quarta-feira, 26 de janeiro de 2011


Ideias

Minha alma abriga muitas ideias; eu as tenho em penca. Algumas são mais nobres; outras, mais grosseiras; outras mais são bem encorpadas; algumas outras são esquálidas. Há ideias ufanas; outras, humildes; algumas edificantes; outras destrutivas. Há ideias dolorosas; outras que, embora prazerosas, devem ser dolorosamente esculpidas.
Ideias são o que movem este complexo orgânico-corpóreo em cujo cérebro eu resido. Este centro nervoso orgânico é, contudo, demasiado pequeno em face da imensidão de minha alma e de suas ideias. Sucede, entretanto, que não é o espírito que faz a História, tal como o cria Hegel. Marx não hesitou em demolir este idealismo. A História é feita por homens concretos em suas relações nas esferas de produção. Essas relações, contudo, são caracterizadas por opressão, injustiças, alienação e desigualdades.
A vida me é uma carga muito pesada, que tenho de arrastar até que a morte, querida amiga, me liberte com a sua leveza.
Ainda que as ideias, como sejam virtuais, não resistam à inexorabilidade da facticidade (no sentido de Sartre), tendo de se conformarem a ela, precisam obedecer ao princípio de realidade, tal como definido por Freud, qual seja, a necessidade de encontrar alternativas que satisfaçam aos apelos transgressores do id, satisfazendo as exigências do superego.
No entanto, não levo muito a sério toda essa parafernália conceitual do psiquismo freudiano. Não sei que haja uma sombra de concretude. É apenas hipótese. Não há certeza. As certezas são inúteis na vida, não valem sequer o pãozinho de cada manhã. A única certeza inabalável a que os homens têm direito é a certeza de sua finitude. A morte levará o corpo à deterioração em pouco tempo, menos tempo do que ele levou para alcançar a forma adulta e plenamente desenvolvida. Isso não significa que seja longa a vida; ao contrário, sua fragilidade é surpreendente: pode findar no curto lapso que separa o deslocar de um pé da calçada à rua. Nossa alma não é capaz de apreender a vida em toda a sua extensão; nossa memória se funda no esquecimento; e a vida nos escapa a cada instante; cada novo dia é menos um dia de vida. O nascimento marca o começo de nosso esgotamento. Nossa vitalidade vai se esvaindo gota a gota; mas isto se dá quando nossa vida transcorre sem muitas tempestades e contratempos, pois que não é rara a possibilidade de que ela seja tragada num átimo.
Invejo as pessoas que estampam na face uma alegria gratuita, muito embora relute contra as paixões da alma e preze as virtudes. Não se precipite em julgar, caríssimo leitor, ser eu insatisfeito, tampouco ser-me aprazível cultuar o sofrimento e o tédio. Não condeno a alegria; persigo-a diariamente. Sucede que não me basta sua aparência; ela precisa ser consubstanciada, ter entranhas, ser transcendente. É que procuro continuamente me autotranscender. Para mim, o ser dos homens é autotranscendente. A autotranscendência define-se como se segue (Mondin, 2009: 74):
“[sua meta] é a de reencontrar a si mesmo por meio da aquisição de um ser mais verdadeiro, mais próprio e mais autêntico, realizando uma ação mais plena e mais completa das próprias possibilidades”.
Concluo, pois, que autotranscendo toda vez que escrevo, pois que, ao fazê-lo, releio-me, me re-intepreto, me decifro. Procuro, mediante a laboriosa prática da escrita, potencializar a latência de minhas ideias demasiado elevadas. É nesse instante em que minha alma alivia-se das incumbências pesadas da vida; liberta-se, ainda que por algumas horas, de suas garras opressivas.
Não me agrado das pessoas que não experienciam esse reencontro consigo mesmas, que vivem com os ouvidos voltados para a exterioridade, a fim de captar sua balbúrdia, ao invés de recolher-se ao silêncio de sua interioridade. Quão difícil é experienciar a densidade, a espessura nos relacionamentos de hoje! O que se percebe é a superficialidade das aparências, o culto à vulgaridade, a pasteurização da chanchada, agora sob a forma de programas televisivos que combinam a insignificância com o grotesco e os servem num mesmo prato ao telespectador faminto por entretenimento alienante. Um dia desses, assistindo ao programa Pânico na TV, da Rede TV, - não por vontade, mas por pachorra, que me impedia de opor-me ao comando do controle remoto, já que quem o detinha era meu pai – fiquei realmente assombrado com a baixa qualidade daquele produto televisivo. Em cena, estavam os apresentadores do programa; e sentado, numa cadeira, um homem muito gordo. Cada um daqueles arriava um pouco as calças, de modo a deixar a bunda de fora e deitava de bruços sobre o regaço do gordo. Perguntar-me-ia o leitor: com que propósito? Esta talvez não fosse a pergunta adequada, pois a bizarrice não carece de finalidade. Ocorreu, então, que, uma vez debruçado sobre as coxas do gordo, que estava sentado, um apresentador do programa levava uma forte e única palmada nas nádegas, sob o escândalo de gargalhadas de seus colegas de trabalho. Era um espetáculo bizarro de vulgaridade; um declarado atentado contra o intelecto dos telespectadores – ou contra o pouco do que ainda lhes restava. Este exemplo ilustra bem a idiotização a que é submetida a massa de (tel)espectadores, segundo Adorno. É um exemplo claro da baixa qualidade dos produtos oferecidos aos indivíduos pela Indústria Cultural.
Minha alma é um caldeirão de ideias fervilhantes. Em mim, o pensar se identifica com o ser. Pensando o ser, vou-me repensando. A linguagem e os pensamentos (ou ideias) são o maior legado que um homem pode deixar à posteridade. Esta é uma lição que todos os pais deveriam ensinar a seus filhos. Tudo o mais é efêmero, degradável. A escrita foi, sem dúvida, a maior das invenções humanas, porquanto por ela pode-se conservar vivos os filhos do espírito.
Não concordo com qualquer forma de reducionismo, por isso rechaço a crença num fisicismo. Não somos apenas um complexo físico-orgânico. Sinto-me atraído pelo dualismo cartesiano. Creio em que para além do corpo há uma alma, uma substância imaterial. Há um substrato imaterial que é envolvido pela estrutura orgânico-corpórea. Afinal, temos consciência superior – uma capacidade sensível e intelectual, graças à qual podemos analisar, sintetizar, avaliar, compreender, representar os objetos por meio de ideias, de conceitos. São várias as formas de consciência, dentre as quais se destaca a consciência reflexiva. Com esta refletimos sobre os produtos de nosso pensamento e sobre nosso eu-mesmo. A esta devemos a possibilidade de conceber o self como diferente do corpo. Não sou um corpo, sou um espírito – um ser imaterial – vivendo num corpo. Essa concepção não poderia vir de outra realidade, senão da consciência humana, que é capaz de negar sua própria condição corpórea - a única, aliás, que lhe permite viver no mundo.
A vida no mundo requer corpos, matéria. A força da gravidade atrai os corpos para o chão; esta lei nos obriga a ter os pés no chão, por isso não ficamos a flutuar pelo céu. Minhas ideias, no entanto, flutuam, alçam vôos, para anunciar a liberdade de meu espírito, em que pese à austeridade da matéria.

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