Existir como relação com o ser
Introdução
Este texto não pode ser lido, meditado, saboreado e
fisiologicamente compreendido por leitores de ciberespaços, habituados que
estão a fast-sentences leves e
simples que facilitam a digestão. O tema do texto, decerto, pode intimidá-los,
mas é a extensão que os enfada, porque não habituados a consumir seu tempo com elucubrações. Um texto longo que verse
sobre um tema sério demanda do leitor um paciente trabalho de ruminação; mas os
leitores de ciberespaços são inaptos para exercícios intelectuais que exigem
demora, entrega e paciência mais longas do que se espera numa época em que é
preciso estar em movimento constante, indo a todos os lugares sem nunca estar
(deter-se) em lugar algum. Mas, quando penso na razão por que insisto em
escrever e por que me apetece essa atividade, ela não compreende meu interesse
pela recepção do leitor. Muito antes de decidir divulgar meus textos em um
blog, escrevia para apreender o que lia e para lançar luzes sobre minhas
escuridões, para expurgar meus males, deslindar ou acentuar meus conflitos. Ler
e escrever são atividades que se completam: a leitura deve sempre preceder à
escrita. No entanto, aquela não pode dispensar esta, pois somente quando
escrevemos demonstramos se realmente compreendemos o que foi lido. É chegado o
momento de entregar-me à elaboração das reflexões a que este texto se destina.
Principio com a apresentação de meu objetivo principal.
Ofereço, neste texto, um
recorte da minha leitura da posição existencialista do filósofo italiano Nicola
Abbagnano, apresentada e desenvolvida em seu livro Introdução ao Existencialismo (2006). Sendo um recorte, o que
ofereço não cobre todo o conjunto de reflexões do autor. Como este texto verse
sobre um tema existencialista, os problemas de que me ocuparei recobrem
questões que interessam fundamentalmente ao existencialismo. Tais questões
podem ser subsumidas em um macro-problema, que será centro de minhas
preocupações: o problema do ser. Por
ser esse o problema central deste texto, cuidei oportuno revisitar o pensamento
de Heidegger, cuja contribuição para o desenvolvimento do pensamento filosófico
começa com a retomada da questão sobre o ser. Mas antes de Heidegger, foi
preciso iluminar, muito brevemente, o lugar de onde ele partiu, para o que
recupero a significação do ser em Parmênides e Platão e a distinção operada
pelos filósofos da Idade Média entre ser e ente. Até chegar ao exame da posição
de Abbagnano, depois de revisitar Heidegger, foi necessário considerar o tema
da liberdade em Sartre com o intento de esclarecer a ideia de indeterminação originária do homem,
discutida por Abbagnano. Em Sartre, busquei subsídios para pensar a oposição
determinação/indeterminação relativamente ao problema da existência. Com Sartre
encerro a primeira parte de minha exposição. A segunda parte é dedicada à
análise da posição de Abbagnano, tarefa ao longo da qual discrimino no conjunto
de preocupações do autor aquelas que compreendem o problema da existência como relação com o ser. Não
se trata de um problema distinto do macro-problema a que aludi acima como sendo
o problema central. Trata-se do mesmo problema perspectivado como problema
existencial do homem concreto.
PARTE I
Ser, em seu sentido básico e abstrato, é a
única realidade verdadeira e fundamental, subjacente à diversidade das coisas
que se nos dão à experiência sensível. O ser é o real no sentido mais
fundamental. O ser parmenidiano tem caráter oculto e só era acessível ao
pensamento.
Para os antigos, o ser é presentificação, é aquilo que se apresenta depois do desvelamento.
O ser é presença, é manifestação daquilo que sempre foi, mas que não se deixa
apreender pela experiência sensível; é uma presença que gosta de se ocultar. O
ser não é a totalidade das coisas sensíveis, mas é condição de possibilidade de
aparecimento das coisas. O ser é o que há de mais subjacente na totalidade dos
objetos que se dão à nossa experiência sensível. O espanto que os gregos
experimentavam diante do ser é o espanto em face de haver algo; o fato de
‘haver’ é fonte de admiração. Os gregos não podiam conceber a geração do ser a
partir do nada. O ser é uma presença plenificante e eterna – donde o espanto.
Na filosofia contemporânea, o
conceito de ser recobre, além da
ideia de imutabilidade que remonta a
Parmênides e a Platão, o sentido existencial de ‘existir’ ou ‘estar no mundo’.
Do ponto de vista existencialista, o ser é simplesmente aquilo que há ou
existe, que está no mundo. Mesmo na contemporaneidade, o conceito de ser não deixou de conservar seu
significado mais geral e abstrato, passando a recobrir a ideia de essência ou
natureza íntima das coisas. Quando nos referimos ao ser do homem, ao ser desta
ou daquela coisa, queremos dizer a essência do homem, a essência ou natureza
íntima desta ou daquela coisa, a saber, referimo-nos àquilo faz a coisa ser o
que ela é, sem o qual ela deixaria de ser. Os escolásticos pensavam a essência
como uma das grandes divisões do ser, de modo que a essência é o ser mesmo das
coisas. Vê-se que, entre os escolásticos, apesar da contiguidade semântica
entre os dois conceitos, ser e essência não designavam a mesma coisa. É na
modernidade, com Descartes, que ser diz o mesmo que essência, ou seja, aquilo
que a coisa é.
O significado mais geral e
abstrato de ser conduz-nos de volta a Platão. Decerto, toda a metafísica se
ocupa, em certo sentido, da reflexão sobre o significado de ser. A
abstratividade do conceito de ser, isto é, o ser no sentido de ser puro, sem
nenhum determinação chega a exagerar-se em Hegel. Hegel diz que o ser é igual a
si mesmo em sua imediatez indeterminada, é a indeterminação pura e o vazio
puro. Hegel chega a dizer que o ser é, na realidade, nada.
É preciso notar, contudo, que a
diferença entre o sentido geral e abstrato do ser e o sentido existencial levou à distinção, na filosofia da
Idade Média, entre o ser e o ente – distinção esta retomada por
Heidegger na contemporaneidade. Com base nessa distinção, o ser passou a recobrir o sentido mais
geral e abstrato, ou seja, o real em seu sentido mais fundamental e abstrato, a
realidade verdadeira e fundamental (sentido que encontramos entre os gregos); e
o ente, a designar aquilo que está no
mundo, o indivíduo, cada coisa existente. No primeiro capítulo da Introdução de seu Ser e Tempo (2012), Heidegger passa em revista o que a tradição nos
legou a respeito do conceito de ser, concluindo não só faltar resposta à
questão, mas também, e sobretudo, ser ela obscura e carecida de direção. Dada a
reconhecida obscuridade da questão, vejamos de que modo Heidegger procurou
encaminhá-la. O ser como horizonte de possibilidade de aparecimento dos entes conduz-nos
para a preocupação central da pesquisa heideggeriana, a saber, a
existencialidade do Dasein. Cumpre precisar esse ponto com as palavras do
próprio Heidegger:
“(...)
Entendemos a existencialidade como a constituição de ser de um ente que existe.
Na ideia de constituição de ser já se encontra, pois, a ideia de ser em geral.
Desse modo, a possibilidade de se realizar uma analítica do Dasein sempre
depende de uma elaboração prévia da questão sobre o sentido de ser em geral”.
(p. 13)
Quem é o Dasein? Quem é o
ser-o-aí? Quem é o ser-no-mundo? A elucidação do sentido do ser depende da
análise prévia das estruturas existenciais do Dasein. É a esta empresa que se
lança Heidegger. O que eu farei, no entanto, é tão-só lançar luzes sobre o
estatuto privilegiado desse ente que é o Dasein, tendo em vista o problema do
sentido do ser.
2.
Dasein
Atentemos para o trecho a
seguir, tomado a Heidegger, em Ser e
Tempo (2012):
“O
Dasein não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ele se
distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em
jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser do Dasein
a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser
com seu próprio ser”. (p.48).
Volvendo olhares sobre o limiar
desse trecho, não resta dúvida de que Heidegger ressalta o caráter privilegiado
do ente que não é apenas um ente que ocorre em meio a outros entes, ente que
não se confunde com os outros entes, que não é mais um entre os demais entes. O
Dasein se caracteriza por uma distinção ôntica, que constitui um privilégio
seu, qual seja, o de relacionar-se com seu ser em seu modo próprio de ser. O
Dasein se “compreende”, tem de fazer-se enquanto existindo. Seu privilégio
ôntico de ser se traduz como compreensão implícita do sentido de ser que, em
termos heideggerianos, se diz pré-ontológica.
O Dasein é o ente em cujo ser
se coloca a questão sobre o sentido do ser. A questão do ser lhe diz respeito.
O Dasein é cada um de nós pensado na relação necessária com o ser, a saber,
como nosso próprio ser, com o ser das coisas e com o ser dos outros. O modo próprio de ser do Dasein é a
existência. Só o Dasein existe. O Dasein é o entre privilegiado para o
qual, em seu ser, está em causa o seu próprio ser. É ele o horizonte de
abertura para a questão sobre o sentido do ser. Deve-se ficar claro que, partindo
do reconhecimento de que a questão sobre o ser é obscura e intentando
desdobrá-la em sua transparência, Heidegger propõe como condição primeira de
investigação tornar transparente o ser daquele que questiona. A questão sobre o
sentido do ser só pode ser elucidada por meio da compreensão prévia do ser do
ente para o qual o ser está em questão. Essa é a direção que Heidegger pretende
dar a referida questão, após concluir que ela foi tratada pela tradição de modo
obscuro, conforme se lê abaixo:
“Assim, o exame dos
preconceitos tornou ao mesmo tempo claro que não somente falta resposta à
questão do ser, mas que a própria questão é obscura e sem direção”. (p. 40).
Justamente porque não se
encontrara, àquela altura, uma resposta para a questão do ser e justamente
porque essa questão não foi bem colocada que Heidegger apela a que se a retome.
“Deve-se
colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da questão
fundamental, seu questionamento precisa, portanto, adquirir a devida
transparência (...)”. (ib.id.).
Para que se possa conferir a
essa questão uma direção, para que se possa torná-la transparente, necessário
se faz que se tome um ponto de partida outro, pelo qual se pode situá-la num
horizonte de abertura à luz do qual possamos visualizá-la. Onde encontrar esse
horizonte de abertura? A resposta já se deixa entrever desde o início desta sub-seção:
no Dasein.
“O
Dasein sempre se compreende a si mesmo a partir de sua existência, de uma
possibilidade própria de ser ou não ser ele mesmo” (p. 48).
A próxima sub-seção será
reservada para o tratamento do primado do Dasein. Por ora, notemos que
Heidegger reconhece que as possibilidades de ser ou não ser si mesmo podem ter
sido escolhidas pelo Dasein, podem ser possibilidades que lhe aparecem e com as
quais ele decide comprometer-se ativamente, ou podem ser possibilidades nas
quais ele simplesmente foi lançado. Em quaisquer dos casos, a existência só se
decide a partir de cada Dasein (ser-no-mundo). Desde já, é preciso sublinhar
que a questão do ser situa-se numa problematicidade existencial que é própria
do Dasein. Em Heidegger: introdução a uma
leitura (2004), Dubois patenteia-nos o que significa Ser nesse quadro
hermenêutico existencial:
“Ser,
no sentido existencial, é permanecer
engajado numa possibilidade de si mesmo, quer a tenhamos ou não escolhido,
de tal modo que esta possibilidade, nós a temos precisamente – a ela nos
relacionando – com o ser no sentido verbal e transitivo”. (p. 18, grifo meu).
Ser, para o Dasein, é ser no
mundo, é ser ocupado de si mesmo e dos outros entes no mundo. Ao ocupar-se de
si, o Dasein está sempre em face da possibilidade de escolher entre ser isto ou
aquilo. É nesse sentido que ele se relaciona com o ser em sua acepção verbal.
Na tradição gramatical, o verbo “ser” é considerado um verbo de cópula ou de
ligação, já que a ele compete unir um predicado a um sujeito, como sucede na
frase “eu sou médico”. Enfatize-se, portanto, que, para o Dasein, ser é
engajar-se numa possibilidade de ser isto ou aquilo. Esse engajamento numa
possibilidade de ser si mesmo se dá a cada vez para um Dasein concreto, numa
existência singular. O modo de existir concretamente em sua singularidade que
está sempre sob a decisão do Dasein constitui a sua tarefa existencial. Em
Heidegger, a investigação das estruturas existenciais do Dasein é tarefa da analítica existencial.
2.1. O primado do Dasein
Segundo Heidegger (p. 49), a
analítica existencial deve encarregar-se da determinação da “ontologia
fundamental de onde todas as demais podem originar-se”. Essa tarefa impõe o
reconhecimento do primado do Dasein sobre todos os outros entes. Esse primado
do Dasein se expressa de três maneiras, que Heidegger se encarrega de
explicitar:
1) primado ôntico: o Dasein é determinado em seu ser pela existência;
2) primado ontológico: na medida em que é determinado pela existência,
o Dasein possui uma compreensão de ser de todos os entes que não possuem o modo
de ser de si mesmo. Esta compreensão pertence originariamente ao Dasein e é
constitutiva da compreensão da existência;
Convém esclarecer o sentido que
assume o termo compreensão no pensamento Heidegger, quase sempre reconhecidamente
obscuro, a fim de que não se confunda esse termo com entendimento ou explicação.
Não se trata de uma compressão que demanda reflexão, raciocínios, intelecção.
Por um lado, a compreensão que constitui um momento estrutural do Dasein se
acompanha da sensibilidade. Mas, principalmente, essa compreensão é já um
poder-ser, um projeto. Compreensão é um poder-ser e existir segundo o modo das
possibilidades que o Dasein têm diante de si. O Dasein tende para o futuro;
nesse ‘tender para’, ele compreende-se como uma possibilidade lançada no mundo,
em suma, como projeto. A compreensão, portanto, se move nesse domínio de possibilidades
de poder-ser.
3) primado ôntico-ontológico: trata-se da possibilidade de todas as
ontologias. Destarte, o Dasein se mostra como ente que, ontologicamente, deve
ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro. (p. 49).
Na sub-seção seguinte, não se
abandonará, de modo algum, o estatuto privilegiado do Dasein. Se lanço mão de
outra sub-seção é para realçar esse estatuto a partir do exame da estrutura
formal da questão do ser. Compreendamos, então, o modo como Heidegger examina
essa estrutura formal da questão do ser.
2.2. A questão do ser: sua estrutura
formal
De início, vimos que Heidegger
afirma a necessidade de se colocar a questão do sentido do ser. Admitindo se
tratar de uma questão fundamental, ele está preocupado em dotá-la da devida transparência.
Para atingir seu objetivo, ele se encarrega de analisar a constituição da
própria questão, a saber, se ocupa de discriminar os elementos implicados na
estrutura da questão. A partir desse exame sobre o sentido do ser é que ele
evidenciará se tratar de uma questão privilegiada.
Vamos acompanhar com o merecido
cuidado o desenvolvimento do raciocínio de Heidegger, dado que se trata de um
momento importante de seu pensamento, momento que lança luzes não só sobre as
considerações precedentes a respeito do Dasein, como também sobre as ulteriores
que figurarão neste texto.
Heidegger principia com a
proposição “todo questionar é um buscar” (p. 40). Toda busca – prossegue ele -,
tem naquilo que é buscado sua direção prévia. Ora, a determinação do sentido
(direção) da busca é fixada pelo objeto de investigação. O questionar é uma
busca ciente do ente naquilo que ele é e como é. O que se visa, nessa busca,
sempre consciente, é a transparência do ente, que é o objeto buscado.
Recapitule-se, então, os três momentos do questionar, até aqui delineados por
Heidegger: 1) todo questionar é uma
busca; 2) a direção da busca é
fixada pelo objeto a que ela se dirige; 3) no questionar, busca-se cientemente o ente naquilo que ele é e como é. Prossigamos empenhados em compreender o
desenvolvimento do pensamento de Heidegger.
Em todo questionar – na medida
em que é definido como “questionar sobre alguma coisa” - , há um questionado. Ora, o particípio não deixa
dúvida acerca da passividade do objeto do questionar: questionado é aquele (sobre)
o qual se questiona. Essa coisa sobre a qual incide o questionar é o
questionado. Heidegger dá um passo adiante, identificando o “questionar sobre”
com o “interrogar sobre”. Agora, o questionar encerra também o interrogado. Há uma diferença, conquanto
não imediatamente clara, entre o questionado e o interrogado. Ambos,
naturalmente, estão na condição de objeto. Ainda não sabemos o que é
questionado e o que é interrogado. Devemos permanecer à espera de
esclarecimentos. Por ora, prossigamos fazendo dizer Heidegger. Cumpre atentar
para o trecho abaixo:
“No
questionado reside, pois, o perguntado,
enquanto o que propriamente se intenciona, aquilo em que o questionamento
alcança sua meta. Como atitude de um ente que questiona, o questionar possui em
si mesmo um modo próprio de ser”. (p. 40, ênfase no original).
É preciso sublinhar que o que
está no escopo do questionar é propriamente o interrogado, justamente aquilo em
vista do qual se faz o questionamento. Questionar é uma atitude de um ente que
questiona, por isso “possui em si mesmo um modo próprio de ser” (id.ib.) Que
ente é este, único capaz de questionar? A resposta salta evidente: o Dasein. Heidegger passa à recapitulação
da questão do sentido do ser, a fim de esclarecer alguns pontos que ficaram
apenas entrevistos. Prossigamos acompanhando o desdobramento de seu pensamento.
Na medida em que é busca, o
questionar demanda uma orientação prévia do que se busca, conforme vimos. Aqui,
Heidegger insistirá que o sentido de ser já deve estar, de algum modo,
acessível, porquanto sempre nos movemos numa compreensão de ser. Consoante
Heidegger, é verdade que “não sabemos o que diz “ser”, mas já quando
perguntamos o que é “ser”, mantemo-nos numa compreensão do “é””. (p. 41). Isso
não significa que podemos determinar o conceito desse “é”. Para Heidegger,
aquilo que se busca no questionar do ser não é algo completamente desconhecido,
muito embora seja, numa primeira aproximação, totalmente inapreensível.
Compreendamos, doravante, o
conteúdo dos momentos constitutivos da questão do sentido do ser. Heidegger é
bastante claro ao dizer que o questionado da questão a ser elaborada é o ser. O ser, em questão, é o ser como condição de possibilidade de aprecimento do ente
(“o que determina o ente como ente”). O ser,
segundo Heidegger, não “é” em si mesmo um outro ente. Por um lado, na medida em
que é o questionado, ser demanda uma forma de demonstração que lhe é própria,
portanto, distinta do modo como se dá a descoberta de um ente. Por outro lado,
o interrogado, ou seja, o conteúdo do questionar, o sentido do ser, reclama uma conceituação distinta das formas de
conceituar a determinação do significado do ente.
Ser é o questionado e é irredutível ao ente. O interrogado na questão do ser é sempre o ente. O
ente é interrogado em seu ser. Assim, escreve Heidegger,
“Quanto ao interrogado, a
questão de ser exige que se conquiste e se assegure previamente um modo
adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em diversos
sentidos. Ente é tudo de que falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o
que e como nós somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser
simplesmente dado, no teor e recurso, no valor e validade, no existir, no
“dá-se””. (p. 42).
Heidegger assume que o
interrogado é o ente e define os significados de ente em contraste com a
acepção de ser. Tal distinção já encontramos na filosofia cristã (embora, aí, Ser identifique-se com o próprio Deus). O ente é
sempre objeto de predicação; são as coisas que se acham no mundo e sobre as
quais falamos; mas nós mesmos somos um ente. O Dasein é um tipo privilegiado de
ente. Esta cadeira em que me sento é um ente. O Ser, por sua vez, é o que possibilita a aparição do ente; o ser é inobjetivável. Ser está no “dar-se”, está no
“mostrar-se”; ser está na presença das coisas que se dão a “ver”. O ser é o ser transcendente. O ser não se reduz ao ente.
O questionado é o ser; o interrogado é o ente; e o perguntado é o sentido do ser. Ser e ente estão em relação de co-pertença; mas a elucidação do ser impõe o interrogar sobre o ente.
O questionado é o ser; o interrogado é o ente; e o perguntado é o sentido do ser. Ser e ente estão em relação de co-pertença; mas a elucidação do ser impõe o interrogar sobre o ente.
Retomemos, contudo, o que ocupa
Heidegger, a saber, a tarefa de desvelar o sentido de ser – esse sentido só se
deixa apreender na constituição de um ente que existe na abertura para o ser.
Por conseguinte, Heidegger se pergunta “de que ente deve partir a abertura para
o ser?”; “Qual é o ente exemplar e em
que sentido possui ele um primado?”
Se ainda houver um leitor que
tenha resistido ao trabalho laborioso de leitura até aqui, é possível a ele
intuir, ao menos, a resposta às questões formuladas por Heidegger. Este ente
privilegiado que existe no modo de abertura para o ser é o Dasein. É o Dasein o ente que será interrogado em seu ser, afim de
que seja possível dar conta da questão do sentido do ser. Por conseguinte,
“elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente –
que questiona em seu ser” (p. 42). Esse ente que possui, entre outras coisas, a
possibilidade de questionar, ente que cada um de nós é, é o Dasein. Questionar
é o modo de ser do Dasein, e a própria colocação da questão está essencialmente
determinada por aquilo que nela é questionado – o ser.
Crendo ter elucidado a
delimitação da questão do sentido do ser em Heidegger, passarei a contemplar a
compreensão sartreana de liberdade, com vistas não só a deslindar alguns embaraços
que cercam a tentativa de compreensão da questão, como também a lançar alguma
luz sobre a indeterminação originária do
homem, tema de que me ocuparei quando da discussão da posição
existencialista de Abbagnano.
3.
No homem, a existência precede a essência
Antes de atacar a
problematicidade da questão da liberdade em Sartre, não posso escusar-me de
dizer algumas palavras sobre o conceito filosófico de determinação. Ao fazê-lo, pretendo antecipar o significado de indeterminação do homem de que nos fala
Abbagnano. Encontramos no Dicionário Básico de Filosofia, de Japiassú &
Marcondes (2008), a seguinte definição de determinação, que é a que me
interessa na presente exposição:
“Determinação é “o fato de ser causa ou
condição necessária de uma coisa, provocando diretamente sua existência ou
ocorrência” (p. 71)
Assim, dizemos que, se um
evento determina outro, ele é a causa necessária desse evento. A determinação
cujo significado aqui se define situa-se no domínio da ontologia. Sartre nega
que o homem seja objeto de qualquer determinação. O homem não tem uma essência a priori que determine o que ele é. As
condições sócio-históricas em que ele vive também não o determinam em seu ser.
Também não há um Deus que determine o destino do homem, o que ele é, o que ele
deve ser e como deve agir. A indeterminação originária do homem consiste em um
poder-ser como existente que nada é antes de existir. Antes de surgir no mundo,
o indivíduo humano nada é e existir é a tarefa que ele assume de constituição
do seu ser. A questão da indeterminação
originária do homem não deve nos ocupar agora, visto que será objeto de
exame na seção em que trarei à cena a posição existencialista de Abbagnano.
Lancemo-nos à discussão sobre o existencialismo ateu de Sartre, enfocando a
questão da liberdade.
O existencialismo ateu de
Sartre se articula em torno de um princípio básico que se expressa na fórmula “no homem, a existência precede a essência”.
Essa fórmula é esclarecida em O
Existencialismo é um Humanismo (1946), obra em que Sartre se ocupa de
responder às críticas correntes levantadas por marxistas e católicos à sua
doutrina. Essa fórmula, tal como eu a entendo, encapsula uma justificação da
liberdade humana. Seu exame encaminha-nos para a compreensão de outra fórmula
famosa que consiste na afirmação de que “o homem está condenado a ser livre”.
Na fórmula “a existência
precede a essência”, Sartre destaca a anterioridade ontológica do homem como
existente. Essa anterioridade ontológica tem caráter distintivo, já que o homem
é o único ente que existe antes de ser. Existir é sua condição primeira e
fundante. Primeiramente, o homem existe, descobre-se enquanto existente, surge
no mundo, e somente, em uma dada situação em que se encontra no mundo, se
define, ou seja, se autodetermina, escolhe o que quer ser. Originalmente, ou
seja, por ocasião de seu aparecimento do mundo, sem qualquer razão de ser,
marcado profundamente pela contingência, o indivíduo humano não é nada; é pura
indeterminação. Não há nada, a priori, que defina o homem, nem essência, nem
natureza humana, nem programa genético, nada que lhe determine um modo de ser
inalterável para sempre. O homem, existindo na tarefa de si mesmo, enquanto
projeto, em face de suas possibilidades de realizar-se, escolhe a sua essência.
A sua essência, portanto, segundo Sartre, resulta de seus atos. O homem nada
mais é do que aquilo que projeta ser.
Se, como pretende Sartre, “no
homem a existência precede a essência”, segue-se daí que ele será aquilo que fizer
daquilo que os outros fizeram dele. Não há lugar para desculpas. A liberdade é
a essência do homem, a única coisa da qual ele não pode escapar. Ao contrário
dos outros entes (em-si), o homem não é predeterminado. Por exemplo, a semente
de uma planta traz em potência tudo aquilo que ela será em seu desenvolvimento
normal. Os animais nascem equipados com um programa genético (seus instintos)
que os prepara para todas as ações de sua vida. A andorinha é pré-programada
por natureza para confeccionar seu ninho. Ainda que, hoje, mais do que no tempo
de Sartre, ouçamos falar nas influências que sobre nós exerce nosso código
genético, tais influências não são fortes o bastante para suprimir nossa
liberdade – diria um existencialista. É preciso dizer, contra os teóricos
marxistas e outros partidários do determinismo, que a liberdade, na perspectiva
sob a qual considera os existencialistas, em especial, Sartre, é um fato
ontológico. Aos seus críticos, que entendiam que, em vários momentos da
história, os homens precisam lutar pela sua liberdade, argumento este que
suscita a ideia de que a liberdade é algo que o homem pode deixar de ter,
porque, segundo esses críticos, ele nem sempre a possuiu (donde a necessidade
de reconquistá-la em certos momentos da história), Sartre objeta que, se o
homem não é originalmente livre, não poderíamos conceber o que é sua
libertação. Demais, devemos notar, em favor da perspectiva de Sartre, e contra
os partidários do determinismo, que o que caracteriza fundamentalmente a
existência do homem é o poder quem ele tem de desnaturação, de desarrancamento
em relação a qualquer instância limitadora fixada pela natureza. Sartre não
poderia concordar com os freudianos na hipótese de que há uma estrutura de
pulsões (inconsciente) a governar a totalidade da vida psíquica do homem, levando-os
a agir à revelia deles.
Vou-me debruçar sobre o
problema da liberdade, não sem antes acrescentar que, para Sartre, somente o
homem existe, enquanto uma “pedra”, por exemplo, é. O homem é pura liberdade. O
essencial a respeito do tema da liberdade, em Sartre, deve ser já anunciado: a liberdade, tal como a pensa Sartre, é
“liberdade para”, e não liberdade
de. Caso pensássemos a liberdade como “liberdade de”, poderíamos concluir
que Sartre estaria ignorando as condições concretas em que vive o homem e que
limitam suas possibilidades de escolha; mas tal conclusão seria equivocada, ao
menos não seria fiel ao pensamento sartreano. Sartre não ignorava os limites
impostos pelas condições sócio-históricas da existência humana, sobretudo se
levarmos em conta o fato de que ele veio a se aproximar do marxismo, muito
embora não o poupando de críticas no tocante a seu forte determinismo e
materialismo.
Está claro que, para Sartre, o
indivíduo, surge no mundo em dadas condições sócio-históricas. O homem está no
mundo sempre em situação. Sua existência é uma tarefa que ele tem de levar a
efeito num tempo e lugar determinados. Por isso, Sartre não ignorava que
houvesse situações-limite, tais como guerra, o sofrimento, a morte, em face das
quais o homem se conscientiza de seus próprios limites, das limitações impostas
pela realidade à simples realização de sua existência. Sartre utilizou o
conceito de facticidade para dar conta desse problema. A facticidade recobre o nosso passado,
nossa constituição biológica, nossas posses, as condições sociais em que
estamos inseridos, nossa língua, nossas aptidões, etc. Há, contudo, - cabe
acrescentar - uma região semântica contígua, no conceito de facticidade, que compreende a presença
absurda e constatada das coisas que estão aí sem necessidade. Assim, a minha
consciência se apreende a si mesma como fato; ela é, em sua contingência,
absurda, pois que carece de qualquer necessidade. As coisas estão aí sem
necessidade e eu me encontro entre elas.
Insisto, contudo, que do
reconhecimento do que Sartre designa como facticidade
não resulta que o homem deixe de ser livre – e absolutamente livre, porquanto a radicalidade com que Sartre pensa
o problema da existência humana consiste em tomar a liberdade como um
pressuposto ontológico para qualquer projeto emancipador da humanidade. O homem
não perde sua liberdade, enquanto sua condição ontológica, porque se vê
ameaçado em momentos de crise. Sartre não admite que a liberdade seja algo a
ser mensurado relativamente a tal ou qual circunstância; o homem é
absolutamente livre. Essa absolutidade da liberdade se realiza como escolha que
homem faz de si mesmo, isto é, ele escolhe aquilo que quer ser: um cidadão
obediente ao Estado ditatorial ou um revolucionário aspirante ao regime
democrático? A liberdade é absoluta porque o homem é o ente verdadeiramente
existente, jamais predeterminado como um “em-si”, portanto, capaz de
transcender a si mesmo. A liberdade capacita o homem a decidir sobre sua
própria vida, escolhendo seu próprio modo de vivê-la e se responsabilizando por
essa escolha. Sartre não ignorava o peso que tem sobre o homem a liberdade: ser
verdadeiramente livre é ser totalmente responsável.
Na medida em que a liberdade
tem caráter universal no homem, ao assumi-la, o indivíduo o faz para si e para
todos os outros homens. Ao escolher para si, ele também está escolhendo para os
demais homens. Em outras palavras, ao escolher um modo de ser, de viver, ao
decidir sobre que curso de ação tomar, está escolhendo o que lhe parece
universal, geral. A sua escolha modifica as condições em que o outro deverá
fazer sua escolha. Ademais, quando escolhe, o indivíduo atribui ao mundo um
significado que transcende um simples ato de uma decisão individual.
Se a liberdade se define como
escolha, e se a liberdade é escolha,
é o homem que escolhe todos os valores; é a liberdade o fundamento de todos os
valores. O homem, em sua liberdade, é o fundamento sem fundamento de todos os
valores. Nesse sentido, o existencialismo, segundo crê Sartre, promove a defesa
do homem.
PARTE II
4.
O Existencialismo e as duas polêmicas
A seção que encabeça esta
segunda parte dará
início ao nosso estudo sobre a posição existencialista de Abbagnano, em seu
livro Introdução ao Existencialismo
(2006). Escusa dizer que uma proposta de leitura que pretendesse cobrir todo o
trabalho de Abbagnano demandaria tempo e espaço maiores do que a já grande
quantidade de tempo e espaço que o exercício de escritura deste texto tem
exigido. O fio condutor que levou a efeito os encadeamentos de reflexões ao
longo de todo este texto é o problema da questão do ser, agora posicionado como
problematicidade originária da existência. Abbagnano, antes de lançar-se na
discussão dessa problematicidade, identifica duas polêmicas a partir das quais
o existencialismo se estabeleceu.
A primeira polêmica em que o
existencialismo está implicado é contra o que Abbagnano chama consideração objetivista; a segunda
polêmica é contra a consideração subjetivista.
Vejamos no que consiste cada uma delas, começando pela polêmica contra a
consideração objetivista.
Com ter assumido o
existencialismo diversas formas, observa Abbagnano que todas elas se orientam
por uma inspiração fundamental que lhes é comum, qual seja, todas elas mantêm
que a existência é a busca do ser na qual o homem individual está diretamente engajado.
Essa definição de existência implica uma concepção de filosofia que alija de
seu domínio qualquer tentativa de reduzi-la a um sistema teórico de compreensão
do mundo que se constitui e se mantém como tal, em uma indiferença à existência
concreta de quem filosofa.
“A
filosofia não é inquirição teórica sobre um ser ao qual a inquirição resulte
indiferente e ao qual ela se mantenha alheia. A filosofia é a busca que o
indivíduo faz do ser que lhe é próprio e é, por esse motivo e ao mesmo tempo,
decisão a respeito desse ser”. (p. 41).
O excerto supracitado suscita
duas considerações. Deve-se sublinhar, em primeiro lugar, que a filosofia deve
ser uma experiência ou uma atividade na qual se engaja o indivíduo em sua
existência concreta. Estando o indivíduo existencialmente engajado nessa
atividade, tem ele em vista a tarefa de constituição de seu ser. Evidentemente,
essa tarefa não se impõe ao indivíduo de fora, mas só pode realizar-se a partir
de uma decisão dele mesmo. A filosofia como busca é incompatível com qualquer concepção
dela como produto acabado de uma atividade – concepção esta estatizante, esterilizante.
A filosofia não é aquilo que se fez e que se dá numa totalidade sistêmica
completa, após um esforço reflexivo. A busca em que consiste a filosofia - por ser a busca do ser que é próprio ao
indivíduo - jamais se completa, jamais se interrompe, enquanto o indivíduo
se ocupa de sua tarefa de existir. A filosofia como busca é concebida em seu
movimento incessante, em sua dinâmica, em seu trajeto ao longo do qual o
indivíduo é o ente agentivo dessa busca.
A segunda consideração toca ao
sentido do ser. Veremos, no decorrer desta segunda parte, que continuamos sem
saber verdadeiramente o que é o ser; todavia, se relermos atentamente o trecho
referido mais acima, parecer-nos-á lícito concluir que o ser de que se trata é
o ser próprio do indivíduo, isto é, a essência do ente. Mas – lembremos – essa
essência em vista de cuja constituição o indivíduo empreende uma busca, que é
filosófica, não lhe está fixada de antemão, ideia esta suficientemente clara a
partir das considerações alhures.
Abbagnano lembra o
inconveniente que há em se pretender conhecer o homem e sua existência
objetivamente “assim como se conhece qualquer uma das coisas do mundo”
(ib.id.). A polêmica do existencialismo contra a consideração objetivista
consiste na assunção dessa pretensão. Resulta daí um problema que consiste em
ignorar o fato de que a busca de seu ser na qual o indivíduo está engajado não
é suscetível de equivalência com a separação entre o eu e o mundo requerida
pelo conhecimento. Se, no conhecimento, eu e mundo já estão constituídos em sua
separação, tal não ocorre na busca do ser em que está engajado o indivíduo.
Nessa busca, apresenta-se o problema de sua própria constituição. Assim,
esclarece-nos Abbagnano,
“O
conhecimento sempre apresenta uma situação polarizada na qual o objeto se
distingue e se opõe ao sujeito; ele supõe a totalidade da qual sujeito e objeto
fazem parte em sua polarização correlativa. Mas, por sua vez, essa totalidade –
o mundo – não pode ser objeto de conhecimento. A razão de haver um mundo e de
eu, no ato de conhecer, me enraizar nele -, é um problema ao qual o
conhecimento dá origem, mas não pode resolver” (ib.id.)
Numa perspectiva
existencialista, admite-se a absurdidade desse estado em que o eu encontra-se
enraizado no mundo. Epistemologicamente, conhecer supõe a separação entre um
sujeito cognoscente e o mundo cognoscível. Essa separação está pressuposta no
ato de conhecer. Aquele que conhece sabe que conhece alguma coisa e, no ato de
conhecer, intui que a coisa que conhece é algo fora de si, que lhe vem ao
encontro. Mas a razão de existir um mundo e de eu, enquanto existente,
encontrar-me nele não pode ser explicada no ato de conhecer. O conhecimento,
portanto, é reconhecimento da alteridade entre o mundo e o eu, mas não dá conta
do porquê há um mundo onde “eu” me enraízo.
Abbagnano conclui que o ser, a
cuja busca se consagra o homem em sua existência, não é um objeto cuja natureza
ele deve limitar-se a indagar e conhecer. O ser, ou melhor, a busca do ser é uma
escolha por cuja realização o indivíduo se decide.
O homem que pretende conhecer
objetivamente o ser é um homem indiferente à problematicidade da constituição
do próprio problema; por outro lado, o homem que considera existencialmente o problema implicado na busca do ser é um homem
interessado, que precisa decidir-se.
A
segunda polêmica do existencialismo é contra a consideração subjetivista. O existencialismo também rejeita a
consideração subjetivista do ser. De acordo com essa perspectiva, o ser é
imanente ao sujeito.
“Por
essa imanência, o sujeito se universaliza e se despersonaliza; um sujeito ao
qual todo o ser seja imanente é uma razão ou um pensamento universal no qual
está plenamente resolvida a existência do indivíduo concreto”. (p. 42).
O que se elimina, na
consideração subjetivista do ser, é a individualidade particular e seu destino.
Não ser uma pessoa é perder aquilo que nos individualiza, que nos torna
singular; mais ainda, é nos desenraizar da problematicidade de nossa existência
concreta. Se somos reduzidos a uma razão despersonalizada ou a um pensamento
universal, deixamos de ser um existente. O problema do homem verdadeiramente
existente é privado de todo o significado.
A questão o que é o ser? só vale para a existência e na existência do
indivíduo. Ao subsumir o ser na racionalidade, suprime-se a possibilidade de um
problema do ser. Ocorre que, conforme veremos mais adiante, a indeterminação
fundamental da relação com o ser é marcada pela instabilidade. O ser reduzido à
racionalidade anula essa instabilidade, porque o ser submetido à estrutura da
razão é um ser visto como configuração rigorosa e necessária, atravessado por
uma conexão obrigatória de determinações e momentos. Não só a questão sobre o
ser deixa de ter lugar, nessa perspectiva, como também o próprio indivíduo
perde sua consistência, dado que foi subsumido pelo pensamento universal. Com a
pergunta sobre o ser, a consideração subjetivista suprime o fundamento de toda
pergunta, de toda busca, de toda indeterminação, qual seja, toda a existência
concreta.
O que se suprime é justamente a
concretude de onde parte o existencialismo. O existencialismo começa sua
investigação tendo como escopo o eu individualmente existente, eu mesmo
enquanto busco e pergunto. À luz da perspectiva existencialista, filosofar é decisão que diz respeito à minha
atitude, à minha relação real e concreta com o ser. O existencialismo
rejeita a imanência do ser na subjetividade. O indivíduo só existe na medida em
que transcende a si mesmo e move-se para o ser. Naturalmente, o mover-se para o
ser implica a não imanência do ser à subjetividade que o indivíduo encarna.
4.1.
O que é a existência, segundo Abbagnano?
Cite-se Abbagnano:
“A existência é, antes de tudo, a
constituição de uma relação entre mim e o ser; mas essa relação se
estabelece exatamente no ato no qual procedo para além de mim, no qual me
limito para me ultrapassar” . (p. 43).
A universalidade não é a da
imanência do ser à minha razão, do que resultaria uma razão universal. A
universalidade é a da relação do eu concreto com o ser. Essa universalidade,
então, funda a individualidade e não a suprime. Nas palavras de Abbagnano, “a
universalidade é o alcance e a direção de meu movimento existencial, que busca
o ser e se relaciona com ele: não é a imanência do ser à minha razão” (ib.id.).
Em ambas as perspectivas
anteriormente examinadas, inviabiliza-se o problema do ser e, com a
inviabilização desse problema, a concretude, a individualidade, a existência do
homem são alijadas. Enfatize-se, com Abbagnano, que “a existência não pode
receber luzes do conhecimento ou da razão, antes pode dar luzes a eles”.
Do que se expôs até aqui não se
deve depreender que as considerações objetivista e subjetivista devam ser
rejeitadas totalmente, porquanto isso significaria renunciar ao entendimento da
existência, significaria privar “a realização da existência de toda referência
ao conhecimento e ao pensamento”. (ib.id.). Ocorre que a existência autêntica
só pode realizar-se na sua relação com o conhecimento e com o pensamento.
Consoante Abbagnano, um dos
problemas da doutrina de Japers consiste em conservar a polaridade entre a razão
e a existência, “mesmo que ele entenda por razão não a razão do idealismo, mas
uma razão transcendente e esclarecedora do fundo escuro da existência” (p. 44).
Veremos qual será o caminho
tomado por Abbagnano, em tempo. O problema começa, no entanto, a ganhar
contornos de esclarecimento no momento em que ele nega que a razão possa ser um
polo da existência. Ora, se é assim, o que significa verdadeiramente entender a
existência, já que ela não dá guarida à razão?
“Entender
a existência significa realizá-la autenticamente, e tal realização significa
realização consigo mesma. O entendimento do existir que o filosofar exige e
busca e que é justamente o filosofar, não se põe como um polo da existência,
mas como o ato compreensivo e final da existência, como sua totalidade
autêntica” (ib.id.).
Façamos um gesto de
interpretação. Entender a existência não
é um ato de intelecção, não é um ato que se faz com o concurso da razão
discursiva que articula conceitos e proposições para dele extrair conclusões de
acordo com princípios lógicos. Entender a existência é um ato compreensivo
enquanto eu a realizo e a assumo em sua totalidade. Em face da existência,
filosofar não é uma atividade que se vale de conceitos, articulados em juízos,
que, por sua vez, se encadeiam em raciocínios destinados a apreendê-la. É claro
que filosofar reclama o entendimento da existência, mas, segundo a
interpretação de Abbagnano, esta não se presta a ser um objeto de exame
racional segundo os quadros de uma lógica silogística. Se o entendimento não
constitui uma dimensão da existência, a filosofia deve realizá-lo como ato
compreensivo de um indivíduo totalmente engajado nessa realização.
4.2. As três posições do
existencialismo
“Se
a existência é relação com o ser, eu que existo devo enfrentar o problema do
ser, devo buscar o ser. Existo enquanto tendo para o ser, sou enquanto me
relaciono com o ser. Porque existo, saio do nada para mover-se rumo ao ser, mas
se alcançasse o ser e fosse o ser, cessaria de existir, porque o existir é
busca ou o problema do ser”. (p. 44).
O que Abbagnano expõe no
excerto acima são “os pontos basilares de todo existencialismo”.(ib.id.). Ele
passará à consideração das três vias que se abrem para a determinação da
atitude existencialista. Uma dessas vias – a terceira apresentada – será a dele
mesmo Abbagnano. Antes de dar a conhecer essas três posições, deter-nos-emos na
significação do conceito de “ser” no trecho citado.
Em primeiro lugar, existir não
é o mesmo que ser. Lembremos o que nos ensinam Heidegger e Sartre: eu nada sou
de antemão. Eu não possuo o ser. A minha existência me retira do nada e
enquanto estou existindo – esta é minha tarefa – movo-me rumo ao ser. Portanto,
existindo, eu tenho em vista o ser; existir e ser, para o homem, não é a mesma
coisa. Mas o problema do ser permanece – não sei o que é o ser. O próprio
existir consiste em instaurar a minha relação com o problema do ser. Ou ainda,
como lemos no fragmento há pouco citado, o existir é o problema do ser.
Concentremos nossa atenção no
momento em que o autor nos diz que, se alcançássemos o ser, deixaríamos de
existir. Talvez, se tomarmos como exemplo a condição de um cadáver, a
incomensurabilidade entre ser e existir se torne clara, segundo a forma como eu
compreendo a exposição de Abbagnano. Dizemos que a pessoa que morre deixa de
existir, mas o que ainda resta na morte dela é alguma coisa – é um cadáver. Na
condição de coisa, o cadáver “é”. A posse do ser, nesse sentido (sentido que
parece autorizado pelo de Abbagnano), retira o indivíduo do tempo; ele deixa de
existir, pois existir é busca do ser – uma busca à qual é inerente a
incompletude enquanto busca. O existente que pretendesse possuir o ser
suprimiria a incompletude que a caracteriza como tal; por isso deixaria de
existir. Tornar-se um em-si é tornar-se encerrado em si mesmo, é tornar-se uma
totalidade fechada, opaca. Uma existência plena, completa é uma antítese;
porque existir é necessariamente estar fendido, incompleto sempre em vias de
realização; existir é um projetar-se num “entre” que corta dois nada, num entre
que separa duas infinidades por meio de um sucessão de instantes em cada um dos
quais o indivíduo apreende-se como lançado na tarefa imperiosa de escolher ser
a partir de uma indeterminação absoluta.
Abbagnano apresentar-nos-á sua
posição existencialista em contraste com
duas outras posições que tratará de rejeitar. Segundo autor, a primeira
posição, atribuída a Heidegger, considera como fundamento do existir, entendido
como relação com o ser, o fato de o ser separar-se do nada. Nesse horizonte
hermenêutico, é a separação do nada ou o próprio nada que determina a natureza
da existência. Para Abbagnano, a existência jamais se separa do nada
simplesmente porque ela jamais se identifica com o ser, donde resulta que ela
se definiria pela impossibilidade de não ser o nada. Ora, vê-se que, não
podendo deixar de ser o nada, a definição do problema, qual seja, o da relação com o ser, se anula. A
existência nunca poderá problematizar-se como relação com o ser, porquanto, em
Heidegger, segundo a leitura de Abbagnano, ela desembocaria no nada
inevitavelmente.
Na segunda posição, atribuída a
Jaspers, o autor aponta para o problema da pretensão de a existência
identificar-se com o ser. Ocorre que a existência jamais pode possuir o ser, de
modo que também aqui se suprime o problema da relação da existência com o ser:
a existência se definiria pela impossibilidade de ser a relação com o ser.
A terceira posição, que é a do
próprio Abbagnano, mantém que a existência consiste
na relação com o ser e se define pela possibilidade de ser a relação com o ser. Notemos que se
conserva a relação como traço fundamental da existência: existir é relação com
o ser. Nesse caso, eu, enquanto existente, preciso me confrontar com o problema
do ser, devo projetar-me na busca do ser.
Acompanhemos Abbagnano na
consolidação de sua perspectiva existencialista:
“Reposicionada
sobre sua verdadeira base de possibilidade da relação com o ser, a existência
encontra em si mesma seu significado positivo e auto-suficiente. Ela não se
nega realizando-se, mas se afirma exatamente naquilo que é, ou seja, em sua
essência ou natureza de relação. E a relação em que ela consiste é, no ato de
sua realização, reconduzida a sua problematicidade fundamental. A
problematicidade da relação com ser vem a consistir em si mesma e a insistir em
si mesma, realizando-se como problematicidade, como pura possibilidade de uma
relação possível” (p. 45).
A conservação da
problematicidade da relação com o ser redunda, em última instância, na possibilidade
de se pensar a indeterminação e a liberdade, então negadas nas duas outras
posições criticadas por Abbagnano. Para o autor, as posições existencialistas
de Heidegger e de Jaspers limitam a decisão e a escolha existenciais ao que já
está decidido e escolhido. Elas tolhem de liberdade o compromisso existencial.
O destino do homem e seu caráter de fidelidade livre são alijados em função da
aceitação do fato. Finalmente, fica impossibilitada toda normatividade e toda
avaliação.
4.3. A existência como relação com o
ser
Escreve Abbagnano:
“A
existência não tem outro modo de se realizar propriamente senão como
possibilidade da relação com o ser, isto é, como problematicidade originária,
transcendental dessa relação. A existência não é abandonada ou lançada rumo ao
ser ou lançada rumo ao ser, de modo que ela não possa reconhecer senão a
impossibilidade de ligar-se ao ser ou de separar-se do nada. A existência se põe na relação com o ser
reconhecendo-se como pura possibilidade dessa relação e permanecendo fiel à
problematicidade de sua estrutura”. (p. 46, grifo meu).
A existência não deve ter em
seu horizonte o nada de onde parte. Ela deve ocupar-se de si mesma e realizar a
relação consigo. Porque é relação com o ser, a existência só se reconhece como
tal relação. A problematicidade dessa relação impede que a existência se
projete para aquilo que não é ela mesma. Ademais, essa problematicidade confere
à existência sua substância.
Na passagem abaixo, Abbagnano
não só introduz a ideia de substância como problematicidade originária (tema
que, no entanto, só desenvolverá adiante), como retoma o desacordo com as
outras duas posições existencialistas por ele rejeitadas:
“(...)
a substância da existência deve ser reconhecida em sua problematicidade
originária como relação com o ser. E a substância a reconfirma em sua liberdade
ineliminável, absoluta. Se a existência
se define por referência ao nada [posição heideggeriana], todas as suas
possibilidades são igualmente inconsistentes e insignificantes diante da única
impossibilidade que a constitui propriamente: a impossibilidade de separar-se
do nada. Se a existência se define com referência ao ser [posição Jaspersiana],
todas as suas possibilidades são igualmente inconsistentes e insignificantes
diante de sua única e própria impossibilidade: a de ligar-se ao ser. Em
ambos os casos, as possibilidades nas quais ela se instaura são todas
equivalentes em sua insignificância e lhe são oferecidas em sua indiferença; a
tal indiferença também não se subtrai a única impossibilidade à qual a escolha
se deve reduzir”. (p. 47).
Novamente, afirmando a
superioridade de sua posição sobre as outras duas por ele consideradas,
Abbagnano pretende fazer-nos compreender que definir a existência em sua
relação com o ser tem a vantagem de reintroduzir no âmago da existência a
normatividade e a avaliação inescapáveis ao existente. Em outros termos, porque
é relação com o ser, a existência precisa fundar e consolidar essa relação;
trata-se para ela de uma exigência que se inscreve em sua estrutura como norma
de sua constituição. Ademais, porque é relação com o ser, a existência não pode
escapar a exigência de avaliar as possibilidades que se põem diante de si. Com
Abbagnano, “devo escolher aquilo que me consolida e me reforça em minha relação
com o ser, isto é, com aquilo que garante a possibilidade dessa relação”
(ib.id.). Eu escolho ser, portanto, a problematicidade originária dessa
relação. E, ao escolhê-la, estou sendo fiel à substância de minha existência. A
substância de minha existência é a relação com o ser em sua problematicidade
originária. A substância que é a minha é problemática em sua origem e ela se
torna a norma de minha decisão – norma que me permite transcender à indiferença
e à equivalência das possibilidades, norma que se apresenta como princípio de
avaliação. Reitere-se que a substância (essência) de minha existência, segundo
Abbagnano, é a problematicidade originária da relação com o ser. Essa
problematicidade é transcendental porquanto é condição de possibilidade daquela
relação. Essa problematicidade escapa tanto à predeterminação quanto à
indiferença perante a necessidade de valorar.
“No
entanto, minha existência não depende propriamente nem do nada nem do ser, mas
da possibilidade de ser na qual me constituo: sua substância é, exatamente, o
fundamento transcendental, a condição de possibilidade, ou seja, a
problematicidade pela qual ela é aquilo que é. E meu dever será garantir e
reforçar a possibilidade de meu ser, consolidando-a em sua condição
transcendental, realizando-a em sua problemática originária e última”. (p. 48).
Resta evidente que esse dever
não me é imposto por qualquer outra instância que me transcenda, que sobre mim
exerça seu domínio. O dever, que é meu, eu mesmo mo imponho. Trata-se de um
dever, em última análise, que reconheço como exigência inevitável da substância
da estrutura de minha existência, isto é, da problematicidade originária da
relação com o ser.
4.4 O problema do ser e a
indeterminação do ser
Reencontramos o problema do ser
que toma forma na questão: o que é o ser?
Não devemos nos apoquentar por nos vermos reconduzidos a ele, visto que esse
problema é originário não só no desenvolvimento da filosofia, mas, sobretudo,
na constituição do existir. Dado que existo, tenho de me defrontar com a
questão do ser. O excerto que se seguirá patenteia-nos a medida da dívida de
Abbagnano para com o pensamento de Heidegger. Observe-se que o que se define aí
é justamente o estatuto privilegiado de um ente específico, o homem. Vou-me
debruçar sobre o exame do fragmento, abaixo transcrito:
“O
problema: o que é o ser já define um
estado do ser. Que ele se instaure e encontre lugar no ser – e não poderia
se instaurar e encontrar lugar senão no ser – implica que há algo do ser – um
ente – que está em uma relação de instabilidade com o próprio ser. O ente, que
suscita o problema e é enquanto aquele problema, certamente está em relação com
o ser, mas em uma relação que exclui a totalidade e a necessidade de ele
possuir o ser. Ele é enquanto instaura e se constitui a si mesmo no suscitar e
no constituir o problema – por isso está em relação com o ser, mas, enquanto é
como problema e no problema, sua relação com o ser é instável e precária e
exclui a firmeza e a estabilidade da posse (...)”. (ib.id. grifo meu).
A primeira dentre as várias
questões que se poderia ventilar a partir da consideração do passo
supramencionado é o que significa dizer que a questão do ser define um estado
do ser. Não se diz “estado de ser”, mas “estado do ser”. O ser, tal como vem sendo
pensado em sua obscuridade conceitual, é a tarefa própria do homem. O ser se
coloca no horizonte de uma busca pela qual se decide o homem enquanto
existente. Essa busca se dá no mundo que é, para Abbagnano, “uma determinação
fundamental da estrutura do homem” (p. 31). O mundo é a totalidade da qual faz
parte o homem. O mundo, porque determina o modo fundamental da estrutura do
homem, o transcende e, ao transcendê-lo, leva-o a instaurar-se numa relação
necessária com o ser e com os demais homens.
Volvemos nossa atenção para a
ideia de que o problema do ser define um estado do ser. Tendo-a em conta,
recuperemos a ideia subsequente (veja-se a citação), segundo a qual o problema
do ser não pode instaurar-se senão no ser. A metáfora do ser como domínio locativo
(“encontre lugar no ser”) suscita-nos uma ambiguidade: trata-se do ser próprio
do homem ou do ser mais abstrato e geral como horizonte de acontecimento da
presença de tudo que existe? Trata-se da essência do homem ou do ser como única
realidade verdadeira e fundamental? Se, agora, lermos também o que se segue no fragmento citado –
“há algo do ser – um ente que está em uma relação com o próprio ser”,
forçosamente reconhecemos duas ocorrências do vocábulo “ser”. A primeira
ocorrência dirime a dúvida suscitada pelas questões sobre o significado do ser
logo acima. Se, afinal, é algo do ser (que pertence ao ser), esse ente, que é o
homem, é parte de uma realidade mais abstrata e fundamental (e mais ampla). Essa realidade
abstrata, porque isolada pelo pensamento e porque fundamental, porque condição de
possibilidade de aparecimento dos entes, constitui a totalidade do ‘haver’
mundo da qual o ente humano é uma parte (não qualquer parte, não uma parte como
as outras). Espanto em face do acontecimento do haver, que é uma totalidade que
tudo abarca e que me escapa sem que eu possa dela (me) escapar, porque, ao
afirmar que sou, compreendo-me como inteiramente absorvido no espanto de ‘haver
mundo’.
Voltemos a dispensar atenção ao
fragmento citado. Ao fazê-lo, encontramo-nos novamente na dificuldade de
decidir sobre que sentido produzir para a ocorrência do vocábulo “ser”. Porque
a ambiguidade do ser se instaura novamente. O ente que está numa relação de
instabilidade com o próprio ser encontra-se numa relação com seu ser mesmo ou
com o ser abstrato e fundamental? A questão se expõe aqui a título de
provocação, pois que se nos dermos o trabalho de prosseguir com a leitura do
restante do fragmento, podemos resolver a ambiguidade do “ser” admitindo que o
ente que se coloca o problema do ser é ele mesmo o problema. Ao instaurar o
problema e reconhecer-se como o próprio problema, esse ente não pode pretender
alcançar a posse – de resto, impossível -, do ser. Ele não só se reconhece como
um “sintoma” da presença plena, isto é, do ser, tampouco se reconhece
simplesmente como parte do mundo, ele deve reconhecer-se como o problema mesmo
da relação com o ser. Não há mundo sem homem.[1] Se só há
homem com o mundo, no mundo, só há mundo com o homem.
Porque impossibilitado de
possuir o ser, a relação com o ser, que é originária na estrutura da existência
desse ente que é o homem é sempre instável e precária. É nessa precariedade e
instabilidade, no entanto, que o ser permanece como a possibilidade existencial
desse ente.
Para lançar luzes sobre
qualquer sombra de dúvida acerca do que significa ser para o ente humano,
convém lermos o que se segue, sem perder de vista a problematicidade dessa
busca do ser:
“Dúvida
e certeza, expectativa e temor, ação e desespero são todos modos singulares e
concretos do problema do ser porque são todos eles determinados pela
instabilidade da relação entre o ente e o ser. A felicidade de um reencontro e
de uma posse, tanto mais preciosa quanto mais exposta ao risco da perda, o
amargor de uma derrota, a angústia de uma impossibilidade, a vitória e o
desastre encerram igualmente o sentido profundo e total do problema do ser, da
instabilidade da relação na qual o ente é com o ser, da propriedade de sua
posse, do risco que ele implica. O
problema do ser está não mais no encapsulamento conceitual e verbal das
doutrinas filosóficas, mas no próprio ser constitutivo do ente em sua vida
temporal, em sua limitação, em destino”. (p. 49).
O que se topa, em destaque, no
excerto acima, faz esvaecer qualquer dúvida acerca da significação do conceito
de ser, de cuja problematicidade Abbagnano se ocupa. Definitivamente, não se
trata do ser parmenidiano ou platônico, nem do ser plotiniano, ou hegeliano.
Não se trata de um problema atinente à indeterminação de sua conceituação. O
problema do ser é fundamental na medida em que constitui o problema originário
da constituição da existência do ente. Mas, ipso
facto, o ser é o ser constitutivo do ente “em sua vida temporal, em sua
limitação, em seu destino” (ib.id.).
Ser, para o ente humano, é
sempre um mover-se na instabilidade da relação com o ser; é sempre estar
exposto ao risco de perdas, de desfazimentos. A relação com o ser é um problema
concreto para o ente humano, ao mesmo tempo em que é profundo porque a todo
instante expõe o homem à precariedade da sua existência, ao peso que consiste
em ter de assumi-la como seu dever.
Portanto, não há possibilidade
outra para o homem de reportar-se ao ser senão como problema. O homem não pode
alcançar a paz e a segurança da posse do ser; só pode pretender alcançá-la sob
o risco de perdê-la a qualquer momento. Eu posso ser um pai de família, mas sob
o risco de deixar de sê-lo a qualquer momento. Num dia, posso ver-me como um
empresário bem-sucedido; noutro posso encontrar-me arruinado. O homem pode
revoltar-se contra toda determinação; pode esforçar-se por fugir dela e lograr
êxito nessa empresa; mas não pode – porque impossível – rebelar-se contra o
problema da relação com o ser. Não há escapatória. O trágico de sua condição é
ver-se obrigado a assumir aquela relação na precariedade que lhe é inerente,
sem qualquer forma de apelação, sem encontrar esteios que sustentem os
significados que vai construindo na ocupação com sua tarefa. A precariedade da
relação com o ser é a precariedade de sua própria existência, já que existir é
relação com o ser.
A próxima subseção, que precede
à das considerações finais, abre-nos o horizonte do problema fundamental da
existência: a relação com a
indeterminação originária. A questão que ocupa Abbagnano e sobre a qual me
debruçarei está, pois, delineada no seguinte excerto:
“O
estado do homem definido pelo problema do ser é a indeterminação. A
indeterminação é a própria problematicidade da relação entre o homem e o ser.
Pela indeterminação, o ser é uma possibilidade para o homem”. (p.50).
Se a condição do homem definida
pela relação com o ser é a indeterminação, colhe-se daí que não há
possibilidade de imanência do ser ao homem. O homem que se define como problema
da relação com o ser jamais se encontra descansado no ser. O ser pode ser
próprio do homem, mas nunca a título de estado de imobilidade. Nem o ser
liga-se intimamente ao homem, nem este se deixa dominar pelo ser, porquanto há
sempre a indeterminação constitutiva da relação entre o homem e o ser, de sorte
que um e outro são sempre possibilidades efetivas, mas nunca realidades
necessárias.
A
indeterminação é a própria natureza do homem, porque e justamente porque o homem não tem natureza e porque
a indeterminação é o problema da constituição da sua natureza.
4.5. A existência como relação com a
indeterminação originária
É própria do homem a
possibilidade de ser. Como possibilidade de ser, o homem encontra-se no estado
de indeterminação. Só está nesse estado porque o homem foi indeterminação. Ele
só se constitui na indeterminação, porquanto a indeterminação está no passado,
já foi ultrapassada, transcendida.
Todavia, estar na
indeterminação não é conservar-se na imobilidade; a indeterminação própria do
homem supõe um movimento que consiste em um ir além dela. A ultrapassagem da
indeterminação, o sair dela é o existir
(existere). Novamente, a questão
sobre o que é existir se impõe.
“O
homem existe enquanto constituindo-se com o problema e no problema do ser, sai
da indeterminação que ele implica e se desloca para reconhecê-la. O existir é o
ato pelo qual o homem reconhece a indeterminação de sua natureza e, por isso,
estabelece como sua natureza o problema do ser”. (p. 50).
Esse sair da indeterminação que
define a essência do existir não é um lançar-se na indiferença a respeito dessa
indeterminação originária. Existindo, isto é, ultrapassando a indeterminação, o
homem reconhece-a como indeterminação de sua natureza e, por isso, pode
estabelecer como sua natureza o problema da relação com o ser. Por conseguinte,
“o existir só é uma ultrapassagem da
indeterminação porque é um retorno a ela”. (ib.id.)
Transcender a indeterminação
nunca é um “deixar para atrás”, um “negá-la absolutamente”. Ao existir, o homem
instaura e constitui concretamente a indeterminação como ponto de onde parte e
ponto a que chega. O existir é a instauração própria e autêntica do problema do
ser, dado que é a constituição desse problema como natureza própria e
originária do homem.
Da afirmação a indeterminação é a relação da
problematicidade entre o homem e o ser segue-se que o existir é o
fundamento dessa relação, sua problematicidade constitutiva. Como fundamento,
existir fornece a razão de ser da relação. Da afirmação a indeterminação é o ser como possibilidade segue-se que o existir
é o fundamento e a condição de tal possibilidade, é a possibilidade
transcendental. Vê-se, pois, que a indeterminação e a possibilidade não são
nada fora do existir, já que existir é o ato concreto de sua fundação, logo a
condição necessária de seu ser mesmo. A indeterminação se realiza como tal
somente no existir; só no existir ela se relaciona consigo. É também no existir
que a problematicidade da relação entre o homem e o ser se relaciona consigo
mesma. A existência constitui o homem em sua problematicidade originária.
A existência define o homem na
indeterminação de sua natureza; e essa definição não se dá pela anulação dessa
indeterminação. Ao instaurá-la, a existência a reconhece e a realiza até o fim.
Finalmente, devemos, então,
remover qualquer embaraço que nos impeça de compreender claramente que,
instaurando-se o problema do ser, a problematicidade originária, que é a
indeterminação da natureza do homem, se realiza. Ela se realiza por um ato
levado a efeito pelo homem. Ao realizá-la, o homem realiza-se a si mesmo, visto
que, na origem, ele é aquela problematicidade.
A instauração do problema do
ser nada mais é do que a própria constituição do homem. Insista-se em que a
definição do problema do ser não é objeto de reflexão teórica, mas ato
existencial, a saber, decisão. Sendo originariamente indeterminação, o homem
escolhe ser si mesmo e se compromete em se realizar no horizonte de sua
problematicidade originária, sendo nisso que consiste o ato existencial que
instaurará a autenticidade da existência do próprio homem.
Considerações finais
Na medida em que pensa o homem
concreto em sua problematicidade originária como indeterminação de sua própria
natureza, o existencialismo põe-se, filosoficamente, a serviço do trabalho
existencial, levado a efeito pelo próprio homem, de constituição de um modo de
ser que lhe é próprio. O viver concreto, o envolvimento do homem com a lida
cotidiana não ocupa uma instância apartada do discurso filosófico, já que a
própria filosofia não é senão uma escolha existencial, um ato pelo qual se decide
o homem que tem de assumir autenticamente o seu modo próprio de ser, a saber,
como indeterminação originária. Que
esse ato de conquista de si seja profundamente marcado pela instabilidade e
precariedade não é razão suficiente para o dispensar fazê-lo com algumas luzes,
donde a necessidade de o homem apropriar-se da filosofia como uma busca ao
longo da qual se vai esclarecendo o fundo escuro de sua existência.
[1] O
leitor poderá encontrar uma discussão sobre a inexistência do mundo sem o homem
em http://escritosdobar.blogspot.com.br/2014/04/a-linguagem-e-o-lugar-de.html
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