quarta-feira, 21 de setembro de 2011

"O AMOR não basta num instante, porque aspira à eternidade" (BAR)


                          Das aparências       
                A infidelidade de nossos dias

Em Amor líquido (2004), Z. Bauman – nosso já conhecido sociólogo polonês – faz a seguinte observação no tocante à liquidez dos vínculos humanos:

“O desvanecimento das habilidades de sociabilidade é reforçado e acelerado pela tendência, inspirada no estilo de vida consumista dominante, a tratar os outros seres humanos como objetos de consumo e a julgá-los, segundo o padrão desses objetos, pelo volume de prazer que provavelmente oferecem e em termos de seu “valor monetário”. Na melhor das hipóteses, os outros são avaliados como companheiros na atividade essencialmente solitária do consumo, parceiros nas alegrias do consumo, cujas presença e participação ativa podem intensificar esses prazeres. (...) A solidariedade humana é a primeira baixa causada pelo triunfo do mercado consumidor”.
(p. 96)

O autor, como se vê, aponta-nos um caminho fértil para pensar os relacionamentos líquidos da modernidade líquida. Esse caminho é o caminho da tendência desenfreada ao consumo que se ancora na insaciabilidade dos consumidores. O consumo só é possível se os consumidores permanecerem sempre insaciados.
O comportamento consumista, caracterizado pela aquisição crescente de produtos e posterior descarte (já que para se consumir mais e mais é necessário que os produtos sejam cada vez mais descartáveis), se reflete, ou melhor, se estende às esferas dos relacionamentos afetivos. É a ideologia do consumo que rege o comportamento de homens e mulheres quando se relacionam.
Bauman lembra-nos também a tendência comum às sociedades modernas a reificar o homem, ou seja, a torná-lo objeto para o prazer imediato e interdito. Homens e mulheres são transformados, por força das condições consumistas, em objetos de consumo (bocas, nádegas, ancas, genitálias são consumidas sem despender qualquer energia anímica).
Esse consumo desenfreado de corpos deseroritiza os indivíduos. Essa deserotização (negação de Eros) consiste na tendência generalizada à vivência de relações frágeis e esvaziadas de sentimentos. O esvaziamento de alma parece estar no cerne dos relacionamentos epidérmicos.
Guido Mantega traz-nos, com bastante lucidez, uma contribuição que deve ser aqui referida. Em seu artigo Sexo e poder nas sociedades autoritárias: a face erótica da dominação, que consta do livro Sexo e Poder, o autor observa:

“Hoje, comparada com a da era puritana da Rainha Vitória, a liberdade sexual aumentou consideravelmente. Porém essa liberdade sexual deve ser entendida entre aspas, pois ela não representa a livre manifestação do princípio de prazer, mas sim uma sexualidade contaminada pelo princípio do desempenho econômico. Trata-se da “dessublimação repressiva”, onde, aparentemente, existe uma liberação do Eros, mas, na verdade, permitem-se as ações, mas não o sentimento. O indivíduo deserotizado, incapacitado de manifestar os seus sentimentos mais profundos, passa a intensificar seus “exercícios” sexuais. Para usar uma imagem pretensamente lírica, é um corpo amando sem alma
(p. 20)
(grifos meus)

Corpos amando sem alma, corpos esvaziados de sentimento, corpos deserotizados, incapazes de plenitude de ser – tudo isso representa a forma de uma sexualidade que é regida pelo “princípio do desempenho”. O princípio do desempenho torna a relação sexual uma relação entre um sujeito e um objeto, e não mais entre dois sujeitos. A suposta liberdade torna-se um condicionamento, não-consciente, a esse princípio regente. Segundo Mantega,

“[o ato sexual] tende a restringir-se a um ato individual, com pouca carga afetiva, e não consegue alcançar a qualidade de uma relação. O prazer mecanizado da sociedade de consumo (com bonecas de plástico, vibradores a pilha e outros engenhos) ilustra bem a solidão e alienação da sexualidade contemporânea”.
(p. 20)
A ideologia consumista está centrada no indivíduo e, portanto, liga-se ao individualismo. É interessante notar, nas palavras de Mantega, acima, que o esvaziamento emocional ou sentimental dos indivíduos torna seus envolvimentos seriamente empobrecidos, porque despojados de profundidade de alma.
È preciso agora compreender em que contexto sócio-cultural vivem esses homens e mulheres que se sentem atraídos por prazeres fugazes determinados pelo imperativo do desempenho.
Em Iniciação à Filosofia – Razão, Fé e Verdade, Tomás Melendo se ocupa da predominância do fazer sobre o ser. À página 32 de seu trabalho, escreve:

“[esse indivíduo moderno] no carro tem medo de ficar muito sozinho e, apressando-se, liga o rádio ou põe a mão no celular. E quanto mais veemente o vazio, maior a quantidade de ocupações nas que se refugia para não ter tempo de pensar”.

Ora, trata-se, como se vê, de indivíduos cuja vida se volta incessantemente para o exterior, é atraída pelos ruídos do exterior. São indivíduos incapazes, na maioria das vezes, de experienciar a si mesmos, de se confrontar com o seu próprio vazio. São indivíduos que simplesmente se “di-vertem”, se alienam de si em busca de prazeres fugazes provindos do exterior. Ora, o ser não está fora; está no interior. E é lá que devemos buscá-lo.
Esses indivíduos temem o sofrimento, as decepções, as frustrações e o tédio. Vivem à superfície dos envolvimentos a fim de evitá-los. Necessitam de agitações, de êxtase irrestrito para sentirem-se “plenos”, “livres”. Cuidam insuportável o vazio que os constitui, que aliás constitui o próprio humano em nós. A solidão é a experiência do vazio e esses indivíduos querem afastá-la.
À página 37, Melento faz-nos compreender como esses homens da modernidade líquida vivem imersos num universo de imagens, de simulacros, de aparências e como essa imersão afeta seu comportamento:

“Com efeito, num mundo em que os homens se vêem bombardeados por todo tipo de estímulos sensoriais, a atenção passa freneticamente de um a outro, sem que se saiba deter para tentar penetrar no sentido de algum deles. Assim, artigos ilustres de periódicos e revistas, imagens televisivas, peças publicitárias, efígies de Internet, tudo é “percorrido” por um olhar tanto mais ávido quanto menos capaz, no fundo, de acolher verdadeiramente a realidade. Deste modo, nasce o “equívoco”: “parece que se compreendeu perfeitamente tudo, que se agarrou e expressou, mas na realidade não é assim. Durante anos se vive numa concreta situação, com certas pessoas, seguros de que esse é o nosso lugar, de que as nossas amizades efetivamente o são, estando satisfeitos pelo que arrancamos à existência. Depois, talvez por causa de um incidente banal, esta ilusão “de uma vida verdadeiramente vivida” se esvaece a golpe, revelando-se na sua autêntica face – precisamente um “equívoco” – uma mentira na qual as pessoas se refugiam para livrarem-se da verdade”.


Um exemplo dessa situação são os matrimônios, cada vez mais fugazes. Imersão no mutável, no universo das aparências, a busca por prazeres imediatos e irrestritos, esvaziada de densidade sentimental são subterfúgios de que se socorrem os indivíduos da modernidade líquida para fugir ao encontro consigo mesmo.
Tais indivíduos vivem numa sociedade caracterizada pelo que Gilles Lipovetsky chama “império do efêmero”, ou seja, numa era cuja temporalidade tem curta duração. Nesse contexto, o presente é celebrado, o aqui-agora é a referência em torno da qual se situam as experiências; todo o prazer deve ser buscado nesse curto espaço de tempo. Nesse império do efêmero, predomina a lógica da moda: valorização do novo e do individual. Não há constância, não há permanência; nada se conserva, tudo muda, tudo deve passar (ou como se costuma dizer “a fila anda”).
Vale notar que as críticas de Bauman ao consumismo são orientadas no sentido de trazer à tona sua desvinculação com qualquer finalidade que transcenda a si mesmo. Ou seja, o consumo encontra finalidade em si mesmo; consome-se para consumir.
É nesse contexto sócio-cultural, governado pelo império do efêmero, no qual corpos amam sem alma, que devemos pensar a carência de fidelidade nas relações entre homens e mulheres – relações motivadas pelo imperativo do desempenho e estimuladas pelo imperativo da libido. Predomina-se o instinto fálico (símbolo do poder masculino) que se estende ao comportamento feminino.
A tão proclamada liberação sexual tornou, nas últimas décadas, homens e mulheres meros objetos de consumo sexual. Uma “igualdade” supostamente alcançada a expensas de sua objetificação.
Em outras oportunidades, insisti em que amor pressupõe fidelidade, compromisso, doação. Amar alguém é ser fiel a esse alguém, porque é ser fiel ao amor que se nutre por esse alguém. Na modernidade líquida, em que parece predominar o amor líquido (se é que possamos chamá-lo de “amor”; talvez, melhor dizer “desejo líquido”), fidelidade é incompatível com o padrão que estipula prazo de validade para as relações. Fidelidade requer permanência e, nesse contexto líquido, permanência dá lugar ao efêmero. Fidelidade requer compromisso; mas, num contexto em que predomina o aqui-agora, assumir compromisso é assumir uma grande quantidade de riscos.
Nesse tocante, Bauman tem muito a nos ensinar, quando considera a analogia entre investimentos econômicos e relacionamentos, à página 29:

“(...) Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhe ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e nos maus momentos, na riqueza e na pobreza, “até que a morte nos separe?” Nunca olhar para os lados, onde (quem sabe?) prêmios maiores podem estar acenando?”.

Mais adiante, acrescenta:

“A primeira coisa que os bons acionistas (prestem atenção: os acionistas só detêm as ações, e é possível desfazer-se daquilo que se detém) fazem de manhã é abrir os jornais nas páginas sobre mercado de capitais para saber se é hora de manter suas ações ou desfazer-se delas. É assim também com outro tipo de ações, os relacionamentos. Só que nesse caso não existe um mercado em operação e ninguém fará por você o trabalho de ponderar as probabilidades e avaliar as chances (a menos que você contrate um especialista, da mesma forma que contrata um consultor financeiro ou um contador habilitado, embora no caso dos relacionamentos haja uma infinidade de programas de entrevistas e de “dramas da vida real” tentando ocupar esse espaço). (... ) “Estar num relacionamento” significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz – ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso”.

Ora, a fidelidade exige-nos um compromisso com a certeza, com a segurança. Nem o confronto com a certeza, nem a vulnerabilidade às incertezas, nem uma coisa nem outra interessará aos indivíduos ávidos de gozo egóico, de satisfação imediata, de prazeres efêmeros num incessante e renovado consumo desenfreado de corpos desejando sem alma.


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