terça-feira, 1 de março de 2011

O ensino de língua portuguesa numa orientação funcionalista


O ensino de língua materna tem como objetivo precípuo (senão único) desenvolver a competência comunicativa dos falantes; no entanto, esse objetivo não pode ser atingido sem o reconhecimento de que todos os falantes nativos, independentemente de seu grau de escolaridade, de sua classe social, da origem cultural, de suas experiência de mundo, de sua idade, sexo, etnia, etc., sabem a sua língua materna, ou seja, possuem uma competência nessa língua. Por competência lingüística, portanto, entende-se o conhecimento intuitivo e implícito das regras gramaticais pelas quais os falantes nativos são capazes de produzir e interpretar sentenças em sua língua materna. Evidentemente, é uma definição simplista ademais, já que o conhecimento lingüístico é, decerto, muito mais complexo; todavia, mantenho-a com estar de acordo com a proposição chomskyana (1965). Fique claro que o conhecimento lingüístico do falante nativo consiste não só num conhecimento operacional (“capacidade de produção de sentenças gramaticais”), mas também num conhecimento avaliativo, por que julga certas construções como aceitáveis (isto é, produzidas de acordo com as regras da gramática1 de sua língua nativa) e rejeitam outras.

1. Veja-se no texto seguinte uma discussão sobre os conceitos de gramática.


A competência comunicativa consiste não só na capacidade de o falante codificar e decodificar as expressões lingüísticas, como também na capacidade de utilizar essas expressões de modo adequado aos fins comunicativos, nas mais diversas situações de interação. Destarte, não basta ao falante o conhecimento (implícito) das regras de sua língua para que ele seja bem-sucedido nas várias situações comunicativas, ele precisa utilizar suas produções lingüísticas de sorte, que possa participar do evento comunicativo. Em suma, dispensando-se pormenores, a competência comunicativa é a capacidade de o falante utilizar sua língua adequadamente para fins comunicativos. Com ser a língua um instrumento de comunicação fundamental na vida dos homens, cujo uso reflete, inclusive, a estratificação social, justo é que o ensino de língua portuguesa leve em conta o domínio da norma padrão como um dos meios possíveis para que o falante seja bem-sucedido interacionalmente e não o único meio  possível.
Intentando cumprir o objetivo do ensino de língua materna, proposto no limiar deste texto, será necessário ter em conta que não se poderá privar os aprendizes da apropriação de formas e usos lingüísticos prestigiosos sócio-culturalmente e, tampouco, não se poderá ensinar a língua dita padrão, especialmente em sua modalidade escrita, em detrimento de variedades não-padrão da língua falada ( e também escrita – muito embora, tradicionalmente, associe-se a idéia de língua padrão à de língua escrita, ignorando o fato de que há textos escritos vazados em variedades não-padrão, bem como há textos falados vazados em variedades padrão). O professor, concordante com a proposição aqui apresentada, esforçar-se-á por permitir aos alunos o acesso ao maior número de variedades lingüísticas possível, bem como a utilização adequada delas nas diversas situações de interação, atendendo às diversas demandas sócio-comunicativas.
Reitere-se que a escola tem por objetivo permitir o acesso dos aprendizes à norma padrão, mas, consoante propõem estudiosos como Sírio Possenti, Marcos Bagno, entre outros, não mais ensinará um padrão de língua ideal, fazendo abstração de outras variedades. Em primeiro lugar, o professor terá de reconhecer que muitas formas e usos prescritos pelas gramáticas normativas são arcaicos, portanto, não encontram repercussão no uso atual da língua. Em segundo lugar, não poderá valorizar a variedade padrão em detrimento das variedades não-padrão. Também não poderá ignorar o fato de os pontos de vista dos gramáticos serem, muita vez, conflitantes, isto é, as interpretações sobre as construções que devem ser recobertas pela norma padrão, muita vez, são divergentes.
A competência textual diz respeito à capacidade de o usuário da língua distinguir um texto coerente de um aglomerado de frase, bem como à capacidade de ele operar sobre o material lingüístico, na produção dos seus textos, realizando operações de paráfrase, resumo, ou reconhecendo a completude ou incompletude deles, ou ainda atribuindo-lhes um título adequado, a partir do qual os produz.
Há que reconhecer outrossim outras capacidades que intervêm no uso que os falantes nativos fazem de sua língua. Citem-se as seguintes:

a) a capacidade epistêmica: capacidade pela qual o usuário constrói, conserva e explora uma base de conhecimento estruturado, podendo derivar conhecimento das expressões lingüísticas, arquivar adequadamente esse conhecimento e lançar mão dele quando da interpretação de expressões lingüísticas ulteriores;
b) a capacidade lógica: valendo-se de princípios lógicos, ou seja, do raciocínio, o falante é capaz de extrair parcelas de conhecimentos de outras parcelas de conhecimento que mantém em sua memória;
c) a capacidade perceptual: o usuário se vale de suas percepções para derivar conhecimento; o conhecimento adquirido pela aplicação de sua capacidade perceptual é empregado para interpretar as expressões lingüísticas;
d) a capacidade social: diz respeito ao saber sócio-culturalmente transmitido graças ao qual o falante usa sua língua de acordo com as normas sócio-comunicativas vigentes. Ou seja, o falante sabe o que dizer e como dizer, numa determinada situação de interação.




  Tais capacidades se inter-relacionam, do que decorre a produção de um output, que pode ser importante para que as demais capacidades possam atuar.
Reconheça-se, contudo, que, a fim de levar a efeito o objetivo fundamental do ensino de língua portuguesa a falantes nativos – a saber, desenvolver a competência comunicativa desses falantes -, o professor deverá ter em conta uma outra concepção de língua, ou seja, não poderá entender apenas a língua como um sistema de signos desvinculado da realidade sócio-cultural e histórica dos seus falantes e também como “algo” estranho a eles (a saber, como uma realidade que desconhecem, que lhes é tão “misteriosa” e que deve ser “aprendida” mediante prática de exercitação contínua e exaustiva no ensino formal). O professor deve, portanto, ter em conta que a língua é um produto sócio-cultural, que varia ao longo da história de uma sociedade, que acompanha e se adapta às condições materiais e espirituais de vida dessa sociedade, que serve, entre outras funções, à função comunicativa, ou seja, permite aos membros de uma sociedade a comunicação entre si, etc. A rigor, numa perspectiva funcionalista, o professor deve entender a língua como lugar de interação, atividade social de negociação de significados, mediante a produção de textos, na qual se envolvem interactantes situados social e culturalmente. Ademais, o professor deve considerar a língua como uma propriedade cognitiva, como um conhecimento “inscrito” na mente humana e, mais propriamente, deve encarar a linguagem como uma faculdade da mente que permite aos seres humanos interpretar e estruturar a realidade do mundo, tornando-a ‘dado’ de consciência. Assim é que cada língua refletiria, a priori, uma dada visão de mundo, ou seja, deixaria entrever uma codificação (ou “recorte”) peculiar do mundo relativamente a um determinado grupo sócio-cultural. Assim também é correto dizer que o estudo das línguas pode contribuir para se entender melhor como se estrutura e funciona a mente humana. Disso se segue uma fascinante discussão sobre a inter-relação entre pensamento e linguagem, da qual não me ocuparei aqui, muito embora, como desperte bastante interesse nos estudiosos da linguagem (filósofos, gramáticos e lingüistas) há séculos, deve-se tê-la sempre em conta. Dessa questão tem-se ocupado especialmente a lingüística cognitiva.
Do exposto desse último parágrafo, depreende-se que deve estar consciente o professor de português da variação lingüística, a saber, deve ter em conta a pluralidade e diversidade inerente às línguas. Sabe-se, há muito, que o português constitui um “balaio de variedades lingüísticas”; não existe, pois, uma só língua portuguesa no Brasil. No Brasil, falam-se muitas variedades de língua portuguesa, e não há razões empíricas para a hierarquização dessas variedades, segundo parâmetros avaliativos de espécie alguma: certas formas e usos lingüísticos são considerados “ruins” ou “errados”, em virtude de uma avaliação de ordem social (e ideológica); a sociedade é que, servindo-se de parâmetros de ordem diversa (e não-lingüística!), classificam certas expressões lingüísticas como “certas” ou “cultas” e outras como “erradas”, “ruins” ou “incultas”. É consabido que, especialmente na realidade sócio-cultural brasileira, há uma relação intrínseca entre usos lingüísticos e inserção social: os usos lingüísticos desprestigiados e condenados relacionam-se às classes menos favorecidas economicamente; e os usos prestigiosos constituem marcas das classes mais prestigiosas, isto é, dominantes. Nesse tocante, diz-se, comumente, que a língua é um fator de estratificação social.
No tocante ao conceito de variação lingüística, convém ao professor familiarizar-se com as noções de registro e de dialeto.  Luiz Carlos Travaglia, em seu livro Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de gramática (2003), reserva um capítulo em que nos apresenta uma lição sobre variação lingüística. À página 42, refere os dois tipos de variedades lingüísticas, a saber, os dialetos e os registros. Os dialetos são variedades da língua que se definem nas dimensões territorial, geográfico (ou regional) e social (nesse caso, chamam-se socioletos) e se dão em função dos usuários da língua. Os registros, a seu turno, são variedades que ocorrem em função do uso que se faz da língua, de tal sorte que a variação depende do receptor, da mensagem e da situação. Assim é que, ao se referir ao falar nordestino em face ao falar sulista, por exemplo, consideram-se, pois, dois dialetos diferentes. Da mesma sorte, quando se observa o comportamento verbal de uma determinada classe social, em contraste com o comportamento verbal de outra classe social, leva-se em conta a existência de dois dialetos sociais ou socioletos. A variação aqui ocorre em função da esfera sócio-cultural ocupada pelos usuários da língua. A gíria, por exemplo, que se define como um uso da língua próprio de um grupo social – uso por que esse grupo social se identifica e por que se “protege” da influência de outros grupos – constitui um tipo de dialeto social. No âmbito social, a variação pode dar-se em função de parâmetros como idade, sexo e função dos usuários da língua.
No tocante aos registros, importa considerar três tipos de registros: grau de formalismo, modo e sintonia. O grau de formalismo diz respeito à adequação do emprego das expressões lingüísticas às diferentes situações de interação, para atender às necessidades sócio-comunicativas esperadas. Há, pois, no grau de formalismo, uma escala de formalidade que se estende do registro familiar ao registro oratório, na modalidade oral, e do registro pessoal ao hiperformal, na modalidade escrita. A variação de modo diz respeito à oposição entre língua falada e língua escrita, de tal sorte que esta é entendida como um sistema específico, diferente do sistema da língua falada. A sitonia é um tipo de registro que orienta o uso para o ajustamento ou reformulação dos textos produzidos pelo falante, em virtude de ter em conta conhecimentos prévios sobre o seu interlocutor. Esses conhecimentos relacionam-se ao status social do interlocutor, o qual determina a seleção e o emprego dos recursos lingüísticos (não se fala com um garçom da mesma forma como se fala com um médico, por exemplo); à tecnicidade dos conhecimentos do interlocutor acerca de um determinado assunto (o professor de língua falará sobre um determinado assunto de modo diferente, caso esteja em uma conferência perante especialistas ou esteja em presença dos pais de seus alunos, etc.); à cortesia, que diz respeito à dignidade do interlocutor ou ao formalismo exigido pela situação. Por exemplo, num enterro, espera-se que alguém diga algo como (1), mas não como (2) e (3):

(1) Meus sentimentos pelo falecimento de seu marido.
(2) Meus sentimentos por seu marido ter batido as botas.
(3) Então, quer dizer que o velho abotoou o paletó de madeira?

Finalmente, cumpre mencionar a variação na dimensão da norma, que se refere ao uso lingüístico em consonância com um padrão de linguagem de prestígio. Nesse tocante, ao nos comunicarmos, tendemos a apreciar de modo positivo ou negativo as produções lingüísticas de nosso interlocutor. Consoante ensina Travaglia (2003:57), “usamos uma determinada variedade lingüística porque a julgamos apropriada para falar com aquele(s) ouvinte(s) em particular”. Essa variedade pode ser social, geográfica ou um registro técnico, cortês, etc.
Claro está que a exposição apresentada aqui do conceito de variação lingüística e de suas variedades é bastante sucinta; conveniente, contudo, para efeito de nossa proposição. Cumpre dizer, por fim, que o conceito de dialeto difere do conceito de registro, na medida em que este se refere à suposta influência do interlocutor na seleção e no uso dos recursos lingüísticos adequados a satisfazer às necessidades sócio-comunicativas em uma determinada situação, e aquele se refere ao uso da língua pelo falante, numa esfera geográfica, regional ou social. Os termos registro e variedade são empregados, normalmente, para denotar o mesmo conceito; variedade, muita vez, vale por dialeto. Comumente lê-se “dialeto regional”, “dialeto social” em face de “variedade regional” ou “variedade social”, etc.
Em que pese à confluência terminológica, convém ter em conta o seguinte conceito de variedade, colhido da obra Sociolingüística: uma introdução crítica (2002: 177):
“ sistema de expressão lingüística que pode ser identificado pelo cruzamento de variáveis lingüísticas (fonéticas, morfológicas, sintáticas, etc.) e de variáveis sociais (idade, sexo, região de origem, grau de escolarização, etc.)”.

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