
A significação do Eterno
Retorno
a
afirmação suprema do real
1. Considerações
preliminares
A despeito de Nietzsche considerar
o pensamento do Eterno Retorno o mais importante de toda a sua produção
filosófica e a despeito de Heidegger (2007, p. 198) enfatizar que é o Eterno
Retorno “a doutrina fundamental da filosofia nietzschiana”, qualquer leitor
atento de Nietzsche não terá dificuldade de reconhecer as escassas referências
que ele faz a esse pensamento ao longo de sua obra. Heidegger, por exemplo,
identifica três momentos em que Nietzsche considera o Eterno Retorno. A
primeira comunicação dessa doutrina encontra-se no aforismo 341 de A Gaia Ciência. A segunda comunicação se
topa na terceira parte do livro Assim
Falou Zaratustra, vindo a lume dois anos depois da publicação de A Gaia Ciência. Por fim, a terceira
comunicação identificada por Heidegger se encontra no aforismo 56 de Para Além do Bem e do Mal, publicado em
1886. E isso encerra tudo que Nietzsche enunciou sobre o Eterno Retorno, o que
levou Heidegger (ibid., p. 205) a notar: “se considerarmos essa exposição
tripla, então isso é muito pouco para um pensamento que deve ser o pensamento
fundamental da filosofia como um todo”.
Rosset (2000, p. 83), por sua
vez, considera o aforismo 341 de A Gaia
Ciência “o texto a um só tempo mais extenso e mais esclarecedor”. E diz
mais:
Que eu
saiba, existem apenas no conjunto dos livros que Nietzsche publicou ou cuja
publicação autorizou, duas páginas e bastante curtas, expressamente consagradas
à questão do eterno retorno: o aforismo 341 da Gaia Ciência e o aforismo 56 de Para
além do bem e do mal.
Essas informações sobre os poucos
momentos em que Nietzsche rompe o silêncio sobre a doutrina do Eterno Retorno
não estão aqui gratuitamente. Se as damos a conhecer, é para assinalar que os
comentadores de Nietzsche têm de lidar, nesse terreno, com mais uma
dificuldade: o da escassez de material textual em que se possa basear uma
interpretação. Há outras dificuldades que são específicas do trato com os
textos de Nietzsche. No que toca, por exemplo, aos temas principais de seu
pensamento, quais sejam, a vontade de poder, o niilismo e o Eterno Retorno,
pondera Almeida (2005, p. 18) que
[esses temas] são ambíguos, ambivalentes,
paradoxais e, portanto, suscetíveis das mais diversas interpretações (...)
porque o próprio Nietzsche não cessa de se des-dizer,
de se re-ler e de criar novas
perspectivas pela arte da poesia, da ficção, da invenção, da interpretação, da
construção. (ênfases no original).
Ainda,
segundo Almeida, o pensamento de Nietzsche se move “a partir de relações de
forças” (ibid.), e, uma vez sendo “ele próprio uma força, só pode exprimir-se
pela escrita do paradoxo, vale dizer, pelo jogo contínuo de inclusões,
exclusões, rupturas, retomadas e revalorações”. (ibid.).[1]
Até aqui,
o que dissemos toca tanto às condições específicas da textualidade da produção
do pensamento nietzschiano quanto à forma extremamente lacunar com que foi
anunciado o pensamento do Eterno Retorno e às dificuldades que disso decorrem
para o trabalho dos comentadores. Sem embargo da referida escassez de registros
textuais do pensamento do Eterno Retorno, é possível produzir um gesto de
interpretação com base nos dois textos que temos à disposição e que tratam
desse tema: o aforismo 341 de A Gaia
Ciência e o texto Da visão e do
enigma de Assim falou Zaratustra. Nossas
considerações acerca do Eterno Retorno se aterão a esses dois textos. Antes,
contudo, de nos debruçar sobre esses textos, gostaríamos de referir uma
passagem de Cabral (2015, p. 135), na qual nos chama a atenção para a lição
heideggeriana sobre a historicidade de todo pensamento.[2]
Atente-se, então, para o que segue:
Nietzsche, assim como outros
pensadores, não é compreendido por Heidegger como um sujeito singular que,
genialmente, apreendeu representativamente o mundo e, de uma maneira sui generis, explicitou sua apreensão do
real por meio de conceitos também singulares. Abordar Nietzsche desse modo
seria como cair em uma ingenuidade hermenêutica. Jamais compreendemos um pensador, sem considerar o horizonte histórico
que condiciona o seu dizer. O que todo pensador diz nunca aparece como
fruto de algo como uma geração
espontânea, destituído de raízes históricas que o condicionam. Antes, em
todo pensamento, fala o mundo que o
sustenta e que descerra o campo no qual todos os comportamentos do ser-aí
são possíveis, inclusive o pensamento. (grifos nossos).
Estamos totalmente de acordo com
os pressupostos teóricos em que se baseia essa lição trazida por Cabral ao
conhecimento de seu leitor. Os trechos que destacamos em negrito remetem a uma
série de conceitos postos e desenvolvidos pela vertente francesa da Análise do
Discurso, para cujo desenvolvimento Foucault, aliás, legou uma significativa
contribuição. Dizer, por exemplo, que “jamais compreendemos um pensador sem
considerar o horizonte histórico que condiciona o seu dizer” é assumir o que a
Análise do discurso chama de “exterioridade constitutiva” do texto, sua
historicidade. Dizer que um pensamento não é fruto de uma “geração espontânea”
é dizer que todo discurso é atravessado por outros dizeres, é determinado por
vários já-ditos. É dizer, em suma, que o dialogismo
é a dinâmica fundante da linguagem, do discurso, porque diz respeito ao
reconhecimento de que os enunciados que produzimos se constituem a partir de
outros enunciados (não há um sujeito adâmico que, ao enunciar produz um ato
original, único, singular). Com o dialogismo, quer-se afirmar que todo discurso
está calcado sobre discursos precedentes, que todo discurso remete a outros
discursos, ou mesmo que todo discurso cria as condições para a produção de
discursos ulteriores. Essa é a lição de outro filósofo da linguagem –
Bakhtin-, que cabe aqui referir:
Portanto, toda compreensão plena
real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da
resposta ( seja qual for a forma em que ela se dê). O próprio falante está
determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não
espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que antes duble o seu
pensamento em voz alheia, mas uma
resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc.
(...) Todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o primeiro falante, o
primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe não
só a existência do sistema da língua que
usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus e alheios – com os
quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles,
polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte. Cada enunciado é um elo na corrente
complexamente organizada de outros enunciados. (Bakhtin, 2010, p. 271,
grifos nossos).
Os compromissos teóricos de
leitura que assumimos não devem ser supostos apenas na lida com as produções
textuais de Nietzsche, evidentemente, já que expressam princípios teóricos que
pretendem explicar o funcionamento do discurso como acontecimento
sócio-histórico, como prática social, como processo discursivo do qual os
textos são peças, são momentos que, embora possam ser entendidos, para efeito
de análise, como unidades fechadas, com começo, meio e fim, estão, necessariamente,
enquanto espaços significantes, em relações complexas com outros textos
(explícitos ou implícitos) – o que chamamos de intertextualidade. Portanto, devemos enfatizar que aqueles
princípios teóricos valem para todo e qualquer texto e constituem insumos
importantes para a produção da leitura.
Se os compromissos teóricos que
assumimos foram aqui enunciados, não o foram simplesmente para demarcar uma
posição pedagógica ou metodológica para o tratamento da atividade de leitura.
Eles constituirão a base para certas afirmações que faremos quando da análise
do pensamento do Eterno Retorno.
Passemos, então, sem mais
delongas, a examinar os dois textos nos quais Nietzsche enuncia o pensamento do
Eterno Retorno. Não é demais dizer que o Eterno Retorno foi apresentado sob as
formas de hipótese e de doutrina. Sob a forma de hipótese, esse pensamento se
acha no aforismo 341 de A Gaia Ciência;
sob a forma de doutrina, ele se acha no texto Da visão e do enigma de Assim
falou Zaratustra. Vamos examinar o pensamento do Eterno Retorno nesses dois
textos separadamente, para fins didáticos. Concordamos com Casanova (2013, p.
218), ao dizer que o pensamento do Eterno Retorno não foi formulado como “uma
simples doutrina escolar, no interior da qual nos deparamos com a assunção de
uma certa hipótese particular e com uma subsequente sustentação
lógico-racional”. Na verdade, segundo Casanova,
(...) Ele [Nietzsche] o constrói
através de uma determinada descrição da dinâmica de realização da existência
assim como da colocação imediata de uma questão a um indivíduo singular acerca
de sua postura diante desta descrição.
(ibid., grifo nosso).
Parece-nos que o que Casanova
diz, no excerto supracitado, é consistente com a textualização de um mundo
hipotético no aforismo 341 de A Gaia
Ciência. O Eterno Retorno não se deduz aí como uma hipótese no sentido
científico e/ou filosófico do termo – está certo -; mas se apresenta como uma
hipótese no sentido de uma conjectura, de uma suposição ficcional – suposição
esta, aliás, que instaura, na cena discursiva, um mundo terrível, que cria uma
atmosfera sombria e pessimista. Mas pedimos aqui o devido esmero na
interpretação desta nossa fala: não
estamos sugerindo que o pensamento do Eterno Retorno seja um tipo de pensamento
pessimista. Não! O que nos parece
haver, no aforismo 341, é a instauração de uma relação dialógica com a visão
filosófica pessimista e com as forças reativas e a qualidade negativa da
vontade de poder que lhe dão sustentação. Mas não vamos aqui nos apressar em
aprofundar essa dimensão de nossa interpretação.
Precisamos esclarecer alguns
pontos importantes, antes de nos ocuparmos com o exame dos dois textos que
tratam do Eterno Retorno. O primeiro desses pontos diz respeito ao emprego
semântico-sintático dos vocábulos ‘ativo’ e ‘reativo’. Nesse tocante, acompanhamos
Deleuze (2001), para quem ativo e reativo designam as qualidades
originais das forças. Segundo Deleuze (ibid., p. 66), “o poder de
transformação, o poder dionisíaco, é a primeira definição da atividade”. Ainda
segundo Deleuze, reativo designa a qualidade original da força na relação com o
ativo, a partir do ativo. Por seu turno, o ‘afirmativo’ e o ‘negativo’ designam
a qualidade da vontade de poder. As vontades de poder negativas estão a serviço
do niilismo e de suas formas. Elas se expressam como vontade de nada, vontade
de aniquilamento, como hostilidade contra a vida. Mas é importante ter em vista
o fato de que em Nietzsche, como lembra Deleuze,
“(...) nunca a relação essencial de uma força com
outra é concebida como um elemento negativo na essência. Na sua relação com a
outra, a força que se faz obedecer não nega a outra ou o que ela não é, afirma
a sua própria diferença e compraz-se nela”. (ibid., p. 16).
A afirmação, em Nietzsche, é
entendida por Deleuze como afirmação da diferença; nesse sentido, ela se opõe à
negação dialética: “o “sim” de Nietzsche opõe-se ao “não” dialético; a
afirmação à negação dialética; a diferença, à contradição dialética (...)”
(ibid., p. 17). O afirmativo é o dionisíaco: “Dionísio afirma tudo aquilo que
aparece, “mesmo o mais amargo sofrimento”, e aparece em tudo aquilo que é
afirmado” (ibid., p. 28). Dionísio é, portanto, o deus que afirma a vida, é o
deus para quem a vida não carece de ser justificada. O trágico está, portanto,
representado na figura de Dionísio, pois que ele é a afirmação incondicional do
múltiplo, da diferença, do devir. Por isso, Deleuze diz com precisão: “a
afirmação múltipla e pluralista, eis a essência do trágico” (ibid.) – ou ainda,
“o que define o trágico é a alegria do múltiplo, a alegria do plural” (ibid.).
É também o que dirá Rosset (2000), a seu modo, quando sublinha que o trágico é
a aprovação jubilosa da existência em todas as suas formas. Tratemos de
esclarecer, doravante, mais um ponto.
Na tentativa de produzir um gesto
de interpretação, somos, necessariamente, confrontados com um repertório de
vozes, de outros dizeres sobre o Eterno Retorno, dentre essas vozes destacamos
duas em relação às quais devemos demarcar nossa posição. A primeira dessas
vozes é a de Heidegger. No confronto com a interpretação de Heidegger com o
pensamento de Nietzsche e com o do Eterno Retorno, em particular, somos
instados a dizer, basicamente, se vamos entender o Eterno Retorno como Eterno
Retorno do Mesmo, tal como Heidegger
o entende, ou, ao contrário, se vamos divergir dessa interpretação. O que
consideramos problemático na interpretação heideggeriana do Eterno Retorno como
Eterno Retorno do Mesmo é que ela
inscreve o pensamento do Eterno Retorno no contexto da compreensão que o
próprio Heidegger tem do pensamento de Nietzsche como o ápice da “agudização”
do esquecimento do ser. Em outras palavras, Heidegger entende que a história do
Ocidente identifica-se com a história da metafísica, a qual, por sua vez, se
caracteriza pelo que Heidegger chama de esquecimento do ser, isto é, pelo
abandono da diferença ontológica entre o ser e o ente na totalidade. No lugar
dessa diferença, o pensamento metafísico operou uma cisão do ente em dois
âmbitos complementares, um dos quais é o fundamento, presença constante e suposta;
e o outro, o fundamento, que se identifica com o mundo aparente ou do devir. De
acordo com essa interpretação heideggeriana, nas palavras de Cabral (op.cit.,
p.136),
“(...) a história do Ocidente é a história do
esquecimento cada vez maior do ser
como diferença em relação à sua
clareira e ao ente. Nesse sentido, Nietzsche se inscreve em um mundo histórico
onde a agudização do esquecimento do ser tornou-se tão intensa, que esse mundo
caracteriza-se por ser sinal do abandono
do ser. Como a medida vinculadora desse mundo é dada pela e na técnica, a
obra nietzschiana é, a um só tempo, voz da técnica e expressão do abandono do ser.”
O que se infere do exposto acima
é que, para Heidegger, o pensamento de Nietzsche expressa o niilismo mais
intenso da história ocidental, bem como dá voz mais aguda à reprodução das
bases metafísicas que sustentam essa história. Vejamos ainda dois trechos de
Heidegger, nos quais não há nenhuma margem de dúvida de que ele toma o
pensamento nietzschiano como metafísico. O primeiro excerto é o seguinte:
A doutrina nietzschiana do eterno
retorno do mesmo não é uma doutrina qualquer entre outras sobre o ente. Ao
contrário, ela surgiu muito mais a partir da mais rigorosa confrontação com o
modo de pensar platônico-cristão e com as suas repercussões e degenerações na
modernidade. Esse modo de pensar é estabelecido por Nietzsche ao mesmo tempo
como traço fundamental do pensar ocidental em geral e de sua história.
(Heidegger, op.cit., p. 199).
Em primeiro lugar, quando
Heidegger diz ser a doutrina do Eterno Retorno do Mesmo uma doutrina sobre o “ente”,
deve-se precisar que se trata do que ele chama “ente na totalidade”, expressão
que, nas palavras do próprio Heidegger, designa
(...) tudo o que não é
simplesmente o nada: a natureza, inanimada ou animada, a história e suas
produções, seus fundadores e seus promotores, seus formadores e seguidores, o
Deus, os deuses e os semideuses. Chamamos também ente o que devém, o que nasce
e o que se extingue... Tudo isso é compreendido no termo “o ente na
totalidade”. (ibid., p. 214).
Heidegger prossegue esclarecendo
o que entende por “ente na totalidade” e, entre as demais formulações do
conceito, salta-nos à vista “aquilo pelo que se pergunta, o que é digno de
questão”. (ibid.). Ao dizer, portanto, que a doutrina do Eterno Retorno trata
do ente ou do ente na totalidade, Heidegger já assinala que se trata da sua
perspectiva sobre Nietzsche. O próprio Heidegger admite que “Nietzsche não fala
do ente na totalidade” (ibid.). De passagem, é preciso lembrar que Heidegger
preocupa-se em determinar a diferença entre seus usos lexicais e campos
semânticos e os de Nietzsche. Lembra Heidegger que, quando Nietzsche se refere
à realidade, à totalidade do real, usa a palavra “mundo” ou “existência”. Ainda
segundo Heidegger apenas quando Nietzsche levanta a questão sobre o sentido da
existência é que esse vocábulo pode ser semanticamente aproximado (não
identificado) ao significado que Heidegger atribui à expressão “ente na
totalidade”. Não precisamos nos demorar nessas minúcias semióticas, no texto
supracitado, em que Heidegger afirma que a doutrina do Eterno Retorno trata do
ente, para dizer que ele já instaura um gesto de interpretação à luz do qual
Nietzsche aparece como aquele que leva à consumação o pensar metafísico (não
simplesmente no sentido de “término”, mas, sobretudo, no sentido de realização
radical). Em outras palavras, o pensamento de Nietzsche “apresenta o derradeiro
enredamento no niilismo, porque leva a termo o acabamento de uma história na
qual o ser mesmo nunca se acha colocado em questão” (Casanova, 2006, p. 149).
Heidegger – deve-se frisar - (ibid., p. 198) sustenta que “a doutrina do eterno
retorno do mesmo contém um enunciado sobre o ente na totalidade” e por isso
“ela se alinha (...) com doutrinas correspondentes que são há muito correntes
no interior do pensamento ocidental” (ibid.). Tais doutrinas – completa
Heidegger – “atuaram concomitantemente de maneira essencial na configuração da
história ocidental (...)” (ibid.).
Cumpre também atentar para o fato
de que Heidegger considera a doutrina do Eterno Retorno como uma doutrina que
emerge da “rigorosa confrontação com
o modo de pensar platônico-cristão...”. O termo “confrontação”, em Heidegger,
não é empregado no sentido comum de simples comparação, embate, duelo. Esse
termo reúne dois significados: a) um tipo específico de afastamento, em que os
envolvidos aparecem em sua singularidade; b) uma relação de tensão, na qual o
distanciamento descerra, na diferenciação, a singularidade. Assim, na
confrontação de Nietzsche com o platonismo-cristianismo, segundo parece sugerir
a interpretação de Heidegger, o que se abre é o modo próprio de determinação
tanto do pensamento Nietzschiano quanto do pensamento platônico-cristão conjuntamente
com a instauração da diferença e proximidade entre os dois pensamentos. Segundo
Cabral (op.cit, p. 139), “com o termo confrontação, Heidegger entende
inicialmente um modo de conquista da transparência do lugar de onde emerge o
pensamento de um pensador da tradição”. Acresce ainda Cabral (ibid., p. 141):
A
confrontação é uma confrontação histórica.
Se a interpretação deve partir do texto em direção à abertura do ente na
totalidade que o sustenta, este encaminhamento articula-se com a história das
aberturas do ente na totalidade que possibilitam o pensamento de um pensador e
que o levam a estar essencialmente determinado pela tradição. O pensamento de
Aristóteles e o pensamento de Nietzsche estão, por exemplo, historicamente
articulados, pois, de algum modo, a tradição possibilita a gênese de diferenças
de pensamento e fornece a medida de onde provém a unidade que relaciona essas
diferenças.
O que
Heidegger entende, portanto, por confrontação
consoa com os pressupostos teóricos assumidos atinentes ao modo de
funcionamento do discurso (tais como o dialogismo, o interdiscurso, a
historicidade do texto, opacidade da linguagem...)[3].
Um trecho de Ser e Tempo (2012, p.
211) em que Heidegger trata da interpretação textual vem em apoio à referida
relação consoante entre os pressupostos teóricos em que se baseiam a teoria do
discurso com a qual se afina nosso pensamento e o conceito de confrontação
heideggeriano:
A
interpretação nunca é a apresentação de um dado preliminar, isenta de
pressupostos. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação
textual exata, se compraz em se basear nisso que “está”, aquilo que, de
imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia,
indiscutida e supostamente evidente do intérprete. Em todo princípio de
interpretação, ela se apresenta como aquilo que a interpretação necessariamente
já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e
concepção prévia.
A consonância
do texto heideggeriano com os pressupostos teóricos com os quais nossa visão de
leitura/interpretação está alinhada expressa-se na recusa de se poder atingir a
“verdade” de um texto, de se poder fixar um sentido “correto”; em suma,
expressa-se na recusa da crença de que os sentidos encontram-se já dados nas
palavras, na recusa da crença na evidência do sentido.
No
contexto desta discussão, nosso acordo com Heidegger não vai além dos
pressupostos teóricos envolvidos na consideração do funcionamento do discurso e
na constituição dialógica do pensamento filosófico. Portanto, toda a filosofia se desenvolve e se constitui
a partir de uma outra. Isso é verdade também para qualquer domínio
discursivo: todo discurso se desenvolve e se constitui na base de outros
discursos. Conforme nos dá testemunho Cossuta (2001, p. 33), “(...) cada
filosofia pretende encontrar sua origem num começo radical”; mas acrescenta
“todo começo é apenas recomeço”. Aqui nos parece estar a especificidade do
discurso filosófico, visto que os discursos filosóficos jamais se superam uns
aos outros (no sentido de que cada discurso precisa constituir-se pela
reelaboração, pelo retorno a e trabalho contínuo sobre as proposições, as
teses, os argumentos, a abordagem de outros discursos). Toda a herança discursiva é, a cada nova
etapa (texto) de discurso, revitalizada, reanimada, reincorporada, ainda que
seja para dela se distanciar, para submetê-la ao impacto de um martelo
nietzschiano. Esse recomeço da filosofia, que não se dá senão por construção de
discurso, é ele o próprio exercício contínuo e ininterrupto do pensamento. É o
pensamento que, retomando o já pensado, o prolonga, o faz dizer o que até então
havia permanecido silenciado. Por isso, Platão nunca será superado, nem Santo
Agostinho, nem os que os precederam. É nesse recomeço que reside a vitalidade
do discurso filosófico – um discurso que, embora tenha no seu horizonte a verdade,
jamais pretende, por isso mesmo, alcançá-la definitivamente; e também, por
isso, se apresenta como um recomeço: é um discurso que, animado pela busca da
verdade, está sempre disposto a percorrer os mesmos caminhos, a retomar os
mesmos pontos de partida; pois o contentamento está não tanto na chegada, mas
nesse percorrer.
Não
obstante nosso acordo com Heidegger na maneira de pensar a inscrição histórica
do pensamento de um filósofo pelo conceito de “confrontação”, não acompanhamos
Heidegger na inscrição de Nietzsche na história da metafísica. Se essa
interpretação que Heidegger faz de Nietzsche foi possível – assim nos parece -,
é porque ele, Heidegger, pensa a metafísica de modo bem peculiar, isto é, pensa
a história da metafísica como caracterizada pelo esquecimento da questão do
sentido do ser; e como “o ser”, no sentido propriamente metafísico, a saber, o
horizonte absoluto, a abertura total, a condição de possibilidade para o
aparecimento dos entes; o “ser” como fundamento da totalidade do ente; em
última instância, o ser como
instância suprassensível, imutável, é justamente o que a filosofia nietzschiana
recusa, subverte, abole, recusamos a interpretação heideggeriana, por mais
coerente que ela seja com os pressupostos nela envolvidos. Heidegger parece
ter-se preocupado em demonstrar que Nietzsche é um pensador do ser –
entendendo, inclusive, que a crítica nietzschiana à metafísica platônica não
seria outra coisa senão um estágio necessário para preparar a restauração de
uma ontologia “verdadeira”. Reiteramos que, para nós, Nietzsche é um pensador
do devir (o ser, em Nietzsche, é devir). Assim, o pensamento do Eterno Retorno
é um pensamento afirmativo; ele afirma o caráter deveniente do mundo, da vida;
não visa a “rejuvenescer” o velho ser metafísico. Nem o pensamento de Nietzsche
tem caráter metafísico nem a doutrina do Eterno Retorno o tem. Dito isso,
acedemos ao que observa Rosset (2000, p. 90): “Heidegger vê assim na ideia do
eterno retorno a intuição obscura de uma permanência do ser (...)”. Todavia,
“nada há de mais alheio a Nietzsche do que a noção de ser tal como a concebe
Heidegger”.
Cumpre
ainda demarcar nossa posição relativamente à interpretação deleuziana do Eterno
Retorno. Comecemos, então, por enfatizar que Deleuze recusa a ideia de um
Eterno Retorno do “Mesmo”. Deleuze começa afirmando que “o segredo de Nietzsche
é que o eterno Retorno é seletivo. E
duplamente seletivo” (2013, p. 35, ênfase no original). Antes de dilucidar
quais são as duas seleções operadas pelo Eterno Retorno, atentemos para o
trecho em que Deleuze afirma, claramente, que o “Mesmo” não volta no Eterno
Retorno:
Retornar é precisamente o ser do
devir, o uno do múltiplo, a necessidade do acaso. Assim é preciso evitar fazer
do eterno Retorno um retorno do Mesmo.
Isto seria desconhecer a forma da transmutação e da mudança na relação
fundamental. Porque o Mesmo não preexiste ao diverso (salvo na categoria do
niilismo). Não é o Mesmo que volta,
já que o voltar é a forma original do Mesmo, que apenas se diz do diverso, do
múltiplo, do devir. O Mesmo não volta, é o voltar apenas que é o Mesmo daquilo
que devém. (Deleuze, ibid., p. 34, ênfases no original).
A recusa
deleuziana do retorno do “Mesmo” no pensamento do Eterno Retorno é uma
implicação da sua compreensão do ser como seleção, como diferença pura. O que
Deleuze entende por diferença encontra-se bem sumariado no seguinte excerto de
Schöpke:
A diferença está no
cerne do próprio ser, como a sua manifestação mais profunda. O ser, na verdade,
se diz da diferença. Ele não é “a” diferença em si, no sentido platônico do
termo. Mas a diferença em si no
sentido em que uma filosofia da diferença a toma: um ser unívoco que se diz da diferença. (Schöpke, 2012, p. 150).
Há, para Deleuze,
segundo dissemos, uma dupla seleção no Eterno Retorno. A primeira seleção
operada pelo Eterno Retorno é a que “nos dá uma lei para a autonomia da vontade
desgarrada de toda a moral” (Deleuze, 2013, p. 35). O que se elimina aqui é “o
mundo dos semi-quereres”. Nega-se a tudo que queremos a condição de dizer “uma
vez, apenas uma”. A primeira seleção afirma o Eterno Retorno como pensamento
ético.
O eterno retorno fornece à vontade uma regra tão rigorosa como a regra kantiana. (...) Como pensamento
ético, o eterno retorno constitui a nova formulação da síntese prática: o que
quiseres, queira-o de tal maneira que também queiras o eterno retorno.
(Deleuze, 2001, p. 104).
O “sim” que se afirma
no Eterno Retorno é adesão completa e incondicional ao real. Comentando essa
primeira seleção do Eterno Retorno em Deleuze, Rosset dá a saber o seguinte:
O sim que
se sente no pensamento do eterno retorno vale por ele aceitar, ou melhor, estar
disposto a aceitar, de qualquer coisa existente, o puro e simples retorno. Ele
se caracteriza assim pelo fato que queixa alguma, pedido algum de revisão não
são apresentados contra o real: ele é a adesão ao que é, sem reserva de emenda
possível ou desejável. (Rosset, 2000, p. 86).
Ora,
porque o Eterno Retorno, como expressão máxima de um “sim” incondicional ao
real, não admite nenhum apelo a que, no curso do retorno, se repare alguma
coisa, não deixa de soar estranho – para dizer o mínimo – que Deleuze afirme “a
lição do eterno retorno é que não há retorno do negativo” (Deleuze, ibid., p.
282). Mas, para Deleuze chegar a negar o retorno do negativo, ele precisou
pensar, à semelhança de um dialético, contra a dialética. Diz Deleuze “O “sim”
de Nietzsche opõe-se ao “não” dialético”. (ibid., p. 17). O pensar dialético
trabalha com a contradição, ou melhor, é, para Deleuze, um pensamento da
contradição, do negativo, e não da diferença. Para Deleuze sustentar que só
retorna o afirmativo, jamais o negativo, ele precisou pensar a superação da
negação pela afirmação através da transmutação – ponto em que o negativo se
converte em afirmação, ponto em que o negativo perde seu poder e sua qualidade
deixa de ser um poder autônomo, uma qualidade da vontade de poder.
A
transmutação refere o negativo à afirmação na vontade de poder, faz dele uma
simples maneira de ser dos poderes de afirmar. Não mais o trabalho da oposição
nem a dor do negativo, mas o jogo guerreiro da diferença, afirmação e alegria
da destruição. O não destituído do seu poder, passado para a qualidade
contrária, tornando-se ele próprio afirmativo e criador; é esta a transmutação
dos valores. (Deleuze, ibid., p. 284).
A
transmutação que culminará com a expulsão do negativo opera segundo uma série
de sínteses, da qual não vamos nos ocupar, já que isso nos levaria longe demais
do que pensamos seja o essencial em nossa divergência com a posição deleuziana,
a saber, ao contrário do que pensa Deleuze, o negativo tem também de ser
querido no Eterno Retorno, tem também de retornar, sob pena de o caráter
supremo da afirmação do Eterno Retorno perder todo sentido. E nossa divergência
encontra apoio em Rosset que, após observar que Leibniz, antes de Nietzsche,
teria concebido a sua versão do Eterno Retorno e que a versão do Eterno Retorno
nietzschiana, ao contrário da versão leibniziana, não admite a mínima variação
que seja do mesmo, diz contrariamente ao que diz Deleuze:
Ora, como
vimos acima, tal pedido [o da ligeira variação do mesmo na versão de Leibniz]
não figura de modo algum no pensamento nietzschiano do eterno retorno: “Tudo o
que há de indizivelmente pequeno e grande em tua vida deverá retornar para ti,
e tudo na mesma ordem e na mesma sequência”. Por isso é difícil seguir Deleuze quando declara que o eterno
retorno opera em Nietzsche uma “segunda seleção” privilegiando o retorno das
forças ativas e eliminando o das forças reativas. (...) Esta ideia de uma
progressão possível do bem, de um melhor pronto para surgir no seio do melhor
mesmo, teria sem dúvida o assentimento de Leibniz, mas certamente não o de
Nietzsche. (Rosset, 2000, p. 87, grifo nosso).
Parece-nos
que a posição deleuziana só pode ser sustentada se, forçosamente, ignorarmos
passagens em que Nietzsche se refere claramente ao Eterno Retorno como retorno
do mesmo. Em Ecce Homo (2013), na
seção 3, em que Nietzsche fala sobre seu
O Nascimento da Tragédia, se
nos depara o seguinte excerto: “a doutrina do “eterno retorno”, ou seja, do ciclo incondicional, infinitamente
repetido, de todas as coisas – essa doutrina de Zaratustra poderia, em
definitivo, já ter sido ensinado por Heráclito”. [4]
Rosset
acrescenta, contrariamente à interpretação de Deleuze, segundo a qual o
negativo não retorna no Eterno Retorno, o seguinte:
Não vemos, aliás, sobre que
textos de Nietzsche semelhante interpretação poderia apoiar-se – a não ser
sobre textos concernentes à vontade niilista, que não há razão alguma de ligar
ao tema do eterno retorno. (Rosset, ibid.).
Também em
Ecce Homo, no capítulo intitulado de Por que sou tão sábio, Nietzsche deixa
entrever que o negativo tem de retornar com tudo o mais no Eterno Retorno. No
trecho, que referimos abaixo, Nietzsche fala do tratamento que recebe de sua
mãe e irmã.
O
tratamento que minha mãe e minha irmã me dão até este momento me inspira um
horror indizível: aqui trabalha uma perfeita máquina infernal que conhece com
segurança infalível o instante em que é possível ferir-me – em meus instantes
supremos... pois então falta toda força para defender-me contra vermes
venenosos... A contiguidade fisiológica torna possível semelhante desarmonia
preestabelecida... Confesso que a
objeção mais profunda contra o “eterno retorno”, que é meu pensamento
autenticamente abissal, são sempre minha mãe e minha irmã. (Nietzsche,
2013, p. 33, grifo nosso).
Rosset,
comentando esse trecho de Ecce Homo,
diz:
(...)
essa página não deixa de ser reveladora, não somente do que Nietzsche pensava e
provavelmente pensou mais ou menos de sua mãe e de sua irmã, mas sobretudo do
que Nietzsche pensava e sempre pensara do eterno retorno: que ele fazia (ou faria) voltar indistintamente todas as coisas, as piores
como as melhores. (Rosset, ibid., p. 88, grifo nosso).
Rosset
insiste em que o que volta no Eterno Retorno é “este mundo aqui”, “que não
haverá nada de novo” (ibid., p. 84). Insiste em que o Eterno Retorno diz de uma
repetição estrita, “que, aliás, não exclui o retorno da diferença tal como
Deleuze sugere, se é verdade que a própria vida seja constituída de
diferenças”, mas “exclui, em compensação, a ideia de um retorno do mesmo tal
como Heidegger a concebe a partir do momento em que esta implica uma
permanência do ser transcendendo toda existência no tempo”. (ibid.). Daí se
conclui que o “Mesmo” do Eterno Retorno expressa-se como repetição da qual o
mesmo e o diferente, o afirmativo e o negativo num movimento incessante que
recusa toda tentativa de superação por meio de sínteses (tal como procede o
pensar dialético). O “Mesmo” do Eterno Retorno se afirma afirmando as
contradições do real, do ser do devir, da necessidade do acaso: “Que tudo
retorna sem cessar é a extrema aproximação de um mundo do devir com um mundo do
ser. Ápice da meditação”. (Nietzsche, 2011a, § 286). É somente quando recusamos
qualquer tentativa de superação dos contraditórios pela síntese, é somente
quando deixamos de excluir qualquer coisa da dinâmica iterativa do Eterno
Retorno que se pode aceitar o enunciado deleuziano como consistente com a
filosofia nietzschiana: “o devir é o ser, o múltiplo é uno, o acaso é a
necessidade do acaso” (Deleuze, 2001, p. 281). Em última instância, para nós, o
“Mesmo” do Eterno Retorno é o retorno do mundo mesmo tal como o entende
Nietzsche. Mas o que é o mundo para Nietzsche. É o próprio Nietzsche quem nos
diz:
Este
mundo é um mundo monstro de força sem começo e nem fim, uma quantidade de força
brônzea que não se torna nem maior nem menor, que não se consome, mas só se transforma, imutável em seu conjunto,
uma casa sem despesas nem perdas, mas também sem rendas e sem progresso, rodeado do “nada” como de uma fronteira. Este mundo não é algo de vago e que se
gaste, nada que seja d uma extensão infinita, mas, sendo uma força determinada,
está incluído num espaço determinado e não num espaço que seria vazio em alguma
parte. Força por toda parte é jogo de
forças e ondas de forças uno e múltiplo simultaneamente acumulando-se aqui,
enquanto se reduz ali, um mar de forças agitadas que provocam sua própria
tempestade, transformando-se eternamente num eterno vaivém, com imensos anos de
retorno com um fluxo perpétuo de formas, do mais simples ao mais complexo, indo
do mais calmo, do mais rígido e do mais frio ao mais ardente, ao mais selvagem,
ao mais contraditório para consigo próprio retornar, depois da abundância à simplicidade, do jogo das contradições ao prazer da harmonia, afirmando-se a si mesmo, ainda nessa
uniformidade de órbitas e dos anos, bendizendo-se a si próprio como aquilo
que deve eternamente retornar, como um devir que jamais conhece a
saciedade, jamais o tédio, jamais a fadiga: este mundo dionisíaco da eterna criação de si mesmo, este mundo misterioso das
voluptuosidades duplas, meu “além do bem e do mal”, sem fim, senão o fim que reside na felicidade dos círculo,
sem vontade, senão um anel que possua a
boa vontade de seguir seu velho caminho, sempre em redor de si mesmo. Este
mundo, que eu concebo, quem, pois, possui o espírito bastante lúcido para
contemplá-lo sem desejar ser cego? Quem é bastante forte para apresentar sua
alma ante esse espelho? Seu próprio espelho ao espelho de Dioniso? E aquele que
fosse capaz disso não precisaria que fizesse mais ainda? Ofertar-se a si mesmo
“ao anel dos anéis”? Como o voto do próprio retorno de si mesmo? Com o anel da
eterna bênção de si, da eterna afirmação de si? Com a vontade de querer sempre e ainda uma vez? De querer para
trás, de quere todas as coisas que já foram? De querer para o futuro, de querer
todas as coisas que serão? Sabeis agora o que é para mim este mundo? E o que eu
quero, quando quero este mundo? Quereis um nome para esse universo, uma solução
para todos os enigmas? (Nietzsche, 2011, § 385, grifos nossos).
Nietzsche
oferece o nome para este mundo, ao sentenciar: “este mundo é o mundo da vontade de potência e nada mais! E vós
também sois esta vontade de potência
e nada mais...”. (ibid., ênfases no
original).
2. A fundamentação do pensamento do Eterno Retorno
Nesta seção,
vamos mostrar como Nietzsche aspirou a fundamentar a doutrina do Eterno Retorno
a partir dos postulados da física de sua época. No entanto, conforme nota
Jaspers (2015, p. 500), “(...) esse caminho também não era decisivo para o
sentido filosófico do pensamento [do Eterno Retorno]”. Ora, se a tentativa de
fundamentar cientificamente a doutrina do Eterno Retorno fracassa, de algum
modo, cabe perguntar por que nos preocupamos em trazê-la à baila. É que, ao a
considerarmos aqui, podemos ver mais claramente em que consiste o seu sentido
filosófico. O sentido filosófico da doutrina do Eterno Retorno não se revela na
tentativa que Nietzsche faz de fundamentá-la a partir dos postulados da física
de sua época; esse sentido só se descerra sob o modo de um transcender dessa
doutrina. É esse transcender que lhe confere o caráter de “estranheza” quando
consideramos a totalidade da obra nietzschiana. Essa estranheza expressa-se
como máxima tensão, ou ainda, constitui o ponto máximo da confrontação (no
sentido heideggeriano do termo) de Nietzsche com a tradição, a saber, com a metafísica e suas forças
reativas. Os comentadores que assumiram – a nosso ver de modo precipitado – que
o Eterno Retorno é uma doutrina metafísica, paradoxalmente imiscuída num
pensamento que afirma a pura imanência do ser, do mundo, não souberam atentar
para o caráter subversivo da doutrina, que só se realiza na medida em que
Nietzsche se apropria, num primeiro momento, do lugar de fala da voz metafísica
e de seu desejo de negar o devir em favor da permanência, a qual se perfaz uma
eternidade situada fora do tempo. Referindo, novamente, Jaspers, devemos
atender ao seguinte:
É
incontornável para que alcancemos a compreensão desse pensamento que reunamos
as coisas que Nietzsche enunciou sobre o eterno retorno. Ao fazermos isso,
deparamo-nos com uma doutrina
fundamentada fisicamente do
cosmos mas que, como tal, não pode ser visada, pois o que está em questão é o transcender dessa doutrina em direção a
um ser, que é essencialmente diverso de todo ser meramente físico e mecânico no
mundo. O pensamento não é desenvolvido tanto por causa de seu conteúdo
material, como se se tratasse de um objeto de pesquisa, mas muito mais porque
ele deve ser “o peso mais pesado”
para a autoconsciência do homem: quem o compreende corretamente, e o suporta comprova aí a sua força: o
pensamento provoca o surgimento de um processo de seleção e se torna um meio
para a elevação do ser humano no futuro. (Jaspers, ibid., p. 497, ênfases no
original).
Vale
dizer que esse “transcender” da doutrina do Eterno Retorno significa um ir além
da concepção mecanicista do mundo. De fato, a força do pensamento do Eterno
Retorno não pode ser remetida ao caráter cosmológico da doutrina, mas
justamente à primeira seleção a que se refere Deleuze, qual seja, a que faz do
pensamento do Eterno Retorno um pensamento que recusa “os semiquereres”. Sendo
o pensamento do Eterno Retorno “o peso mais pesado”, ele só pode ser suportado
por um novo tipo humano. Nesse tocante, Nietzsche é bastante enfático:
Para que
os homens possam suportar a ideia do
eterno retorno, é mister que sejam livres da moral; que encontrem meios novos
para combater a realidade da dor (deverão considerá-las instrumento, como
geradora do prazer; não há uma consciência que somasse o desprazer); o gozo que
oferece toda espécie de incerteza, de tentativa como contrapeso contra o
fatalismo extremo; supressão de toda ideia de necessidade, supressão da “vontade”;
supressão do “conhecimento em si”. (Nietzsche, 2011, § 379).
Sem mais
delongas, consideremos como Nietzsche buscou empreender a fundamentação
científica de sua doutrina do Eterno Retorno. Nietzsche orienta sua
argumentação a partir de três pressupostos. O primeiro pressuposto assenta no
reconhecimento de que o devir é incessante, é a transformação incessante das
coisas: “(...) se [o mundo] fosse capaz de preservar e cristalizar, capaz de
ser, se no decorrer de seu devir possuísse, embora por um instante somente,
essa faculdade de ser, já teria há muito acabado todo devir”. (ibid., § 380).
Nenhum estado final pode ser alcançado. O segundo pressuposto constitui a
afirmação da ausência de finalidade e do ser em si do mundo: “Se o mundo
tivesse um fim, já deveria ter sido alcançado”. (ibid.). O terceiro pressuposto
mantém que tanto o espaço quanto a força devem ser finitos para que seja
possível o movimento do eterno retorno. Desses três pressupostos, Nietzsche
deriva três conclusões. A primeira conclusão é que o devir não pode ser
infinitamente novo, porque, se assim fosse, a força deveria expandir-se
infinitamente. Como, no entanto, a força não cresce, não se expande, resta ou o
estado de repouso, ou o Eterno Retorno. Mas, se houvesse um estado de repouso, o
mundo teria atingido seu fim, coisa que, segundo Nietzsche, nunca aconteceu. O
Eterno Retorno segue-se, pois, como conclusão evidente. A segunda conclusão
assenta na afirmação de que, sendo a força finita, o número de variações, transformações, combinações dessa força,
embora seja praticamente imensurável, jamais pode ser infinito. A conclusão
também mantém que, dada a infinitude do tempo, todas as combinações possíveis
já precisam ter estado presentes. Por fim, a terceira conclusão afirma que,
como já estiveram presentes todas as possibilidades, é impossível ao mundo
alcançar um estado final de equilíbrio, um persistir do ser. Em virtude da
infinitude do tempo, o repouso é impossível, portanto.
É
importante enfatizar que o recurso de Nietzsche à ciência na tentativa de
fundamentar a doutrina do Eterno Retorno se faz num contexto de crítica ao
mecanicismo com sua concepção teleológica de mundo. Mas o sentido filosófico do
pensamento do Eterno Retorno só é alcançado quando este pensamento transcende à
própria tentativa que Nietzsche faz de lhe dar uma fundamentação “científica”.
É o que veremos na seção seguinte, quando nos deteremos na análise do aforismo
341 de A Gaia Ciência e do texto Da visão e do enigma de Assim falou Zaratustra.
3. O Eterno Retorno como a máxima
expressão da vontade de poder
Principiemos
nossa análise do pensamento do Eterno Retorno, a fim de trazer à luz seu
sentido filosófico, tomando, em primeiro lugar, o aforismo 341 de A Gaia Ciência. Transcrevemo-lo abaixo:
E se um
dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada
solidão e dissesse: “Esta vida como você
a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis
vezes, e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e
pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida terão de
lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa
aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante, e eu mesmo. A
perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela,
partícula de poeira!” – Você não se prostraria e rangeria os dentes e
amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante extraordinário, no qual lhe
responderia: “Você é um deus e jamais
ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse vontade de você, tal
como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez, a questão em tudo e em
cada coisa, “Você quer isso mais uma vez
e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos
pesos! Ou o quanto você teria de estar
bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna
confirmação e chancela? (grifos nossos).
O texto, já de início, se nos
apresenta como uma narrativa escrita no modo condicional, o que lhe confere o
estatuto discursivo de uma hipótese, uma conjectura (“se um demônio lhe
aparecesse...e lhe dissesse...”). Gostaríamos de frisar um momento específico
da leitura que Rosset faz desse aforismo:
(...) o
eterno retorno é apresentado, de saída (pois se trata do primeiro texto
publicado por Nietzsche sobre o assunto), não como uma tese tratando da verdade
das coisas, mas como hipótese convidando a
uma reação afetiva. (Rosset, ibid., p. 83, grifo nosso).
O trecho que destacamos em
negrito é de extrema importância tanto para a sustentação da validade da tese
cujo desenvolvimento justifica a produção deste texto–a tese de que a filosofia
de Nietzsche constitui um verdadeiro exercício espiritual destinado a cunhar um
novo modo de ser naquele que nela se exercita – quanto para a sustentação de
nossa convicção de que o que está em jogo na doutrina do Eterno Retorno é
justamente essa reação afetiva que deve ser perfeita como um “salto”
transformador das forças reativas, do negativo das vontades de poder que nos
atravessam. Essa reação afetiva é o ponto de conversão da disposição afetiva
pessimista, niilista, negadora, em disposição afetiva trágica, afirmadora,
dionisíaca. Essa reação afetiva assinala a passagem decisiva de uma vida fraca,
decadente, melancólica, esgotada sob o peso das “paixões tristes”, para uma
vida alegre, mais potente, jubilosamente afirmativa de tudo que foi, é e será.
Devemos aqui ouvir Rosset:
O que
avalia a ideia do eterno retorno é a intensidade respectiva de alegria e de
tristeza, cuja “última e eterna confirmação”, “última e eterna chancela” ela
autoriza em definitivo. E é nesse sentido – e, acredito, neste único sentido –
que o pensamento do retorno constitui em Nietzsche um pensamento decisivo.
(Rosset, ibid., p. 85).
O sentido filosófico da doutrina
do Eterno Retorno remete, portanto, a esse ponto de conversão levada a efeito
por aquela reação afetiva a cuja efetivação faz apelo o Eterno Retorno. Segundo
Rosset, o pensamento do Eterno Retorno tem um caráter revelador. Sua revelação
é da ordem da psicologia humana (entendida no sentido que lhe dava Nietzsche,
evidentemente). Preferimos dizer que essa revelação é da ordem da constituição
afetiva do corpo ou, o que dá no mesmo, do espírito; nesse sentido, o Eterno
Retorno revela “o desejo ótimo naqueles que tomam a ideia do retorno
levianamente (...) e a doença do desejo naqueles que ressentem tal ideia como
eminentemente pesada e poderosa”. (ibid.). Ainda segundo Rosset, o Eterno
Retorno exige do afirmador a fidelidade de todo amante: que ama o amor e quer
continuar amando a despeito dos tormentos, dos riscos, dos fracassos que o
estado amoroso envolve.
Na medida em que o negativo
constitui o homem (aliás, é isto que Deleuze reconhece), o Eterno Retorno se
dirige a este homem decadente, esgotado, niilista, ressentido, produzido e
conservado pela velha moral; é a este homem cuja vontade de poder tem como
qualidade predominante o negativo, é a este tipo pessimista que o Eterno
Retorno interpela. Mas como podemos chegar a esta conclusão? Para que o caminho
até ela se descerre sem as sombras espessas da incompreensão, devemos atentar
no que nos ensina Casanova:
(...) a
figura demoníaca do texto nietzschiano traz consigo uma caracterização da
existência capaz de niilizar a própria constituição das ações. Ela não auxilia
o indivíduo singular na construção de uma vida pautada pela ideia do bem, mas
desenrola sem compaixão o fio de uma doutrina seletiva. Como um gênio maligno de posse de um jogo
essencial e perigoso, o demônio viabiliza através da ressurgência incessante
das mesmas circunstâncias existenciais a determinação da medida de poder de
suportação do singular ante o modo de ser “imoral” da totalidade. (Casanova,
2013, p. 218-219).
O demônio
personifica já nesse texto o espírito de negação, o poder de negar, a vontade
de nada, muito embora ele apareça no aforismo 341 como aquele que convoca para
o embate, criando “o pior dos mundos possíveis” (ibid., p. 219). O que o
demônio narra “é a existência em um teatro de horrores, no qual sem sabermos
funcionamos como pequenos bonecos de cera”. (ibid.). O que o demônio anuncia é
“o peso mais pesado”: “ a suposição de que precisamos viver inumeráveis vezes a
mesma vida em todos os seus mínimos detalhes retira das ações toda a sua
necessidade” (ibid.).
(...) A
vida não apenas não possui nenhuma dimensão distinta da aparência deveniente
como também se repete inúmeras vezes em sua configuração circunstancial. Todos
os erros e todas as mazelas sem qualquer justificação transcendental precisam
ser sempre uma vez mais experimentados em sua carência infinita: todos os
prazeres e todos os acertos, em sua fugacidade mais insuportável. (ibid.).
O que
pretendemos fique claro aqui é que é justamente a criação de um mundo de
horrores, mundo junto ao qual retornamos “como personagens inconscientes de uma
peça completamente definida em todos os seus ínfimos elementos” (ibid., p.
220); é justamente o assombro em face da possibilidade de que o que somos e o
que seremos não passe de uma retomada do que fomos; é justamente porque o
pensamento do Eterno Retorno, tal como anunciado pelo demônio, implica “um
infindável inversão da ampulheta do tempo e a simples repetição de toda a
existência em cada um de suas determinações circunstanciais” (ibid.); é
justamente porque se inviabiliza toda liberdade de um singular humano, não lhe
restando senão sucumbir ao peso de uma profunda letargia; é justamente por tudo
isso que o pensamento do Eterno Retorno se instaura como um espaço discursivo
dialogicamente relacionado com o niilismo e suas formas. Se ignorarmos essa
relação dialógica, se ignoramos que a figura do demônio representa o espírito
negativo, o poder niilista, se ignorarmos o fato de que quem poderia falar pela
voz do demônio é o sábio Sileno; se ignorarmos que a pergunta que o Eterno
Retorno traz é ela mesma trituradora, transformadora, o peso mais pesado em
face do qual a vontade, a princípio, tenderia a recuar; se ignorarmos tudo
isso, então não nos apercebemos da elevada conversão que pretende operar o
Eterno Retorno naquele que lhe dá seu total assentimento.
Casanova
mantém que, tal como enunciado pelo demônio, o Eterno Retorno faz aparecer um
paradoxo no cerne do devir. Em que consiste esse paradoxo? Em primeiro lugar,
já vimos insistindo que não podemos negar que o Eterno Retorno é, na fala do
demônio, incompatível com a afirmação do devir como “caráter originário de
todos os acontecimentos da totalidade”. (ibid.). De fato, o Eterno Retorno é a
máxima expressão niilista relativamente à existência como um todo. No entanto,
o Eterno Retorno, tal como é formulado pela figura do demônio, também nos lança
a uma espécie de “jogo” cuja disposição das forças se abre para nós. Se, o que,
num primeiro momento, se nos apresentava demoníaco; noutro momento,
apresenta-se-nos como o que há de mais divino. Em outras palavras, o que antes
representava a impossibilidade da efetivação das ações; em outro momento, se
nos apresenta como “o suporte ontológico da máxima afirmação” (ibid.) do valor
das ações. Essa transformação só é possível “se uma nova disposição das forças
alterar radicalmente o caráter distintivo de todo o jogo”. (ibid., ênfase no original). É justamente o instante extraordinário esse elemento
novo que instaurará o horizonte diverso para que uma nova disposição de forças
se dê, conforme nos dá testemunho Casanova: “somente
através da vivência de um certo instante extraordinário é possível alcançar a
superação da tendência primária para uma negação desesperada da infinita
inversão da ampulheta do tempo” (ibid., p. 201).
Quando nos perguntamos sobre qual é a relação do instante extraordinário
com o Eterno Retorno, quando o que nos preocupa é saber de que modo o instante
extraordinário nos liberta do determinismo insuportável do movimento de
configuração da realidade, somos conduzidos a buscar uma resposta no exame de Da visão e do enigma de Assim falou Zaratustra.
Doravante, vamo-nos ocupar do exame do Eterno Retorno no texto Da visão e do enigma. O livro Assim
Falou Zaratustra constitui uma paródia dos textos bíblicos, em
especial, dos Evangelhos canônicos da Bíblia cristã. Enquanto paródia, o Zaratustra nietzschiano
rompe abertamente com o modelo retomado. Porque se constitui enquanto paródia,
o Zaratustra funciona como um canto que desafina o tom
conservador de uma dada prática discursiva hegemônica no Ocidente. A paródia
mantém uma relação de negatividade com o texto-base, isto é, se produz com o
objetivo claro de fazer-lhe oposição.
A compreensão do Eterno Retorno, em Da
visão e do enigma, se fará tomando-se como o horizonte de sua máxima
realização o instante extraordinário.
Uma vez que Zaratustra é o mestre do Eterno Retorno – ou, como prefere chamar
Deleuze, o pai do Eterno Retorno -, ele é o caminho para a concretização da
vida a partir da afirmação existencial da pergunta demoníaca. Segue, abaixo, o
trecho do texto que nos interessa para efeito de discussão.
Alto lá,
anão! Falei: “Eu ou tu!” Mas eu sou o mais forte de nós dois – tu não conheces
meu pensamento abismal! Esse – não poderias suportar! –
Então
ocorreu algo que me fez mais leve: pois o anão pulou de meus ombros, por
curiosidade! E foi se acocorar sobre uma pedra à minha frente. Mas havia um
portal justamente ali onde paramos.
“Olha
esse portal, anão! Falei também; “ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se
encontram; ninguém ainda os trilhou até o fim.
Essa
longa rua para trás: ela dura uma eternidade. E a longa rua para lá – isso é
outra eternidade.
Eles não
se contradizem, esses caminhos; eles se encontram frontalmente: - é aqui, neste
portal, que eles se encontram. O nome do portal está em cima: “instante”.
Mas, se
alguém seguisse por um deles – sempre mais adiante e mais longe: acreditas,
anão, que esses caminhos se contradizem eternamente? –
“Tudo que
é reto mente”, murmurou desdenhosamente o anão. “Toda verdade é curva, o
próprio tempo é um círculo”.
“Ó
espírito de gravidade! , falei irritado, “não tornes tudo tão leve para ti! Ou
te deixo acocorado onde estás, perneta – e eu te trouxe bem alto!
“Olha,
continuei a falar, esse instante! Desde esse portal, uma longa rua eterna
conduz para trás: atrás de nós há uma eternidade.
Tudo
aquilo que pode andar, de todas as coisas, não tem de haver percorrido esta rua
alguma vez? Tudo aquilo que pode ocorrer, de todas as coisas não tem de haver
ocorrido, sido feito, alguma vez?
E, se
tudo já esteve aí, que achas, anão, desse instante? Também esse portal não deve
já – ter estado aí?
E todas
as coisas não se acham tão firmemente atadas que esse instante carrega consigo
todas as coisas por vir? Portanto – também a si mesmo?
Pois o
que pode andar, de todas as coisas, também nessa longa rua para lá – tem de
andar ainda alguma vez!
E essa
lenta aranha que se arrasta à luz da lua, e essa luz mesma, e tu e eu junto ao
portal, sussurrando sobre coisas eternas – não temos de haver existido por
todos nós? – e de retornar e andar nessa outra rua, lá, diante de nós, nessa
longa e horripilante rua – não temos de retornar eternamente? –.
Assim
falei eu, e cada vez mais baixo: pois temia meus próprios pensamentos e
intenções ocultas. Então escutei, subitamente, um cão uivar na vizinhança.
Alguma
vez escutei um cão uivar assim? Meu pensamento correu para trás. Sim! Quando
era criança, na mais longínqua infância:
- então
ouvi um cão uivar assim. E também o vi, eriçado, com a cabeça para cima,
tremendo, na mais silenciosa meia-noite, quando também os cães acreditam em fantasmas.
- de
maneira que tive pena. Pois justamente então a lua cheia estava sobre a casa,
mortalmente calada, justamente então se encontrava parada, uma redonda
incandescência – parada sobre o telhado plano, como em propriedade alheia: -
com isso
assustava-se o cão: pois os cães acreditam em ladrões e fantasmas. E, quando
novamente escutei aquele uivo, tive pena mais uma vez.
Para onde
tinha ido o anão: e o portal? a aranha? E todos os sussurros? Entre os rochedos
selvagens me achava eu de repente, sozinho, ermo, no mais ermo luar.
Mas ali jazia um ser humano! E ali
estava o cão, pulando, eriçado, ganindo – viu-me chegar – uivos novamente,
então gritou: - algum dia escutei um
cão assim por socorro?
E, em
verdade, o que vi, jamais vira igual. Vi um jovem pastor contorcendo-se,
sufocando, estremecendo com o rosto deformado, e uma negra, pesada serpente que
lhe saía da boca.
Alguma
vez vi tanto nojo e pálido horror em um rosto? Havia ele dormido? E a serpente
rastejou para dentro de uma garganta – e ali mordeu firmemente.
Minha mão
puxou e tornou a puxar a serpente: - em vão! não conseguiu puxar a serpente da
garganta. Então de dentro de mim se gritou: “Morde! Morde!
Corta a
cabeça! Morde!” – assim se gritou de dentro de mim, meu horror, meu ódio, meu
nojo, minha pena, tudo de bom e ruim gritou com um grito de dentro de mim –
Ó ousados
ao meu redor! Vós, amantes dos enigmas!
Então
interpretai-me o enigma que enxerguei, então interpretai-me a visão do mais
solitário!
Pois era
uma visão e uma premonição: - o que vi eu então em alegoria? E quem é esse que
um dia terá de vir?
Quem é o
pastor em cuja garganta a serpente entrou? Quem é o homem em cuja garganta
entrará tudo de mais pesado, de mais negro?
- Mas o
pastor mordeu, tal como lhe disse meu grito; mordeu com boa mordida! Para longe
cuspiu a cabeça da serpente -: e levantou-se de um salto. –
Não mais
um pastor, não mais um homem – um transformado, iluminado que ria! Jamais, na
terra, um homem riu como ele ria!
Ó meus
irmãos, escutei um riso que não era riso de homem - - e agora me devora uma
sede, um anseio que jamais sossega.
Meu
anseio por esse riso me devora: oh, como suporto ainda viver? E como suportaria
agora morrer? –
Assim
falou Zaratustra.
O ponto de partida do Eterno Retorno é o acontecimento da morte de Deus.
É sob a forma de enigma que Zaratustra apresentará o Eterno Retorno. Com a
morte de Deus, foi abolida a separação entre mundo-verdade e mundo aparente. O
mar está aberto de novo. Retome-se aqui a ideia de que o Eterno Retorno traz em
si um potencial niilista.
Onde viver não é senão uma eterna
repetição do já vivido, a existência perde o seu caráter de decisão criativa:
nenhuma configuração é capaz de alterar as configurações futuras e todas
permanecem presas ao presente em sua absoluta vacuidade. Todo lançar-se para
além de si mesmo, toda esperança e todo projeto não passam de um incessante
retorno ao mesmo lugar. (Casanova, ibid., p. 225).
Eis então
o que podemos chamar de atmosfera niilista do Eterno Retorno: tanto o grande
homem quanto o pequeno homem sucumbem eternamente à incontornabilidade da
dissolução de suas existências singulares. Nada tem valor, nada escapa à
circularidade do devir; nada é; e tudo é em vão. Assim, o Eterno Retorno
resulta da conjugação de um tempo infinito com um número finito de composições
entitárias da totalidade. O novo homem, que tem de renascer pela adesão
incondicional ao Eterno Retorno, tem de ser forjado, cunhado com sangue, fogo e
suor. Somente quando o “peso mais pesado” é superado que o pensamento do Eterno
Retorno alcança sua plenitude específica.
Continuemos
a nos deter no potencial de niilização da vida próprio do Eterno Retorno, a fim
de que o seu sentido filosófico seja apreendido em todo o seu poder
transformador. Atentemos no que nos diz Casanova abaixo:
Em meio à
assunção do devir como o traço essencial de todos os acontecimentos do real,
vemo-nos diante da impossibilidade de atribuir a cada um desses acontecimentos
qualquer peso ontológico . Onde tudo
devém, nada chega a se mostrar em suas determinações mais constitutivas porque
todo ser é imediatamente negado pela
instauração de configurações sempre diversas. (Casanova, ibid., p. 229, ênfase
no original).
Todo o
problema prefigurado, a esta altura, diz respeito à questão sobre a
possibilidade de compatibilizar dois elementos considerados opostos no quadro
de referência da metafísica tradicional: ser
e devir. Também é preciso deixar
claro que o pensamento do Eterno Retorno é dito o pensamento abismal não porque afirme o abismo como a única determinação
da totalidade da existência, mas porque permite a travessia em direção à
superação da vertigem em face do abismo. Ora, a experiência do abismo é
insuportável porque é caracterizada pela impossibilidade de encontrarmos um
limite para a sua infinitude. Etimologicamente, “abismo” envolve a ideia de
ausência de um derradeiro fundamento de si mesmo. É o sem-fundo. A queda no
abismo jamais se interrompe, pois falta ao abismo um ponto fixo. Por isso,
“diante do abismo somos tomados por uma incontrolável vertigem porque nosso
olhar se perde em meio a uma profundidade inabarcável”. (ibid., p. 228). É da
experiência vertiginosa do abismo que “a sensação da essência vã de todas as
tentativas de conquistar um sentido para a existência emerge em sua máxima intensidade,
e a compaixão pelo gigantesco sofrimento humano ganha mais força”. (ibid., p.
2412).
O portal
constitui o marco do começo da superação da negatividade do pensamento do
Eterno Retorno, dado que reestrutura as três dimensões constitutivas do tempo
(passado, presente e futuro). O renascimento do novo homem pelo Eterno Retorno
depende da ruptura da dinâmica da temporalização de nossa experiência
ordinária. Temos, habitualmente, uma concepção tripartida do tempo. Essa
concepção tripartida do tempo determina o modo como normalmente consideramos a
totalidade da existência. Sucede que nossa compreensão mediana do tempo
repercute as próprias determinações do pensamento metafísico. Como nota
Casanova (ibid., p. 232), “elas derivam-se da capacidade histórica da
metafísica para estruturar as nossas posturas existenciais”. A concepção
tripartida do tempo é uma consequência imediata da essência moral da metafísica
em sua relação estreita com a ideia cristã de criação. Vê-se agora, mais
claramente, o aspecto antimetafísico do Eterno Retorno: uma vez que ele
instaura um novo horizonte para a experiência humana do tempo, deixa de ter
vigência a experiência do tempo enquanto tempo linear e finito, determinada
pelos padrões do pensamento metafísico. Com a supressão da avaliação moral da
existência, elimina-se também a clássica segmentação da realidade em dois
mundos; e essa dupla supressão se faz acompanhar do desaparecimento dos limites
que fixavam a linearidade do tempo. Destarte, “a realidade nunca começou, mas
sempre necessariamente recomeça”
(ibid., p. 233). Suprimida a linearidade do tempo, o tempo sempre retorna no
fim ao seu começo. A temporalidade afirma-se circularmente. A morte de Deus e a
afirmação da soberania do devir implicam a concepção circular do tempo.
No
entanto, a afirmação da circularidade do tempo não é ainda suficiente para a
restruturação temporal da experiência humana. Ademais, o espírito de peso
considera o círculo como o caráter originário dos acontecimentos em geral, de
sorte que essa concepção inviabiliza uma distinção temporal entre esses
acontecimentos. Decorre daí que a
tripartição metafísica do tempo é substituída por uma total indistinção entre
as três dimensões constitutivas do tempo. Além disso, é a própria temporalidade
que é niilizada. Ainda vige a avaliação do espírito de peso.
Como o
espírito de peso considera as múltiplas configurações possíveis do real
enquanto composições fugazes de um mundo em constante dinamicidade e deduz a
partir da articulação da grandeza finita das forças em jogo na totalidade com a
infinitude do devir a repetição eterna das mesma configurações em uma sequência
inexorável, cada uma das três dimensões temporais acaba por encerrar em si as
determinações estruturais das outras duas. O que agora se dá em uma velocidade
irrepresentável não possui nenhuma temporalidade específica porque se perfaz a
partir de uma ausência radical de parâmetros fixos. Ininterruptamente gira a
ampulheta do tempo, sem que qualquer corte propicie a instauração de
diferenciações entre passado, presente e futuro. Ininterruptamente sofrem os
arranjos singulares da realidade a ação dissolutora do devir, que nunca se
depara com nenhum verdadeiro obstáculo à sua atuação. (ibid., p. 233).
A ação
dissolutora do devir reduz a “ínfimos grãos de areia sem qualquer significação
para o todo” (ibid.) todas as conformações entitárias do real. Sob a vigência
da lógica do devir, ficam inviabilizadas as determinações ontológicas e a
vivência temporal. Nesse universo de imensa monotonia, reina o tédio,
experimenta-se o nojo diante da finitude.
Considere-se,
doravante, a significatividade do portal ou instante para a superação desse
mundo niilizado sob a vigência da avaliação do espírito de peso. O instante
emerge como a instância constitutiva da própria experiência do tempo: “é o
ponto de convergência de duas longas ruas contraditórias”. (ibid., p. 134). O
instante constitui a condição de possibilidade de separação do passado relativamente
ao futuro e da produção da totalidade do tempo. É somente quando se atribui ao
instante certa densidade ontológica que faz sentido estabelecer um antes e um
depois relativamente a este agora. Não se trata de retomar a concepção
tripartida do tempo, mas de reconhecer que o instante representa o solo onde se
enraízam todas as dimensões do tempo. O passado e o futuro se originam do
instante e se revelam como integrantes da espessura ontológica do instante. O
instante do Eterno Retorno é o ponto em que o passado e o futuro se tocam.
Consoante diz Vattimo (2010, p. 43-44),
O que dá significado à doutrina
[do Eterno Retorno] é a função que nela exerce o instante. Estabelecida a
estrutura circular do tempo, cai a perspectiva “retilínea”, em que o passado podia
ser um peso irreversível sobre os ombros do presente e do futuro, mas a relação
de recíproca determinação entre passado e futuro só se torna possível a partir
do presente como momento de decisão.
Antes de determinarmos
semanticamente que decisão é esta, precisamos ter em conta o fato de que
Zaratustra não está negando a existência do passado e do futuro para afirmar
como única realidade temporal o instante. O que ele faz, na verdade, é assumir
o instante como um horizonte necessário para a própria possibilidade de
produção de um discurso sobre o passado e o futuro. Consoante nos ensina Cabral
(2015, p. 238), “(...) todas as possibilidades passadas, presentes e futuras já
precisam ter uma vez percorrido esta eterna rua para trás porque o instante
sintetiza em si mesmo em cada momento desta rua a totalidade do tempo”. Importa
reter a ideia de que o instante é o cerne do conceito de Eterno Retorno.
(ibid., p. 162).
Convém agora entender como é
possível a Zaratustra deduzir da eternidade do passado o fato de todas as
coisas possíveis já terem percorrido o caminho desde a eternidade. Ora, está
claro que da eternidade do passado só podemos inferir a inexistência de um
começo para a totalidade da existência, mas não podemos inferir daí que todas
as coisas possíveis tenham já percorrido o caminho a partir da eternidade. Para
que possamos compreender como foi possível a Zaratustra fazer essa dedução,
devemos assumir que o instante a que alude o pensamento do Eterno Retorno é
mais do que o horizonte indispensável à distinção entre passado e futuro; é,
fundamentalmente, “o solo de enraizamento de todos os acontecimentos do real”.
(Casanova, ibid., p. 237). É o instante, pois, que encerra, em si mesmo, o
passado e o futuro dos quais depende a própria integralidade do instante.
A diferenciação entre as
possibilidades efetivadas e as possibilidades que virão a se efetivar só é
possível mediante a abertura do campo do acontecimento presente a partir do
instante. O instante, portanto, constitui o campo de referência em relação ao
qual o passado e o futuro, ou melhor, as possibilidades efetivadas e as que
ainda vão se efetivar se dão simultaneamente às conformações presentes. O
devir é o caráter essencial do acontecimento originário da totalidade da
existência. Agora o devir não é incompatível com qualquer determinação
ontológica, pois que “a vida jamais conquista a si mesma para além do instante
contraditório da unidade entre forças de dissolução e forças de concreção das
individuações possíveis do todo”. (ibid.).
Segundo Casanova, quando
consideramos o instante, nunca o vemos como “uma única possibilidade singular”.
(ibid.). Todas as possibilidades presentes, passadas e futuras se põem a
descoberto, de certo modo, no instante. Não se trata de pensar a vida como uma
estrutura de possibilidades que se mostra para além do instante, mas como
possibilidades que se perfazem a si mesmas como estrutura a cada instante.
Assim, tudo que pode acontecer precisa já ter acontecido, porque a realidade
está totalmente dada, a cada instante, em cada uma de suas configurações. Não
se trata aí de pensar que o círculo do real se perfez inúmeras vezes, mas de
entender que “ele se instaura no interior do próprio instante”. (ibid., p.
238). O caráter circular do tempo não deve, portanto, ser representado como
“uma sucessão sempre retomada de arranjos possíveis do mundo”. (ibid.). Todas
as coisas retornam eternamente neste momento; este momento condiciona a
possibilidade de todas as coisas. Destarte, o pensamento do instante é a
redenção da fugacidade do mundo deveniente por meio da reconciliação do devir
com a eternidade.
É sumamente importante, a esta
altura, que não percamos de vista o fato de que é somente a coragem que pode
superar a experiência do abismo, viabilizando a emergência da afirmação: “Era isto a vida? Pois muito bem! Outra
vez!”. É preciso que o pensamento de Zaratustra e o próprio Zaratustra
alcancem uma copertença plena. Assim, segundo Casanova (ibid., p. 243), “o
mestre do eterno retorno tem de provar com a sua existência a possibilidade de
um aquiescimento total ao instante como a síntese da totalidade do tempo”. Não
pode haver distância entre a doutrina e o seu mestre.
O passo definitivo em direção à
resposta afirmativa plena à vida depende da junção de instante e eternidade. A
fim de que possamos compreender como se opera essa junção, consideremos o
significado simbólico da serpente e da águia, dois dos animais de Zaratustra.
A serpente é um dos animais de
Zaratustra que simbolizam o Eterno Retorno. Vejamos como se constrói
simbolicamente as figuras da serpente e da águia a partir da leitura do prólogo
10 de Assim Falou Zaratustra.
Isso falou Zaratustra ao seu coração, quando o sol
se achava ao meio-dia: então olhou para o céu, indagador – pois ouvia no alto o
grito agudo de um pássaro. Eis que uma
águia fazia vastos círculos no ar, e dela pendia uma serpente, não como presa, mas como uma amiga:
pois estava enrodilhada em seu pescoço. “Estes são meus animais!”, disse
Zaratustra, e alegrou-se com todo o seu coração. (2011b, p. 24).
Devemos
notar, em primeiro lugar, que tanto a águia quanto a serpente faziam movimentos
circulares em pleno voo. Ao retirar a serpente do chão, a águia suspende o
efeito opressor da gravidade sobre aquela e a conduz até a altura. A altura
simboliza o salto relativamente à natureza primeva da circularidade em jogo.
Mas, como pensamento experimental, o pensamento nietzschiano encena muitas
perspectivas. Por isso, quando consideramos a articulação entre o pensamento do
Eterno Retorno e o poder avassalador do peso mais pesado, a serpente simboliza
todo o poder de nadificação inerente à pergunta sobre a possibilidade de
libertar as ações humanas de sua carência de sentido. Lembremos que, da
perspectiva demoníaca, a circularidade do devir faz emergir o abismo como uma
implicação direta de sua soberania.
Como a serpente que astutamente se arrasta por
sobre a aspereza da terra e repentinamente se volta sobre si mesma compondo um
círculo perfeito, o mundo atravessa os arranjos mais diversos e sempre retoma
por fim uma vez mais as mesmas conformações. Como a serpente presa às forças
que a mantêm em contato com o solo e incapaz de se libertar por si mesma da
ação implacável da gravidade, a existência também requer um outro elemento para
interromper o incontornável de sua queda. Ao lado da serpente é preciso que
outro elemento se apresente, se o eterno retorno do mesmo deve possuir mais do
que uma significação negadora para a vida. A águia é este outro elemento.
(Casanova, ibid., p. 246).
No texto Dos sábios famosos, à página 100 de Assim Falou Zaratustra, topa-se o
seguinte fragmento, cuja leitura é importante para que possamos compreender o
significado simbólico da “águia”: “E quem não é pássaro não deve permanecer
sobre os abismos”. Já deve ter ficado claro que, se consideramos a
circularidade do Eterno Retorno a partir da perspectiva da serpente, jamais
conseguiremos escapar das consequências niilistas previstas nesse pensamento. É
a águia que abre um novo horizonte perspectivístico para a avaliação do Eterno
Retorno, visto que esse animal simboliza a possibilidade de dissociação entre o
caráter circular do Eterno Retorno e a vigência do abismo. Somente a
intervenção da águia torna possível a suspensão da reprodução infinita da
negatividade da finitude. A própria condição da serpente, que antes do
aparecimento da águia, insistia em seu percurso circular sob o poder do peso
mais pesado, é transformada: quando transportada pela águia até a altura, a
serpente passa a encontrar-se numa região de leveza absoluta. Não é o Eterno
Retorno que se anula aí; é a conquista de um ponto de articulação entre esse
pensamento e a afirmação do devir como caráter originário da existência que se
representa.
Já não
devemos ver o Eterno Retorno como uma inversão incessante da ampulheta do
tempo. Embora a águia carreie a infindável repetição de todas as coisas para o
cerne do Eterno Retorno, embora tudo, de fato, retorne, não significa que
retornem as conformações já feitas da totalidade da existência. Não é que as
mesmas tramas de acontecimentos, os mesmos encadeamentos de circunstâncias e de
ocorrências do mundo retornem em suas ínfimos estruturas. Como salienta
Casanova,
(...) o círculo da totalidade não se constrói, em
outras palavras, a partir da reunião de todas as suas configurações em uma
ordem já determinada, ele se reinstaura inversamente no cerne de cada instante
singular. E é aqui que se explica a leveza constitutiva do voo aquilino.
(ibid., p. 247).
Há que chamar a atenção para este
ponto: todo caminho percorrido por
Zaratustra na elaboração de sua doutrina do Eterno Retorno é marcado pelo
embate contra uma das vozes constitutivas dessa doutrina: a voz do espírito
mais pesado. O ápice desse embate prende-se à reconstituição do pensamento
do Eterno Retorno a partir do instante, o qual, por sua vez, representa o
âmbito onde se conquista a reconciliação entre a finitude e a eternidade. A
metafísica é, assim, superada pela eliminação de suas dicotomias (finitude x
infinitude; tempo x eternidade; ser x devir).
A reconciliação da finitude com a
eternidade não se dá apenas como uma consequência lógica da compreensão do
significado do pensamento do Eterno Retorno. Na verdade, essa reconciliação
impõe uma decisão que toca à existência como um todo. Essa decisão é a
expressão de um ato corajoso daquele que se lança no instante e aquiesce a ele
como a síntese da totalidade do tempo. Somente quando se morde com força trituradora
a cabeça da serpente é que se supera a dicotomia metafísica entre ser e devir.
Somente aí se ouve o sim jubiloso do homem trágico.
É preciso partir com um golpe frontal a corrente
atemporal do devir e, através de um instante
extraordinário, devolver ao vivente a possibilidade de uma alegre
serenidade. Somente através de um ato resoluto em nome da leveza de uma tal
alegria abre-se o espaço para o aparecimento de um riso inocente em meio ao
movimento de expansão e retração do real. À medida que este instante
extraordinário vem à tona, ganha corpo uma
transformação radical das disposições constitutivas do homem. “Cuspiu bem
longe a cabeça da serpente e levantou-se de um pulo. Não mais pastor, não mais
homem – um ser transformado, translumbrado que ria! Nunca até aqui, na terra, riu alguém como ele ria!”. (ibid., p. 248).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2010.
CABRAL,
Alexandre Marques. Niilismo e
Hierofania: Heidegger e a polimorfia de Deus. Rio de Janeiro: Mauad X:
FAPERJ, v.2, 2015.
CASANOVA, Marco Antonio. O instante extraordinário: vida, história e
valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
DELEUZE,
Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Porto:
Rés-Editora, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de Potência. Trad. Mario
Ferreira dos Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011a.
___________________. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011b.
___________________. Ecce Homo. Trad. Antonio Carlos Braga.
São Paulo: Escala, 2013.
___________________. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ROSSET, Clément. Alegria: A força maior. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.
SCHÖPKE, REGINA. Matéria em movimento: a ilusão do tempo e do eterno retorno. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.
VATTIMO, Gianni. Diálogos com Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[1] Por acreditarmos que Nietzsche,
mais do que qualquer outro filósofo, é um autor cuja produção escrita questiona
o leitor a partir das prerrogativas que este julga ter como sujeito que, em
face de um objeto simbólico, é instado a lhe dar um (entre tantos) sentido, é
que este texto se faz acompanhar de outro texto, no qual discutimos alguns
saberes que, reunidos, lançam luzes sobre as condições de produção da leitura.
[2] O que chamamos, com Heidegger,
de historicidade do pensamento,
guardadas as especificidades da interpretação heideggeriana, tem ressonância
naquilo que a Análise do Discurso francesa chamará de historicidade do texto e interdiscurso.
A historicidade do texto diz respeito ao fato de todo e qualquer texto poder
ser apreendido como discurso, como acontecimento linguístico-histórico. Nesse
sentido, falar em historicidade do texto é apreender a sua relação com a
exterioridade constitutiva, que não é algo que está fora do texto, mas a
própria materialidade histórica do texto, com suas marcas. Há uma relação entre
a História (acontecimentos, eventos, formações sociais) e a historicidade do
texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem de
causa e efeito. O analista do discurso não parte da História para analisar o
texto, mas sim do texto como materialidade histórica para compreender como a
historicidade do texto produz sentidos. No que toca ao interdiscurso – também
chamado de memória discursiva -,
sendo ele mesmo a exterioridade constitutiva, recobre o já-dito, o que fala antes,
em outro lugar. O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como
o sujeito (do discurso) significa em uma dada situação discursiva. A memória discursiva ou interdiscurso é a
inscrição da língua na História; é o saber discursivo que torna possível todo
dizer e que assume a forma do já-dito que está na base do dizível e que dá
suporte a toda tomada de palavra.
[3] A linguagem é opaca. A opacidade
da linguagem se explica pelo fato de que o sentido não existe em si mesmo, não
se acha nas palavras, mas é sempre um efeito da interatividade do discurso no
qual intervêm, necessariamente, gestos de interpretação. Não há sentido sem
interpretação. A opacidade ou não transparência da linguagem consiste também na
propriedade de o sentido poder ser sempre outro. (v. Orlandi, 2007, p. 20).
[4] O trecho também é revelador do
fato de que Nietzsche, a despeito de reivindicar a originalidade de seu
pensamento do Eterno Retorno, reconhecer que ela está em germe, ao menos, em
filósofos que o precederam, como em Heráclito e nos estoicos. É razoável supor
que Nietzsche deve ter pressentido a doutrina do Eterno Retorno também em
Empédocles, Platão, Aristóteles, entre outros. Essa doutrina tem raízes muito
antigas e orientais, sendo familiar ao, por exemplo, budismo e ao hinduísmo (v.
Almeida, 2005).
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