quinta-feira, 3 de março de 2011

O outro escondido em nós

             

Freud e a condição humana
  Quem é o homem?



     Gostaria de principiar este texto, convidando o leitor a pensar no quanto, nós, seres humanos, somos esquisitos, estranhos e absurdos. Quantas pessoas conhecemos que se mostram insatisfeitas com tudo? Quantas pessoas conhecemos que vacilam entre ação e omissão? Quantas pessoas não conseguem explicar os seus sentimentos? Quantas pessoas não sabem o que desejam? Veja-se o que nos ensina o psiquiatra Fábio Herrmann. O trecho foi colhido de um artigo que se acha no livro da série primeiros passos, da companhia círculo do livro.

“(...) os homens divertem-se demais com os próprios pensamentos. São os únicos bichos, ao que se sabe, tão estúpidos que podem ficar imaginando e esquecer-se de comer; e, o que é pior, quando pequeninos e famintos, parece que conseguem ficar sonhando que estão a comer e contentar-se algum tempo com isso (...)”.
(pp. 53-54)


Quando preguei meus olhos nesse excerto, dei-me conta, com estúpida satisfação, de que eu me identifico com os homens que se distraem com seus próprios pensamentos e se esquecem de se alimentar. Se, por um lado, a razão e o intelecto conferem-nos uma posição especial na filogenia das espécies; por outro lado, parece que nos tornam seres bem estúpidos, na medida em que oferecem aos nossos impulsos primários substitutos de espécie vária, enganando-nos a nós mesmos por alguns instantes.
Reza a psicanálise que os homens se negam a reconhecerem-se como agentes responsáveis pela criação do mundo. Esse mundo domesticado, fabricado, transformado incessantemente, produto do desejo humano, gera irritabilidade nos próprios homens, justamente no momento em que se dão conta de que esse mundo corresponde bem ao seu desejo. Estranho? Freud explica.
A psicanálise ensina-nos que os homens não sabem bem o que desejam, que eles não desejam realmente o que querem. Nosso verdadeiro desejo, como se verá, permanece inconsciente, conquanto se manifeste sob outras formas à vida psíquica. Convém atentar para as palavras de Fábio Herrmann a seguir:

“(...) O mundo edificado por nossa cultura humanizou-se tanto, no sentido de ser tão fabricado, que sua sombra, o lado desconhecido do desejo humano, acabou por aparecer mais do que devia. O real começou a ficar um tanto duvidoso, e o homem a ver-se, a malgrado seu, cada vez mais absurdo para si mesmo.”

A psicanálise se ocupará com o estudo do inconsciente, visando a contribuir para que o homem, apercebendo-se do absurdo que o constitui essencialmente, reconcilie-se com esse absurdo e consigo mesmo. Uma leitura rápida em qualquer texto que trate de psicanálise nos levará à compreensão de que a consciência humana é determinada por impulsos inconscientes, ou seja, a vida consciente é determinada pela vida inconsciente. Agimos motivados por forças que não dominamos e das quais não estamos conscientes.
A essa altura, convém referir as três fontes de sofrimento humano, segundo Freud. Leia-se o seguinte nesse tocante, em O mal-estar na cultura (2010):

“O sofrimento ameaça três lados: a partir do próprio corpo, que, destinado à ruína e à dissolução, também não pode prescindir da dor e do medo como sinais de alarme; a partir do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças superiores, implacáveis e destrutivas, e, por fim, das relações com os outros seres humanos”
(pp. 63-64)

Em suma, o sofrimento humano advém de três fontes: da fragilidade do corpo; da força destrutiva e inexorável da natureza; e dos conflitos das relações sociais.


O animal humano

A razão, a linguagem e a cultura são instâncias do universo humano responsáveis por atribuir aos homens um lugar de destaque na cadeia evolutiva. Diferenciamo-nos, fundamentalmente, das demais espécies animais porque somos capazes de falar, de fazer cultura, de pensar, de ter consciência da morte, de ter, enfim, autoconsciência.
Um ser humano, ao nascer, já encontra um mundo fabricado que veio antes dele, cabendo a ele adaptar-se a esse mundo para poder sobreviver. A despeito da especialidade do ser humano, todo bebê, ao nascer, é frágil e vulnerável. Ele não consegue prover sozinho sua própria alimentação, não é capaz de se defender contra os perigos do mundo real; ao contrário, a maioria dos animais é auto-suficiente ao nascer. O animal é dotado de instintos, mas não o homem: este tem impulsos, reflexos, necessidades, reunidos sob o rótulo de pulsões. Para sobreviver, os seres humanos precisam passar por vários  processos de aprendizagem ao longo da vida. Os animais já estão condicionados geneticamente para procriar na época adequada, para buscar seu alimento, etc. O homem tem impulso para sobrevivência, é potencialmente capaz de sucção (reflexo necessário para ingerir o leite materno), necessita de alimentação, etc, mas para satisfazer às suas necessidades de sobrevivência terá de aprendê-lo.
Os homens aprendem a sobreviver em contato com as normas e regras de sua sociedade que, através de processos formativos educacionais, vai “lapidando” a criança, adaptando-a ao meio social complexo, já então construído antes de seu nascimento. Os homens, pela aprendizagem, que é um processo pelo qual se modifica o comportamento na experiência, ajustam-se à estrutura de sua sociedade. Convém dizer que o animal, como orangotangos e chipanzés, por exemplo, também podem aprender, mas são menos capazes para tanto, porque lhes falta a capacidade de raciocínio, própria da espécie humana. Também, aqui, há que reconhecer o papel da linguagem, no processo de adaptação da criança à sua sociedade. Nesse tocante, dá-nos a saber a psicóloga Maria Luiza Teles, no livro da mesma série:

“(...) se a criança usa uma palavra ligada ao sexo, em nossa cultura, ela é reprovada com uma cara fechada, uma bofetada, palavras de repressão ou mesmo um castigo. Ela aprende, então, três coisas: que a palavra não deve ser dita; que, se for dita, será considerada uma agressão; e, ainda, que o sentido implícito, sexo, não é algo bem aceito em sua sociedade”.
(p. 21)

Conquanto a humanidade se orgulhe de faculdades como a razão e o pensamento, dever-se-á notar que a psicanálise ensina que a consciência não pode tudo e que ela representa uma pequena parte da estrutura psíquica humana. Freud, aliás, ensinou que o “eu” não é “senhor de sua própria casa”. Foram três os golpes sofridos por nosso narcisismo:

1) Copérnico provou que a Terra não era o centro do universo, abalando a crença antropocêntrica, segundo a qual os homens são o centro do mundo;

2) Darwin mostrou que os homens descendem dos primatas e os reduziu, assim, apenas a um estágio da cadeia evolutiva das espécies, e não seres especiais criados por um Deus para dominar a natureza;

3) Freud mostra que o eu não é o senhor de sua vida psíquica e que a consciência é uma pequena parte do complexo mental.

No que toca ao abalo 3), é interessante notar que há pensamentos que não são de responsabilidade do ego (eu). Muitos pensamentos escapam ao seu controle.




O inconsciente

Do que se ocupa a psicanálise? Em geral, percebemos uma preocupação constante dos psicanalistas com os sonhos; de fato, os sonhos constituem um meio importante para se chegar à compreensão de outra realidade. Essa outra realidade, que é o objeto de estudo da psicanálise, chama-se inconsciente. O inconsciente só é acessível através de um método de interpretação psicanalítico desenvolvido por Freud. Esse método consiste em levar o paciente a fazer associações entre palavras ou lembranças. O psicanalista diz ao paciente uma palavra e pede que este diga a primeira palavra que lhe vem à mente. Em geral, o paciente reage às palavras, deixando de pronunciar a que lhe vem à mente, censurando-a por algum instante. Circunstâncias há em que o paciente fica muito agitado e fala muito, quando da associação das palavras. Por esse método, busca-se compreender a vida inconsciente do paciente.
Antes de discorrer sobre o inconsciente, cabe notar que as experiências e lembranças que podem ser trazidas à consciência em algum momento se dizem pré-conscientes. O inconsciente abriga, assim, os estados mentais que não podem ser recuperados, a saber, trazidos à consciência em circunstâncias normais.
O que é o inconsciente? É uma hipótese teórica e não uma coisa localizada no fundo de nossa cabeça. É um sistema lógico que, em tese, opera em nossa mente. Esse sistema explicaria os motivos que nos impelem a agir e reagir de tal ou qual modo. O inconsciente constitui-se, assim, de forças que impulsionam a vida mental. Essas forças ou pulsões dizem respeito a necessidades básicas do organismo humano, tais como fome, sexo, curiosidade, etc. O inconsciente apresenta uma lógica diferente: nele cifra-se o que, pela interpretação psicanalítica, busca-se decifrar. Essa interpretação visa a explicar o processo que deu origem a uma ideia ou ação.
Um conceito importante para a compreensão do inconsciente é a repressão. Experiências ou pensamentos que se mostram incompatíveis com os padrões sociais tendem a ser reprimidos, ou seja, afastados da consciência. O eu foge a eles. Trata-se de um mecanismo de defesa mediante o qual uma pessoa busca evitar conflitos interiores.
As pulsões do inconsciente estão, assim, reprimidas, visto que a sua manifestação, em geral, são contrárias às normas de boa educação e da civilização. Por exemplo, um desejo forte de pintar a sala com fezes, comum entre as crianças, se realizado, causaria espanto e punição social. Assim, tal desejo precisa ser disfarçado (sublimado) e censurado, para que não chegue à consciência.
No tocante aos sonhos, Freud, ao tentar compreendê-los, assumiu o pressuposto de que eles fazem sentido, embora esse sentido nos esteja velado. O procedimento adotado pelo pai da psicanálise era o seguinte: considerando várias partes de um sonho, levava o sonhador a associar ideias e lembranças. Assim, pôde concluir que os sonhos dizem respeito a acontecimentos do dia anterior e, ao mesmo tempo, estão relacionados a comportamentos de nossa primeira infância. Os sonhos são formas de linguagem simbólicas, materializados em imagens. Para Freud, todo sonho é uma tentativa de realização do desejo. É somente pela interpretação das palavras, dos sonhos, das lembranças e gestos do paciente que se tem acesso à sua vida inconsciente.
Deve-se ficar claro que, ao contrário do que acredita o senso-comum, Freud, embora tenha dado especial destaque à sexualidade, conceito que foi por ele ampliado, na explicação dos fenômenos psíquicos, é errôneo dizer que ele procurou explicá-los, por uma espécie de reducionismo, pelo papel do sexo na vida dos homens.  A sexualidade, portanto, passou a recobrir toda forma de prazer que envolve o corpo. Ensinou que os bebês encontram prazer, primeiramente, nos estímulos orais (fase oral) e, posteriormente, nos estímulos anais (fase anal). Também coube a ele advogar que o menino sente desejo sexual pela mãe (complexo de Édipo), ao mesmo tempo em que teme a castração pelo pai.
O que Freud defendeu foi que as repressões encontram origem na primeira infância (até os cinco anos) e são, basicamente, de natureza sexual. Vou desenvolver esses pensamentos na seção seguinte.




O aparelho psíquico

A estrutura de nossa mente se organiza em três instâncias: o ego, o id e o superego. O ego é o “eu”, portanto, a consciência. É a sede de quase todas as funções mentais. É o ego o responsável pelo contato com a realidade exterior. É ele também responsável pelos atos mentais, tais como perceber, pensar, julgar, etc. O ego é submetido aos desejos do id e à censura do superego. Sua realidade fundamental é a angústia, já que, não podendo manifestar os desejos do id, que o tornariam imoral e destrutivo, e não podendo submeter-se totalmente ao superego, sob pena de enlouquecer, precisa adequar-se à realidade do mundo (o ego se guia pelo princípio de realidade), para não ser aniquilado. O ego, portanto, busca objetos que satisfaça o id, sem transgredir as imposições do superego.
O que são o id e o superego? O id é um substrato inteiramente inconsciente, dele provêm as pulsões. É a instância original da psique; ao nascer, segundo Freud, o indivíduo é todo id, que é reorganizado à medida que esse indivíduo é submetido aos processos formativos de sua sociedade. O id é constituído de pulsões, que são os impulsos e desejos inconscientes. A mente humana se estrutura de tal modo que busca evitar o desprazer; nossa vida psíquica é regida pelo princípio de prazer: buscamos experimentar o prazer constantemente. O id é a energia que impulsiona a busca pelo prazer. As pulsões são de natureza sexual e elas são designadas pelo nome libido. O id é um reservatório da libido. A sexualidade não se restringe, assim, ao ato sexual, mas compreende todos os desejos que exigem satisfação e podem ser satisfeitos em qualquer parte de nosso corpo.
O superego, a seu turno, é uma espécie de juiz social; é a voz da censura e da repressão interiorizada na psique por força dos processos formativos impingidos pela sociedade. Particularmente, o superego representa a repressão sexual. O superego é consciência moral e se manifesta por meio de interdições e proibições que dada cultura impõe ao indivíduo. O superego forma-se entre os 6 e 7 anos e o início da puberdade. Embora aja como uma consciência moral, o superego é fundamentalmente inconsciente.
A psicanálise reza que muitas doenças psíquicas e distúrbios de comportamento estão em nossa sexualidade na tenra infância. Freud apontou três fases da sexualidade infantil. Essas fases estão relacionadas ao desenvolvimento do id entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos. A primeira fase é a fase oral. Nessa fase, o desejo e o prazer estão na boca e na ingestão de alimentos, e o seio materno é objeto de prazer (ou um de seus substitutos, a saber, a chupeta, a mamadeira ou o dedo). A segunda fase é a fase anal, na qual a criança sente prazer na excreção e na retenção das fezes. Nessa fase, os objetos de prazer e o desejo estão ligados ao órgão genital masculino, ou seja, ao falo. O menino e a menina só reconhecem o falo, nessa fase. A mãe torna-se o objeto de prazer do menino; e o pai, o da menina.
É na terceira fase que surge um fenômeno que determina toda a vida psíquica, a saber, o complexo de Édipo (suponho que o leitor conheça a tragédia de Édipo). O complexo de Édipo é o desejo incestuoso da criança pelo pai ou pela mãe. Esse desejo é que determinará a totalidade de sua vida psíquica, a saúde dela depende do modo como atravessamos essa fase que, em geral, é conflituoso. O complexo de Édipo acarreta o surgimento de outro complexo, denominado de complexo de castração. Esse complexo explica o temor da criança de perder o falo ( e cabe lembrar que as meninas imaginam que também o possuem) como punição pelo desejo incestuoso pelos progenitores.
Gostaria de volver, antes de encerrar, à angústia do ego. O ego cumpre um papel importante na vida psíquica, visto que a ele cabe recalcar os desejos demasiado fortes do id, satisfazendo ao imperativo do superego. O recalcamento é, pois, uma repressão forte imposta pelo ego ao id, evitando que as pulsões deste cheguem à consciência. No entanto, cabe ao ego também satisfazer o id, sob pena de viver um profundo e constante desprazer. Nossa vida consciente normal e saudável é resultado dessa dupla função do ego, desse equilíbrio produzido por ele, quando busca interditar os desejos arrebatadores do id e, ao mesmo tempo, limitar o poder do superego. O inconsciente oferece à consciência formas compensatórias de experimentar o prazer. O substituto oferecido pelo inconsciente satisfaz o id e o superego. Constituem substitutos a chupeta, o dedo, tintas, pintura, uma pessoa amada no lugar da mãe ou do pai, além dos sonhos, lapsos, atos falhos, etc. Através deles, realizam-se os desejos inconscientes de natureza sexual. O sonho, o ato falho e os lapsos de memória indicam que nossa existência não se dá ao acaso, nossa vida é determinada (daí o determinismo assumido por Freud, segundo o qual todo evento tem uma causa) pela natureza da libido. Em nossa vida psíquica, os objetos e as pessoas se revestem de sentido afetivo-sexual, são alvo de nossa adoração ou ódio, ou são objeto de nosso temor, sem que o saibamos.
Ao mencionar o papel dos substitutos para a satisfação do id, descurei de observar que o recurso pelo qual o inconsciente oferece alternativas à satisfação do id e do superego, dá-se o nome de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são satisfeitos, pois que transformados em outra coisa valorizada positivamente: obras de arte, ciência, religião, filosofia, ações éticas, etc.
As palavras de Marilena Chauí põem termo a este texto e nos lembram que a consciência é frágil, mas, porque dotada de vontade e razão, decide aceitar ou abalar as opiniões e ideias estabelecidas:

“A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante”.


Um comentário:

  1. Oi Bruno!
    Gostei do texto! Entender o homem, a existência em si é complicado. Explanastes bem o olhar da psicanálise sobre essa questão. São as escolhas que tomamos que vai definindo quem somos... Então, ter consciência da própria existência e de ser aquilo que se nasceu pra ser, sem sentido bíblico é claro, pode nos tornar menos absurdos e mais humanos.
    Bjusss

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