
O princípio Dor: a marcha
da carne consciente
Amanhã
estará à disposição dos
leitores, neste e no outro blog, provavelmente o meu texto mais extenso e,
talvez também, o mais esmeradamente projetado para ser publicado em meu blog.
Este, no entanto, que agora se apresenta reúne retalhos de cadeias de
pensamentos que encontrarão na presente tessitura uma totalidade coesa e
coerente. Começo, pois, sem qualquer compromisso com a definição do tema. Deixo
ao leitor o encargo de reconhecê-lo e explorá-lo à proporção que ele levar
adiante a leitura.
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Sartre foi o maior exemplo de intelectual global. Como filósofo, foi engajado politicamente; foi polêmico; não cessou de intervir no mundo das lutas sociais.
“Afinal de contas, é preciso (sobre) viver, dar-se um escopo, agarrar-se a uma fé qualquer, sem perder, porém, o charme da negatividade”.[1]
Trabalhar... Estar empregado:
significa produzir a teia fina e débil de sentidos sobre a ausência abissal e
infinda de fundamentos. Produzir no mundo absurdo é simplesmente tomar parte na
marcha que, cotidiana e inconscientemente, reproduz o drama da existência.
Estar empregado é empregar a obsoleta energia vital na reprodução dos horrores,
do absurdo, da fragilidade a que os indivíduos e as multidões estão sujeitos.
Estar empregado é estar pregado na
tábua dos inconsoláveis, dos aflitos que vivem na inconsciência de seu
desespero, suportando suas dores, seus tormentos na esperança de um paraíso
promitente.
Estar desempregado: é estar em
privação; é estar condenado à esterilidade do absurdo; é viver à margem daquilo
em virtude do qual todo indivíduo humano é gerado e domesticado para o mundo.
No mundo do trabalho, ele é forçado a levar adiante a marcha absurda, não sem
esforçar-se por produzir sentidos, no entanto, quebradiços, num mundo machado
pela dor ingênita, pelo sofrimento estrutural e pela crueldade banal.
Homo
faber: homem
absurdo. O homem, o indivíduo humano, é posto no mundo para produzir e
reproduzir-se; e produzindo e se reproduzindo, reproduz sua história de
misérias até que venha a sucumbir ao Irremediável.
No Princípio, era a Dor. E a Dor se
dilatou em explosões de uma singularidade agonizante. Desses processos
terrificantes, a Dor se fez Tormento. E o Tormento se fez carne, ganhou forma e
toldou o caos atormentado. E a carne, de agora em diante, ordenada se fez
existência, esquecendo-se do caos primordial e constitutivo que a fez ser, por
natureza, um acidente da Dor e do Tormento. Ainda hoje, a carne luta, em sua agonia
lancinante, contra suas tendências ingênitas a iludir-se sobre sua origem
enferma.
Mas esta carne, irremediavelmente
destinada pela própria circunstância nefasta que a gerou a apodrecer e a
extinguir-se, criou; ela é criadora: a filosofia foi, dentre todas, sua criação
mais excelsa e astuciosa, porque só a filosofia pôde reconciliá-la com suas
origens, sem condená-la ao martírio, à culpa. Com a filosofia, a carne
assumiu-se como existente, a saber, como angústia.
Uma
nota esclarecedora
Aos que creem numa fonte
transcendente doadora de sentido, pode
parecer que repisar a ideia do absurdo da existência constitui um hábito
por meio do qual não se faz nada mais do que inscrever numa estrutura
linguística uma antítese, por si mesma desprovida de qualquer significado.
Quando uma expressão linguística é usada ad
nauseam, ela acaba por agastar-se semanticamente, ela torna-se um truísmo, uma
combinação sonora já cansada, ipso facto,
incapaz de apelo fisiopsicológico na constituição integral do enunciatário.
Na filosofia existencialista,
Kierkegaard, expoente moderno do existencialismo cristão, foi, sem dúvida, o
pai do absurdo. Opondo-se ao hegelianismo, afirmou tanto a impossibilidade de
apreender o indivíduo, enquanto subjetividade, num sistema racional quanto a necessidade
de instaurar uma ética religiosa calcada sobre a crença numa transcendência
inacessível. No existencialismo de Sartre, por seu turno, o absurdo recobre a
impossibilidade de justificar racionalmente a existência das coisas e de lhes
conferir um sentido. Absurdo é, pois, uma categoria negativa, já que ela
descreve a negação de sentido ou de possibilidade de dar ou apreender sentido.
Sartre, relacionando o absurdo à existência de Deus, definiu-o como a
impossibilidade de o homem ser o fundamento de sua própria existência, definição
que ganhou expressão na sua fórmula poética “o homem é uma paixão inútil”.
Assim, o homem absurdo está destinado a “ek-sistir”, a saber, a ser para além
de si mesmo como uma consciência, isto é, um nada. A consciência é o nada,
porque não sendo (seguindo Hurssel) uma espécie de recipiente onde são
armazenadas as imagens e representações dos objetos externos, ela se
caracteriza fundamentalmente pela intencionalidade, isto é, por tender para
fora de si. Daí Sartre extrai uma consequência: não sendo definida por qualquer
ser, a consciência pode, porque é nada, transcender as circunstâncias
imediatas, imaginar, fazer com que exista mundo.[2]
Sendo um existente, o homem está “condenado a
ser livre”, o que implica ser responsável por seu ser e por sua própria razão
de ser. A categoria do absurdo subsume esses aspectos da condição humana, que
fazem do homem o fundamento sem fundamento de sua própria existência.
Por fim, a partir de Camus e Kafka,
o absurdo aparece com bastante frequência para designar o incompreensível, o
desprovido de sentido e o sem finalidade, especialmente nos domínios da moral e
da metafísica.
Na obra de Schopenhauer –
arrisco-me a dizer -, também podemos encontrar descrições que nos dão a
tonalidade do absurdo. Fiquemos com este trecho que, tendo sido obra de um
gênio profundamente arguto e cirúrgico, faz alegrar-se minha fisiologia dada a
frieza com que o absurdo é posto a descoberto:
“Tudo
o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso
vencer. Na vida dos povos, a história só nos aponta guerras e sedições: os anos
de paz não passam de curtos intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E, da
mesma maneira, a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males
abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em
toda parte, encontra-se um adversário: a vida é uma guerra sem trégua, e
morre-se com as armas na mão”.[3]
[1] Emil Cioran e a Filosofia Negativa:
Homenagem ao centenário de nascimento. Deyve Redyson (org.). Porto Alegre:
Sulina, 2011.
[2] O
leitor poderá encontrar uma exposição mais acurada deste e de outros pontos do
sistema de Sartre em http://escritosdobar.blogspot.com.br/2013/12/o-homem-deve-ser-inventado-cada-dia.html
[3]
Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo. São
Paulo: Edipro, 2014, p. 26.
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