sábado, 19 de janeiro de 2013

Você sempre estudou, mas não sabia?


                             
                             
                                A revolta do MAS



Se você é professor(a) de português, é possível que tenha ocupado grande parte de seu tempo em sala de aula ensinando seus alunos a reconhecer e classificar orações, como as orações coordenadas. É muito provável que lhes tenha ensinado, por exemplo, que a conjunção mas pertence à classe das adversativas, as quais estabelecem uma relação de oposição entre duas orações. O exemplo abaixo ilustra o comportamento sintático-semântico desta conjunção:

(1) Este vestido ficou lindo em você, mas é caro.

O aluno mais aplicado classificou a oração “mas é caro” como coordenada sindética adversativa. A essa altura, você já teria explicado a diferença entre os processos gramaticais de coordenação e subordinação; logo seu aluno já saberia por que aquela oração é chamada de coordenada.
Você, professor ou professora, sai de sala convencido(a) de que cumpriu o seu papel. Ensinou um conteúdo e uma grande parte da turma o/a entendeu. No entanto, fica-lhe uma dúvida sobre o significado do propósito em cujo cumprimento você se empenhou. Pergunta-se, afinal, para que serve memorizar e classificar unidades linguísticas, sem levar em conta os propósitos sociointeracionais a que servem. E pondera que usamos a língua a fim de atender a um amplo conjunto de necessidades sociocomunicativas. Nossas expressões linguísticas cumprem diversas funções sociais. Certamente, o “mas” naquela frase cumpre uma função que extrapola o nível frásico. Ele está envolvido em um mecanismo de produção sócio-histórica de sentido. É sobre o sentido que deve recair o foco da minha aula, conclui você.
Decerto, professor ou professora, ao limitar-se a ensinar os seus alunos a reconhecer e classificar orações, ou a identificar e classificar conjunções, seu trabalho estará muito distante do objetivo adequado ao ensino de língua materna a falantes nativos dessa língua, qual seja – não custa lembrar – desenvolver a competência comunicativa deles.
No entanto, se você tomar como pressuposta, em sua prática pedagógica, a ideia de que a língua é uma atividade social que serve, fundamentalmente, à argumentação, então o seu olhar sobre o ensino da língua como um todo e sobre o ensino das conjunções, particularmente, mudará. Note, professor ou professora, o que se perdia, quando da consideração do comportamento da conjunção “mas” no domínio limitadamente frásico.
Todo enunciado que produzimos encaminha outros enunciados num sentido determinado. Cada enunciado encaminha uma ou mais conclusões. Vejamos, então, como se comporta argumentativamente o operador (conjunção) “mas” no enunciado referido acima, e que transcrevo abaixo:

(1) Este vestido ficou lindo em você, mas é caro.

Imaginemos que ele seja proferido numa situação em que um dos interlocutores pretende comprar um vestido.
A primeira observação a fazer é que o “mas” não opõe os estados-de-coisas entre si descritos nas orações. Ou seja, não se opõe “Este vestido ficou lindo em você” a “é caro”. Claramente, não é isso que está sendo colocado em oposição. A oposição existe entre as duas conclusões, cada qual desencadeada por uma oração. Senão, vejamos:

1. Este vestido ficou lindo em você
Conclusão: você deve comprá-lo
Mas
2. É caro
Conclusão: você não deve comprá-lo.

Portanto, o que se opõe, pelo uso de mas, são as respectivas conclusões.
É justamente a parte do enunciado introduzido pelo mas que tem maior peso argumentativo, ou seja, é essa parte que encaminha a conclusão a que o locutor quer fazer inclinar-se o seu interlocutor. Em suma, o locutor pretende convencer o seu interlocutor a não comprar o vestido.
Para cumprir sua intenção, ele faz uso da conjunção (ou operador argumentativo) “mas”. É notável, como ilustrativo de nossa competência comunicativa enquanto usuários da língua, o fato de que, ao ouvir “mas é caro”, na sequência do discurso, o interlocutor poderia perguntar ao locutor se ele está sugerindo que não compre o vestido. Isso mostraria que o interlocutor compreende o efeito de sentido do uso do “mas”. Ele, por assim dizer, “capta” a conclusão a que pretende levá-lo seu locutor, sem que este precise dizer explicitamente “não compre o vestido”.
Finalmente, as conclusões constituem conteúdos inferidos, porque implícitos. E os interlocutores compartilham entre si esses conteúdos implícitos na forma de conhecimento. Ora, eles sabem, por exemplo, que o alto preço de um produto é, muitas vezes, motivo suficiente para desistir de comprá-lo. E eles compartilham esse conhecimento, do qual são socio-culturalmente portadores.




quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Saudosos versos que outrora as noites me embalavam





A minha tragédia

Tenho ódio à luz e raiva à claridade
Do sol, alegre, quente, na subida
Parece que a minh’alma é perseguida
Por um carrasco cheio de maldade

Ó minha vã, inútil mocidade
Traze-me embriagada, entontecida!...
Duns beijos que me deste noutra vida,
Trago em meus lábios roxos, a saudade!

Eu não gosto do sol, eu tenho medo
Que me leiam nos olhos o segredo
De não amar ninguém, de ser assim!

Gosto da Noite imensa, triste, preta
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!...

(Florbela Espanca – Sonetos)



Rua Solidão

A noite alfombra sombra que se aflora
e, passo a passo, junto a mim cultua
degredos e segredos de uma rua
que foi festiva e é silêncio agora

Sombra que alenta o tempo e rememora
o debruar do amor que me insinua
a rua que, em meus sonhos, continua
tendo aquela que nela já não mora.

Paramos, sombra e eu, em seu portão,
a sombra a me lembrar nosso passado
e eu para vê-la, e lhe pedir perdão.

Mas a casa é silêncio e negridão...
E sombra e eu, volvemos, lado a lado,
Dos degredos da rua solidão.

(Ronaldo Cunha Lima, As flores na janela de ninguém)



Tardes

Repousado. As tardes de um cinzento nu.
Entre as mãos, um livro de ânsia vã.
Penso não há tão lindos olhos de um azul
Que da alma afugenta a tristeza anciã.

Sou o que ama a tempestade.
Sou o sensível, que se esquece, e vaga...
Sou talvez uma simples tarde...
De outono: uma folha seca e mais nada.

Penso num motivo que me esqueceu,
Nas rosas ásperas de meu afã,
Nas noites, no amor que não é o meu.

Perdoa-me, Ò Adorada, o que não sou
Sensível! Soturno, jazido no divã
Aquele que não mente que nunca amou.

(BAR)

"A leitura após certa idade distrai excessivamente o espírito humano das suas reflexões criadoras. Todo o homem que lê de mais e usa o cérebro de menos adquire a preguiça de pensar." (Albert Einstein)


                                               


                                                     Fastio


Tempo. Um intervalo para descansar. Ou não, porque cá estou eu a escrever (pareço um português!). E escrever por quê? Para quê? Simplesmente, porque preciso comunicar e aqui neste quarto em que permaneço a maior parte do dia não há um interlocutor sequer. E para que leiam o que pretendo comunicar. Os livros substituíram os brinquedos. Eu me entretenho com eles. Compro-os em penca. Talvez, eu precise de um tratamento psiquiátrico ou psicológico. Tanto faz. Mas, pensando bem, as pessoas que apresentam compulsão por comprar acabam adquirindo produtos que não usam. Compram o supérfluo. Mas eu não, eu compro livros que leio. E a maior parte do tempo do meu cotidiano é preenchida pela leitura. Leitura variada. Linguística, sociologia, filosofia, teologia, psicologia, psicanálise... a quase tudo me atrevo. Nem sempre tudo compreendo bem. E muito continuo sem entender. E me debato com questões para as quais as respostas são muitas e nenhuma é definitiva. Assim, é o exercício de filosofar. Fazer as perguntas certas importa mais que procurar as repostas. Não que estas não importem também.
Muitas vezes, no entanto, recai sobre mim o enfado e o desalento. Pergunto-me pelo propósito de tanta leitura. Para que pretender saber tanto? Saber mais tem a desvantagem de impedir que as pessoas em geral nos acompanhem. E precisamos tomar cuidado, como bem me disseram duas amigas, para que não afugentemos as pessoas cuja percepção de mundo seja um pouco mais estreita ou domesticada pelo senso-comum. Nada contra o senso-comum, que, afinal, constitui o conjunto de crenças e saberes na base do qual formamos nossos pensamentos e atuamos no dia-a-dia. Mesmo os mais brilhantes intelectuais se valem do senso-comum em seu viver cotidiano. Não há como escapar a ele. Mas é preciso superá-lo, se quisermos alcançar uma compreensão mais totalizante, profunda e verdadeira do mundo. O senso-comum nos conserva no domínio superficial da realidade; é uma forma de compreensão do mundo assistemática. Nele, se acham opiniões, crenças e hábitos que se vão cristalizando por força de nossa socialização. Opiniões, ensinou Platão, se ligam ao domínio das aparências. Estão sujeitas ao erro, à ilusão. Dispensam o exame crítico e não se fundam em justificativas teóricas.
Ler nos permite ir além do senso-comum. Por isso, a religião também se me tornou insustentável. Mas eu não sou um ateu a quem basta vociferar meia dúzia de palavras infensas à fé. Sou antes um estudioso de religião e de teologia. Mas não um especialista. Esse título me garantem os estudos que venho empreendendo há, pelo menos 8 anos, na área de Linguística. Unir o estudo da linguagem com o estudo da filosofia trouxe, certamente, um engrandecimento intelectual, espiritual e humano.
Mas eu me preocupava há pouco com o desânimo que experimento quando me dou conta de que minha dedicação à leitura me parece um pouco despropositada. É que (pelo menos é assim comigo) quando aprendemos queremos comunicar o que aprendemos, queremos compartilhar e ensinar. Quase todo professor experimenta a frustração quando, diante de uma turma, se dá conta de que muitos não se interessam em aprender nada.
Meu desânimo, no entanto, tem também outra origem. Ele me enfraquece sempre que me dou conta de que certas opiniões e crenças são tão empedernidas, que desarraigá-las se torna tarefa de Sísifo. Um exemplo disso é a persistência de crenças tais como “brasileiro não sabe português”, “português é difícil”, “o povo fala tudo errado” e por aí vai. É claro que para combater o preconceito linguístico formam-se professores devidamente competentes nos estudos (socio)linguísticos. Mas o trabalho desses professores é árduo, pois que precisam lidar com uma tradição de ensino normativo de língua ainda bastante marcante e resistente em nossa cultura. Cada nova turma em que lecionará terá de refazer seu trabalho. Provavelmente, essa turma se constituirá de alunos que aprenderam com seus professores de português anteriores uma série de lições fundadas em crenças equivocadas sobre a língua. E eles reproduzirão essas crenças.
Certo. Eu aceitei o desafio quando decidi cursar Letras. E eu aceitei existir contrariamente à maré do conformismo quando abri aquele primeiro livro. É a vida!  

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Substantivo-adjetivo-advérbio


                             

                                  As classes de palavras
                                        Indo mais além

Preciso iniciar este texto destacando que o ensino de gramática na escola, normalmente, parecerá enfadonho e despropositado ao estudante muito em função da falta de percepção pelo professor de que a gramática não pode ser desvinculada do uso da língua. A inconveniência na separação entre gramática e uso da língua e as desvantagens pedagógicas dela decorrentes já foram exaustivamente discutidas pelos mais variados e renomados especialistas em linguística; não pretendo, pois, me ocupar dessa questão aqui. Intento tão-só deixar claro que o tratamento que dispensarei, aqui, às classes de palavras deve, nas aulas de português na escola, ser articulado a atividades que considerem a língua em funcionamento em textos. Disso não se segue a utilização de textos como pretexto para realização de análise sintática ou identificação da classe gramatical das palavras. Na verdade, na medida em que se estuda a gramática numa concepção de língua como lugar de interação, procura-se estudar o comportamento semântico-pragmático das unidades linguísticas. Vejamos um exemplo disso.
Costuma-se ensinar ao aluno que as formas felizmente, infelizmente, certamente e talvez são advérbios. As duas primeiras formas são consideradas – um pouco confusamente – advérbios de modo; a terceira, advérbio de afirmação; e a quarta, advérbio de dúvida. Estranhamente, a mesma tradição gramatical que considera “talvez” um advérbio de dúvida, para o que recorre à semântica da palavra, não classifica “certamente” como advérbio de certeza, o que seria mais coerente. O leitor logo verá que, à luz de uma abordagem do comportamento discursivo da forma “certamente”, a classificação semântica tradicional se demonstra inadequada. “Certamente”, de fato, expressa uma atitude de certeza. Consideremos as seguintes frases. Lembro, contudo, que o estudo deste e de outros tantos fatos linguísticos deve ser feito em textos empiricamente representativos e não em frases isoladas. Todo texto produz contexto. É sobre o contexto que as atividades em sala de aula devem se apoiar.

(1) Felizmente, ninguém saiu gravemente ferido.
(2) Infelizmente, eu não consegui chegar a tempo para assistir ao espetáculo.
(3) Talvez, ele esteja preso num engarrafamento.
(4) Certamente, eles brigaram.

Se o objetivo do ensino de português é o desenvolvimento da competência comunicativa dos aprendizes, improfícua será a atividade em que eles são solicitados a simplesmente identificar e classificar semanticamente os advérbios que figuram nas frases acima. Uma vez traçado o objetivo referido, o método empregado, como se vê, é inadequado. No máximo, o aluno poderá sair da escola (e isto nem sempre acontece) sabendo o que é um advérbio, como identificá-lo e classificá-lo.
O professor poderá, todavia, estando familiarizado com os estudos da Linguística textual e do funcionalismo produzido por especialistas como Maria Helena de Moura Neves, fomentar uma reflexão sobre a função discursiva dessas unidades. Note-se que o olhar sobre o fenômeno linguístico em tela muda. Não se levará mais em consideração apenas o comportamento sintático-semântico dessas formas, mas especialmente o comportamento discursivo, funcional delas. Vejamos como isso acontece:

1) Na perspectiva morfossintático-semântica no domínio frásico:

- O professor ensina ao aluno que os advérbios exprimem circunstâncias da ação verbal (aspecto semântico);
- O professor mostra ao aluno que muitos advérbios apresentam a terminação –mente, destacando que, em geral, os que admitem a forma “-mente” são os advérbios de modo (aspecto morfológico);
- O professor chama atenção para o fato de que os advérbios são invariáveis (aspecto morfológico);
- O professor pode também chamar a atenção para a relativa mobilidade dos advérbios, especialmente, os terminados em “-mente” (aspecto sintático);
- O professor destaca que os advérbios modificam adjetivos, verbos e outros advérbios (aspecto sintático-semântico).

2) na perspectiva discursiva, no domínio textual:

- Agora, o professor ensinará que os advérbios informam alguma coisa sobre os pontos de vista, as atitudes e sentimentos do falante;
- Ensinará ainda que alguns advérbios incidem semanticamente sobre todo o enunciado;
- Que eles cumprem um papel na orientação argumentativa do discurso;
- Que a escolha entre uma forma e outra, para efeito de uso, não é aleatória, mas determinada pela intenção comunicativa do falante;
- Ensinará ainda que essas escolhas produzem sentidos diversos;
- E ainda que o sucesso comunicativo depende de que as escolhas feitas sejam adequadas aos propósitos comunicativos do falante e à situação de comunicação.

Consideremos as frases de (1) a (4), doravante, a fim de que possamos entender de que modo podem ser contempladas as formas em destaque numa perspectiva discursiva.
Em (1), acha-se o advérbio “felizmente”. Suponhamos que a frase (1) tenha sido produzida por alguém que assistiu no noticiário a um acidente que envolveu dois carros. Ao usar “felizmente”, o enunciador deixa sua marca no próprio enunciado. Ele projeta uma atitude de satisfação ou contentamento sobre o fato comunicado. Quem o ouvisse dizer (1) certamente concordaria com ele. Se, no entanto, tivesse escolhido “infelizmente”, muito provavelmente, atrairia para si comentários de reprovação. Na literatura especializada, formas como “felizmente”, “infelizmente”, “ainda bem”, “que bom”, etc. são chamadas de indicadores atitudinais. Pedagogicamente, memorizar a nomenclatura não importa; o que importa, na verdade, é compreender a função discursiva dessas formas, ou seja, o que fazemos quando as usamos. A língua é forma de inter-ação, de ação social. Numa perspectiva funcionalista da linguagem, o professor deverá orientar suas aulas trabalhando questões que dizem respeito aos propósitos comunicativos que subjazem às nossas escolhas linguísticas. A pergunta “o que faz o usuário da língua ao escolher usar uma ou outra forma?” é que deve nortear as atividades no ensino de língua portuguesa.
Em (2), se topa a forma “infelizmente”. Seu uso é adequado, na medida em que, dessa vez, o usuário da língua expressa, com ela, sua insatisfação em relação ao fato de não ter conseguido cumprir com o combinado. Tal como “felizmente”, a forma “infelizmente” é um indicador atitudinal.
(3) e (4) podem ser tratados em conjunto, já que ambos apresentam comportamento linguístico semelhante. Trata-se de modalizadores. Modalizar um enunciado é marcar linguísticamente o grau de adesão do enunciador ao seu próprio enunciado. A adesão pode ser considerada em termos das modalidades, que remontam às especulações de Aristóteles, ‘possibilidade’ e ‘necessidade’, às quais se somam, por negação, as da ‘impossibilidade’ e ‘contingência’. Outras mais modalidades foram propostas ao longo do tempo, de tal modo que o conjunto pode incluir ainda as modalidades de ‘obrigação’ (deôntica, referente ao ‘dever’), ‘permissão’, ‘epistêmica’ (referente à crença/conhecimento), a de ‘desejo’, as de ‘avaliação/julgamento’. Por exemplo, quem diz “Eu acredito que ele se separou da mulher” expressa, pelo uso do verbo ‘acreditar’, ou melhor, pelo uso da construção modalizadora ‘eu acredito que’ possuir uma crença no valor de verdade da situação descrita. Ele possui uma crença, mas não um conhecimento, de fato. O grau de adesão ao valor de verdade de seu enunciado, ou seja, a forma como o enunciador se compromete com o que afirma é mais frouxa do que seria caso dissesse “Eu sei que ele se separou da mulher”.
O estudo desse capítulo da grande diversidade dos usos da língua pode ser bastante interessante, já que o uso adequado de tais expressões serve, entre outras coisas, para preservar nossa face positiva. Isto é, serve para garantir que nossa imagem social que desejamos seja aprovada continue sendo bem avaliada. Quem não disponha de evidências para afirmar “Eu sei que ele se separou da mulher” deve evitar o uso do verbo “saber”, já que ele implica o falante numa relação de compromisso com a verdade da situação comunicada. Se, por ventura, se descobrir que não houve separação, o enunciador poderá ser tachado de mentiroso ou tendencioso. Quem diz “eu sei que x se deu” põe sua face positiva (imagem de si socialmente construída que se deseja aprovada) à prova. Caso se verifique que realmente se deu o caso, o enunciador atrairá para si prestígio, uma boa avaliação como detentor de um saber, gozará de mais credibilidade entre seus amigos. Se se der o contrário, levantará suspeitas contra si.
Em (3), o enunciador, ao optar pelo uso de ‘talvez’, projeta sobre o seu enunciado uma atitude de dúvida, de incerteza em relação à verdade do acontecimento. Assim, ele não se compromete, ele não assume estar com a razão. Ao usar “talvez”, ele sinaliza ao seu interlocutor que, caso se venha a saber que a pessoa de quem fala se atrasou por outro motivo (dormiu demais e acordou tarde), não poderá ser avaliado como alguém que faltou com a verdade, como alguém que pretendia deter um saber. Na verdade, ele marca linguísticamente, com o uso de “talvez”, sua atitude de incerteza. Ele levanta uma hipótese, baseado, possivelmente, em seu conhecimento sobre as condições normais do trânsito naquele horário em sua cidade. Desse modo, usando “talvez”, ele busca preservar sua face positiva.
O uso dos modalizadores se demonstra, particularmente, importante quando escrevemos textos dissertativos-argumentativos. Pesquisadores, cientistas em universidades, bem como jornalistas em seus jornais, ao produzir seus textos (artigos científicos, dissertações, ensaios, teses, artigos de opinião) precisam saber usar adequadamente as formas modalizadoras. Assim, um cientista que desconhece as causas de um fenômeno deverá evitar ser categórico. Deve limitar-se a conjecturar, usando formas como “é provável que”, “possivelmente”, “parece que”, “acredito que”, etc. Dessa competência depende o grau de credibilidade de seu estudo e o modo como sua imagem de cientista será avaliada.

Vamos voltar às classes de palavras. Considerarei três delas aqui: o substantivo, o adjetivo e o advérbio. Deste último já tratei um pouco, mas gostaria de tecer algumas considerações sobre essa classe que não são, em geral, levadas em conta pelo professor em sala de aula.
Tradicionalmente, aprendemos que o substantivo é a classe de palavras que designam os seres e coisas em geral. Designar dados de nossas experiências de mundo é a função semântica do substantivo. O adjetivo, por sua vez, é a classe de palavras que qualificam, caracterizam os seres designados pelo substantivo. Às vezes, o professor diz que o adjetivo “modifica o substantivo”. Embora nem sempre esclareça o que quer dizer com isso, o que o professor quer dizer é que o adjetivo acrescenta um ingrediente semântico (significativo) ao significado do substantivo. Assim, em “menino estudioso”, temos o significado de ‘menino’ – ‘criança do sexo masculino’ – ao qual acrescentamos outro significado, expresso por ‘estudioso’ – ‘que é aplicado nos estudos’. Assim, “menino estudioso” significa “criança do sexo masculino que se aplica muito nos estudos”. O significado de “menino” se modifica, de certo modo, portanto. Vimos que o advérbio é a classe de palavra que designa circunstâncias da ação verbal. Essa definição, de base semântica, recobre os casos em que o advérbio modifica o verbo, mas não se aplica satisfatoriamente aos casos em que ele se prende a adjetivos e a outros advérbios. Melhor será dizer, portanto, que o advérbio é um modificador do verbo, do adjetivo e de certos advérbios. É razoável dizer que o advérbio se comporta à semelhança de um adjetivo, já que também modifica o significado das palavras a que se refere. Se digo “comi muito”, o advérbio “muito”, também chamado de advérbio quantitativo, comunica que comi uma grande quantidade de alimentos. Tradicionalmente, “muito” é entendido como advérbio de intensidade, visão esta adequada quando usado com adjetivos (cf. Ela é muito bonita).
Até aqui, definimos as três classes de palavras de um ponto de vista semântico, visto que consideramos aspectos significativos de sua natureza. Há, entretanto, dois outros critérios, pelos quais podemos considerar as classes de palavras, a saber, o morfológico e o sintático. Considerados em conjunto, podemos chamá-los de critérios morfossintáticos. Vou, contudo, mantê-los separados, a fim de que compreendamos sua natureza e vantagens (e desvantagens), para efeito de compreensão das classes de palavras que submetemos à reflexão.
Tomemos o substantivo. Do ponto de vista morfológico, sabemos que os substantivos são, em geral, passíveis de flexão de número e gênero. Por exemplo, “menino”, “menina”, “meninos”, “meninas”. Mas isso não nos ajuda muito, se quisermos distingui-los dos adjetivos, já que estes também podem flexionar-se em gênero e número (cf. áspero/ ásperos/ áspera/ ásperas). Notemos, contudo, que os substantivos se prestam muito facilmente à anexação de sufixos como “-inho”, “-zinho”, “-ão”. Vejam-se “menininho” e “meninão”. Logo se verá que nem todos os substantivos se prestam ao acréscimo de tais sufixos. Com alguns, o resultado é bastante estranho. Veja-se, por exemplo, “conteudão” ou “conteudinho”, referentes a “conteúdo”. Também esse critério pode não ser suficiente para definir de modo cabal o substantivo, dado que também alguns adjetivos admitem o uso de morfemas desse tipo. É o caso de “bonitinho” e “bonitão”, sem contar com a possibilidade de um advérbio como “cedo” também apresentar-se na forma “cedinho”.
Há, contudo, um sufixo, muito largamente usado, que é específico do adjetivo, já que ele é responsável por formar adjetivos a partir de bases substantivas. Trata-se do sufixo “-oso”. Citem-se as formas “gostoso” (de gosto), “saboroso” (de sabor), “bondoso” (de bondade), “amoroso” (de amor), etc. Assim, podemos definir os adjetivos como a classe de palavras cujos membros admitem o acréscimo do sufixo “–oso”. Uma característica importante do sufixo “-oso” é que ele se agrega tão-só a substantivos abstratos que designam estado ou qualidade. “-Oso” não se acresce a substantivos concretos, por exemplo. Não formamos de “menino” “meninoso”, nem de “casa” “casoso”. Pode parecer desnecessário alertar para este fato, já que faz parte da competência linguística do falante nativo não produzir tais formas ou estranhá-las, se, por ventura, de brincadeira, alguém as produzisse. Mas não é claro ao falante nativo o porquê dessas formações não serem gramaticalmente possíveis. É papel do linguista, com base em hipóteses teóricas que deverão ser corroboradas ou rejeitadas pela observação dos fatos, explicitar o conhecimento linguístico internalizado e não-reflexivo (diz-se intuitivo) que o falante nativo tem de sua língua materna.
Continuemos a considerar o adjetivo. Outro critério seguro com que podemos definir o adjetivo repousa na observação de que os adjetivos, em geral, admitem o acréscimo do sufixo “-mente”. Vejam-se, por exemplo, “formidavelmente”, “gostosamente”, “felizmente”, etc. Substantivos não admitem a combinação com “-mente”. Também os adjetivos são usados sistematicamente com os sufixos superlativos como “-íssimo”, nas variedades escritas muito formais (cf. belíssimo, agradabilíssimo). Em algumas variedades faladas coloquiais, encontramos o sufixo “-ésimo” (p. ex., “bonitésimo”, “lindésimo”, “gatésimo”)
Não podemos, no entanto, nos contentar em definir as classes de palavras com base em um critério apenas. Na verdade, tradicionalmente, os critérios semântico, morfológico e sintático concorrem para a definição de todas as classes de palavras. Sucede, contudo, que esses critérios são misturados e nem sempre claramente definidos. Doravante, vou considerar o critério sintático.
Sintaticamente, é muito difícil (para não dizer impossível) distinguir um substantivo de um adjetivo, visto que, comumente, eles aparecem juntos num mesmo sintagma. Casos há em que apenas a ordem em que aparecem é que permite distingui-los. Como, em português, ao contrário do que sucede no inglês, o adjetivo se pospõe ao substantivo (o que não impede que possa aparecer antes deste), é justamente o fato de se colocar depois do substantivo que permite a sua identificação. Veja-se os casos de “o velho negro” e “o negro velho”. Em “o velho negro”, é “negro” que funciona como adjetivo; já em “o negro velho”, é “velho” que se considera adjetivo. Ignoremos, por ora, o aspecto semântico. É claro que a ordem produz sentido diferente. Mas quero destacar o fato de que o adjetivo é sempre a forma disposta à direita, após o substantivo. E como sabemos que a unidade depois do “o” é um substantivo? É que o artigo se caracteriza por “substantivar” qualquer palavra à qual podemos antepô-lo. Por exemplo, em “O bem sempre vence o mal nos filmes”, “bem”, que, em outro ambiente sintático, se comporta como “advérbio de modo”, colocando-se depois de “o” torna-se um substantivo, podendo funcionar como “sujeito” da oração. Semanticamente, o artigo transpõe a função de designação a uma forma que, de outro modo, é carecida dela. Platão, por exemplo, ensinávamos sobre o Bem (com maiúscula), dando à palavra um conteúdo referencial, abstrato, decerto, mas Bem passava a designar, muitas vezes, identificando-se a Deus. Também “o mal” passa a designar as forças malignas ou aqueles que perpetram a maldade.
Podemos acrescentar à definição do substantivo um aspecto importante: o fato de ser acompanhado de artigo. Portanto, é substantivo toda palavra à qual podemos antepor um artigo ou palavra de igual valor (caso de certos pronomes).
Também o adjetivo pode ser definido sintaticamente, não considerando sua relação com o substantivo, com o qual guarda muitas semelhanças, mas com o advérbio. Adjetivos são as palavras que se deixam modificar por um advérbio como “tão”.. Por exemplo, “Ele é tão bonito”, “Ela é tão estudiosa”, “Nós somos tão competentes”, “Seus beijos são tão doces”.
Finalmente, no tocante ao advérbio, é preciso atentar para o fato de que ele se articula a verbo, adjetivo e a outro advérbio. A possibilidade de combinar-se com outro advérbio é suficiente para nos acautelar quando da consideração da classe da palavra que aparecer junto a “tão”. É que “tão” pode também modificar um advérbio. Veja-se, por exemplo, a frase “Hoje acordei tão cedo”, em que “tão” modifica “cedo”, que é advérbio.
Não precisamos, no entanto, desistir da compreensão do comportamento gramatical das classes de palavras. Uma lição básica, de que não podemos nos esquecer, é que as palavras não tem distribuição sintática aleatória, ou seja, elas não se colocam em qualquer lugar e não se relacionam com qualquer outra palavra. Por exemplo, “cedo” aparece junto de verbo e semanticamente se vincula ao verbo e não ao substantivo ou adjetivo. Uma frase como “O menino cedo que eu conheci acabou de sair” é inaceitável. No lugar de “cedo”, caberia uma forma como “esperto”, cujo uso é adequado àquela posição. Por outro lado, podemos usar “cedo” junto a um verbo, como em “O menino que eu conheci saiu cedo”. Em “Hoje acordei tão cedo”, “cedo” se prende ao verbo “acordar” (acordei cedo). Quando a distribuição sintática se nos demonstra pouco satisfatória, contamos com aspectos morfológicos. Por exemplo, em “Ana anda cansada”, embora “cansada” se disponha após o verbo “andar”, trata-se de um adjetivo que predica sobre o substantivo “Ana”. Nesse caso, devemos prestar atenção ao fato de a forma “cansada” apresentar-se na forma feminina, concordando com o substantivo feminino que ocupa a posição de sujeito. Eu poderia estender minhas explicações, mas isso extrapolaria os objetivos deste texto. 

domingo, 13 de janeiro de 2013

Era assim que eu a via, aproximando-se distante... e se ia...















A Passante

Passas em opulência desmedida
Não me olhas sequer por um instante
Em teus olhos, a ausência inquietante
Que outrora a plenitude em minha vida

Olhas displicentemente, altiva e muda
A vasta solidão de teus caminhos
E como tempestade sem chuva
Ignoras a quem te amou, te deu carinhos

Tácitas tempestades, o seio assombrado
De um fantasma de amoroso talante
Rugem. Em tu’alma, um mar entrevado

Se estende em trovões de fúlgida rajada
Passas tão fria, numa existência hesitante
Que te sinto tão morta como alma penada.

(BAR)

"Rútila lágrima saudosa e dorida/ Nas tuas páginas de Amor - Como encenavas!/ Oh! Quanta saudade arrasto na vida!/ Em minha alma pesa o Amor que declaravas! (BAR)







Eu enxergo numa gotícula de água toda a complexidade do oceano

Eu enxergo numa gotícula de água

Toda a complexidade do oceano
No cemitério, a diversidade fluida da vida
E no orvalho a densidade do dilúvio

Numa tempestade que varre sentimentos
Que no ventre dos Céus plasmam a existência
Eu enxergo a calmaria que acalenta as emoções
E na alma feminina, o abismo da temulência

Que traga tudo, que tudo alucina
Tudo que na vida é amor
E enxergo neste abismo
Um jaspe exalando dor
E em seu coração, nada fascina
Só ilusão, frialdade e dissabor.

(BAR)

"Na gramática, tudo está conectado".


                                   A hierarquia gramatical


A gramática de uma língua deve ser entendida como um sistema de regras e unidades. As regras de que a gramática se compõe são responsáveis pelos arranjos linguísticos, isto é, são elas que nos permitem combinar as unidades da língua em construções dotadas de significado. As construções linguísticas são de extensão e níveis variados. Toda construção é dotada de uma forma ou estrutura.
Esse sistema – a gramática – apresenta uma arquitetura interna, a qual se organiza em estratos. Chama-se estrato gramatical cada nível de organização da gramática. As unidades da gramática são, assim, dispostas em níveis ou estratos. Para cada nível, há uma unidade linguística. Podemos, então, representar a hierarquização gramatical das unidades linguísticas do seguinte modo:



               5o nível – frase
               4o nível – oração
               3o nível -  sintagma
               2o nível – vocábulo
               1o nível – morfema

 (leia-se de baixo pra cima)

Consideremos, pois, a seguinte frase:

(1) A moça que eu conheci ontem é amiga de meu pai.

Trata-se de uma frase bem formada, em português, como podemos ver. Podemos operar uma análise dela de tal sorte, que explicitemos as mínimas unidades dotadas de significado que estruturam os vocábulos nela presentes. Desse modo, teremos o seguinte resultado:

(1a) a / moç- / a / que/ eu / conhec- / -i/ ontem / é/ amig- / a/ de/ meu/ pai.

A forma moç- é a base ou o radical da palavra “moça”. O “-a” é a desinência de gênero feminino. Trata-se de unidades mínimas que encerram significado, ou seja, trata-se de morfemas. “Moç-“ inclui o significado-base (lexical), ao passo que ‘-a’ encerra o significado gramatical ‘gênero feminino’. É evidente que a parte “moç-“ não constitui uma unidade linguística autônoma. O seu significado resulta do todo, ou seja, da combinação dela com seus morfemas. Por isso, o que importa é entender que o radical é a unidade indivisível que sobra quando segmentamos as palavras em seus morfemas. Em “reagrupar”, temos os morfemas “re- (prefixo), “a-” (prefixo), “-a” (desinência verbal de 1ª conjugação) e “-r” (desinência de infinitivo). O que sobra é a forma “grup-” que é o radical, a base a que os demais elementos se agregam. A partir dessa unidade “grup-”, podemos ter “grupo”, “grupal”, “agrupar”, “agrupação”. Cada uma das formas compartilha a unidade “grup-”, seu radical.
Quando voltamos nosso olhar para a frase (1), verificamos que certos morfemas se identificaram com os vocábulos. Isso é completamente normal. Muitas vezes, há coincidência entre os níveis, como o  do morfema e o da palavra. Mas devemos ressaltar que estamos diante de uma diferença entre níveis. Assim, “ontem” é um vocábulo, pertencente à classe dos advérbios, num nível; mas um “morfema” (radical), em outro nível. A palavra “ontem” é indecomponível. Mas a palavra “anteontem”, admite a segmentação em “ante-” – prefixo – e “ontem”, radical. Assim, “anteontem” é uma palavra (ou vocábulo). Já “ante-” é um morfema; e “ontem” é um morfema, num nível; e uma palavra, noutro nível.
Vejamos, agora, como a frase (1) pode ser analisada em seus vocábulos:

(1b) A / moça / que / eu / conheci/ ontem/ é/ amiga / de/ meu/ pai.

O estudo da palavra ou o vocábulo (há autores que fazem uma distinção; outros, não) é um dos capítulos mais difíceis nos estudos linguísticos. Não é fácil determinar se uma unidade linguística é ou não uma palavra. A primeira dificuldade consiste em saber se “de” e “da” são duas palavras diferentes, ou se “da” é apenas uma variação morfológica da palavra “de”. Há autores que entenderão a palavra como uma unidade virtual, que se acha dicionarizada, e que se apresenta sem as marcas de variação morfológica. Assim “pato” é uma palavra. Ela figura no dicionário na forma singular e no masculino. Já as ocorrências “patos”, “pata”, “patas”, “patinhos”, etc. são vocábulos (formas atualizáveis no uso) da palavra “pato”.  A segunda dificuldade é se devemos considerar ocorrências como “merenda escolar” e “fim de semana” como uma única palavra ou como um conjunto formado de palavras. Uma das características da palavra é ser uma unidade autônoma de sentido. Assim, a palavra “guarda-chuva” forma uma totalidade autônoma de sentido. Embora seus componentes guardem um significado apreensível e possam funcionar em outros ambientes sintáticos, o significado de cada parte difere do significado do todo. Claro é que, no caso dos compostos, há graus de transparência do significado. O composto "navio-escola" tem um significado bastante transparente, no sentido de que pode ser deduzido do significado de suas partes. Se pensarmos, no entanto,  na palavra “criado-mudo”, cujo significado não pode ser deduzido do significado de cada uma das partes, saber o que significa "criado" e "mudo" não nos ajuda a saber o que significa "criado-mudo". Nesse caso, o significado do conjunto é opaco ou não-trasnparente. Não se trata, é claro, de um criado que é mudo, mas de um tipo de móvel que alguns de nós temos em casa.
Todavia, deixemos a problemática da definição e identificação das palavras. Vou me limitar a dizer que as palavras, na língua escrita, são identificadas, com certa facilidade, pelo reconhecimento dos espaços em branco que existem entre as sequências linguísticas grafadas. Isso não resolve o caso de “fim de semana” (deveríamos considerar haver aí três palavras? Ou uma só?). Mas, por ora, basta-nos saber que em (1a) temos onze palavras. A segmentação que propus parece corresponder à nossa intuição linguística enquanto falantes de português.
O próximo nível a ser explicitado é o dos sintagmas. O que são sintagmas? Você já deve ter percebido que as palavras se organizam em grupos, de tal modo que há entre elas uma coesão, cujo grau pode variar do mais aderente ao mais frouxo. O sintagma é o verdadeiro constituinte da oração. Sintagmas são as unidades imediatas em que se estrutura a oração. As palavras se organizam em grupos, marcados por coesão, e que constituem os sintagmas. Assim é que a vocábulo “o” se prende ao substantivo “menino” para constituir o sintagma “o menino”, em “o menino caiu”. O sintagma “o menino” se articula ao sintagma “caiu”. É possível que o sintagma se constitua de apenas um elemento, que é seu núcleo.
A identificação dos sintagmas depende de que apliquemos, pelo menos, um dois testes: o de deslocamento e o de comutação.
O teste de deslocamento consiste em movimentar as unidades linguísticas no interior da oração, segundo as possibilidades previstas pelo sistema. Se o que mudamos for toda a unidade, então toda a unidade será considerada um sintagma. Vejamos.

(2) O menino caiu da escada.
           P1
(2a) Caiu o menino da escada.
                          P2

 (2b) Caiu da escada o menino.
                                           P3  

Claro está que é o conjunto “o menino” que pode ser deslocado de posição, e não apenas “o” ou “menino”. Se tentássemos deslocar uma e outra palavra, o resultado seria agramatical:

(2c) * menino o caiu da escada.
(2d) * o caiu menino da escada.

O segundo teste é o da comutação. Assim, podemos comutar “o menino” com “ele”, de tal modo que o pronome passará a ocupar o mesmo ambiente sintático em que antes se encontrava o referido sintagma.

(2e) O menino caiu da escada.
             Ele        caiu   da escada.

A forma “ele” substitui todo o conjunto “o menino”, passando a funcionar como sintagma.
Voltando à nossa frase inicial, a sua segmentação em sintagmas nos dará o seguinte resultado:

(1c) A moça/ que eu conheci ontem/ é amiga de meu pai.

É preciso fazer algumas observações aqui. Em primeiro lugar, podemos ter sintagmas encaixados em outros sintagmas. Assim é que a unidade “é amiga de meu pai” inclui os sintagmas “amiga de meu pai”, que, por sua vez, inclui o sintagma “de meu pai”, que, por sua vez, inclui o sintagma “meu pai”. O esquema dessa hierarquização sintagmática pode ser representado assim:

                                        [é amiga de meu pai]  nível 1
                                         é  [amiga de meu pai] nível 2
                                          é amiga [de meu pai] nível 3
                                           é amiga de [meu pai] nível 4

Devo, ainda, observar o seguinte. Se aplicássemos o teste de deslocamento à unidade “a moça” que, a princípio, é uma unidade sintagmática, o resultado seria agramatical. Senão, vejamos:

(1d) *que eu conheci ontem a moça é amiga de meu pai.

Nesse caso, desloquei a unidade “a moça” para depois da forma “ontem”, no final da oração iniciada por “que” (cf. que conheci ontem a moça...). O teste se demonstrou inválido, porque pressupusemos uma independência entre “a moça” e a oração que se lhe segue. Na verdade, é todo o conjunto “a moça que eu conheci ontem” que é o sintagma. Trata-se de um sintagma complexo de natureza oracional. Tal sintagma é uma oração que sofreu o processo sintático que chamamos de transposição. Ou seja, ela foi transposta à classe de um sintagma, para assim assumir uma função sintática na frase. Veja-se que podemos comutar toda a unidade com “ela”:

(1e) Ela (= a moça que eu conheci ontem) é amiga de meu pai.

O sintagma “A moça que eu conheci ontem” funciona como sujeito (veja-se que a forma “é” concorda com toda a unidade, que está na terceira pessoa do singular). Esse sintagma inclui outro sintagma, que é a oração encetada por “que”. A unidade “que eu conheci ontem” funciona à guisa de um adjetivo, pois ela restringe a extensão de significado de “moça”. Não se trata de qualquer moça, mas de uma moça específica: a que eu conheci ontem. Poderíamos substituir “que eu conheci ontem” por “linda”, ou por “de vestido de bolinhas”:

(1f) A moça linda é amiga de meu pai.
       A moça de vestido de bolinhas é amiga de meu pai.

Como sejam unidades funcionalmente equivalentes, “linda”, “de vestido de bolinhas” e “que eu conheci ontem” podem figurar juntas na frase:

(1f) A moça linda de vestido de bolinhas que eu conheci ontem é amiga de meu pai.
Agora, o sintagma corresponde a toda a unidade “a moça linda de vestido de bolinhas que eu conheci ontem”.

Finalmente, oração e frase podem também coincidir, de um ponto de vista formal. Mas não coincidem funcionalmente. A frase é uma unidade de comunicação. Assim, em (1), a frase corresponde a toda a complexa estrutura de unidades linguísticas que se inicia com letra maiúscula e termina com um ponto, na escrita.

(1g) A moça que eu conheci ontem é amiga de meu pai. (frase)

No entanto, essa frase encerra duas orações. Identificamos a oração pelo número de verbos que ocorrem. Em (1g) ocorrem dois verbos, a saber, “conheci” e “é”. A marca para a segmentação das orações é o pronome relativo “que”. Ele introduz uma oração que “quebra” a sequência sintática que reúne o sujeito “a moça” ao verbo “é”. O relativo é um elemento anafórico, já que ele recupera o elemento anterior, projetando-o na oração que introduz. Vejamos:

(1g) A moça que [ eu conheci a moça ontem] é amiga de meu pai.

1ª oração – eu conheci a moça ontem.
2ª oração – a moça é amiga de meu pai.

Veja que “a moça” cumpre uma função sintática diferente em cada uma das orações que compõem a frase. Na oração introduzida pelo relativo “que”, “a moça” é o complemento do verbo “conhecer” (objeto direto); já na oração, tradicionalmente chamada de principal (2ª oração), é o sujeito.

Do exposto, tiramos a seguinte conclusão: as unidades linguísticas se organizam de modos variados e complexos. Essa organização é hierárquica. Assim, os morfemas entram na configuração das palavras, que, por sua vez, entram a fazer parte dos sintagmas. Estes são os constituintes imediatos nos quais se organiza a oração. E a oração pode identificar-se com a frase, ou articular-se a outra(s) oração(ões) para formar uma frase complexa (também chamado de período composto).



   



sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Refluxos verbais


                                 

                                   O mesmo nauseante


Tenho andado sem inspiração ultimamente. Eu queria ter escrito sobre a problemática em torno do conceito de verdade em filosofia, mas desisti do empreendimento, mesmo depois de ter colhido materiais suficientes para me ocupar do tema. Ando desmotivado para escrever; quiçá, porque tenha me perguntado sobre os propósitos por que escrevo. De que me vale este laborioso trabalho? Certa vez, justifiquei minha escrita de modo a fazer ver ao leitor que ela me permite reelaborar o que li e aprendi, a fim de que eu, realmente, chegue à compreensão. Escrevo com vistas a compreender o que aprendi lendo. Assim, não me importaria com o interesse do leitor blogueiro.
Nesta nova oportunidade, escreverei sobre o que me aborrece e sobre o que me deixa espavorido (não confundamos com esbaforido, que significa ‘ofegante’). Este texto não trará nenhuma contribuição cultural ao leitor. É um texto confessional. Não me pergunte por que isto tem alguma importância, mas preciso dizer que os clichês de amor que circulam no facebook são tediosos. Vejamos alguns:

“Só porque alguém não te ama como você quer, não significa que este alguém não te ame com tudo o que pode.”

“Porque no final de tudo, o que realmente importa é estar ao lado de quem a gente ama.”

“Eu poderia ser a pessoa mais agradável do mundo, mas optei por ser eu mesmo.”


Essas frases fazem eco à psicologia barata. As pessoas não nos amarão segundo a medida do amor que desejamos. O mundo não será do modo como desejamos. O mundo ignora nosso desejo. A segunda frase é mais uma mentira que circula por aí. Nem sempre o que realmente importa é viver ao lado de quem a gente ama. Se essa pessoa não nos amar, por que deveríamos querer viver ao lado dela? E se essa pessoa nos amar de modo muito suspeito, porque deveríamos continuar amando-a? Por que deveríamos ser a pessoa mais agradável do mundo? As pessoas são contraditórias. Os seres humanos são animais muito complexos. Há sempre quem nos julgará desagradáveis. Não agradamos a todos e nem devemos agradar a todos. E o “eu mesmo” é uma ficção, uma máscara que utilizamos para viver em sociedade. É claro que não podemos ser simpáticos o tempo todo (os simpáticos demais também levantam suspeitas e aborrecem as pessoas); nem podemos ser sempre antipáticos, sob pena de não conseguirmos conviver relativamente bem.
Pessoas que vivem a vomitar clichês são pessoas de superfície, e a mim elas não atraem. É possível que apareça um “anônimo” para comentar este texto e me julgar um “intelectulóide prepotente”. Vez por outra, aparece um desses supostos “críticos aborrecidos do intelectualismo” por aqui. Infelizmente (ou justamente), em nossa cultura, se enrudece essa tendência a repudiar a quem se eleva sobre o senso-comum. Doa a quem doer, mas é fato inegável que mais ampla formação cultural e aumento do grau de escolaridade são fatores por que demarcamos certas fronteiras sociais.
O sempre mais do mesmo também é detestável. Veja-se o novo Big Brother. As mesmas situações, as mesmas intrigas, as mesmas baixarias, as mesmas apelações sexuais vulgares, o mesmo desejo que têm os participantes de se tornar celebridades instantâneas, sob o aplauso de uma massa que não faz senão contribuir para o aumento da riqueza da já rica e mais poderosa emissora de televisão deste país. O tempo que uma pessoa consome assistindo a este programa idiotizante seria mais bem empregado para a leitura. Digo, a leitura que edifica, e não a que adestra.
Sinceramente, os meus dois maiores desafios enquanto professor são: formar leitores competentes e desenvolver nas pessoas um senso crítico sobre as valorações sociais dos usos linguísticos. Refiro-me à árdua tarefa de desarraigar o hábito que a maioria das pessoas tem de rotular de ‘certa’ e ‘errada’ a forma como os outros falam sua língua materna (o português, em nosso caso). Esse trabalho começa na escola, mas tem de começar desde as séries iniciais. Tento mostrar que valores como ‘certo’ e ‘errado’ não estão nas expressões linguísticas, mas são atribuídas a elas pelos seus usuários. E eles fazem isso, irrefletidamente, porque foram educados numa longa tradição gramatical normativista. Na verdade, os critérios por que se julgam certas formas e usos da língua como certas e outras como erradas não são claros para a maioria dos falantes nativos de português. Eles aprenderam na escola que o certo é dizer/ escrever “você está entre mim e ele” e que é “errado” dizer/ escrever “você está entre eu e ele”, sem que seu professor lhe explicasse a razão por que uma forma linguística está certa; e a outra, errada (e sem problematizar essa visão valorativa dicotômica!). No máximo, ele ouviu algo como “é errada porque não é assim que se diz na norma culta”. Mas quem estabeleceu essa norma culta? E quem não se expressa na norma culta é inculto? Os jogos de poder ficam mascarados e o falante nativo não se dá conta deles. E ele continuará acreditando que há formas linguísticas às quais as noções de certo e errado são imanentes.
Não vou adiante.

Deixarei o leitor com este trecho, filosoficamente perturbador (como não poderia deixar de sê-lo), cujo autor questiona a ideia famigerada da passagem do tempo. Será mesmo que o tempo se move?

“Apesar de realmente parecer para nós que o tempo se move para frente, não está claro como isso acontece, porque o tempo não é um objeto físico ou uma coisa. Mas, então, em que sentido, exatamente, ele se move? Na verdade, se estivesse realmente se movendo, poderíamos ter a capacidade de dizer a que velocidade. Você pode pensar que os relógios medem esse ritmo mas não é bem assim. (...)
“O tempo voa”, dizem, “quando estamos nos divertindo”. Sou a favor da diversão, mas divertir-se não pode fazer que o tempo passe mais rápido, se o tempo não está passando de jeito nenhum”.

(Filosofia em 60 segundos (2012), pp.19-20.)