Há salvação para o homem?
Há, em nossa sociedade, onde o índice de analfabetismo está entre
os maiores do mundo e onde o desenvolvimento em educação está entre os piores,
um preconceito, infelizmente, bastante disseminado em relação à filosofia,
segundo o qual filosofia não serve para nada, muito porque, segundo
se crê, versa sobre questões que não tocam ao viver cotidiano do homem comum. É
provável que essa má fama da filosofia entre nós se deva muito a sua redução à
metafísica e, particularmente, a uma interpretação vulgar e equivocada da
filosofia de Platão, que, propondo um realismo das ideias, chamou de real ao
mundo inteligível ou das ideias, cuja existência acreditava ser independente do
pensamento e do conhecimento. Em Platão, há uma subversão do modo comum como
entendemos o mundo: o mundo dado à experiência sensível é um mundo das
aparências (dos objetos, seres que vemos, tocamos); o mundo real e verdadeiro é
o mundo das Formas ou Ideias perfeitas. Tradicionalmente, a metafísica é
definida como a ciência das causas e princípios primeiros. É nela que se situa
a grande questão com que a filosofia ficou marcada no imaginário popular, qual
seja, a questão do ser. A metafísica encerra, portanto, a ontologia
(estudo do ser), em cujo interior se pode situar uma doutrina do Ser Divino ou
do Absoluto.
Surpreendentemente ou não, é possível encontrar, em obras de
introdução à filosofia, o reconhecimento pelo autor da inutilidade da
filosofia. Um caso ilustrativo disso está no trabalho de Roberto Rossi,
intitulado de Introdução à
filosofia – história e sistema (2004),
em que o autor, embora reconheça a inutilidade da filosofia, vê nela uma
vantagem:
“A própria
inutilidade da filosofia é sua força, porque é ela que a torna livre. Se eu
devesse pensar em função de alguma vantagem, de uma urgência, de um interesse,
deveria dar só aquela resposta e somente aquela. Na verdade, a liberdade não
existe na natureza. Pelo contrário, para ela é inútil e nociva” (p. 15)
Implícita aqui está a ideia de que a
filosofia, enquanto prática racional pela qual o homem exercita sua liberdade e
seu pensamento, a fim de compreender a si mesmo e o mundo em que vive, é uma
forma de expressão de sua transcendência em relação à natureza. Essa ideia
parece-me mais clara no passo a seguir:
“A liberdade é
a essência do homem, precisamente porque o homem é capaz também de pensar sem a
pressão das necessidades fisiológicas, sem se sujeitar apenas às obrigações
práticas e ao utilitarismo funcional. (...) Atacar a filosofia, declarando-a
inútil, significa, então, ter o mundo animal como padrão do homem, revelar
cerda saudade da vida instintiva, cega, egoísta, da qual os animais representam
a expressão máxima”. (pp. 15-16)
Quanto a mim, prefiro seguir a sugestão de
Luc Ferry (2010) e ver na filosofia um caminho pelo qual o homem, com o
concurso da razão, busca “salvar a si mesmo” – ou melhor, busca “salvar-se de
si mesmo”. A minha experiência pessoal com a filosofia tem me ensinado que ela
é, acima de tudo, uma atividade que se exerce por meio do pensamento reflexivo,
através da qual domesticamos nosso próprio desconforto em face do mundo. A isso
acrescente-se que é ela um caminho pelo qual aprendemos a lidar com a
presença percebida da morte no coração
da vida. Nesse tocante, escreverá Ferry (2010):
“(...) é
exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser que é
o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o
irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que
deve fazer de sua curta vida”.
(p. 23)
Ensina o filósofo francês que a filosofia
oferece ao homem meios de “salvar a própria pele”, não pelo caminho das
ilusões, mas pelo caminho que o conduzirá à verdade sobre sua condição. O
instrumento proposto pela filosofia é a razão. De posse dela, o homem pode
trilhar esse caminho com suas próprias forças, o que supõe audácia e firmeza (
Ferry, 2010, p. 30).
Se quiséssemos provar quão equivocada é a
crença na dissociabilidade entre filosofia e vida, sem que, para isso,
precisássemos nos demorar em longos rodeios sobre a História da Filosofia,
bastaria, referir, por exemplo, às contribuições dos estóicos, cuja sabedoria
se aproxima claramente do budismo tibetano, ao propor que a esperança está
entre as maiores adversidades da vida do homem. Ter esperança é colocar-se num
estado de tensão que não se saciará, num estado de falta.
Diga-se, de passagem, que encontramos nos
antigos gregos preciosas reflexões sobre como o passado e o futuro são
prejudiciais à vida humana, ou seja, sobre como eles podem representar para os
homens fonte de angústia, que os impede de viver a única forma real de vida: a
do instante presente.
Aceita por uma grande parte de filósofos,
quer sejam antigos, modernos ou contemporâneos, é a ideia de que o medo da
morte impede o homem de viver. O medo da morte torna sua vida um tormento. Veremos,
adiante, quando me ocupar, em linhas gerais, da filosofia de Martin Heidegger,
que a angústia provocada pela consciência da finitude é intrinsecamente
constitutiva do Dasein.
Para nós, modernos, que vivemos em
condições marcadas por um ritmo de vida bastante acelerado, contentar-se em
viver o instante presente pode parecer um modo de vida irrealizável, muito
porque estamos continuamente projetando nossas vivências para além do aqui e
agora, estamos traçando objetivos cuja realização se dará num futuro mais ou
menos distante. Veremos, com Heidegger, que essa impossibilidade de o homem
contentar-se em viver o instante presente se deve à própria constituição do Dasein, um ente que está sempre adiante
de si, que se projeta para o futuro, que se autotranscende.
Sem mais delongas, façamos uma breve
incursão na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976), conhecido, na tradição
da filosofia, como um dos maiores filósofos existencialistas da modernidade.
Pouco importa aqui que seu projeto se distanciasse consideravelmente do de seus
contemporâneos franceses. A sua principal obra Ser e o Tempo (1927) foi extremamente influente no movimento
existencialista.
Um breve resumo de sua biografia não pode
dispensar o fato de ter sido professor na Universidade de Freiburg (1916), onde
se tornou aluno de Husserl.
Com a publicação de sua mais influente
obra Ser e o Tempo (1927), Heidegger
se afasta da fenomenologia de seu mestre, Husserl, e dá início ao seu
empreendimento filosófico, cujo objetivo fundamental era investigar o sentido
mais profundo da existência humana. Não se limitou a isso, no entanto. De sua
agenda filosófica, fazia parte uma reflexão sobre as origens da metafísica e o
significado de seu impacto sobre o pensamento ocidental.
Decerto, a preocupação basilar de
Heidegger foi recolocar ou repensar a questão do ser que, na tradição do pensamento moderno, foi negligenciada em
função da problemática do conhecimento e da ciência. Julgou necessário, assim,
demolir a ontologia tradicional para trazer à cena do pensamento filosófico
moderno o sentido original do ser. Heidegger propõe, então, que a existência só
pode ser devidamente compreendida com base na análise do Dasein (traduzido como “ser-aí”).
Há diferentes formas de definir e pensar o Dasein,
conforme se verá. De um modo geral, no entanto, podemos pensá-lo como o ser
humano que se abre à compreensão do ser.
Também figurou em sua agenda filosófica a
reflexão sobre a questão da verdade, uma questão clássica na tradição
filosófica. Nesse tocante, sua preocupação foi relacioná-la aos conceitos de
ser e de conhecimento, com vistas a determinar sua gênese e seu sentido.
Dasein
Heidegger assumirá que o Dasein é um ente muito particular que
permitirá o acesso à compreensão do ser. O Dasein
é o único ente que coloca seu ser em questão, que está envolvido com o próprio
ser e para quem a existência constitui um problema. É na relação de compreensão
do Dasein sobre o mundo que se pode
ter algum acesso ao ser dos entes. É somente através do Dasein que as coisas se revelam.
Heidegger propõe que o Dasein não se define por uma essência ou
natureza previamente dada. Essa visão, decerto, motivou Sartre a escrever,
posteriormente, a fórmula “no homem a existência precede a essência”. O Dasein é entendido também como um ser-no-mundo, ou seja, um
ser-com-outros, um ser que assume uma situação no mundo. Todavia, ele não está
completamente imerso no mundo. O Dasein
é ser que se interpreta a si mesmo.
Como ser-no-mundo, somente o Dasein pode não ser si-mesmo, caso em
que se encontra na condição de inautenticidade. Dela trataremos adiante.
Heidegger atribui ao Dasein a
propriedade existencial. Com base
nela, o Dasein se difere dos demais
entes, que se definem por categorias, que são suas propriedades essenciais.
É preciso compreender melhor a ideia de ser-no-mundo. Com ela, Heidegger quer
dizer que o Dasein está
essencialmente no mundo e que dele é inseparável. O Dasein está imerso no dia-a-dia da vida no mundo. Ele se interessa
em explicar o que torna o mundo sua casa ou sua morada. O seu mundo é um mundo
em contexto ao qual ele associa projetos e significados. O Dasein é “o que não é”. Ele sempre se projeta para possibilidades
futuras.
Disposições
Sem perder de vista a importância do
conceito de Dasein no trabalho de
compreensão do sentido profundo do ser, levado a efeito por Heidegger,
considero, agora, o conceito de disposições.
São elas existenciais fundamentais do Dasein.
Não devem ser vistas como fraquezas ou desvios da racionalidade. Na verdade, as
disposições é que levam o Dasein (o
impulsionam) a se defrontar com um enigma para cuja compreensão a razão se lhe
demonstra insuficiente. Dentre as disposições mais importantes para a razão, a
compreensão e conhecimento, destacam-se as paixões e os desejos. Heidegger
entende que o ser se revela sem impedimento nas disposições. São disposições,
além das duas referidas, a culpa, a ansiedade, o tédio e o medo.
À-mão
Por à-mão,
Heidegger entende a forma como o Dasein
se relaciona com as coisas. Essa noção envolve a ideia de praticidade e
imediaticidade na forma como essa relação se dá. As coisas estão disponíveis
para o uso pelo Dasein.
Tanto o conceito de ser-no-mundo quanto o
conceito de à-mão apontam para o fato de que a filosofia de Heidegger visa a
compreender o homem em sua existência concreta, da qual se destaca a
importância de sua vida cotidiana. Heidegger ensinará que as coisas úteis estão
necessariamente em uma situação e estão sempre relacionadas com outras coisas
úteis numa rede de associações. A essa rede de associações em que as coisas
estão dispostas potencialmente para uso, Heidegger chama totalidade instrumental.
A filosofia deve, então, voltar-se para a
cotidianidade onde melhor nos situamos para apreender o ser, embora sempre de
modo limitado. O mundo, em Heidegger, é o mundo prático da vida diária. O
ser-no-mundo, portanto, envolve o manuseio das coisas e implica sua vinculação
à prática. Importa entender que, para Heidegger, pressuposta em nossa percepção
do mundo há sempre uma compreensão. Toda percepção envolve uma interpretação. O
mundo existe de modo prático para a percepção de modo já significado na
interpretação ou na suposição.
Estar-lançado
O estar-lançado é o aí contingente, é o
fato de estarmos entregues a uma situação (aí) e de reconhecermos essa situação
como contingente, de tal modo que essa situação poderia ter sido diferente do
que é. Pense-se no fato de que você, leitor, nasceu, sem qualquer razão, numa
família de classe média do Rio Grande do Sul, dela recebeu um nome e através
dela desenvolveu sua individualidade. Mas poderia ter se dado que você nascesse
entre aborígines da Nova Guiné. Portanto, o estar-lançado recobre o fato de que
estamos entregues à contingência sem qualquer razão. É o que entendo como “ser
arremessado à existência”. Está claro aqui que a filosofia de Heidegger nega a
possibilidade de existir um Ser Superior que determinaria nossa situação no
mundo.
Compreensão
Este conceito inclui a ideia de que o Dasein, uma vez lançado em direção ao
futuro, torna possível a sua liberdade. O Dasein
está sempre consciente de suas possibilidades. O conceito de compreensão
destaca as possibilidades do Dasein.
Lembro que o Dasein é aquele que
ainda não é, que se projeta para o futuro, não sem traçar objetivos e
motivar-se por ambições. Ele é sempre uma possibilidade de ser.
Heidegger, no entanto, ao contrário de
Sartre, entende que temos certas possibilidades definidas e que nossa
compreensão dessas possibilidades está sempre, ainda que parcialmente,
determinada pelo nosso passado e por nossas disposições. Para Sartre, há uma
ruptura entre o passado e o presente ou entre o presente e o futuro.
Subjacente ao conceito de compreensão está
também a convicção de Heidegger segundo a qual há sempre, na interpretação, uma
pressuposição de alguma coisa que é apresentada a nós. Por exemplo, percebendo
a natureza de um apito antecipamos, com base na experiência, a imagem de um
trem que se aproxima. A percepção da natureza do som do apito evoca a
pressuposição de que, no mundo em que vivemos, trens têm apito. Assim,
interpretamos o som percebido como “o som do apito de um trem”.
Ser-para-a-morte
O Dasein
se define também como um ser-para-a-morte. A perspectiva da morte lhe confere
unidade e completude. É preciso, no entanto, reconhecer, com Heidegger, que o Daisen, que é ser-no-mundo, vive, em sua
cotidianidade, como se fosse imortal. Isso torna sua existência uma existência
inautêntica.
Para Heidegger, compreender, de fato, a
inevitabilidade da nossa própria morte significa reconhecer uma verdade
ontológica constitutiva do Dasein.
Heidegger propõe que aceitemos nossa
própria morte, que aceitemos que somos “entes-para-a-morte”. É só por meio
dessa aceitação que o Dasein se torna
autêntico. Existir autenticamente é compreender o significado do próprio
existir.
O grande problema, aqui, segundo
Heidegger, consiste na tendência de o Dasein
evitar considerar a própria morte. Na verdade, nós agimos como se não fôssemos
morrer. Tendemos, ao contrário, a ver a morte como um fato que atinge “todo
mundo”. A morte é, assim, reconhecida como um acontecimento do qual ninguém
escapa, mas não como uma possibilidade real para mim mesmo no agora.
Heidegger propõe, então, que “antecipemos
a própria morte”, o que significa confrontar-se com a possibilidade da
realidade de nossa própria morte. Não pensar na morte como um acontecimento que
só implica os outros.
Heidegger reconhece que, em geral, o Dasein não leva em conta a perspectiva
de sua própria morte. Para ele, há dois modos inautênticos de compreender a
morte: o medo e indiferença. A indiferença se divide em dois tipos: um é a
indiferença em relação à morte tal como expressa por Epicuro. Para Epicuro,
quando estamos vivos, a morte não existe; e quando a morte existir, nós não
estaremos mais aqui. Ao óbvio dessa formulação se prende o ensinamento segundo
o qual não devemos nos afligir com a morte, já que não podemos experienciar a
sensação de estar morto. Quando a morte ceifar nossa vida, não estaremos mais aqui para nos preocupar com ela. O segundo tipo de indiferença consiste em pensar que a morte é um
acontecimento que envolverá a todos nós indiscriminadamente. Ou seja, a
indiferença aqui é justamente a atitude em face do fato de que a morte chega para
todos nós. Na perspectiva de Heidegger, a inautenticidade dessa atitude em face
da morte consiste em considerar a morte como um acontecimento que atinge o
outro. A pessoa, na inautenticidade, não considera a possibilidade de sua
própria morte.
O medo é outro modo de inautenticidade
diante da morte. No medo, o sujeito considera a morte objetivamente, mas não
subjetivamente, não como “a sua possibilidade mais própria”. Nesse caso, a
morte é encarada como uma realidade futura, projetada para o futuro. O Dasein, temendo a morte, mas tratando-a
como realidade distante e objetiva, foge à sua finitude. Ter consciência da
finitude é, para o Dasein, aceitar a
possibilidade de sua própria morte, da morte como uma realidade possível, a
qualquer momento, que é sua e apenas sua.
Em Existencialismo
(2013), Jack Reinolds sintetiza a relação do
Dasein com a morte, nos
seguintes termos:
“A morte é uma
estrutura existencial que subjetividade humana, e isso significa que a
possibilidade de morrer é parte da estrutura de nosso mundo à medida que o
experienciamos agora, não apenas como alho que é adiado para mais tarde. Em uma
linguagem mais filosófica, podemos dizer que a morte é uma possibilidade futura
que é constitutiva do “agora”, do presente”.
(p. 68)
Lembremos aqui o trecho da canção Por enquanto da Legião Urbana: “o pra
sempre sempre acaba”. Ou seja, o presente só é na medida em que o compreendo
como finito, como um espaço de tempo que não prosseguirá para sempre.
Que benefício, se pudermos dizer assim,
haveria em seguir a proposta de Heidegger de aceitação de nossa própria morte,
ou melhor, de encarar a perspectiva de nossa própria morte como possibilidade
do ‘agora’? Para Heidegger, é justamente esse reconhecimento da realidade de
nossa própria morte, como sempre possível, que nos permite estruturar nossa
vida significativamente. A consciência genuína de nossa finitude motiva-nos à
realização de nossos projetos. Reconhecemos que a morte não dá aviso prévio;
ela pode nos surpreender a cada um de nós a qualquer momento. Por isso,
mobilizamos nossas disposições para perseguir nossos objetivos, no sentido de
atingi-los. Insiste Heidegger também que a morte, sendo um impedimento em
potencial para a realização de nossos projetos, é uma condição necessária para
a nossa liberdade e individualidade. Conforme nota Reinolds (p. 69), “somente
se estivermos conscientes de nossa própria finitude seremos impelidos a agir
agora e com urgência”.
O modo como Heidegger desenvolve a questão
do ser-para-a-morte leva-nos a concluir, corretamente, que qualquer crença na
possibilidade de uma vida pós-morte é não só ignorar o significado da morte e
da existência, como também viver na inautenticidade. Donde se conclui que todos
os religiosos que creem numa vida pós-morte vivem inautenticamente.
Finalmente, quero considerar duas outras
noções implicadas no ser-para-a-morte, quais sejam, a de ansiedade (ou angústia) e a de decadência.
Antes de considerá-las, cumpre salientar
que, no momento em que reconheço que eu devo
morrer, eu passo a me compreender como um indivíduo. O reconhecimento da
possibilidade sempre aí de nossa
própria morte me individua. Não sou mais um na multidão. Essa individuação que
a consciência da possibilidade da própria morte engendra leva a que o
indivíduo reconheça que o outro não pode morrer em seu lugar. Não devemos
pensar o outro na condição de mártir (aquele que sacrifica a própria vida por
um amigo). Dizer que o outro não pode morrer em nosso lugar é dizer que o outro
não pode antecipar por mim a minha própria morte. Novamente, trago à cena as
palavras de Reinolds, que observa:
“(...)
Heidegger sugere que o si-mesmo-impessoal evita uma compreensão autêntica da
morte manipulando a indefinição do momento da morte – nós não sabemos quando ela acontecerá, e por isso não
entendemos completamente que vamos morrer – mas ele também argumenta que isso é
claramente um truque”.
(p.72)
A ansiedade pode ser tomada como sinônimo
de angústia. Empregarei esse último termo. Em termos gerais, a angústia, em
Heidegger, diz respeito ao sentimento de insegurança diante do nada. O
sentimento de que fomos lançados ao mundo, sem qualquer razão, para morrer é
fonte de angústia.
É preciso distinguir angústia do medo. Na
angústia, não há um objeto real a nos causar apreensão ou aflição; ao contrário,
o medo supõe a presença de alguma coisa que nos ameaça. Assim, a perspectiva da
morte causa em nós o sentimento de angústia. Somos um ser-no-mundo destinados a
morrer e nada podemos fazer contra isso. Mas Heidegger não está preocupado em
considerar a morte como dado empírico, mas a relação da vida com a perspectiva
da morte. Sua preocupação recai sobre a relação do Dasein como ser-no-mundo que reconhece a possibilidade se sua
própria morte. Assim, argumentará Heidegger, contra Epicuro e Sartre, que não
precisamos estar à beira da morte, não precisamos estar desenganados pelo
médico, sentenciados para morrer, para que nos demos conta de que “caminhamos
em direção à morte”. Somos ser-para-a-morte, o que significa reconhecer que a
possibilidade da morte é constitutiva da estrutura do Dasein.
O que significa a decadência, então,
segundo Heidegger? Consiste ela na convicção de que todos iremos morrer e,
nesse caso, não levamos em conta a possibilidade mesma de nossa própria morte.
Pensamo-nos como um na multidão.
A angústia nos faz sentir que o mundo não
é mais nossa casa. Mas uma compreensão
autêntica da morte leva-nos a entender que os papéis sociais que assumimos, que
nossa identidade que se vai construindo em nossas vivências sociais não são
senão ilusões. A própria identidade que construímos para nós revela-nos que
“não temos possibilidades necessárias”, ou seja, não é necessário que, em face
de um conjunto de possíveis, eu seja professor e um pai de família, por
exemplo. Disso se segue que o significado de nossa existência dependerá tão
somente de nós. Aqueles papéis ou aquelas identidades não definem quem
realmente somos. Daí a autotranscendência do Dasein, daí também a sua projeção
para possibilidades futuras. O Dasein é ser-no-mundo, mas não está enraizado no
mundo, não está completamente determinado
num contexto sócio-histórico dado.
Estou ciente de que a descrição que fiz de
uma parte da filosofia de Heidegger foi apressada. Espero, contudo, não ter
cometidos grandes falhas. Deixo ao leitor a tarefa de tirar as consequências da
perspectiva de Heidegger sobre condição humana para considerá-las como
contributos ao esforço para “salvar-se de si”. Deveríamos considerar a
filosofia de Heidegger como uma filosofia do desespero? Estaria ela imbuída de
uma visão pessimista sobre a existência humana? Ou será que ela pode constituir
um caminho para o bem viver?
Decerto, para tentar responder a essas
questões, deveríamos nos aprofundar na filosofia de Heidegger a fim de
compreendê-la mais satisfatoriamente. Não obstante, as perguntas aqui sugeridas
– que não esgotam todas as questões possíveis – servem-nos como estímulo para
estudos mais aturados e extensos.
Sempre ouvi boatos de q Heidegger era intragável: como pessoa e como filósofo.
ResponderExcluirMas fiquei curiosa. Por sinal, Ser e Tempo é um título q mto me chama atenção, nesta minha angústia existencialista e fragmentada...
Beijo, amigo