quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O ser do AMOR


A essencialidade linguística
no homem: como chegar ao ser do Amor

Este texto constitui, de certo modo, uma continuação do texto A Expansão humana pela linguagem – novas reflexões. Ser ele uma continuação não significa que irá recuperar, necessariamente, todas as ideias presentes naquele texto. Procurarei conferir a este texto um caráter didático tanto quanto possível, sem deixar de lhe dar uma roupagem lírica, bem ao gosto de minha alma romântica.

Minhas considerações se apoiarão sobre as três seguintes premissas:


1) A linguagem é constitutiva da essência dos seres humanos;
2) A linguagem permite-lhes transcender à condição de corporeidade;
3) Como forma de transcendência, a linguagem permite que o ser do homem projete-se para fora de si.


Antes de prosseguir, preciso definir os conceitos de ser, transcendência e essência. Lembro que o idealismo é uma doutrina filosófica que visa a explicar a realidade tal como a experienciamos pelos sentidos (o mundo externo) na base do mundo interior, da subjetividade ou do espírito. Há várias formas de idealismo, entre os quais lembro o de Platão, melhor denominado de realismo das ideias, já que o “mundo das ideais” de Platão identificava-se à verdadeira realidade autônoma. Assim, a cadeira em que me sento não é o real, mas uma cópia do real, que, por sua vez, identifica-se à ideia de ‘cadeira’. E o de Berkeley – bispo anglicano e filósofo (1685-1753) – cuja doutrina idealista se denominava idealismo imaterialista, o qual consiste na crença em que o mundo material só existe no domínio das ideias, quer na mente de Deus, quer na do homem. Dizia que “Ser é ser percebido”.
Deixemos as miudezas filosóficas de lado, sem nos esquecer, contudo, de precisar o que é ser, essência e transcendência, conceitos fundamentais para o desenvolvimento de minha proposta. Não obstante a verborragia que o conceito de ser veio a desencadear ao longo da história da filosofia desde os antigos gregos – conceito que ora era considerado um problema meramente linguístico e lógico (ou mesmo tratado como um falso problema), ora alçado à dimensão da cosmologia e da metafísica. Vou compreendê-lo no sentido com que foi compreendido pelos filósofos pré-socráticos.
Estes primeiros filósofos se perguntaram sobre o “ser das coisas”, ou seja, a realidade última das coisas. Assim é que, com Aristóteles, poderíamos dizer que o ser dos homens é ser um animal racional. Uma das características envolvidas na questão do ser é o da sua ocultabilidade. O ser é, portanto, uma realidade oculta, sobre a qual está a aparência. O ser, ao contrário da aparência, sempre mutável, é imutável, continua sempre sendo o que é. Parmênides identificava o ser ao uno, ao imutável, à realidade que se chega quando se ultrapassa o mundo das aparências que, por definição, é múltiplo e mutável. O ser também envolve a crença em que se pode encontrar a verdade mediante a razão. O ser, enquanto expressão geral do pensamento, é um conceito que evoca outros, como estabilidade, imutabilidade e unidade. Parmênides nos diz “o ser é, o não-ser não é”.
Essência é outro conceito para o qual não há definições categóricas. Em torno dessa questão, giram inúmeras controvérsias, decerto desnecessárias para efeito de exposição. Terei de fazer uma escolha, inevitavelmente, com todas as consequências favoráveis ou não que toda escolha acarreta. A questão da essência das coisas prende-se à pergunta o que é x. Entendida na sua relação com a existência, a essência é um “setor” ou uma “parte” da coisa. Há quem considere a essência como algo independente, tão abstrato, que deve ser tomada em si mesma e se definindo como “é o que é”. Assumirei a posição de Leibniz, para quem a essência é algo que se inclina à existência. Em Platão, a essência situa-se na dimensão da realidade supra-sensível, ou no mundo inteligível onde há as formas ou essências.
O mundo sensível, ou seja, acessível à nossa experiência imediata e ordinária, através dos sentidos, relaciona-se às sombras do real; o mundo inteligível ou das ideias (no sentido com que Platão as entendia) relaciona-se à luz. É preciso, pois, superar o mundo sensível, o qual não é senão produto de sombras, simulacros do real, para chegar à realidade mesma, que é a das essências.
Finalmente, a transcendência evoca-nos a idéia de ordem superior, que ultrapassa, que supera. Transcender é um movimento para outra natureza. O homem se caracteriza pela autotranscendência, na medida em que “ultrapassa sistematicamente a si mesmo, tudo o que é, tudo o que adquiriu, tudo o que pensa, quer e realiza” (Mondin, 2008: 264).
Em geral, nos habituamos a entender a linguagem como um instrumento de comunicação – concepção reducionista da qual já tratei em outro lugar. O que o falante comum ignora é que essa espécie de faculdade é algo indissociável dele. Aprendemos nossa língua materna com uma facilidade e rapidez espantosa e extraordinária, comparável ao desenvolvimento da capacidade de andar. Aprendemos a falar com a mesma naturalidade com que aprendemos a andar, isto é, sem qualquer tipo de aprendizagem formal, esforço contínuo. A partir daí, nossa língua materna, tão arraigada em nossa mente passa a constituirmos enquanto seres humanos: homo loquens.. Nossas relações com o mundo e com os homens só são possíveis na base de nossa língua; ela perpassa todas as esferas de atividade de que participamos. Ao considerar a consciência como uma percepção que temos de nós mesmos e do que está em nosso redor, como consciência de algo (ter consciência é ter consciência de alguma coisa), devemos considerar o papel basilar que exerce as palavras, como signos que povoam a nossa consciência, a constituem como tal, porquanto permitem o contato dela com o mundo. Nossa consciência forma-se pelo contato das palavras que a povoam, portanto, que estão interiorizadas, com as palavras que circulam na realidade exterior a ela.
Entender essa relação entre linguagem e consciência como necessariamente constitutiva leva-nos a outra questão, a saber, a da relação entre linguagem e cognição. Não importa aqui discutir qual delas determina a outra, ou se há algum tipo de determinação. O fato é que existe uma intrínseca relação entre linguagem e cognição e creio não incorrer em erro ao dizer que a linguagem dá substância à cognição; ou ainda, a potencializa.
O signo linguístico é uma entidade que se compõe da união entre uma sequência sonora /kaza/ (casa) e o significado (registrado no dicionário). Sua importância sui generis reside em que, por definição, todo signo é signo de alguma coisa; um signo está no lugar de alguma coisa. Logo, para que falemos sobre “casa”, não precisamos estar diante de uma “casa” para saber o que significa ou que é uma casa. Imagine se quiséssemos falar sobre baleia e tivéssemos que trazer à audiência este animal, para que o público soubesse o que ele é. E pode-se ir mais além: quão impraticável seria ter de falar sobre todas as baleias. Isso pode parecer óbvio, mas disso o falante comum sequer tem consciência. O mundo chega a nós, “decomposto”, através dos signos de nossa língua; podemos, inclusive, através da linguagem, com o auxílio da imaginação, construir universos ou “mundos” que não tem existência objetiva, muito embora existam psiquicamente ou no imaginário.
Considerarei a alma como a essência humana. Entendo alma tanto no sentido psicológico (psique) quanto no sentido místico, ou seja, um princípio imaterial que anima o corpo. É na alma que reside a razão, a sensibilidade, as emoções, o desejo, a vontade, as paixões, as virtudes. Considero a alma humana como seu fundamento porque não podemos reduzi-la ao seu correspondente material chamado cérebro, se quisermos explicar sua natureza peculiar. Ao produzir pensamentos, ao investir-se de linguagem, a alma permite ao homem libertar-se de uma relação imediata com o meio; com a linguagem, a alma concede ao homem a possibilidade de evadir-se, expandir-se e dar passeios longínquos através de seus pensamentos, mesmo que o corpo permaneça parado. Alma é a única realidade de cuja extinção não temos certeza. O corpo, certamente, morre, torna-se inanimado. A morte do corpo é um fato físico-biológico; mas a morte ou não da alma é um mistério.
Assumo a perspectiva metafísica, ou seja, elevo meu pensamento para o domínio supra-sensível para meditar sobre a realidade em si. Atingir a realidade em si, com o concurso da linguagem, é, para mim, o único meio de experienciar um Amor desinfetado das imagens, das aparências, nas quais, não raro, está envolvido. Decerto, se trata de uma perspectiva idealista, que nega completamente a contingência da existência, quer do mundo, quer dos seres que nele habitam. No entanto, creio ser um caminho liricamente mais seguro pelo qual se pode trazer a poesia e a filosofia para o domínio da vida imediata.
Numa sociedade, claramente, individualista e hedonista, os relacionamentos entre homens e mulheres flutuam na dimensão das aparências, e sucumbem à tendência da vida líquida para incessante mudança, oscilação, flutuação, inconstância. É a alma, sede da linguagem, que deve ser o caminho para que o Amor, seja, verdadeiramente, o sentimento com aspiração à comunhão, à unidade.
Isso, contudo, só é possível, se os indivíduos tomarem o pensamento, em cuja base reside a linguagem, como possibilidade de produzir um magnetismo entre dois seres, e não entre duas coisas.


DESALINHAMENTOS....

Fico sentado, à mesa, observando o movimento habitual das pessoas; algumas conversam enquanto almoçam; uns grupos vão, outros vêm. É a hora do almoço e, embora eu esteja diante da realidade imediata e cotidiana, que minha consciência não pode alienar, em minha alma bailam ideias encimadas. Ocorreu-me, pois, uma questão: Será possível existir uma alma que está predestinada à nossa? Será possível um Amor ser destinado a cada um de nós pelas mãos de Deus? Será que, aos que pacientam e desejam ardorosamente experienciar um Amor que escape aos modelos socialmente estabelecidos, Deus não concederia o privilégio de experienciar esta forma de Amor sublimado?
Sinto-me infantil, tolo. Como é possível à alma, embora encerrada no corpo, ter pretensões tão elevadas? Como é possível que a alma crie e sinta muito além do que é conveniente ao princípio da materialidade? Como a alma pode, a despeito da morte ser um fato inexorável, idear uma vida além-túmulo, independentemente de ela existir ou não? Os animais não são capazes de tal liberdade. Em mim, sinto que a alma tem saudade de um mundo essencial, de uma realidade da qual ela não queria ter saído. Um lugar onde se pode experienciar toda a abundância do Amor imaculado, desenvenenado de toda sorte de vícios que a alma, enquanto encarnada, carreia.
Felizmente, a linguagem nos permite sonhar... E quem não sonha no/com o Amor, vive acordado num eterno pesadelo, procurando saídas em espaços cujas portas estão fechadas; pois que as palavras estão cada vez mais ralas e vazias; às vezes, esqueléticas na boca daqueles que não alcançam à essência do Amor.

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