quarta-feira, 26 de janeiro de 2011


O lugar da ideologia

Em A Ideologia Alemã (2005: 128), deparo-me com o seguinte excerto:





“Os homens fazem sua história, quaisquer que sejam os rumos desta, na medida em que cada um busca seus fins próprios, com a consciência e a vontade do que fazem; e a história é, precisamente, o resultado dessas numerosas vontades projetadas em direções diferentes e de sua múltipla influência sobre o mundo exterior”.


Contrariamente à posição hegeliana, que entendia a História como a “História do Espírito”, Marx e Engels concebiam-na como práxis (ou seja, modo de agir no qual o agente, a ação e o resultado da ação estão interligados e são inseparáveis). Consoante ensina Marilena Chauí (2006: 23), a história é o real, e o real é:
“o movimento incessante pelo qual os homens, em condições que nem sempre foram escolhidas por eles, instauram um modo de sociabilidade e procuram fixá-lo em instituições determinadas (família, condições de trabalho, relações políticas, instituições religiosas, tipos de educação, formas de arte, transmissão de costumes, língua, etc.)”
Importa reter dois aspectos fundamentais na base dos quais minha discussão se desenvolverá: a) a identificação da História com o real e a concepção deste como movimento incessante; b) a ideia de que os homens são agentes da História e, portanto, da realidade, mas, ao mesmo tempo, seu produto. Aqui, há que perceber a contradição inerente à condição social dos homens: ser agentes e produtos da realidade que eles mesmos produzem.
Agora, é necessário retroceder o pensamento à Antiguidade Clássica, a fim de buscar entre os gregos a definição de logos. Começo, pois, salientando que o conceito de logos remete-nos à importância da linguagem na vida da polis da Grécia Antiga. Embora ladeado de interpretações variadas, de que dá testemunho Heráclito, é possível buscar na harmonia entre Razão e Linguagem (ou Discurso) sua síntese. O logos é, portanto, um discurso racional que encontrará entre os sofistas um poder persuasivo e enganador. O logos assenta no pressuposto básico comum aos primeiros filósofos, segundo o qual há correspondência entre a razão e a racionalidade do real (Marcondes, 2008). O homem, através do discurso racional, pode conhecer o real, porque este é racional.
Na filosofia de Parmênides, encontramos a identidade entre o ser e o pensar. O ser é único, imutável, contínuo. Parmênides anuncia a unidade do ser e do pensamento, representada na unidade do logos.
A tarefa de Sócrates, da qual Platão foi seguidor, foi reconciliar logos e realidade, ou seja, restituir a unidade que havia entre logos e realidade, mas que se desfizera no trabalho retórico com finalidade pecuniária dos Sofistas. Entre estes, Protágoras sintetiza bem a posição sofística, ao declarar: o homem é a medida de todas as coisas. Instaura-se, pois, a perspectiva relativista, contra a qual Platão se posicionaria.
O logos, conforme a crença da época, antes da cisão provocada pelos sofistas, representava a garantia da harmonia entre o pensamento, o discurso e as ações. O ideal virtuoso do homem grego expressava-se da seguinte forma:
“Devemos aprender a conhecer-nos a nós mesmos para não deixar que se introduza em nós esse germe mau que é a ignorância da ignorância: não saber, e crer que se sabe, é a raiz fundamental do desacordo consigo”.
(Rougue, 2007: 12)
Ignorância, para os gregos, era sinônimo de escravidão. Aquela caminhava junto do Mal, visto que a maldade devia-se à ignorância. Num estado inicial, o homem ignora que ignora; num segundo estado, sabe que ignora ou sabe não saber, situação de um filósofo (portanto, amigo do saber); num terceiro momento, jamais terminado, o homem busca a verdade pelo exercício do pensamento filosófico. É pela aporia que o homem toma consciência de sua ignorância. Ela traz a luz do saber-se ignorante à consciência.
A questão do logos deixa entrever a crença numa correspondência entre linguagem e realidade. Pelo logos se diz o ser (se atinge o imutável). Na medida em que, através do logos (discurso), é possível chegar ao ser, é preciso discutir o valor da verdade. Esta é descoberta quando se diz o ser, ou seja, se faz ver claramente o ‘uno’, ‘o todo inteiro’. Cabe, então, uma pergunta: o que é a realidade? Orientados pelo senso-comum, nos apressaríamos em dizer que a realidade é tudo que existe (as pessoas, as coisas, os fatos, etc.). É, portanto, o mundo tal como se nos apresenta aos sentidos. O problema surge quando nos perguntamos sobre a possibilidade de existir a realidade independentemente do pensamento ou da mente humana, vale dizer, não seria o real um conjunto de representações do pensamento? A realidade, para os homens, é produto de suas interpretações, já que estruturada simbolicamente.
As duas perspectivas se resumem no conflito entre um realismo ingênuo, ou seja, a concepção segundo a qual o mundo dos objetos nos é acessível mediante a percepção sensorial; e o realismo crítico, o qual não admite a existência de uma realidade objetiva independente do pensamento. Há, aqui, uma dependência entre a realidade objetiva e a realidade mental.
Uma vez que se assuma o realismo crítico, impõe-se explicar como se dá a relação entre o mundo exterior e a mente; em suma, como se constrói a realidade, pois, aqui, a realidade não existe independentemente da mente que a pense, a elabore, a construa.
Da consciência do homem comum, que se orienta no cotidiano pelo senso-comum, passa ao largo a suspeita de que a relação entre homem e realidade é, basicamente, de ordem simbólica, de sorte que o que julgamos ser realidade é, sem que desconfiemos, um sistema de significações. Falamos de realidade social, cultural, política, educacional; deveras, são muitas as realidades sobre as quais falamos, porquanto são muitos os sistemas de significações no interior dos quais nossas relações se estruturam.
Ao considerar a questão da construção do mobiliário do mundo, de uma perspectiva cognitivista, José Luiz Fiorin (2005: 72), não descuidando de suas implicações, caso em que dialogou com a tradição filosófica de Descartes a Kant, pondera:
“Se o fato de não podermos dizer o mundo em si é inevitável, isso não significa que o mundo conhecido seja simples produto de nossas atividades cognitivas. Portanto, não há motivo para alvoroço: o mundo extramental existe. Contudo (...), todos os objetos de nosso conhecimento são produzidos no discurso, embora não se achem confinados ao discurso e podem ser intersubjetivamente comunicados”.
Fiorin vai buscar no discurso o meio de explicar a relação entre a realidade extramental e a mente. Pelo uso da linguagem (discurso), os homens produzem versões públicas do mundo, ou seja, constroem a realidade intersubjetivamente nas interações situadas sócio-historicamente. Observa ainda o autor:
“A língua é, assim, uma fonte de possibilidade de trabalhar e retrabalhar as versões públicas do mundo. Uma visão praxeológica e interacionista da língua não analisa as formas per se, mas as vê emergindo como fontes de interações. Importam menos as representações como tal e mais as atividades descritivas dos locutores”.
(p. 71)
Não negando o papel das representações na construção da realidade, Fiorin alerta para a necessidade de entendê-las como processos cognitivos dinâmicos que são de natureza sociointeracional e discursiva, e não simplesmente subjetiva.
De acordo com essa perspectiva, a verdade passa a ser um critério de validação das versões públicas do mundo, negociadas pelos atores sociais em interação, num dado contexto sócio-histórico.
Quero deixar clara aqui a minha posição: não se pode, ingenuamente, defender a existência de uma realidade em si, independente da cognição humana. A realidade existe para os homens, na medida em que é estruturada nas categorias da linguagem e reconstruída por meio dos esquemas da percepção condicionados pela cultura. Para além de sua materialidade sensível, a realidade existe enquanto estruturas de significação construídas pelo entendimento, que, longe de ser algo que orbita as esferas sócio-culturais, é delas resultado. Não existe uma coisa chamada “pedra”, sem que antes lhe confiramos um investimento simbólico, tornando-a um ‘dado’ significativo para a nossa experiência e consciência. E é também claro que a realidade é reconstruída continuamente no/pelo discurso, atividade sócio-interacional realizada por atores sociais inseridos num dado contexto histórico e ideológico.
Doravante, tentarei responder à seguinte questão, que nos leva ao problema inicial que toca à contradição inerente à condição humana: como explicar que os homens, embora sejam agentes da História, não se reconheçam como tais? Como explicar que eles não se reconheçam como agentes construtores de sua própria sociedade, responsáveis pelas suas próprias formas sociais de existência? Como isso é possível? O que levam as pessoas a reafirmarem coisas do tipo “não tem jeito, o mundo é como é”, “não queira mudar o mundo”, “é assim porque é”, “é a vida, fazer o quê?”, etc.?
Esse obscurecimento da consciência das reais condições sociais em que os homens, organizados em classes, se acham e vivem, deve-se à impregnação do logos (discurso) pela ideologia – assunto do qual passarei a tratar daqui para frente.
Coube a Bakhtin situar a ideologia no domínio do discurso ou do signo. Conquanto seu ponto de partida, para a consideração do fenômeno ideológico, fosse a perspectiva marxista, segundo a qual a ideologia era entendida como “falsa consciência”, o filósofo russo rever tal concepção e propõe a distinção entre a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial. Esta é a ideologia relativamente dominante, a qual prescreve uma visão única do mundo. Aquela, por sua vez, tem seu nascedouro nas relações casuais e na relação de proximidade que estas mantêm com as condições de produção e reprodução da vida.
De um lado, há a ideologia do cotidiano, relativamente instável; de outro lado, a ideologia oficial, relativamente estável. Há entre ambos os domínios uma relação recíproca. A relação entre a infra-estrutura e a superestrutura se dá por meio do signo. Todo signo é signo ideológico. Todo signo recebe um ponto-de-vista, que representa um lugar valorativo a partir do qual a realidade é avaliada, classificada, interpretada pelos sujeitos sociais. As palavras são, portanto, tecida de inúmeros fios ideológicos.
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006), Bakhtin e Volochínov , no primeiro capítulo, no qual se ocupam da questão da ideologia e de sua materialização nos signos, insistem na necessidade de desvincular o estudo da ideologia da perspectiva psicológica, chegando a dizer:
o estudo das ideologias não depende em nada da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela”.
(p. 36)
(ênfase no original)
De acordo com os autores, a consciência é um fenômeno sócioideológico e, como tal, deve ser estudada em sua relação constitutiva com as palavras, pois ela é povoada por signos. A realidade da consciência, consoante os autores, é o signo. Refiro, abaixo, o trecho em que os autores nos ensinam sobre a importância da consideração da palavra no tratamento do fenômeno da consciência:
“Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência individual. Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre os indivíduos, uma palavra é, ao mesmo tempo, produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal. Isso determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na verdade, a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível, veiculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente esse tipo de material”.
(p. 37)
(ênfase no original)
Cabe apresentar a definição de ideologia, segundo a perspectiva do Círculo de Bakhtin. É em Voloshinov, no texto Que é a linguagem, que a encontramos de modo explícito:
“Por ideologia, entendemos todo o conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro humano e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas”.
(1998: 107)
Das considerações desenvolvidas na tentativa de patentear o lugar privilegiado da formação, consolidação e expressão da ideologia, a saber, o discurso, é possível depreender as seguintes conclusões:
a) o logos, como acreditavam os antigos gregos, não pode dizer o ser, visto que quem diz são sujeitos cujas consciências são produto socioideológico. Disso se segue que eles enunciam de um determinado lugar valorativo;
b) A ideologia é um sistema de representação/ construção de sociedade e de mundo alicerçado no discurso, ou seja, encontra origem nas interações entre os atores sociais e nelas se desenvolve, se estabiliza e se dissemina;
c) A consciência, não tendo origem natural ou transcendental, é produto socioideológico; é produzida e modelada nas trocas simbólicas realizadas por atores sociais num dado contexto sócio-histórico e ideológico.

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