terça-feira, 20 de novembro de 2012

"Tornei-me mais esclarecido quando compreendi que os homens se fizeram crentes de que foi Deus que os criou" (BAR)


                            



   Os ebionitas e os marcionitas
  Afinal, de que Deus se trata?





E se fosse dada a imensa maioria de pessoas que acredita em Deus e que habita este imenso território chamado Brasil a oportunidade de ter acesso a estudos sérios, desenvolvidos por renomados especialistas na história dos cristianismos primitivos e da confecção da Bíblia, que vantagens poderiam obter essa grande parcela da população? Este texto será escrito de modo que se aproxime ao máximo dos gêneros da conversação informal. Vou até baixar o nível de formalidade deste texto.

E me dirijo a leitores que, provavelmente, não lerão este texto. Me dirijo a pessoas que vivem a falar de Deus, pessoas que já de manhã cedo postam no facebook  algo como “vamos aproveitar esse dia lindo que Deus nos proporciona”. Como eu disse, essas pessoas não lerão este texto, coisa que eu lamento. Mas não lamento a tal ponto de me recusar a escrevê-lo, embora eu ache que eu deveria estar manifestando as ideias que aqui se encontrarão num livro publicável. Os leitores que me acompanham há tempo, talvez se admirem do que escreverei, aprendam alguma coisa, mas certamente não se surpreenderão.

Começarei do princípio e vou me esforçar para que esse princípio não se prolongue tanto. Duas idéias básicas ficaram estacionadas em meu espírito agora. Ei-las a seguir:

Ideia 1: é necessário que se faça ver um ateísmo esclarecido;

Ideia 2: é desejável que se faça ver uma fé esclarecida.


Vou agora explicar estas ideias. Um ateu esclarecido é aquele que não se limita a atacar cegamente um sistema de crenças ao qual se opõe, sem conhecer a história que o produziu. Em outras palavras, dizer que Deus é uma ilusão, que é um “amigo imaginário”, entre outras coisas, é percorrer um caminho “argumentativo” infrutífero. Um ateu esclarecido buscará antes saber como foi possível crer nesse Deus. Qual é a sua origem? Como se construiu a ideia de Deus? Em que contexto sócio-histórico Deus ganhou voz? Estas são algumas perguntas que deverá se fazer um ateu esclarecido e cujas respostas deverá buscar. Um ateu esclarecido deverá ter em mente que está lidando com um Deus – seja lá de que forma ele, ateu, o entenda – que é produto de uma herança milenar (na verdade, de mais de dois milênios; isso para ficarmos no Deus cristão, séc. I d.C).

Agora, no que diz respeito à possibilidade de uma fé esclarecida, aí estamos lindando com algumas complicações. É verdade que a Igreja católica vem vendendo a ideia, já faz algum tempo, da necessidade de conciliar fé e razão; nenhum religioso admite que se considere sua fé uma “fé cega”. O problema é que quando se propõe a conciliação entre fé e razão não entra aí a importância de esclarecer as massas religiosas (mais especificamente, cristãs) dos fatos históricos que se encontram na origem do cristianismo então vitorioso (a visão proto-ortodoxa que nos chegou, não sem sofrer uma série de cisões) e da história da fabricação da Bíblia. A consciência desses fatos talvez contribuísse para que os cristãos leigos (uma observação: leigos porque não iniciados nas ordens eclesiásticas) compreendessem as verdadeiras razões por que professam a fé que então herdaram, por que, hoje, acreditam no que dizem acreditar. Se tal conhecimento poderia levá-los a questionar sua fé, a namorar, ainda que por alguns instantes, o agnosticismo, ou mesmo, a entregar-se de corpo e alma aos braços do ateísmo, eu não saberia, por ora, dizer. E meu objetivo não é esse.

Terei de pedir ao leitor, que suponho acredite em Deus, que admita o que se segue:

1) Tudo que sabemos sobre Deus veio pelas mãos de muitos homens que viveram em uma época remota, em regiões muito distantes, em culturas que não são a nossa;

2) Sabemos de Deus, portanto, aquilo que esses muitos homens escreveram sobre Deus.;

3) Ninguém – insisto NINGUÉM – tem acesso direto a Deus (ninguém nunca o viu, nunca o tocou, nunca sentiu seu cheiro, nunca conversou com ele). Tudo que sabemos de Deus são tão-só representações de Deus.



Preciso esclarecer este ponto. Dizer que só temos acesso a Deus pelas representações que fizeram dele determinadas classes de homens, que viveram em uma cultura muito diferente da nossa, num período de tempo remoto e pelas representações que nós fazemos dele graças à herança judaico-cristã que, juntamente da herança greco-romana, veio a formar a cultura ocidental, não deveria surpreender os iniciados em estudos filosóficos. Muitos filósofos e cientistas concordam que não temos acesso direto ao mundo, que nossas relações, incluindo aí as formas de conhecê-lo, é mediada por representações desse mundo. Basicamente, construímos modelos mentais para interagir e compreender o mundo. Nossos discursos desempenham aí um papel fundamental. Neles e através deles, não só interagimos com o mundo, mas o compreendemos. Não quero que o leitor pense que a representação é uma forma de “espelhar” o mundo (essa é uma visão aristotélica, já não mais aceita). Nietzsche, aliás, a rejeitava. Representações envolvem conceitos, abstrações. O mundo representado não é o mundo tal como é, mas tal como nos parece ser. Melhor será falar em “reconstrução do mundo”. Também não assumo o extremo de defender que o mundo extralinguístico, tal como apreendemos pelos sentidos, não exista. Mas estou com Charaudeau (2010), ao nos ensinar que não há uma realidade fixa, que existe independentemente da linguagem.

É importante aceitar o postulado da construção discursiva do mundo, para melhor compreender os acontecimentos dos quais lhe falarei adiante. É claro que nessa construção entram fatores perceptuais-cognitivos, linguísticos, culturais e históricos. Todo discurso é uma realidade dotada de materialidade histórica. Sem complicar mais a cabeça do leitor, o fato é que, quando se considera o conceito de Deus, essa visão de que Deus é uma entidade de discurso, é construído discursivamente é a única capaz de explicar por que houve, na história dos cristianismos primitivos, tantas visões divergentes sobre a natureza e identidade de Deus (mas não só sobre ele, evidentemente; outros aspectos da doutrina que se oficializou também não foram aceitos unanimemente; houve muitas contendas, disputas, conflitos e até assassinatos em torno de qual seria o cristianismo verdadeiro e, é claro, a visão verdadeira de Deus).

Falta uma última coisa a ser considerada. Trata-se da Escrita da História da Bíblia. Em primeiro lugar, a Escrita da História na Bíblia conta muito mais com a criatividade do autor do que com seu compromisso em relatar os fatos tal como ocorreram no passado. É claro que podemos encontrar relatos do que realmente aconteceu, mas não era este o objetivo principal dos autores. Em segundo lugar, os escritores da história da antiga Israel escreviam para responder problemas de seu tempo. Tratava-se da escrita de uma historia nacional e coletiva, ao mesmo tempo literária e que tinha por objetivo recordar o passado e avaliar o significado de seus eventos. Ao recuperar literariamente o passado, os autores buscavam as causas das condições do presente.  Há outras coisas importantes para saber. Uma delas é que as profecias hebraicas não prediziam o futuro. O profeta hebraico não tinha a intenção de predizer o que iria acontecer futuramente, mas sim de fazer uma crítica social e religiosa de seu tempo. O leitor poderá conhecer mais sobre a história do Antigo Testamento, lendo o livro Como ler a Bíblia – História, profecia ou literatura (2007), de Steven L. Mckenzie.



Prossigamos...

Sem mais delongas, dou-lhe, leitor, um testemunho da imensa diversidade dos cristianismos primitivos. Na verdade, só tratarei de dois grandes grupos que compõem essa diversidade, mas é interessante que o leitor saiba que, nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs a respeito de Deus, de Cristo, do significado de sua morte, entre outras coisas. Por exemplo, havia cristãos que acalentavam a crença em que Deus criou o mundo; outros, porém, não pensavam assim. Para estes, o mundo tinha sido criado por uma divindade inferior ou subordinada e ignorante. Para esse segmento de cristãos, isso explicava por que o mundo é tão cheio de sofrimento, miséria e maldade. Mas não me estenderei sobre esse assunto. Remeto o leitor ao livro Evangelhos Perdidos (2008), de Bart D. Ehrman, livro em que me baseio na presente exposição.

Estamos situado no período que se estende do século II ao IV d.C, época em que certos cristãos, chamados ebionitas, entraram em cena. A origem do nome é desconhecida, embora muito provavelmente se prenda à palavra hebraica ebyon, que significa “pobre”.  Segundo Ehrman (p. 152), é possível que esses cristãos, seguindo fielmente o ensinamento de Cristo sobre o desapego aos bens materiais, tivessem renunciado às propriedades e se resignassem a viver na pobreza. Mas o que me importa é trazer à cena a doutrina ebionita. No que acreditavam os ebionitas?

Em primeiro lugar, os ebionitas, tal como o era Jesus, eram judeus. Eram judeus que seguiam os ensinamentos de Jesus. Os ebionitas não deixaram nada escrito, ou melhor, nada do que teriam escrito foi preservado. O que deles se sabe vem das mãos de seus opositores, os cristãos proto-ortodoxos, representados, por exemplo, na figura de heresiólogos (oponentes de heresias), tais como Orígenes de Alexandria (183-254), filósofo e escritor cristão. Ehrman (ib.id.) nos lembra ser possível que houvesse vários grupos ebonitas, cada qual com sua visão teológica.

Os ebionitas, então, acreditavam que Jesus era o Messias judeu, que fora enviado pelo Deus judeu ao mundo para salvar o povo judeu, cumprindo, assim, o que diziam as Escrituras hebraicas. A divergência com os proto-ortodoxos começa agora. Os ebonitas também defendiam que, para seguir a Cristo, a pessoa deveria, em primeiro lugar, seguir a lei judaica. Deveria tornar-se um judeu, o que significa observar o Sabá e a dieta kosher (por exemplo, deveriam evitar comer carne de porco e mariscos); além, é claro, de se submeter à circuncisão. A doutrina ebionista estava, assim, em claro desacordo com os ensinamentos de Paulo. A esta altura, é bom lembrar que eles não propunham nada além do que sabiam a respeito de Jesus e de seus discípulos: eles eram judeus e viveram segundo a tradição judaica.

Para sustentar suas perspectivas, os ebonitas recorriam à autoridade de Pedro e do próprio irmão de Jesus, chamado Tiago, líder da igreja de Jerusalém, depois da suposta ressurreição do Messias.

Outro aspecto interessante da visão ebionita dizia respeito à identidade de Jesus. Eles não aceitavam a ideia de que Cristo preexistia à encarnação em Jesus, não estava ele junto a Deus antes de vir a Terra. Também não aceitavam a crença, católica, de que Jesus teria nascido de uma mulher virgem. Essa é uma crença ensinada no catolicismo. Outros segmentos do cristianismo a rejeitaram (o absurdo tem lá seus limites!).

Os ebionitas, que não tiveram acesso à versão do Novo Testamento que chegou até nós (uma falsificação de outras tantas que a precederam), sustentavam que Jesus era filho de Deus não porque tinha uma natureza divina, mas por adoção. É isso mesmo: Deus adotou Jesus para seu filho. Jesus, para os ebonitas, era um homem, de carne e osso, que nascera da união sexual entre seus pais. Mas era, evidentemente, um homem moralmente exemplar, que seguiu fielmente a Lei judaica proclamada por Deus ao seu povo.  Assim, Jesus morrera na cruz para a expiação dos pecados do mundo, cumprindo assim o que estava escrito nas Escrituras hebraicas. Como Jesus resignara-se ao sofrimento e ao seu destino funesto, Deus lhe concedeu ressuscitar dos mortos e o glorificou, conduzindo-o ao Paraíso. Abro parêntesis neste momento. É que sempre achei a doutrina da Salvação pelo sacrifício do cordeiro, que fora Jesus, esdrúxula, para dizer o mínimo. Ponderemos. Como era de costume entre os primeiros judeus, oferecia-se a Deus, no Templo, um animal sacrificado, para que, assim, se perdoassem os pecados. Os cristãos proto-ortodoxos compreenderam o sacrifício de Jesus segundo esse modelo ritualístico judaico. Cristo é o cordeiro de Deus oferecido em sacrifício para a expiação dos pecados do mundo. O cristão fiel enche a boca e fala com orgulho e com penosa e fervorosa gratidão que Jesus salvou cada um de nós (seja cristão ou não). Jesus morreu pela salvação da humanidade. Está certo. Mas morreu para nos livrar do quê? Ora, nada é mais claro: da ira de Deus que estava disposto a punir a humanidade pelos seus pecados (possivelmente, Deus estaria disposto a repetir o que fizera na época de Noé (é claro que a história do dilúvio e de Noé é um mito). Mas, enfim, se Cristo morreu para nos salvar, ele o fez para nos livrar da destruição que sobre nós recairia pela ira de Deus. Agora, compreendamos. Deus enviou seu filho e determinou seu sacrifício, para que ele, Deus, se contentasse e decidisse não mais acabar com o mundo. Isso faz algum sentido? Que espécie de Deus perverso e repugnante é este que destina ao suplício e à morte o próprio filho, para, assim, se comprazer e decidir não mais dizimar a humanidade? Essa doutrina só poderia sair da cabeça de um louco. Vamos pensar um pouco mais. Um pai ou um filho pode sacrificar sua vida em favor da vida um do outro. Um filho pode morrer para que seu pai viva, ou vice-versa. Mas não é isso que acontece nesta história repugnante. Deus tinha todo o poder para decidir não dizimar a humanidade; sendo um ser dotado de conhecimento perfeito, deveria se valer de outro recurso para tentar “salvar” a humanidade. Mas isso não incluía enviar seu próprio filho para que fosse crucificado. Os cristãos veem nisso um ato de amor de Deus, porque deu seu próprio filho em sacrifício. Mas sacrifício para quem? Para ele mesmo Deus!!! Quem vê nisso um ato de amor está moralmente esclerosado. Deus não precisava sacrificar seu próprio filho, se lhe estava ao alcance do poder (já que ele é dotado de poder infinito) agir de outro modo, por exemplo, perdoando os pecados, revelando-se como vinha se revelando aos profetas hebraicos. Deixemos o absurdo desta histórica, moralmente repugnante, embora crível e papagaiada por milhões de cristãos até hoje.

Voltemos aos ebionitas. Eles condenavam o sacrifício de animais. Para eles, o verdadeiro cristianismo consistia numa prática de estrita obediência aos ensinamentos judaicos de Jesus, que era Deus por adoção.

Vejamos agora outro grupo de cristãos considerados pela visão dominante, a dos cristãos ortodoxos, como hereges. Entram em cena os marcionitas. Eu os referi, em outro texto. Esse grupo tinha esse nome em virtude dos ensinamentos do teólogo, que vivera no século II, chamado Marcião.

Ao contrário dos ebonitas, os marcionitas eram antijudaicos. Eles rejeitavam não apenas os costumes judaicos, mas principalmente as Escrituras e o seu Deus. Quais eram as posições teológicas de Marcião, que causou alvoroço entre os líderes proto-ortodoxos? Ele, seguindo de perto Paulo, entendia que Cristo era o caminho para o verdadeiro conhecimento de Deus. Era preciso ter fé em Cristo para poder alcançar a salvação de Deus. (veja-se como a doutrina trabalha a dependência e a necessidade de salvação relativamente a Deus). Há uma relação tutelar entre Deus e o homem. Para Marcião, não importava a Lei. O Evangelho era a boa nova. A Lei abrigava mandamentos severos, culpa, julgamento, inimizades, punição e morte (ver. Ehrman, p. 159).

Tendo observado (e este é um ponto importante, quando adotamos a perspectiva da relação entre real e linguagem, que anunciei no início deste texto) que a imagem do Deus das Escrituras hebraicas (Antigo Testamento) não era compatível com o a imagem do Deus de que nos falou Jesus, nos Evangelhos, Marcião concluiu se tratar de dois Deuses diferentes. O Deus irado, vingativo, assassino dos judeus não era o mesmo Deus misericordioso, amoroso e gracioso anunciado por Jesus. Marcião foi mais adiante e desenvolveu a concepção de que o Deus dos judeus é o que criou o mundo; e o Deus de Jesus até àquela altura nunca tinha se comprometido com o mundo. Dele nunca ninguém, na verdade, tinha ouvido falar, até a vinda de Cristo. O Deus do Antigo Testamento era o Deus do povo de Israel. Era um juiz que concedeu a seu povo a Lei. O Deus de Jesus, por outro lado, não considerava os judeus seu povo; e não era um Deus que instituiu uma Lei. Agora, percebam como, a partir do reconhecimento por Marcião de duas formas distintas de representação de Deus (não que ele acreditasse se tratar de “representações”, é claro; para ele existiam realmente dois deuses), a história do sacrifício de Cristo muda sensivelmente.

Enquanto, para Marcião, o Deus judaico era um Deus que exigia obediência e punia transgressões e, por isso, vivia encolerizado, o Deus de Jesus, de quem até então ninguém havia ouvido falar, veio a este mundo, através de Jesus para livrar as pessoas do Deus vingativo dos judeus. Como observa Ehrman,



“(...) Jesus veio de forma completamente inesperada e fez o que ninguém poderia jamais ter esperado: sofreu a punição pelos pecados de outras pessoas, a fim de salvá-las da ira justa do Deus do Velho Testamento”.

(p. 160)


O que vemos aqui, caro leitor? Tudo bem, o Deus de Jesus, sendo mais poderoso, poderia ter dado cabo do Deus judaico, sem precisar sacrificar o próprio filho; mas agora estamos diante de uma razão mais aceitável por que Jesus foi sacrificado. Aceitável, do ponto de vista lógico, mas não justificável, do ponto de vista moral. Que fique bem claro! De qualquer modo, a história não deixa de ser menos crível e estranha. Porque, afinal, o sacrifício de Jesus haveria de  surtir o efeito pretendido? Ou seja, o mero sacrifício de Jesus fez com que o Deus judaico desaparecesse, deixasse de existir, em algum sentido? Continuo insistindo em que o Deus cristão deveria ter evitado o sacrifício do próprio filho, adotivo ou não, mas filho. E não é menos verdade que os judeus continuam adorando YHWH, o Deus cujo nome é impronunciável.

Para Marcião, portanto, o Evangelho era a boa-nova que não poderia vincular-se aos velhos escritos judaicos. Marcião acreditava (e nisso tenho de concordar com ele, uma visão sóbria que não se encontra mais entre os cristãos de nosso tempo) que um Deus bom não poderia criar um mundo cheio de miséria, desastres, doenças e morte. Esse Deus só poderia ser mal. Para ele, um Deus responsável pelo próprio mal; um Deus criador do mal. Era o Deus de Jesus que era bom.

E quanto à natureza de Jesus? Marcião ensinou que Jesus não era um homem de carne e osso. Na verdade, achava que ele sequer tinha corpo. Também acreditava que ele sequer tinha nascido. Ele só parecia ser humano.

Devo reconhecer, a esta altura, que o sacrifício de Jesus não parecia ter o objetivo de liquidar o Deus judaico, mas tão-só libertar as pessoas de sua tirania. Vejamos o que nos ensina Ehrman a esse respeito:



“Jesus pagou o preço pelos pecados de outras pessoas ao morrer na cruz. Tendo fé em sua morte, pode-se escapar aos espasmos do encolerizado Deus dos judeus e ter a vida eterna com o Deus de amor e misericórdia, o Deus de Jesus. Mas como Jesus poderia morrer pelos pecados do mundo se ele não tinha um corpo real? Como poderia seu sangue derramado trazer expiação se ele não tinha sangue de fato?”

                                       

                                               (pp. 160-161)



Deixando de lado os problemas de ordem lógica, na doutrina de Marcião, interessante é entender que “a morte de Jesus era um tipo de armadilha que enganou o ser divino que controlava as almas humanas perdidas pelo pecado, e que o Deus dos judeus foi forçado a libertar as almas daqueles que acreditavam na morte de Jesus, sem perceber que, na realidade, a morte foi só aparente” (p. 161).

Agora, sim! O Deus dos judeus não foi aniquilado numa batalha cósmica contra o Deus de Jesus. O que ocorreu, na visão de Marcião, foi o uso de um estratagema pelo Deus cristão para ludibriar o Deus judaico, forçando-o a libertar as almas dos pecadores. Restaria saber se Marcião teria alguma resposta para a pergunta: O que foi feito, então, do Deus judaico? Ele continua a existir em competição com o Deus de Jesus? Teria ele se aliado a Satanás para atentar a humanidade? Infelizmente, ficaremos sem saber as respostas. Antes de apresentar as conclusões a que podemos chegar, quero elencar as diferenças entre as visões ebionitas e marcionitas, a título de síntese.

Os ebionitas defendiam que:

a) era preciso tornar-se judeu para seguir corretamente a Deus;

b) havia apenas um Deus;

c) era necessário permanecer fiel às leis do Antigo Testamento e o considerar como a revelação única do Deus verdadeiro;

d) Jesus era um ser completamente humano.



Os marcionitas defendiam que:

 a)      seguir a lei judaica era inapropriada para que se conseguisse ter uma relação correta com Deus;

b)      havia dois deuses;

c)      as leis judaicas deveriam ser rejeitadas e que o Velho Testamento fora inspirado por um Deus inferior;

d)      Jesus era inteiramente divino.



Outras diferenças podiam ser apontadas, mas não me preocupei em ser exaustivo. Concluamos, então.



Comecei este texto propondo a necessidade tanto de um ateísmo esclarecido quanto de uma fé esclarecida. Um ateu esclarecido pode mostrar, com base nos seus conhecimentos históricos da formação do cristianismo, dos quais são testemunho este texto, que cada grupo cristão acreditava deter a verdade sobre Deus. Cada qual tinha uma visão sobre quem foi Jesus, de modo que foi um acidente histórico o fato de, hoje, se acolher um conjunto de crenças que são consideradas “verdadeiras” ou “corretas”. No livro, Ehrman especula sobre o que teria sido o cristianismo, se os grupos vitoriosos fossem ou os ebionitas ou os marcionitas. Certamente, o cristianismo hoje não seria o mesmo.

Um ateu esclarecido, ao invés de martelar a ideia de que Deus é um ser imaginário, uma ilusão, mostrará que não se pode confiar na Bíblia como um testemunho fidedigno da existência de Deus. Certamente, por muitas razões, como a de que o Deus do Antigo Testamento – e isso reconheceu muito bem Marcião – não pode ser o mesmo Deus do Novo Testamento. Mas não devemos nos apressar em julgar ser o Deus do Antigo Testamento completamente distinto do Deus do Novo Testamento. Não nos esqueçamos de que podemos ler em Mateus 18: 8:



“Portanto, se tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti; melhor te é entrar na vida coxo, ou aleijado, do que, tendo duas mãos e dois pés, seres lançados no fogo eterno”.



E em Mateus 8:12:



“E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes”.



O Deus de Jesus também tinha um inferno destinado aos ímpios, o que mostra que, pelo menos quem escreveu Mateus, afinou os ensinamentos de Jesus com o imaginário judaico de Deus. Na verdade, o autor de Mateus defendia a ideia de que a salvação só viria com a observância de todos os mandamentos.  O Jesus de Mateus foi construído numa visão estritamente judaica.

O ateu esclarecido deverá apenas tomar o cuidado quando da consideração dos evangelhos, porque seus autores discordaram entre si. Há uma série de inconsistências entre os textos.

Quanto ao leitor, precisa reter o seguinte: a) vimos que, na história do cristianismo, uma história complexa e marcada por diversidade de perspectivas e interesses, muitas eram as formas como Deus era pensado; muitas eram as formas como Deus era construído. O que nos chegou foram as construções discursivas de Deus do grupo vitorioso, o dos proto-ortodoxos; b) não dispomos de meios para determinar se as construções discursivas de Deus que nos foram legadas são as verdadeiras. Claro está que não há como provar que Marcião estava errado. Ele até obteve muito sucesso, fundando igrejas por onde passou.

Um Deus que se acredita grandioso e dotado de infinita sabedoria deveria ter-se revelado de tal modo que não desse margem a muitas especulações a seu respeito. A história prova que cada grupo cristão tinha uma visão sobre quem era Deus, sobre como agia, sobre como se relacionava com Jesus, etc.

Um Deus transcendente é, na verdade, uma construção discursiva; na verdade, Deus é imanente ao discurso produzido por seres humanos. Deus é imanente ao processo histórico em que seres humanos estão envolvidos.

Se não assumirmos, com base no que apreendemos sobre a diversidade de evangelhos, alguns perdidos para sempre, outros descobertos, com base nas evidências de que foram necessários muitos conflitos e disputas para o estabelecimento da visão ortodoxa (correta) do cristianismo (sem que Deus tenha feito nada a respeito para pôr fim às disputas e revelar quem estava com a razão), que, afinal de contas, foi forjado na imaginação de muitos homens que precisavam suportar as condições de opressão em que viviam, como, então, podemos explicar por que foram possíveis diversas visões teológicas nos primórdios do cristianismo?

Não encare, leitor, este texto como a expressão de um ataque a fé ou à religião. Eu apenas procurei elucidar os interessados sobre uma parte da verdadeira história cujo processo explica o cristianismo tal como o conhecemos hoje. Tenho de reconhecer, contudo, que também acalentei a esperança de que os leitores viessem a perceber que o Deus em que creem é um Deus que tem uma história, que esse Deus tem raízes na história do antigo Oriente Médio. É um Deus que, graças muito ao papel do imperador romano Constantino (séc. III d.C), se impôs a maior parte do mundo. Não obstante, o fato de o Deus judaico-cristão não ter alcançado autoridade entre todos os povos do mundo (haja vista a diversidade religiosa em todo o mundo; os haitianos, por exemplo, adeptos da religião vodu, o ignoram) deveria ser uma evidência de que ele é um Deus que não transcende à história; é, ao contrário, um Deus que tem uma história. Qualquer pessoa que teve o privilégio de concluir sua escolarização média aprendeu, por exemplo, que povos das Américas do Sul e Central conheceram o cristianismo católico pela força dos colonizadores; povos que antes cultuavam muitos deuses se viram forçados a aceitar a adoração a um único Deus, que se impôs como o verdadeiro. Não é novidade alguma que a expansão da fé cristã num Deus único já vinha se dando, pelo menos desde que Constantino ascendeu ao poder de Roma. Quero dizer que sozinho Deus não se faria presente para muitos povos. Acho isso tão óbvio, tão claro. Deus existe não como ser transcendente ao mundo, mas como entidade ideológica (ideológica porque produzida por um sistema de valores, ideias e crenças) forjada num processo histórico determinado. Se Deus é carecido de materialidade natural (ele não é como a natureza e todo que nela há), não lhe falta materialidade histórica.

É simples aos que creem em Deus justificar o desconhecimento de Deus por outras comunidades humanas pela ignorância de seus indivíduos ou pela crença de que eles estão enganados sobre suas crenças religiosas, de que estão enganados sobre seus deuses, que não são reais, que não são verdadeiros. Trata-se de uma justificativa ideológica, porque mascara as verdadeiras razões por que eles desconhecem ou não têm necessidade do Deus cristão. Não é que eles estejam enganados (aliás, eles podem estar tão enganados quanto os próprios cristãos em relação ao seu Deus); eles simplesmente, criaram um sistema cultural que não contempla a crença num Deus único e transcendente; a razão por que não precisam acreditar num Deus tal como o do cristianismo, o do judaísmo ou do islamismo, é que lhes basta seu sistema de crenças sobrenaturais e suas divindades.  Esse sistema de crenças e as divindades referidas por ele funcionam em sua cultura. Se atendem às suas necessidades de sobrevivência em grupo, então não é necessário recorrer a outro sistema de crenças e a outra divindade.

Então, quando você acordar pela manhã e agradecer a seu Deus o dia lindo que lhe proporciona e desejar convocar a todos para que tomem parte nessa gratidão, lembre-se de que você está assumindo a existência de um Deus que não, necessariamente, será aceito por todo o mundo, de que muitos, pelas razões que apontei e por outras tantas que me escaparam, simplesmente o ignoram, e lembre-se também de que tudo que sai de sua boca a respeito de Deus tem uma história e isso é verdadeiro também em relação a todos os nossos discursos. Não espero que isso  o/ a leve a assumir o ateísmo ou o agnosticismo, mas que possa fazer com que se interesse, ao menos, por compreender melhor sua própria fé.

domingo, 18 de novembro de 2012

O olhar gnóstico



O desafio gnóstico nos primórdios do cristianismo




Tenho de concordar com o filósofo Luiz Felipe Pondé, que não é ateu, mas também não demonstra ser religioso em algum sentido forte, ao objetar aos que supõem que as pessoas que acreditam em Deus são ignorantes. A experiência é suficiente para lançar por terra a validade dessa crença. Também não é verdade que ateus seriam, em algum sentido, mais “inteligentes”, crença também repudiada por Pondé, em cuja posição estou de acordo. Também, nesse tocante, a experiência é suficiente para dispensar demonstrações em favor da invalidade dessa crença. Para ele tanto quanto para mim, isso é uma bobagem, infelizmente, muitas vezes, largamente reproduzida.
Tendo estabelecido minha posição sobre a correlação entre ignorância e teísmo, de um lado; e esclarecimento e ateísmo, de outro, reelaboro-a de outro modo. Desde já, fique claro que me situo na tradição dos três grandes monoteísmos (judaísmo, cristianismo, islamismo), embora me concentre na tradição judaico-cristã. A imersão nas vivências religiosas, a adesão às práticas doutrinárias, à receptividade à ideologia teológica por meio da oratória de padres ou pastores, durante cultos ou missas, moldam a consciência de uma coletividade, de modo a desenvolver atitudes, ideias e hábitos que acabam por inibir cada um de seus membros de buscar instruir-se sobre as bases históricas de sua fé. O poder da doutrinação é de tal modo tão penetrante, que as pessoas mais suscetíveis a ele preferem, talvez por receio de deparar-se com a fragilidade das fundações de sua fé, manter-se distante dos discursos polêmicos. Polemizar a doutrina é chocar-se contra a própria doutrina. Por definição, uma doutrina não admite polêmica.
No tempo em que ainda frequentava a igreja e em que conservava minha crença na existência de Deus, me contentava com o sentimento de abstração de Deus de toda retórica da comunidade eclesiástica que falava por detrás da voz do padre, para cultuá-lo na intimidade de minha imaginação (tratava-se de uma fé intimista). Conquanto tivesse crescido numa tradição católica e tivesse freqüentado missas católicas, recusava-me a me definir como católico, preferindo considerar-me como cristão ou como alguém que cria em Deus.
Era uma crença, certamente, egoísta, como o é, em muitos casos, o culto a Deus. Era egoísta, porque, acreditando ter Deus atendido a um pedido e tendo-lhe manifestado minha gratidão, sequer cogitava da possibilidade do insucesso alheio ao solicitar a Deus algum benefício. Na prática, me interessava o fato de eu, por exemplo, ter sobrevivido a um sério problema de saúde tão-logo eu nascera, sem levar em conta a possibilidade de outras crianças em condição semelhante não ter sido da mesma forma agraciada. O problema do mal ou do sofrimento no mundo, naquela época, raramente visitava a minha consciência. Digo “o problema”, porque é claro que estamos expostos ao mal e ao sofrimento cotidianamente, quer diretamente, quer indiretamente, quando assistimos aos noticiários pela televisão. Lamentava o fato de um furacão arrasar uma cidade e matar um grande número de pessoas, mas, como para todos os que creem na existência de um Deus que é bom, que é todo-poderoso, justo e providente, não via naquela ocorrência um problema sério para a minha convicção de fé. Não me ocorria fazer uma conexão lógica entre ‘o fato do sofrimento, da dor, da morte provocado pela passagem do furacão’ e a ‘crença na existência de tal Deus’.
Pondé diz ser o ateísmo uma hipótese fácil a que qualquer criança, com um pouco mais de discernimento, pode chegar. Estou agora a cogitar dessa visão... O que terá querido dizer o filósofo ao considerar o ateísmo uma ‘hipótese fácil’? Penso que a razão esteja em demandar pouca ou nenhuma teorização filosófica. Se é assim, pode-se concluir que, para Pondé, a teologia cristã ou o teísmo é mais intelectualmente desafiador. Em outras palavras, a hipótese da existência de Deus seria mais estimulante ao desenvolvimento do pensamento reflexivo do que a hipótese ateísta - mais fácil e menos fértil para o pensamento.
Não posso acompanhar o filósofo nesse tocante. A se considerar o fato de que a aceitação dos postulados ateístas pelo teísta mais ferrenho é extremamente difícil, dado o poder de penetração doutrinário a que me referi, claro me parece que a empresa ateísta constitui um desafio nada desprezível para o pensamento humano. Se, por um lado, num sentido epistemológico, o ateísmo parece ser uma ‘hipótese fácil’, por outro lado, Deus não deixa de sê-lo também. Deus é uma hipótese simples para explicar a origem da vida e do universo; é uma hipótese simples com que se mascaram as razões verdadeiras por que certas coisas acontecem (por exemplo, por que nos curamos de um câncer). Trata-se de se valer do conceito de Deus como um mecanismo ad hoc, ou como uma hipótese explicativa para as lacunas de nossa ignorância sobre o mundo.
Se a hipótese do ateísmo é fácil ou óbvia, por que bilhões de pessoas no mundo são incapazes de aceitá-la, de chegar a ela? Parece ser razoável dizer que uma criança não acreditará em Deus se não for exposta a uma tradição discursiva que tenha Deus como centro de suas preocupações. Para um religioso, no entanto, que viveu grande parte de sua vida acreditando em Deus, assumir a hipótese ateísta não constituirá tarefa fácil. Pode ser que, uma vez introduzida no universo de reflexões ateístas, uma vez tendo acesso aos discursos da filosofia ateísta, uma pessoa, disposta a abandonar sua fé, comece a sentir facilidade para chegar às conclusões apontadas pelo ateísmo; mas até que isso ocorra, ela terá de “desvendar essa hipótese”, que não lhe é, ao contrário do que sugere Pondé, imediatamente acessível. Quando a criança é, por força da sua formação familiar, em primeiro lugar, exposta às crenças religiosas de seus pais, e não lhe sendo oferecidas oportunidades para questioná-las, a hipótese ateísta lhe ficará, por muito tempo (senão para a vida toda), inacessível. Quando a doutrinação já tiver feito seu trabalho lapidar, dificilmente terá ela oportunidades de, pelo pensamento crítico, chegar àquela hipótese. Por isso, a filosofia. O leitor pode assistir ao final da palestra de Pondé, quando responde a um espectador, acessando 



        Até o momento, não introduzi a questão principal sobre a qual me debruçarei neste texto. Tratarei de expô-la agora. A incapacidade de traçar relações lógicas entre minhas experiências de mundo e minhas crenças de fé foi conservada até o momento em que eu passei a me interessar pelos estudos filosóficos e daí pelos estudos do ateísmo, primeiramente pela pena dos filósofos ateus, depois por outros autores ateus, não necessariamente filósofos. No entanto, durante o longo tempo em que minha consciência estava imersa ou aprisionada na crença em Deus (é disso mesmo que se tratava: era eu que estava imerso na crença), ignorava muitos fatos a respeito da história da religião e do Deus a que eu me inclinava. Pelo ateísmo, cheguei a conhecer melhor a natureza antropomórfica de Deus e, especialmente, a conhecer a história do cristianismo. À medida que avançava meus estudos sobre a história da formação do cristianismo, aprendi sobre fatos, por muitos cristãos ignorados, a respeito da fabricação da Bíblia. Na verdade, aprendi mais sobre a Bíblia.
Não estou sugerindo que só se pode conhecer a formação histórica do cristianismo e a fabricação da Bíblia pelo caminho do ateísmo. Quero dizer que as descobertas dos historiadores sobre o cristianismo e sobre a Bíblia dificilmente serão acessíveis aos religiosos leigos, caso pretendam buscar tais conhecimentos nos ensinamentos dos ministros de sua fé. Não estão eles na boca do padre, do bispo ou do pastor. Não se encontram nos cursos de catequese ou nos encontros para estudos bíblicos. Nessas ocasiões, fazem-se leituras devocionais dos textos bíblicos, que não contribuem para estimular uma reflexão crítica (e nem podem!).
Nos primórdios do cristianismo, os pais da Igreja tiveram de lidar com vários obstáculos ao fortalecimento da nova fé. Entre esses obstáculos, estavam as práticas de certas comunidades cristãs constituídas de pessoas que questionavam a hierarquia eclesiástica e a crença num Deus criador e único. Surgiam os gnósticos, que acreditavam haver outro Deus além do Deus criador.
Marcião, um cristão e teólogo da Ásia Menor (séc. II), perguntava-se sobre a razão de existir um Deus que, sendo todo-poderoso, criaria um mundo repleto de sofrimento, dor e doença. Com base nas visões conflitantes de Deus no Antigo e no Novo Testamento, não tardou para concluir que devia haver dois deuses diferentes. Para ele, o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo Deus de Jesus. A Lei dizia respeito ao judeus; e o Evangelho, aos cristãos.
Seu nome inspirou a formação de um grupo de cristãos conhecidos como marcionitas. Na visão dos marcionitas, o Deus do Antigo Testamento não se identificava com o Deus do Novo Testamento. O primeiro era um Deus vingativo, assassino e ciumento; já o segundo, que era o Deus verdadeiro, era amoroso e misericordioso. Portanto, o Deus de Jesus nada tinha que ver com o Deus dos judeus.
Evidentemente, sustentar a crença na existência de outro Deus diferente do Deus criador, representado no pensamento ortodoxo que buscava se estabelecer, era intolerável. Irineu, fundador da teologia cristã, dedicou-se a combater, com virulência, as heresias gnósticas, entre as quais as do marcionitas. Havia além destes os valentinos, inspirados nas posições de Valentim - teólogo gnóstico do cristianismo primitivo. Esses gnósticos assumiam publicamente a crença em um Deus único (muitos ainda estavam ligados à cúpula da igreja), mas, em seus encontros furtivos, insistiam em discriminar entre a imagem de um Deus, que é criador, senhor e justo, e a imagem de um Deus que é fonte de todo o ser.
Havia, evidentemente, além das razões filosóficas e teológicas, razões políticas para que cristãos ortodoxos, como Irineu, se insurgissem contra as visões gnósticas. A crença em um só Deus justifica a instituição de um poder inquestionável de um só bispo como monarca da igreja. Em Os Evangelhos Gnósticos (2006), Pagels argumenta:

“(...) quando investigamos a forma como realmente funciona a doutrina de Deus nos escritos ortodoxos e gnósticos, podemos constatar como esta questão religiosa envolve também questões sociais e políticas. Especificamente, pela segunda metade do século segundo, quando os ortodoxos insistiram em “um Deus”, eles validaram simultaneamente o sistema de governo no qual a igreja é regida por “um bispo”. A modificação gnóstica do monoteísmo foi tomada – talvez, intencionalmente – como um ataque contra esse sistema. Pois quando os cristãos gnósticos e ortodoxos discutiam a natureza de Deus, eles debatiam ao mesmo tempo a questão da autoridade espiritual”.
(p. 99)
(grifo meu)

Os seguidores de Valentim acreditavam numa tradição secreta em que se inspiravam os escritos atribuídos a Paulo. Essa tradição revelaria que o Deus em que a maioria cristã acreditava como sendo o criador e Pai é tão-só uma imagem do Deus verdadeiro. Adotando o termo demiurgo (artesão) de Platão, Valentim assumia que o Deus de Clemente e outros pais da igreja é um Deus menor. Apresentando-nos a crença de Valentim, esclarece Pagels:

“Não é Deus, explica [Valentim], mas sim o demiurgo quem reina como rei e senhor, quem age como comandante militar, quem promulga a lei e julga aqueles que a violam – em resumo, ele é o Deus de Israel”.

(p. 62)

O gnóstico reconhece tanto no demiurgo quanto no bispo uma autoridade legitimada que exerce influência sobre os cristãos leigos. A pessoa iniciada na gnosis (conhecimento, entendimento) passa a estabelecer uma relação nova com Deus. Ela se reveste de uma autoridade espiritual em suas práticas cristãs. É digno de nota que nas cerimônias gnósticas todos podiam exercer, por sorteio, as funções de padre, bispo e profeta, inclusive as mulheres, fato que desagradava aos proto-cristãos ortodoxos. No entanto, os gnósticos não deixavam de crer na providência e onisciência de Deus, de tal sorte que, para eles, o resultado dos sorteios expressava a escolha de Deus.
Creio bastantes essas reflexões para aquilo a que me proponho aqui. Elas conduzem-nos à seguinte questão: Qual a importância, para o leitor cristão, do conhecimento de fatos como os que apresentei aqui? Não espero, evidentemente, com a exposição deles, com base na literatura especializada, sugerir que abandone sua fé. O conhecimento sobre a história do cristianismo e sobre a história da constituição do cânone das Escrituras não leva, necessariamente, ao ateísmo, muito embora contribua para colocar em xeque algumas crenças arraigadas, tais como a de que Deus inspirou a escrita das Escrituras (quando o leitor, pelo estudo, é forçado a reconhecer que a Bíblia é um trabalho de muitas mãos humanas e que nos textos e entre eles há muitas inconsistências); a de que a Bíblia é infalível (porque, segundo a primeira crença, é a Palavra de Deus); a de que foi Jesus quem realmente proferiu as palavras a ele imputadas nos Evangelhos (os Evangelhos são produtos de falsificações e os autores dos textos não são as pessoas que alegavam ser), etc.
Se somos capazes de aceitar a verdade desses fatos, igualmente capazes somos de reconhecer a materialidade histórica do Deus judaico-cristão. Deus e religião, assim, deixam de ser, em nossa consciência, um ser transcendente e um caminho elevado de acesso a ele, respectivamente, para tornarem-se fatos da cultura, portanto, fatos humanos.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

"Ler diverte o pensamento" (BAR)



                                         



                                  

                                 Ler é emersão

Deixei de brincar com brinquedos para me entreter com as palavras. Deixei de usar a imaginação nas brincadeiras que embalavam minha infância, para aplicá-la à leitura. Os meus brinquedos são os livros. Eles me entretêm, ensinando-me. Isso é o verdadeiro aprendizado lúdico. Se não estou lendo, estou escrevendo. O melhor presente que podem me dar é um livro. É claro que não qualquer livro.
Pode ser surpreendente para muitas pessoas, mas existe vida depois da leitura. Ler não me impede de me entreter fora de casa. Nenhuma leitura deveria ser feita por obrigação. É claro que, muita vez, lemos porque é preciso ler (por exemplo, para resolver uma prova). Mas, mesmo nesse caso, a leitura deveria ser encarada como uma atividade motivada por outros propósitos. É verdade que há leitura informativa, por exemplo, quando lemos uma bula de remédio (se é que alguém a lê mesmo) ou quando lemos jornais. Há leitura que serve para nos instruir a executar alguma tarefa, como a leitura de manuais para pôr a funcionar um aparelho eletrônico ou de uma receita para preparar um bolo.
Pensemos, agora, nos livros. Afora os casos em que temos de ler um livro, porque seu conteúdo será cobrado numa prova, eu lhe pergunto, leitor, por que você lê um livro. Talvez, porque se trate de um livro cujo conteúdo lhe agrada. As motivações para a leitura são muito variadas e subjetivas. Mas, como regra geral, lemos, porque queremos nos apropriar de conhecimentos universalmente produzidos. Lemos porque não é factível, para um indivíduo apenas, produzir toda sorte de conhecimentos. Em outras palavras, não sendo eu um paleontólogo, mas me interessando pelas produções nesta área, busco adquirir, num livro que abrigue contribuições em paleontologia, conhecimentos produzidos nesse campo do saber. Não preciso me formar em psicologia, para aprender sobre as teorias que iluminam as práticas dos psicólogos; basta que eu leia alguns livros sobre o assunto. É claro que, se não somos iniciados numa determinada área do saber, melhor será procurar ler livros de introdução, que forneçam, portanto, princípios elementares.
  Lemos para saber mais sobre a complexidade do mundo. Lemos para aprender mais sobre o mundo. Lemos também para aprender sobre quem somos (tanto como indivíduo quanto como espécie). Lemos para alargar nossa percepção de mundo. Lemos para que sejamos capazes de pensar com maior abrangência, complexidade e destreza. A leitura torna mais robusto, mais complexo, mais analítico o pensamento. Lemos para desenvolver habilidades argumentativas mais eficientes. É claro que argumentamos quando falamos. Não custa lembrar que o uso da linguagem é intrinsecamente argumentativo; no entanto, é com a leitura que podemos nos apropriar de  estratégias de argumentação mais complexas e sistemáticas . É com a leitura que temos mais oportunidades de experiência  direta e demorada com recursos argumentativos diversos.
Ler permite-nos disciplinar o pensamento. Não se poderia esquecer as consequências socio-culturais e políticas da leitura. Quem lê atua mais criticamente no mundo. Isso soa como um lugar-comum, mas verdadeiro. Devemos ler com atenção as palavras de Silva, em O Ato de Ler (2011), que nos ensina sobre o papel da leitura enquanto experiência de participação:


“A leitura, enquanto uma forma de participação, somente é possível de ser realizada entre os homens. Os signos impressos, registrando as diferentes experiências humanas apenas medeiam as relações que devem existir entre os homens – relações estas que dinamizam o mundo cultural. Sendo um tipo específico de comunicação, a leitura é uma forma de encontro entre o homem e a realidade sociocultural; o livro (ou qualquer outro tipo de material escrito) é sempre uma emersão do homem do processo histórico, é sempre a encarnação de uma intencionalidade e, por isso mesmo, “sempre reflete o humano” (...).”
(grifo meu)
(p. 47)


É nesse encontro com a realidade sociocultural, pela leitura, que o leitor pode, em face daquela, posicionar-se criticamente. É na leitura que o homem pode elevar sua consciência sobre os condicionamentos sócio-hístóricos que lhe deram forma, para contemplar a si mesmo (entenda-se “refletir sobre”). É isso que significa a ‘emersão do homem do processo histórico’. Se o homem, pela leitura, emerge, é porque, no seu dia-a-dia, desocupado da atividade de leitura e envolvido em suas atividades de rotina, vê-se apenas como produto do devir histórico; a emersão se dá com a tomada de consciência de sua situação nos movimentos históricos. O homem que lê reconhece-se dialeticamente vinculado à realidade histórica, porque, ao mesmo tempo, produto e agente das condições socio-culturais, historicamente determinadas. A leitura permite-lhe uma atuação esclarecida nessa realidade.
A leitura torna possível a desrotinização da consciência, cujos horizontes estão atrelados à cotidianidade. Ler é emersão; é uma forma de experiência pela qual nos desafogamos das vivências comuns do cotidiano, para alargar o pensamento sobre elas.
Que fique claro: a posse da cultura escrita não é só uma forma poderosa de marcar a distinção social, é o caminho mais próspero (e possivelmente único) para a compreensão e o questionamento das formas de legitimação do poder das classes dominantes. É, finalmente, uma etapa importante para a transformação das relações de dominação.

A linguagem é uma forma de constituição e elaboração da realidade


                    


                            A construção textual da realidade
                                                
                                                     A referenciação em foco


Sobre moluscos e homens

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento (insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento”) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...


Conforme havia prometido, revisito o texto de Rubem Alves – Sobre moluscos e homens –, a fim de apresentar e desenvolver o tema da referenciação.

A referenciação

Usamos a linguagem também para falar do mundo. Mas, como venho insistindo, o mundo de que fala a linguagem não é o mundo tal como é, mas um mundo textualizado. Na verdade, a linguagem não espelha o mundo, mas o trabalha, o reconstrói. Quando, pelo fenômeno da designação, ‘pinçamos’ um ser (ou entidade) do mundo e o introduzimos em nosso discurso, o transformamos num referente, ou melhor, num objeto-de-discurso. Suponhamos que eu tenha um gato e que meu gato esteja dormindo em cima do sofá. Minha mãe pergunta pelo gato e eu respondo:

(1) O gato tá dormindo no sofá.

Note que o referente designado pelo substantivo ‘gato’ aparece na forma de um SN (sintagma nominal) definido (ou seja, antecedido de um artigo definido). O uso do artigo definido indica, em geral, que o referente é parte do saber compartilhado com meu interlocutor. Tanto eu quanto minha mãe sabemos de que gato se trata. Imaginemos que o discurso prosseguisse da seguinte forma:

(2) Acorda ele pra ele comer.

Note agora o uso do pronome ‘ele’ que retoma o referente ‘gato’. O ‘ele’ nos instrui a buscar a informação em outro lugar. Em (1), introduzimos um referente (gato) e em (2) o retomamos pelo uso da forma pronominal. Outras formas de recuperar o referente são possíveis. Vejamos algumas:

(2a) Acorda o bichano pra ele comer.
(2b) Acorda esse felino pra ele comer.
(2c) Acorda esse animal pra ele comer.
(2d) Acorda esse bicho preguiça pra ele comer.
(2e) Acorda esse dorminhoco pra ele comer.
(2f) Acorda esse floquinho de neve pra ele comer.

Todas as formas de referenciação de (2a) a (2e) servem à recategorização do referente ‘gato’, de acordo com a perspectiva do enunciador. Cada escolha revela uma atitude, um ponto de vista do enunciador em relação ao gato. Por exemplo, em (2f), o constituinte “floquinho de neve” expressa afetividade. Seu uso sinaliza que o enunciador nutre afeição pelo gato. Já em (2e), o enunciador designa o gato pelo seu hábito de dormir demais. Em todos os casos, o referente ‘gato’ é reconstruído segundo a perspectiva, crenças ou atitudes do enunciador.
Imaginemos agora que minha tia entre em cena e que o gato ainda esteja dormindo. Minha mãe insiste em pedir que acordem o gato. Suponhamos que minha mãe dirija-se a minha tia solicitando-lhe que acorde o gato. Minha mãe pode escolher entre as possibilidades listadas acima. Suponhamos que escolha (2e):

(2e) Acorda aquele dorminhoco pra ele comer.

Poderia suceder que minha tia não conseguisse recuperar o referente de ‘dorminhoco’, já que ele não nos instrui, se não estiver adequadamente integrado num contexto sociocognitivo (grosso modo, um conjunto de conhecimentos variados que os interlocutores supõem partilhar entre si), a recuperar o conteúdo ‘gato’. Para minha tia que acabara de chegar, dorminhoco poderia ser o sobrinho, o genro, etc. Ou seja, minha tia, porque acabara de chegar, não seria capaz de construir um modelo cognitivo da situação, no interior do qual pudesse ativar o referente ‘gato’ assim que ouvisse a palavra ‘dorminhoco’. Além disso, está claro que, para efeitos de produção e compreensão do discurso, importam não as coisas no mundo, mas os procedimentos pelos quais nos referimos a elas. Em outras palavras, quando produzimos nossos textos ou quando buscamos interpretar e compreender textos, importa o modo como o mundo é textualizado, como seus objetos e seres são introduzidos, mantidos e modificados no discurso, tornando-se objetos-de-discurso.
Assim em (2e) não basta saber o que significa ‘dorminhoco’, não basta saber que dorminhoco designa ou qualifica quem dorme muito. Importa identificar o objeto-de-discurso a que ele remete.
A referenciação é, portanto, uma atividade discursiva. Os objetos-de-discurso não se identificam com as coisas do mundo extralingüístico. A realidade extralingüística é (re)construída no próprio evento de interação.
A construção e reconstrução dos objetos-de-discurso envolvem saberes de ordem diversa, tais como:
a) o saber construído por ocasião da compreensão do próprio texto (trata-se de um saber textualmente construído, o qual envolve a produção de inferências com base num vasto conjunto de conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais);
b) e saberes, opiniões e crenças que são ativados no momento mesmo em que autor-texto-leitor interagem.

Existem três estratégias de referenciação. Elas servem à construção dos referentes textuais (ou objetos-de-discurso):

a) introdução (construção): um ‘objeto’ é introduzido no texto, sem ter sido antes mencionado, e a expressão que o representa é colocada em ‘foco’ na memória textual do leitor.

b) Retomada (manutenção): um ‘objeto’ já introduzido no texto é reativado mediante uma forma referencial, de sorte que o objeto-de-discurso permanece em foco na memória do leitor.

c) Desfocalização: ocorre quando um novo objeto-de-discurso é introduzido no texto, passando a ocupar uma posição ‘focal’. O referente que ocupava antes uma posição de foco, conserva o status focal em potência (encontra-se, por assim dizer, num estado de stand by). Ele continua disponível para ser usado quando necessário.

Vejamos como essas estratégias foram usadas pelo autor de Sobre moluscos e homens. Segue-se um trecho inicial do texto:

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, f seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito f teriam desaparecido se não f fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que f inventaram para não se f tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. f Ignoro detalhes da biografia de Piaget e f não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, f tive de imaginar. E foi imaginando que f pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. f Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida.


O símbolo f indica a elipse do referente. Notemos que a expressão “os moluscos dos lagos da Suíça” designa um referente então introduzido e, logo em seguida, recuperado no sintagma genérico “os moluscos”. A operação anafórica recupera apenas o núcleo do sintagma que tem o estatuto de referente e a forma referencial (anafórica) é mais genérica, já que exclui o adjunto que delimitava o domínio de referência de "moluscos". De qualquer modo, após ter sido introduzido, o referente é mantido em foco na memória textual do leitor. A manutenção do referente no modelo textual é feita pela omissão do termo “moluscos”, que é recuperável na desinência dos verbos subsequentes (seriam, teriam, fossem...). Ocorre a desfocalização do referente “moluscos” na sétima linha, em que o autor introduz o enunciador, pelo recurso à elipse da forma ‘eu’. O referente ‘eu’ elíptico é mantido, ou seja, fica em foco da sétima até a décima linha, quando o referente ‘Piaget’, que fora introduzido no limiar do texto, é retomado. Mas o referente fica em foco por pouco tempo. Na linha treze, um novo referente passa a ocupar a posição de foco na memória do leitor - é o referente ‘homem’, que será mantido até o fim do parágrafo.
Como vemos, a referenciação é um dos mecanismos responsáveis pela construção da teia textual. Tudo no texto está conectado. A referenciação, também denominada de coesão referencial, quando examinada, revela as diversas conexões entre as unidades textuais. Quando, pela análise, buscamos reconstruir a atividade de produção textual feita pelo autor, percebemos que a estruturação do texto se realiza por sucessivas introduções e retomadas de referentes. Quando os referentes retomados servem de base para nova introdução de referentes, temos então uma progressão referencial. Saliente-se, pois, que o texto, embora não resulte do acréscimo de novas unidades a outras previamente colocadas, constitui uma totalidade de relações sequenciadas, mas não lineares, já que há outros movimentos referenciação no texto, que não seguem o modelo introdução-retomada imediata. Por exemplo, após introduzir o referente ‘Piaget’, o autor passou a introduzir novos referentes, e só muito posteriormente, o retomou.


domingo, 11 de novembro de 2012

"A fragilidade da vida pesa na quantidade de lágrimas que derramamos por ela" (BAR)

   

                        




                                                  Lágrimas saudosas

Enquanto cantava Nana Caymmi, lágrimas escorriam dos olhos de meu avô. A canção que embalava sua saudade era “Lembra de mim”. Belíssima música! A memória de minha avó, recentemente fenecida, ocupava totalmente sua alma e coração. Compadecido de sua dor, beijei-lhe uma das mãos e sussurrei: ‘vocês um dia vão se reencontrar’, ao que se seguiu um abafado ‘Se Deus quiser’. Foi quando lamentei que seu desejo estivesse projetado numa ilusão.
Quão forte e arraigado é este desejo! O desejo de reencontrar as pessoas que amamos e que já não estão mais entre nós! Tamanha a sua força, que reprimimos a ideia de que pode não haver uma vida além-túmulo. Quantos levam em conta a possibilidade de que a morte seja realmente o fim da única vida que nos foi possível? Num sentido metafísico, misteriosamente possível. Para muitos, a ideia de que todos os laços de amor que foram formados na vida serão completamente dissolvidos quando morrermos, sem ter chance de reatá-los numa existência outra é, deveras, angustiante.
Sinceramente, não posso descartar aquela ideia, tampouco posso calar o desejo de inesgotabilidade da vida. O sentido está em viver, seja na condição de seres autoconscientes e conscientes de sua própria finitude, seja em condições supra-sensíveis que eu simplesmente ignoro. Vivamos sem demasiada ilusão. Tenho-me esforçado por desiludir-me. A morte chega para todos; mas a vida continua para muitos. Vida-morte-vida-morte-morte-vida – assim se insinua à nossa experiência o Mistério – um Vazio impreenchível, imperscrutável, impenetrável, pelo menos enquanto há vida plena de consciência e lágrimas para suportá-la.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A grande maioria dos brasileiros pensa que não sabem falar português


                       


                               Uma aulinha de concordância verbal

Uma amiga, estudando para concurso, disse-me não se lembrar mais das lições de concordância. Quem, senão os estudantes de Letras, haveria de lembrá-las? Eu já não sei mais resolver as equações matemáticas. Ignoro completamente as regras de solubilidade dos compostos químicos. Mas, no caso da concordância verbal e nominal, nós a dominamos quase inconscientemente. Isso vale para todas as regras da gramática de nossa língua materna, gramática que internalizamos entre os 3 e 7 anos de vida. Nós operamos com essas regras, mas, como eu disse, de modo não-reflexivo. Claro é que não ativamos todas as regras, mas tão-só aquelas que regem os usos da variedade linguística que dominamos. E mesmo aqui há usos mais frequentes que outros e, por conseguinte, regras que são mais frequentemente seguidas do que outras. Por exemplo, é provável (digo provável porque desconheço algum estudo quantitativo nesse tocante) que, em construções como “quais de nós...”, a regra mais frequentemente seguida seja a que nos instrui a fazer com que o verbo assuma a forma de 3ª pessoa do plural, para concordar com o pronome indefinido interrogativo “quais” (cf. “Quais de nós vão com você?). Nesse caso, há outra regra válida: a que nos instrui a concordar o verbo com o pronome “nós” da construção “de nós” (cf. Quais de nós vamos com você?).
As dificuldades parecem surgir quando temos de tomar consciência das regras subjacentes aos mecanismos de concordância. Por exemplo, o leitor pode falar ou escrever “A maioria dos meus amigos falam inglês”. Uma vez ouvindo alguém dizer “A maioria dos cariocas não aprovou a iniciativa”, pode começar a hesitar entre o uso da forma plural e da forma singular do verbo. São ambas agasalhadas pela norma culta? Sim, são. Quais as regras que estão em jogo aí?
Comecemos notando a estrutura do sujeito. Todo sujeito é constituído de um substantivo ou palavra de igual valor. Esse substantivo preenche a posição de núcleo do sujeito, em torno do qual podem aparecer outras unidades, como em (1) e (2):

(1)     Os cabelos de Isabel são lindos.
                             Núcleo
                (2) As três melhores amigas de Isabel viajaram para o exterior.
                                             Núcleo

 Como podemos saber que todo o conjunto à esquerda dos verbos “são” e “viajaram” é o sujeito. Em primeiro lugar, o sujeito é o termo com o qual o verbo, via de regra, concorda. É o núcleo do sujeito, normalmente, que comanda a concordância. Como o núcleo dos respectivos sujeitos está no plural (v. cabelos/ amigas), o verbo tem de ir para o plural (na terceira pessoa). Mas por que não considerar apenas o núcleo como sujeito? Na verdade, quando o sujeito se constitui apenas do núcleo, é o que acontece, como em (3):

(3) Amor       não é remédio.
     Núcleo
      Sujeito

Nos casos (1) e (2), no entanto, presas ao núcleo há outras unidades (todas grifadas em negrito). O núcleo e as unidades a ele ligadas formam um "bloco de sentido", ou seja, um sintagma. Um dos expedientes para identificar um  sintagma é o da comutação com uma forma pronominal. Se fôssemos usar “eles” em (1), teríamos de inseri-lo no lugar de  “os cabelos de Isabel”.

(1a) Eles      são lindos.
      Núcleo

Agora, “eles” é o sujeito (o termo com que o verbo concorda). Uma vez que a forma “eles” é passível de ocupar a mesma posição de “Os cabelos de Isabel”, conclui-se que é toda esta unidade que funciona como sujeito em (1).
Há outro expediente para identificar um sintagma – o do deslocamento. Se fôssemos reescrever a frase (1), de modo a começá-la pelo verbo, o resultado seria:

(1b) (sujeito) São lindos os cabelos de Isabel.
                                                  (Sujeito)

O teste do deslocamento nos mostra que é toda a unidade “os cabelos de Isabel” que é deslocada, e não apenas “os cabelos” ou “de Isabel”. Disso se conclui que é toda a unidade “os cabelos de Isabel” que cumpre a função de sujeito.
Os dois referidos testes - o da comutação e o do deslocamento - são utilizados na análise gramatical para a identificação de grupos coesos de vocábulos (sintagmas), que são os verdadeiros constituintes da oração. No entanto, também se nos mostraram relevantes para determinar a extensão do sujeito, em caso de dúvida.
Eu disse, anteriormente, que o núcleo comanda a concordância do verbo. De fato, é a regra geral. Mas casos há em que essa regra concorre com outra regra. Se o sujeito for formado de substantivos “partitivos”, ou seja, que designa uma porção de um dado conjunto de coisas (a maioria de, grande parte de, uma porção de, etc.), é possível acomodar o verbo à forma do substantivo núcleo da construção preposicionada. Como esse substantivo aparece no plural, o verbo assumirá necessariamente a forma de plural. Voltemos ao exemplo com que iniciei este texto:

(3) A maioria dos cariocas não aprovou/ não aprovaram a iniciativa.
          Núcleo

Há duas regras em concorrência nesse caso.

Descrição do caso: sujeito formado de substantivo partitivo.

REGRA 1 :  o verbo concorda, no singular, com o núcleo do sujeito, ou seja, com o substantivo que designa a parcela do conjunto.

REGRA 2: o verbo pode concordar, no plural, com o substantivo que designa os componentes do conjunto.





       

sábado, 3 de novembro de 2012

"A palavra 'mundo' não é o mundo" (BAR)


                            

                                 A presença das palavras


Quero convidá-lo a pensar no que se segue. 
Já se deu conta de que os espaços sociais em que vivemos estão repletos de palavras? Já se deu conta de que para onde quer que olhemos elas estão a mostrar-se? Estão aqui diante de mim, estampadas num livro, impressas nesta imagem de papel virtual em que escrevo. Mas as palavras, embora existam e estejam presentes aos nossos ouvidos, aos nossos olhos (quando se revestem da roupagem gráfica), à nossa consciência,  não se confundem com coisas. Palavras não são coisas. Primeira lição importante em semiótica. As palavras são uma forma de signo linguístico.
Quando eu profiro ou escrevo ‘mundo’, não é o mundo que se impõe a sua consciência. É a palavra ‘mundo’ com todo seu investimento polissêmico (v. o mundo da arte, o mundo da ciência, o mundo do crime, o mundo da prostituição, o mundo dos antigos gregos, etc.). Cada uso feito da palavra ‘mundo’ produz um forma diferente de representação de parcelas de nossa experiência de ‘mundo’. Palavras não são rótulos  que colocamos nas coisas, à semelhança de etiquetas aplicadas em produtos comercializáveis. Palavras são materiais linguísticos com que criamos conceitos, por meio dos quais organizamos nossas experiências de mundo numa totalidade dotada de sentido.
Mais uma vez. Se digo ‘baleia’, não é o animal, maior mamífero do mundo, que está diante de você. É um signo que está em lugar de. Agora, pense que o texto, que se compõe de palavras, como sendo um supra-signo (ou seja, uma forma de signo mais complexa e hierarquicamente mais alta), não pode espelhar a realidade, não pode dizer o que é a realidade ou como é a realidade. Palavras escondem mais do que revelam. Entre a palavra e o objeto que ela designa, há o significado de que toma parte aquele que dela se serve (o sujeito do discurso). Mas esse mesmo sujeito não é senhor do significado (ele apenas julga sê-lo, porque atravessado pela ideologia). Pois bem. O que ele faz, ao produzir seu texto, é construir uma versão de mundo com base em seu ponto de vista, suas crenças, seus valores, que são constituídos sócio-histórica e ideologicamente. Vozes portadoras de palavras o atravessam, não sendo, portanto, ele um sujeito adâmico, origem do seu discurso. Ora, usamos a linguagem também para falar do mundo. É o mundo falado que nos interessa, ou, para usar o jargão dos linguistas, o mundo textualizado que nos interessa, quando pretendemos interagir e compreender a realidade mediante a linguagem. Você que lê um texto, por exemplo, de um articulista num jornal, não pode esperar que ele lhe dirá o mundo tal como é, mas tão-só lhe exporá a perspectiva que ele tem sobre o mundo.. A verdade é uma construção social; baseia-se num consenso. Usar a língua é produzir significados. E usando a língua significamos a realidade de modos variados, não segundo uma subjetividade livre, desimpedida e que goza do poder de arbitrar sobre o sentido certo ou a verdade, mas segundo uma subjetividade posicionada, situada em um contexto sócio-histórico e ideológico.
O signo não é a coisa, ou a palavra não se confunde com a coisa. O texto ou o discurso não espelha a realidade, não é uma imagem exata da realidade tal como é. O que é a realidade ou as realidades? Construções simbólicas, forjadas num complexo que envolve a relação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. Toda realidade é um complexo entretecido de sentido. Dar sentido é dar ordem ou, dito doutro modo, o sentido pressupõe uma ordem, assim o é com os enunciados que produzimos. A ordem produz o sentido, ao mesmo tempo que o sentido a pressupõe. Se digo “A quebrou a bola da janela vidraça”, produzo uma sequência linguística desprovida de sentido. Falta-lhe uma estrutura, uma forma, uma ordem. Portanto, falta-lhe o sentido. Essa disposição aleatória de palavras, num nível cognitivo, não representa nenhuma parcela de nossa experiência. Mas se lhe dou outro torneio, como “A bola quebrou a vidraça da janela”, então o que era caos se torna ordem, e o sentido ganha vida em nossa consciência. Há algo mais interessante aí. É certo que essa frase estrutura adequadamente nossa experiência de mundo. O evento como um todo pode ser representado em nossa consciência, reconstruído mentalmente na forma de um estado-de-coisas verificável no mundo. Mas essa é apenas uma versão da representação desse estado do mundo. Alguém poderia dizer “O garoto quebrou a vidraça da janela com a bola”, ou ainda “Chutando a bola, o garoto quebrou a vidraça da janela”, ou “O garoto arremessou a bola contra a vidraça da janela, quebrando ela”, etc.
Note que na primeira versão, omitiu-se o agente, embora ele esteja cognitivamente pressuposto, já que sabemos que a bola não pode ter quebrado a vidraça da janela, sem que um agente humano a tenha lançado. A omissão faz toda diferença. E mais diferença haveria se a frase produzida fosse “Quebraram a vidraça da janela com a bola”. Nesse “mundo” representado nesta frase, ou nesse estado-de-coisas descrito nesta frase, falta a lexicalização do agente. Não há uma palavra que o designe. A frase revela muito sobre os modos como nos relacionamos com o mundo. Muitas vezes, não podemos ou não queremos denunciar o perpetrador de um ato que lhe acarretará alguma repreensão ou punição. A língua influencia nossas estruturas cognitivas. Sabemos que o verbo ‘quebrar’ inclui em sua estruturação semântica (chamada ‘valência semântica’) um causador (v. A ventania quebrou a vidraça) ou agente (quando o sujeito é ocupado por uma entidade humana). Faz parte de nosso conhecimento de mundo o fato de que em toda experiência representada com o uso do verbo “quebrar” o causador ou agente está implicado. Isso não nos impede de omiti-lo, já que, nossa língua, disponibiliza um recurso adequado para tanto. É a realidade, portanto, que se reconstrói, e não que se espelha quando produzimos nossos textos. São os signos que, organizados segundo as regras previstas pela gramática da língua, a representam em nossa consciência e não que a põem para nós como algo já dado, pré-existente.