vida”. (Brum,
1998, p. 18).
2.1. Diferenças
fundamentais entre a filosofia de Nietzsche e a de Schopenhauer
O
pensamento de Nietzsche se pretende afirmador de uma única verdade: a verdade trágica, a qual, por sua vez,
esteia-se na afirmação da inexistência do Ser. A afirmação da inexistência do
Ser faz da filosofia de Nietzsche uma negação
da metafísica, a saber, uma antimetafísica que ensina a inexistência de um
fundamento que confere sentido e finalidade à existência.
O
pessimismo de Schopenhauer, considerando como absurdo o mundo, que é espelho de
uma Vontade obscura e inconsciente, oferece como saída para uma existência
intrinsecamente dolorosa - a negação da
vontade. Nietzsche, ao contrário, embora também considere o sofrimento como
o fundo da existência, oferece a possibilidade de uma afirmação da vida no
tempo. Nietzsche é aqui o antípoda de Schopenhauer. Para Nietzsche, “o homem
trágico diz “sim” em face até do sofrimento mais duro: é bastante forte,
bastante abundante, bastante divinizador para tanto”. (Nietzsche, 2011a, § 483).
Ainda que
Schopenhauer explique o sofrimento, a dinâmica dolorosa da vida como um efeito
necessário da afirmação do querer-viver, ele continua vinculado ao horizonte de
compreensão cristã do mundo, à luz do qual o sofrimento torna a vida
indesejável, uma experiência da qual devemos querer escapar, uma experiência
que, maculada pela dor e sofrimento, a vontade deve recusar. A filosofia experimental de Nietzsche,
por outro lado, “quer antes penetrar até o contrário, até o dionisíaco sim do mundo, tal qual é, sem desfalque,
sem exceção e sem escolha, quer o eterno movimento circular: as mesmas coisas,
a mesma lógica e o mesmo ilogicismo do encadeamento”. (Nietzsche, 2011a, §
476).
Contra o
pessimismo schopenhaueriano, que vê a vida como uma catástrofe, um erro que não
deveria ser, Nietzsche oferece seu dionisíaco sim à existência: “Estado
superior que o filósofo pode atingir: ser dionisíaco em face da existência.
Minha fórmula para tanto é o amor fati”. (ib.id.).
Nietzsche
não se limita, como faz Schopenhauer, a admitir o caráter doloroso da
existência como uma necessidade (Schopenhauer, aliás, o admite para, em
seguida, oferecer uma fuga). Nietzsche o considera não só necessário, como
também desejável, “como o lado mais potente, o mais fértil, o mais verdadeiro
da existência” (ibid.). Schopenhauer ainda se movimenta num horizonte
hermenêutico de justificação do mal, do sofrimento. Nietzsche, ao contrário,
afirma o “pessimismo da força”, segundo o qual “o homem agora não tem mais
necessidade de justificação do mal”; ele “condena precisamente a justificação:
usufrui do mal puro e cru, acha o mal sem razão mais interessante”. (Nietzsche,
2011, § 461). Nietzsche ousa ainda
mostrar a radicalidade de sua transvaloração: é o bem que precisa ser justificado,
que “precisa possuir um fundo mau e perigoso” (ibid.), sob pena de ser “uma
grande tolice”.
Schopenhauer
se movimenta ainda num horizonte de compreensão metafísica do mundo: ele busca
o incondicional em face do condicional, a saber, seu pensamento opera segundo a
crença em que o que é relativo (o mundo fenomênico) deve repousar sobre o
absoluto (a Vontade como coisa-em-si). Schopenhauer é um herdeiro da tradição
metafísica ocidental, na medida em que explica o devir, a impermanência,
recorrendo à coisa-em-si, ao Ser.
Nada mais
estranho ao pensamento de Nietzsche do que esse modo de pensar o real. Para
Nietzsche, o mundo carece de substancialidade; o mundo é um fluxo de forças
agonístico. Só existe o mundo do devir, caracterizado pela dinâmica agonística
das vontades de poder: “o mundo – escreve Nietzsche – não é absolutamente um
organismo; é o caos”. (ibid., § 316).
A filosofia
de Nietzsche pode ser entendida como uma ontologia
negativa[6],
porquanto pensa o mundo como desprovido de Ser. Na tradição, o ser se diz daquilo que é
necessário em contraste com o que é apenas contingente; o ser se diz também
daquilo que permanece idêntico a si mesmo e que, por isso, serve de suporte ao
devir (o ser se diz substrato do devir); finalmente, o ser designa o que é em
si mesmo e para si mesmo, independentemente do aparecer dos entes. Ora, a
metafísica baseia-se no mecanismo de duplicação do real, o qual consiste em
superpor ao mundo sensível, deveniente, o mundo inteligível, da necessidade e
da permanência. Assim, em toda metafísica, a aparência só “é” na medida em que
é suportada por uma essência da qual toma seu ser e a qual lhe dá consistência
ontológica.
É
precisamente essa duplicação do real em mundo sensível e mundo do Ser que
Nietzsche rejeita. O pensamento de Nietzsche é, nesse sentido, antiplatônico,
antimetafísico. Nietzsche recusa um tal desdobramento metafísico do mundo.
Mesmo quando ele fala em “essência”, ela se esgota no seu aparecer. Em suma,
como metafísica negativa, o pensamento de Nietzsche nega:
1) A hipótese de que há um mundo sensível
e que esse mundo é expressão de uma essência;
2) O fluxo do devir como manifestação do
Ser;
3) O mundo sensível como uma duplicação do
mundo suprassensível;
4) Que as interpretações sejam a
representação de um mundo previamente constituído.
Cumpre acrescentar que, se
Nietzsche rejeita a existência do mundo suprassensível – chamado por ele de
mundo-verdade -, o faz não por uma razão teórica, visto que a inexistência
desse mundo não pode ser demonstrada, mas por razões práticas. Nietzsche
rejeita a existência do mundo verdade (mundo das Essências imutáveis) pelas
consequências que a crença nesse mundo acarreta: o niilismo e a condenação da
vida, a qual é desvalorizada em favor da vida além-mundo, em favor do mundo
suprassensível, o qual realizaria a verdadeira vida (como creem, por exemplo,
os cristãos). A crítica nietzschiana à metafísica açambarca uma crítica à
moral, à religião e ao racionalismo, os quais são entendidos como expressão da
crença em um mundo-verdade. Aqui é oportuno lembrar que Nietzsche também
criticará o que chama de “vontade de verdade” que está na raiz da crença de que
o mundo tem um sentido já dado, que
cabe ao homem tão-só descobrir.
[1] Por afetos, entende Espinosa (2011,
p. 98) “as afecções do corpo, pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou
diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias dessas
afecções”. O afeto se distingue da
paixão pela possibilidade de podermos, no caso do afeto, nos conceber como a
causa de uma afecção.
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Edson Bini. Bauru: SP, 2013, p. 74.
[4] Nada obsta a que a disposição possa ser pensada à luz do
registro do ser espinosista como recoberto pela dinâmica dos encontros, pelas
relações entre os corpos, pela dinâmica relacional caracterizada por encontros
potencializadores ou despontencializadores de meu corpo com outros corpos.
Nessa perspectiva teórica, a disposição afetiva poderia ser pensada como uma
espécie de ‘marca’ piscofisiológica resultante da forma como se dão aqueles
encontros.
[5] Conforme ficará claro adiante, a
“metafísica trágica” caracteriza um momento do desenvolvimento do pensamento de
Nietzsche: em uma palavra, o período em que vem a lume O Nascimento da Tragédia, obra onde a influência schopenhaueriana é
flagrante. A esse respeito, Rocha (ibid.) faz uma observação que suprime
qualquer margem de dúvida quanto ao domínio de referência a que se aplica o
emprego do termo metafísica quando
se fala de Nietzsche: “(...) podemos considerar que o termo metafísica deve ser entendido aqui de um modo muito particular: se
o que o define é a concepção de uma essência subjacente às aparências, então a
obra do jovem Nietzsche é efetivamente metafísica. Mas se o que define é a
crença em um fundamento ou uma razão para a existência, então a filosofia de
Nietzsche é desde o início rigorosamente antimetafísica”.
[6] Seguindo aqui a interpretação de
Rocha (ibid., p. 44).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer Educador. São Paulo:
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