quinta-feira, 15 de novembro de 2012

"Ler diverte o pensamento" (BAR)



                                         



                                  

                                 Ler é emersão

Deixei de brincar com brinquedos para me entreter com as palavras. Deixei de usar a imaginação nas brincadeiras que embalavam minha infância, para aplicá-la à leitura. Os meus brinquedos são os livros. Eles me entretêm, ensinando-me. Isso é o verdadeiro aprendizado lúdico. Se não estou lendo, estou escrevendo. O melhor presente que podem me dar é um livro. É claro que não qualquer livro.
Pode ser surpreendente para muitas pessoas, mas existe vida depois da leitura. Ler não me impede de me entreter fora de casa. Nenhuma leitura deveria ser feita por obrigação. É claro que, muita vez, lemos porque é preciso ler (por exemplo, para resolver uma prova). Mas, mesmo nesse caso, a leitura deveria ser encarada como uma atividade motivada por outros propósitos. É verdade que há leitura informativa, por exemplo, quando lemos uma bula de remédio (se é que alguém a lê mesmo) ou quando lemos jornais. Há leitura que serve para nos instruir a executar alguma tarefa, como a leitura de manuais para pôr a funcionar um aparelho eletrônico ou de uma receita para preparar um bolo.
Pensemos, agora, nos livros. Afora os casos em que temos de ler um livro, porque seu conteúdo será cobrado numa prova, eu lhe pergunto, leitor, por que você lê um livro. Talvez, porque se trate de um livro cujo conteúdo lhe agrada. As motivações para a leitura são muito variadas e subjetivas. Mas, como regra geral, lemos, porque queremos nos apropriar de conhecimentos universalmente produzidos. Lemos porque não é factível, para um indivíduo apenas, produzir toda sorte de conhecimentos. Em outras palavras, não sendo eu um paleontólogo, mas me interessando pelas produções nesta área, busco adquirir, num livro que abrigue contribuições em paleontologia, conhecimentos produzidos nesse campo do saber. Não preciso me formar em psicologia, para aprender sobre as teorias que iluminam as práticas dos psicólogos; basta que eu leia alguns livros sobre o assunto. É claro que, se não somos iniciados numa determinada área do saber, melhor será procurar ler livros de introdução, que forneçam, portanto, princípios elementares.
  Lemos para saber mais sobre a complexidade do mundo. Lemos para aprender mais sobre o mundo. Lemos também para aprender sobre quem somos (tanto como indivíduo quanto como espécie). Lemos para alargar nossa percepção de mundo. Lemos para que sejamos capazes de pensar com maior abrangência, complexidade e destreza. A leitura torna mais robusto, mais complexo, mais analítico o pensamento. Lemos para desenvolver habilidades argumentativas mais eficientes. É claro que argumentamos quando falamos. Não custa lembrar que o uso da linguagem é intrinsecamente argumentativo; no entanto, é com a leitura que podemos nos apropriar de  estratégias de argumentação mais complexas e sistemáticas . É com a leitura que temos mais oportunidades de experiência  direta e demorada com recursos argumentativos diversos.
Ler permite-nos disciplinar o pensamento. Não se poderia esquecer as consequências socio-culturais e políticas da leitura. Quem lê atua mais criticamente no mundo. Isso soa como um lugar-comum, mas verdadeiro. Devemos ler com atenção as palavras de Silva, em O Ato de Ler (2011), que nos ensina sobre o papel da leitura enquanto experiência de participação:


“A leitura, enquanto uma forma de participação, somente é possível de ser realizada entre os homens. Os signos impressos, registrando as diferentes experiências humanas apenas medeiam as relações que devem existir entre os homens – relações estas que dinamizam o mundo cultural. Sendo um tipo específico de comunicação, a leitura é uma forma de encontro entre o homem e a realidade sociocultural; o livro (ou qualquer outro tipo de material escrito) é sempre uma emersão do homem do processo histórico, é sempre a encarnação de uma intencionalidade e, por isso mesmo, “sempre reflete o humano” (...).”
(grifo meu)
(p. 47)


É nesse encontro com a realidade sociocultural, pela leitura, que o leitor pode, em face daquela, posicionar-se criticamente. É na leitura que o homem pode elevar sua consciência sobre os condicionamentos sócio-hístóricos que lhe deram forma, para contemplar a si mesmo (entenda-se “refletir sobre”). É isso que significa a ‘emersão do homem do processo histórico’. Se o homem, pela leitura, emerge, é porque, no seu dia-a-dia, desocupado da atividade de leitura e envolvido em suas atividades de rotina, vê-se apenas como produto do devir histórico; a emersão se dá com a tomada de consciência de sua situação nos movimentos históricos. O homem que lê reconhece-se dialeticamente vinculado à realidade histórica, porque, ao mesmo tempo, produto e agente das condições socio-culturais, historicamente determinadas. A leitura permite-lhe uma atuação esclarecida nessa realidade.
A leitura torna possível a desrotinização da consciência, cujos horizontes estão atrelados à cotidianidade. Ler é emersão; é uma forma de experiência pela qual nos desafogamos das vivências comuns do cotidiano, para alargar o pensamento sobre elas.
Que fique claro: a posse da cultura escrita não é só uma forma poderosa de marcar a distinção social, é o caminho mais próspero (e possivelmente único) para a compreensão e o questionamento das formas de legitimação do poder das classes dominantes. É, finalmente, uma etapa importante para a transformação das relações de dominação.

A linguagem é uma forma de constituição e elaboração da realidade


                    


                            A construção textual da realidade
                                                
                                                     A referenciação em foco


Sobre moluscos e homens

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento (insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento”) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...


Conforme havia prometido, revisito o texto de Rubem Alves – Sobre moluscos e homens –, a fim de apresentar e desenvolver o tema da referenciação.

A referenciação

Usamos a linguagem também para falar do mundo. Mas, como venho insistindo, o mundo de que fala a linguagem não é o mundo tal como é, mas um mundo textualizado. Na verdade, a linguagem não espelha o mundo, mas o trabalha, o reconstrói. Quando, pelo fenômeno da designação, ‘pinçamos’ um ser (ou entidade) do mundo e o introduzimos em nosso discurso, o transformamos num referente, ou melhor, num objeto-de-discurso. Suponhamos que eu tenha um gato e que meu gato esteja dormindo em cima do sofá. Minha mãe pergunta pelo gato e eu respondo:

(1) O gato tá dormindo no sofá.

Note que o referente designado pelo substantivo ‘gato’ aparece na forma de um SN (sintagma nominal) definido (ou seja, antecedido de um artigo definido). O uso do artigo definido indica, em geral, que o referente é parte do saber compartilhado com meu interlocutor. Tanto eu quanto minha mãe sabemos de que gato se trata. Imaginemos que o discurso prosseguisse da seguinte forma:

(2) Acorda ele pra ele comer.

Note agora o uso do pronome ‘ele’ que retoma o referente ‘gato’. O ‘ele’ nos instrui a buscar a informação em outro lugar. Em (1), introduzimos um referente (gato) e em (2) o retomamos pelo uso da forma pronominal. Outras formas de recuperar o referente são possíveis. Vejamos algumas:

(2a) Acorda o bichano pra ele comer.
(2b) Acorda esse felino pra ele comer.
(2c) Acorda esse animal pra ele comer.
(2d) Acorda esse bicho preguiça pra ele comer.
(2e) Acorda esse dorminhoco pra ele comer.
(2f) Acorda esse floquinho de neve pra ele comer.

Todas as formas de referenciação de (2a) a (2e) servem à recategorização do referente ‘gato’, de acordo com a perspectiva do enunciador. Cada escolha revela uma atitude, um ponto de vista do enunciador em relação ao gato. Por exemplo, em (2f), o constituinte “floquinho de neve” expressa afetividade. Seu uso sinaliza que o enunciador nutre afeição pelo gato. Já em (2e), o enunciador designa o gato pelo seu hábito de dormir demais. Em todos os casos, o referente ‘gato’ é reconstruído segundo a perspectiva, crenças ou atitudes do enunciador.
Imaginemos agora que minha tia entre em cena e que o gato ainda esteja dormindo. Minha mãe insiste em pedir que acordem o gato. Suponhamos que minha mãe dirija-se a minha tia solicitando-lhe que acorde o gato. Minha mãe pode escolher entre as possibilidades listadas acima. Suponhamos que escolha (2e):

(2e) Acorda aquele dorminhoco pra ele comer.

Poderia suceder que minha tia não conseguisse recuperar o referente de ‘dorminhoco’, já que ele não nos instrui, se não estiver adequadamente integrado num contexto sociocognitivo (grosso modo, um conjunto de conhecimentos variados que os interlocutores supõem partilhar entre si), a recuperar o conteúdo ‘gato’. Para minha tia que acabara de chegar, dorminhoco poderia ser o sobrinho, o genro, etc. Ou seja, minha tia, porque acabara de chegar, não seria capaz de construir um modelo cognitivo da situação, no interior do qual pudesse ativar o referente ‘gato’ assim que ouvisse a palavra ‘dorminhoco’. Além disso, está claro que, para efeitos de produção e compreensão do discurso, importam não as coisas no mundo, mas os procedimentos pelos quais nos referimos a elas. Em outras palavras, quando produzimos nossos textos ou quando buscamos interpretar e compreender textos, importa o modo como o mundo é textualizado, como seus objetos e seres são introduzidos, mantidos e modificados no discurso, tornando-se objetos-de-discurso.
Assim em (2e) não basta saber o que significa ‘dorminhoco’, não basta saber que dorminhoco designa ou qualifica quem dorme muito. Importa identificar o objeto-de-discurso a que ele remete.
A referenciação é, portanto, uma atividade discursiva. Os objetos-de-discurso não se identificam com as coisas do mundo extralingüístico. A realidade extralingüística é (re)construída no próprio evento de interação.
A construção e reconstrução dos objetos-de-discurso envolvem saberes de ordem diversa, tais como:
a) o saber construído por ocasião da compreensão do próprio texto (trata-se de um saber textualmente construído, o qual envolve a produção de inferências com base num vasto conjunto de conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais);
b) e saberes, opiniões e crenças que são ativados no momento mesmo em que autor-texto-leitor interagem.

Existem três estratégias de referenciação. Elas servem à construção dos referentes textuais (ou objetos-de-discurso):

a) introdução (construção): um ‘objeto’ é introduzido no texto, sem ter sido antes mencionado, e a expressão que o representa é colocada em ‘foco’ na memória textual do leitor.

b) Retomada (manutenção): um ‘objeto’ já introduzido no texto é reativado mediante uma forma referencial, de sorte que o objeto-de-discurso permanece em foco na memória do leitor.

c) Desfocalização: ocorre quando um novo objeto-de-discurso é introduzido no texto, passando a ocupar uma posição ‘focal’. O referente que ocupava antes uma posição de foco, conserva o status focal em potência (encontra-se, por assim dizer, num estado de stand by). Ele continua disponível para ser usado quando necessário.

Vejamos como essas estratégias foram usadas pelo autor de Sobre moluscos e homens. Segue-se um trecho inicial do texto:

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, f seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito f teriam desaparecido se não f fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que f inventaram para não se f tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. f Ignoro detalhes da biografia de Piaget e f não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, f tive de imaginar. E foi imaginando que f pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. f Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida.


O símbolo f indica a elipse do referente. Notemos que a expressão “os moluscos dos lagos da Suíça” designa um referente então introduzido e, logo em seguida, recuperado no sintagma genérico “os moluscos”. A operação anafórica recupera apenas o núcleo do sintagma que tem o estatuto de referente e a forma referencial (anafórica) é mais genérica, já que exclui o adjunto que delimitava o domínio de referência de "moluscos". De qualquer modo, após ter sido introduzido, o referente é mantido em foco na memória textual do leitor. A manutenção do referente no modelo textual é feita pela omissão do termo “moluscos”, que é recuperável na desinência dos verbos subsequentes (seriam, teriam, fossem...). Ocorre a desfocalização do referente “moluscos” na sétima linha, em que o autor introduz o enunciador, pelo recurso à elipse da forma ‘eu’. O referente ‘eu’ elíptico é mantido, ou seja, fica em foco da sétima até a décima linha, quando o referente ‘Piaget’, que fora introduzido no limiar do texto, é retomado. Mas o referente fica em foco por pouco tempo. Na linha treze, um novo referente passa a ocupar a posição de foco na memória do leitor - é o referente ‘homem’, que será mantido até o fim do parágrafo.
Como vemos, a referenciação é um dos mecanismos responsáveis pela construção da teia textual. Tudo no texto está conectado. A referenciação, também denominada de coesão referencial, quando examinada, revela as diversas conexões entre as unidades textuais. Quando, pela análise, buscamos reconstruir a atividade de produção textual feita pelo autor, percebemos que a estruturação do texto se realiza por sucessivas introduções e retomadas de referentes. Quando os referentes retomados servem de base para nova introdução de referentes, temos então uma progressão referencial. Saliente-se, pois, que o texto, embora não resulte do acréscimo de novas unidades a outras previamente colocadas, constitui uma totalidade de relações sequenciadas, mas não lineares, já que há outros movimentos referenciação no texto, que não seguem o modelo introdução-retomada imediata. Por exemplo, após introduzir o referente ‘Piaget’, o autor passou a introduzir novos referentes, e só muito posteriormente, o retomou.


domingo, 11 de novembro de 2012

"A fragilidade da vida pesa na quantidade de lágrimas que derramamos por ela" (BAR)

   

                        




                                                  Lágrimas saudosas

Enquanto cantava Nana Caymmi, lágrimas escorriam dos olhos de meu avô. A canção que embalava sua saudade era “Lembra de mim”. Belíssima música! A memória de minha avó, recentemente fenecida, ocupava totalmente sua alma e coração. Compadecido de sua dor, beijei-lhe uma das mãos e sussurrei: ‘vocês um dia vão se reencontrar’, ao que se seguiu um abafado ‘Se Deus quiser’. Foi quando lamentei que seu desejo estivesse projetado numa ilusão.
Quão forte e arraigado é este desejo! O desejo de reencontrar as pessoas que amamos e que já não estão mais entre nós! Tamanha a sua força, que reprimimos a ideia de que pode não haver uma vida além-túmulo. Quantos levam em conta a possibilidade de que a morte seja realmente o fim da única vida que nos foi possível? Num sentido metafísico, misteriosamente possível. Para muitos, a ideia de que todos os laços de amor que foram formados na vida serão completamente dissolvidos quando morrermos, sem ter chance de reatá-los numa existência outra é, deveras, angustiante.
Sinceramente, não posso descartar aquela ideia, tampouco posso calar o desejo de inesgotabilidade da vida. O sentido está em viver, seja na condição de seres autoconscientes e conscientes de sua própria finitude, seja em condições supra-sensíveis que eu simplesmente ignoro. Vivamos sem demasiada ilusão. Tenho-me esforçado por desiludir-me. A morte chega para todos; mas a vida continua para muitos. Vida-morte-vida-morte-morte-vida – assim se insinua à nossa experiência o Mistério – um Vazio impreenchível, imperscrutável, impenetrável, pelo menos enquanto há vida plena de consciência e lágrimas para suportá-la.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A grande maioria dos brasileiros pensa que não sabem falar português


                       


                               Uma aulinha de concordância verbal

Uma amiga, estudando para concurso, disse-me não se lembrar mais das lições de concordância. Quem, senão os estudantes de Letras, haveria de lembrá-las? Eu já não sei mais resolver as equações matemáticas. Ignoro completamente as regras de solubilidade dos compostos químicos. Mas, no caso da concordância verbal e nominal, nós a dominamos quase inconscientemente. Isso vale para todas as regras da gramática de nossa língua materna, gramática que internalizamos entre os 3 e 7 anos de vida. Nós operamos com essas regras, mas, como eu disse, de modo não-reflexivo. Claro é que não ativamos todas as regras, mas tão-só aquelas que regem os usos da variedade linguística que dominamos. E mesmo aqui há usos mais frequentes que outros e, por conseguinte, regras que são mais frequentemente seguidas do que outras. Por exemplo, é provável (digo provável porque desconheço algum estudo quantitativo nesse tocante) que, em construções como “quais de nós...”, a regra mais frequentemente seguida seja a que nos instrui a fazer com que o verbo assuma a forma de 3ª pessoa do plural, para concordar com o pronome indefinido interrogativo “quais” (cf. “Quais de nós vão com você?). Nesse caso, há outra regra válida: a que nos instrui a concordar o verbo com o pronome “nós” da construção “de nós” (cf. Quais de nós vamos com você?).
As dificuldades parecem surgir quando temos de tomar consciência das regras subjacentes aos mecanismos de concordância. Por exemplo, o leitor pode falar ou escrever “A maioria dos meus amigos falam inglês”. Uma vez ouvindo alguém dizer “A maioria dos cariocas não aprovou a iniciativa”, pode começar a hesitar entre o uso da forma plural e da forma singular do verbo. São ambas agasalhadas pela norma culta? Sim, são. Quais as regras que estão em jogo aí?
Comecemos notando a estrutura do sujeito. Todo sujeito é constituído de um substantivo ou palavra de igual valor. Esse substantivo preenche a posição de núcleo do sujeito, em torno do qual podem aparecer outras unidades, como em (1) e (2):

(1)     Os cabelos de Isabel são lindos.
                             Núcleo
                (2) As três melhores amigas de Isabel viajaram para o exterior.
                                             Núcleo

 Como podemos saber que todo o conjunto à esquerda dos verbos “são” e “viajaram” é o sujeito. Em primeiro lugar, o sujeito é o termo com o qual o verbo, via de regra, concorda. É o núcleo do sujeito, normalmente, que comanda a concordância. Como o núcleo dos respectivos sujeitos está no plural (v. cabelos/ amigas), o verbo tem de ir para o plural (na terceira pessoa). Mas por que não considerar apenas o núcleo como sujeito? Na verdade, quando o sujeito se constitui apenas do núcleo, é o que acontece, como em (3):

(3) Amor       não é remédio.
     Núcleo
      Sujeito

Nos casos (1) e (2), no entanto, presas ao núcleo há outras unidades (todas grifadas em negrito). O núcleo e as unidades a ele ligadas formam um "bloco de sentido", ou seja, um sintagma. Um dos expedientes para identificar um  sintagma é o da comutação com uma forma pronominal. Se fôssemos usar “eles” em (1), teríamos de inseri-lo no lugar de  “os cabelos de Isabel”.

(1a) Eles      são lindos.
      Núcleo

Agora, “eles” é o sujeito (o termo com que o verbo concorda). Uma vez que a forma “eles” é passível de ocupar a mesma posição de “Os cabelos de Isabel”, conclui-se que é toda esta unidade que funciona como sujeito em (1).
Há outro expediente para identificar um sintagma – o do deslocamento. Se fôssemos reescrever a frase (1), de modo a começá-la pelo verbo, o resultado seria:

(1b) (sujeito) São lindos os cabelos de Isabel.
                                                  (Sujeito)

O teste do deslocamento nos mostra que é toda a unidade “os cabelos de Isabel” que é deslocada, e não apenas “os cabelos” ou “de Isabel”. Disso se conclui que é toda a unidade “os cabelos de Isabel” que cumpre a função de sujeito.
Os dois referidos testes - o da comutação e o do deslocamento - são utilizados na análise gramatical para a identificação de grupos coesos de vocábulos (sintagmas), que são os verdadeiros constituintes da oração. No entanto, também se nos mostraram relevantes para determinar a extensão do sujeito, em caso de dúvida.
Eu disse, anteriormente, que o núcleo comanda a concordância do verbo. De fato, é a regra geral. Mas casos há em que essa regra concorre com outra regra. Se o sujeito for formado de substantivos “partitivos”, ou seja, que designa uma porção de um dado conjunto de coisas (a maioria de, grande parte de, uma porção de, etc.), é possível acomodar o verbo à forma do substantivo núcleo da construção preposicionada. Como esse substantivo aparece no plural, o verbo assumirá necessariamente a forma de plural. Voltemos ao exemplo com que iniciei este texto:

(3) A maioria dos cariocas não aprovou/ não aprovaram a iniciativa.
          Núcleo

Há duas regras em concorrência nesse caso.

Descrição do caso: sujeito formado de substantivo partitivo.

REGRA 1 :  o verbo concorda, no singular, com o núcleo do sujeito, ou seja, com o substantivo que designa a parcela do conjunto.

REGRA 2: o verbo pode concordar, no plural, com o substantivo que designa os componentes do conjunto.





       

sábado, 3 de novembro de 2012

"A palavra 'mundo' não é o mundo" (BAR)


                            

                                 A presença das palavras


Quero convidá-lo a pensar no que se segue. 
Já se deu conta de que os espaços sociais em que vivemos estão repletos de palavras? Já se deu conta de que para onde quer que olhemos elas estão a mostrar-se? Estão aqui diante de mim, estampadas num livro, impressas nesta imagem de papel virtual em que escrevo. Mas as palavras, embora existam e estejam presentes aos nossos ouvidos, aos nossos olhos (quando se revestem da roupagem gráfica), à nossa consciência,  não se confundem com coisas. Palavras não são coisas. Primeira lição importante em semiótica. As palavras são uma forma de signo linguístico.
Quando eu profiro ou escrevo ‘mundo’, não é o mundo que se impõe a sua consciência. É a palavra ‘mundo’ com todo seu investimento polissêmico (v. o mundo da arte, o mundo da ciência, o mundo do crime, o mundo da prostituição, o mundo dos antigos gregos, etc.). Cada uso feito da palavra ‘mundo’ produz um forma diferente de representação de parcelas de nossa experiência de ‘mundo’. Palavras não são rótulos  que colocamos nas coisas, à semelhança de etiquetas aplicadas em produtos comercializáveis. Palavras são materiais linguísticos com que criamos conceitos, por meio dos quais organizamos nossas experiências de mundo numa totalidade dotada de sentido.
Mais uma vez. Se digo ‘baleia’, não é o animal, maior mamífero do mundo, que está diante de você. É um signo que está em lugar de. Agora, pense que o texto, que se compõe de palavras, como sendo um supra-signo (ou seja, uma forma de signo mais complexa e hierarquicamente mais alta), não pode espelhar a realidade, não pode dizer o que é a realidade ou como é a realidade. Palavras escondem mais do que revelam. Entre a palavra e o objeto que ela designa, há o significado de que toma parte aquele que dela se serve (o sujeito do discurso). Mas esse mesmo sujeito não é senhor do significado (ele apenas julga sê-lo, porque atravessado pela ideologia). Pois bem. O que ele faz, ao produzir seu texto, é construir uma versão de mundo com base em seu ponto de vista, suas crenças, seus valores, que são constituídos sócio-histórica e ideologicamente. Vozes portadoras de palavras o atravessam, não sendo, portanto, ele um sujeito adâmico, origem do seu discurso. Ora, usamos a linguagem também para falar do mundo. É o mundo falado que nos interessa, ou, para usar o jargão dos linguistas, o mundo textualizado que nos interessa, quando pretendemos interagir e compreender a realidade mediante a linguagem. Você que lê um texto, por exemplo, de um articulista num jornal, não pode esperar que ele lhe dirá o mundo tal como é, mas tão-só lhe exporá a perspectiva que ele tem sobre o mundo.. A verdade é uma construção social; baseia-se num consenso. Usar a língua é produzir significados. E usando a língua significamos a realidade de modos variados, não segundo uma subjetividade livre, desimpedida e que goza do poder de arbitrar sobre o sentido certo ou a verdade, mas segundo uma subjetividade posicionada, situada em um contexto sócio-histórico e ideológico.
O signo não é a coisa, ou a palavra não se confunde com a coisa. O texto ou o discurso não espelha a realidade, não é uma imagem exata da realidade tal como é. O que é a realidade ou as realidades? Construções simbólicas, forjadas num complexo que envolve a relação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. Toda realidade é um complexo entretecido de sentido. Dar sentido é dar ordem ou, dito doutro modo, o sentido pressupõe uma ordem, assim o é com os enunciados que produzimos. A ordem produz o sentido, ao mesmo tempo que o sentido a pressupõe. Se digo “A quebrou a bola da janela vidraça”, produzo uma sequência linguística desprovida de sentido. Falta-lhe uma estrutura, uma forma, uma ordem. Portanto, falta-lhe o sentido. Essa disposição aleatória de palavras, num nível cognitivo, não representa nenhuma parcela de nossa experiência. Mas se lhe dou outro torneio, como “A bola quebrou a vidraça da janela”, então o que era caos se torna ordem, e o sentido ganha vida em nossa consciência. Há algo mais interessante aí. É certo que essa frase estrutura adequadamente nossa experiência de mundo. O evento como um todo pode ser representado em nossa consciência, reconstruído mentalmente na forma de um estado-de-coisas verificável no mundo. Mas essa é apenas uma versão da representação desse estado do mundo. Alguém poderia dizer “O garoto quebrou a vidraça da janela com a bola”, ou ainda “Chutando a bola, o garoto quebrou a vidraça da janela”, ou “O garoto arremessou a bola contra a vidraça da janela, quebrando ela”, etc.
Note que na primeira versão, omitiu-se o agente, embora ele esteja cognitivamente pressuposto, já que sabemos que a bola não pode ter quebrado a vidraça da janela, sem que um agente humano a tenha lançado. A omissão faz toda diferença. E mais diferença haveria se a frase produzida fosse “Quebraram a vidraça da janela com a bola”. Nesse “mundo” representado nesta frase, ou nesse estado-de-coisas descrito nesta frase, falta a lexicalização do agente. Não há uma palavra que o designe. A frase revela muito sobre os modos como nos relacionamos com o mundo. Muitas vezes, não podemos ou não queremos denunciar o perpetrador de um ato que lhe acarretará alguma repreensão ou punição. A língua influencia nossas estruturas cognitivas. Sabemos que o verbo ‘quebrar’ inclui em sua estruturação semântica (chamada ‘valência semântica’) um causador (v. A ventania quebrou a vidraça) ou agente (quando o sujeito é ocupado por uma entidade humana). Faz parte de nosso conhecimento de mundo o fato de que em toda experiência representada com o uso do verbo “quebrar” o causador ou agente está implicado. Isso não nos impede de omiti-lo, já que, nossa língua, disponibiliza um recurso adequado para tanto. É a realidade, portanto, que se reconstrói, e não que se espelha quando produzimos nossos textos. São os signos que, organizados segundo as regras previstas pela gramática da língua, a representam em nossa consciência e não que a põem para nós como algo já dado, pré-existente. 

"O homem inautêntico é o homem cuja consciência está anestesiada" (BAR)




                         Kierkegaard e o filistenismo

Soren Kierkegaard (1813-1855), considerado o fundador do existencialismo, foi tão influente no pensamento moderno quanto Nietzsche. Fora filósofo e teólogo; apaixonadamente cristão, mas averso à religião organizada e a qualquer forma de doutrina que embota a consciência. Sua filosofia, banhando-se na caldeira humanista-racional à época, opunha-se ao pensamento de Hegel. Kierkegaard rejeitava as abstrações e os conceitos do filósofo idealista alemão, por ter eles mais valor, no interior de sua filosofia, do que o próprio real.
A condição humana e a angústia estavam no centro de suas preocupações filosóficas, o que parece justificar o fato de Ernest Becker, em seu livro A negação da morte (2012), ter-lhe conferido o título de psicanalista. Nas palavras deste autor,

“A estrutura de compreensão que Kierkegaard tem do homem é quase que exatamente uma recapitulação do moderno retrato clínico do homem que esboçamos nos quatro primeiros capítulos deste livro.”
(p. 94)
(ênfase no original)


As contribuições de Kierkegaard ao estudo da psicologia humana foram tão importantes, que Becker não hesitou em equiparar o trabalho do filósofo dinamarquês ao de Freud.
Kierkegaard propunha a inseparabilidade entre religião e psicanálise no que toca ao tratamento da condição humana. Esses dois domínios discursivos, segundo ele, têm muito a ensinar sobre nossa ambiguidade.
Veremos de que natureza é essa ambiguidade; antes, porém, convém reter que Kierkegaard concebia o homem como resultado da união entre uma autoconsciência e um corpo físico. Tendo evoluído na base de uma ação instintivo-reflexa, à semelhança dos outros animais, o ser humano passou a refletir sobre sua própria condição. O homem se liberta das limitações da natureza e desenvolve uma autoconsciência. Ele não só toma consciência de sua individualidade, mas passa a creditar que participa da dimensão do divino pela criação.
O desenvolvimento da autoconsciência no homem se acompanhou da formação da consciência do terror do mundo e de sua  própria morte. Eis aqui a ambiguidade constitutiva do homem: um ser consciente da realidade do mundo e consciente da inevitabilidade de sua morte. De acordo com Becker,

“A queda na autoconsciência, a saída da confortável ignorância na natureza, acarretou uma grande penalidade para o homem: pavor ou angústia”.

(p. 95)

A angústia, que para Kierkegaard decorria da consciência da morte, é consequência dessa ambiguidade, ou seja, do fato de o homem ser consciente do terror do mundo e de sua própria morte, mas também do fato de não poder exercer domínio sobre essa ambiguidade.
Kierkegaard antecipou a compreensão do caráter como couraça de que se vale o homem contra a visão da verdadeira realidade do mundo. O filósofo dinamarquês, no entanto, usou o termo “confinamento”, com o qual “se referia ao fato de que a maioria dos homens vive um estado (...) no qual bloqueia suas percepções da realidade” (p. 97). Atualmente, utiliza-se, em psicanálise e em psicologia, o termo repressão. A repressão é a causa da fragmentação interior da pessoa. Ela produz uma descontinuidade de sua personalidade.

“(...) a verdadeira percepção da realidade se encontra sob a superfície, bem à mão, pronta para irromper, deixando a personalidade aparentemente intacta e funcionando como um todo, em continuidade – mas essa continuidade é quebrada e assim a personalidade se encontra realmente à mercê da descontinuidade expressa pela repressão”

(p. 99)

Como se forma, pois, a mentira do caráter? Essa mentira forma-se na infância, quando a criança precisa adequar-se ao mundo, aos pais e lidar com seus próprios conflitos existenciais. Consoante nos ensina Becker,

“Ela se forma antes que a criança tenha a oportunidade de aprender sobre si mesma de uma maneira aberta e livre, e, por essa razão, as defesas do caráter são automáticas e inconscientes.”

(ib.id.)

Sucede, contudo, que a criança se torna dependente dessas defesas e também incapaz de reconhecê-las. A ignorância sobre elas leva-a a ficar mais encerrada em sua couraça (caráter), impedindo-a de transcender a condição de prisioneira.
A tentativa de rejeição da mentira do caráter produz o tipo de homem denominado de “homem inautêntico” (para Kierkegaard, o “filisteu” ou homem imediato). O homem inautêntico não consegue desenvolver sua singularidade. Ele apresenta as seguintes características:

a) Segue modelos de vida irrefletidamente;
b) Não questiona tais modelos a que foi condicionado desde a infância;
c) Não desenvolve autonomia e originalidade;
d) Não constrói uma visão de mundo independente de ideologias que se cristalizaram em sua consciência por ocasião dos processos formativos a que foi submetido;
e) É sensivelmente condicionado por sua cultura, chegando a tornar-se uma espécie de escravo dela (embora a ideia de escravidão aqui seja discutível).

Kierkegaard chamava “filistenismo” ao estilo de vida trivial do homem inautêntico, por ele considerado um filisteu (filisteus formavam um povo da Antiguidade que chegaram a dominar Israel; mas, em Kierkegaard, o significado parece ser o de ‘pessoa vulgar de mentalidade estreita’). Filisteu, na visão do filósofo dinamarquês, é o homem que se satisfaz tão somente com as ofertas de entretenimento de sua sociedade. É o homem imerso e idiotamente feliz em suas rotinas diárias. É o homem que ergue uma cerca ao seu redor e contenta-se em atuar e em perceber a realidade nos limites estreitos fixados pela cerca. Becker levanta a questão sobre o porquê de o homem preferir uma vida trivial, à qual responde como se segue:

“Devido ao perigo que um amplo horizonte de experiências representa, é claro. Esta é a mais profunda motivação do filistinismo, o fato de ele celebrar o triunfo sobre a possibilidade e a liberdade. O filistinismo conhece o seu verdadeiro inimigo: a liberdade é perigosa. Se você a segue com excesso de disposição, ela ameaça arrastá-lo para o ar; se abre mão dela em demasia, você se torna um prisioneiro da necessidade”.

(p. 101)


Não é difícil encontrar esse tipo de homem em nossas sociedades. Por quantas vezes não nos deparamos com pessoas incapazes de pensar por si próprias? Além de ocupar empresas e os domínios da burocracia no Ocidente e no Oriente, o filisteu ou homem inautêntico também habita as tribos limitadas a sua tradição. Estando os homens inautênticos quase totalmente condicionados por sua cultura, não é difícil determinar quais as principais instituições responsáveis pela formação deles (a família, a escola, a mídia (especialmente a televisão), a religião, etc.). Becker observa que eles são “unidimensionais totalmente imersos nos jogos imaginários de sua sociedade, incapazes de transcenderem seu condicionamento social” (p. 100).
Mas é Kierkegaard quem nos oferece a melhor descrição da cotidianidade e estilo de vida desse tipo de homem, completamente fechado em seu caráter:

“homem imediato (...) o seu eu ou ele próprio é algo incluído juntamente com “o outro” no âmbito temporal e do mundano. (...) Assim, o eu combina imediatamente com “o outro”, querendo, desejando, desfrutando etc., mas de forma passiva; (...) ele consegue imitar os outros homens, observando como eles conseguem viver, e assim ele também vive, de certa forma. Na cristandade, ele também é cristão, vai à igreja todo domingo, ouve e compreende o vigário; é, eles se entendem; ele morre; o vigário o conduz à eternidade pelo preço de dez dólares – mas um eu ele não foi, e um eu não se tornou. (...) Porque o homem imediato não reconhece o seu eu, só se reconhece pelos seus trajes, (...) reconhece que tem um eu só pelas aparências”.

(p. 100. Kierkegaard. In. Becker)


É provável que Sartre visse na situação do homem imediato ou homem inautêntico a expressão da má-fé, conceito com que definia a situação do homem que busca defender-se contra a angústia e o desespero, evitando assumir sua condição de ser livre. Platão talvez também visse a situação do homem inautêntico à luz da sua teoria do conhecimento, ilustrada na sua alegoria da caverna. Para Platão, os homens inautênticos não seriam senão os prisioneiros da caverna, para quem a realidade se identificava às sombras projetadas na parede. A mentira do caráter compreende esse conjunto de sombras que lhes impedem de atingir a compreensão da verdade sobre a realidade e da verdade sobre sua própria condição humana.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

“O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. (Lia Luft)


                    
                                 
                                 Revisitando-me




Redescobrir-se... Revisitar-se... é privilégio de poucos. E se nos fosse possível reencontrar a nós mesmos no passado? Haveria alguma vantagem nisso? Malgrado a impossibilidade de voltarmos no tempo, podemos revistar o que fomos, em algum período pretérito da vida, por meio da leitura de nossos registros escritos. É a isso que me proponho neste texto. Reler-me.
Busquei em meu armário um conjunto de nove apostilas que reúnem textos diversos que escrevi ao longo dos últimos sete anos. Quase todas estampam na capa um título. Apenas uma, na verdade, não tem título. Uma delas ostenta o título Expressões do Espírito e seus textos foram produzidos no estágio mais acentuado da depressão. Abro parênteses para elucidar o que é depressão. Muitas pessoas confundem depressão com tristeza ou, por pura ignorância e preconceito, acreditam não ter ela qualquer gravidade. Na verdade, devemos falar em depressões (no plural).
Encontramos uma descrição de “depressão” bastante clara, em O que é neurose (2004), da psicóloga Maria Luiza Silveira Teles:

“Em qualquer tipo de depressão, costuma haver perda de vitalidade, perda de memória, dificuldade de concentração, perda de interesse pelas coisas ao redor, invasão de pensamentos negativos, ideias de culpa, baixa estima, autocensura, auto-reprovação, nenhuma perspectiva de futuro, sofrimento por antecipação. Ela pode vir acompanhada de fobia, pânico e hipocondria”.
(p. 43)

Salvo a perda de memória e a dificuldade de concentração, tive todos os demais sintomas. Havia, contudo, um interesse que eu conservei e graças ao qual, não sem a ajuda psicoterápica, pude emergir dos abismos psíquicos nos quais minha vida estava confinada: o interesse pelos livros.
Expressões do Espírito é uma coletânea de textos que versam sobre metafísica, Deus, cosmos, a realidade do eu (ou seja, o eu como instância psicológica), a condição de ser professor e temas filosóficos, como o da existência. Há textos de caráter mais intimista. Leiamos um fragmento do texto Existir é ser responsável. Nesse texto, me ocupei das filosofias de Sartre, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Embora o desenvolvimento do tema abrangesse a discussão sobre o pensamento desses três filósofos, eu não deixava de testemunhar minha própria visão sobre o ser eu:

“Há muito já reconheci minhas tolices, minhas incoerências e o absurdo de minha hipersensibilidade. No entanto, ainda não alcancei o poder de me valer das crises para promover meu crescimento humano. Este depende de nossa capacidade de compreender a vida numa dimensão muito maior e mais densa do que os retalhos de existência que revestem nosso cotidiano”.

Àquela altura, eu já estudava informalmente filosofia. E, à medida que fui aprofundando meus estudos, descobri na filosofia o poder de que eu precisava para me desafogar da depressão. Todos os textos revelam a busca incansável por um autoconhecimento.
Como eu pretendo dar a saber ao leitor um pouco do conteúdo de cada apostila, não vou me alongar sobre os pormenores de Expressões do Espírito. Limitar-me-ei a alusões gerais sobre os textos. O primeiro texto dessa coletânea intitula-se Reflexões dispersas. A influência da filosofia de Humberto Rodhem é notável. Rodhem propunha uma espiritualidade cósmica. Deus não poderia deixar de estar entre minhas preocupações. Também o pensamento de Allan Kardec, nome com que ficou conhecido Hippolyte Léon Denizard Rivail (seu verdadeiro nome), também exerceu sobre mim bastante influência. Era eu simpatizante da doutrina do espiritismo, postura esta a que não mais me inclino. Vejo-a com muita suspeita hoje.
A busca pela vida etérea é o segundo texto. Inicialmente, mostro-me saudoso e um pouco narcísico (compreensível, àquela altura, em alguém que estava enfrentando uma depressão). Fito os olhos no texto A centralidade do eu. Estampo aqui um trecho que testemunha meu estado de espírito naquela fase. Era eu um religioso crítico em profunda crise. Já um intelectual que precisava libertar-se dos grilhões da fé.

“O amor à vida. A gratidão infinda. A fé. A consciência da ventura, decorrente da dedicação e empenho ao labor do espírito. A dita. A família – ventre de minha vida. Essência do meu ser. Os livros. As palavras. Mares da lucidez e conforto. O saber. A busca incessante. O desbravamento. A insaciabilidade. A fome. O desejo irreprimível pela doçura dos versos. A personificação das palavras. O verbo santo. As preces à cabeceira da cama. A comunhão com o Divino. A ânsia pelo amor etéreo, pela unidade santa. A transcendência. A necessidade de superar o corpo e suas misérias. A consciência de que somos espírito com corpo. O conhecimento. A suavidade das rosas. A ternura das borboletas. A natureza policroma. O sol deitando seus raios luminosos sobre a janela. A oração – sufrágio dos aflitos. Um livro de Lia Luft:
“O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. ”

Impressiona-me como meu espírito estava muito impregnado da ideologia cristã. Aspirava ao asceticismo. Buscava um sentido transcendente para a vida, porque, àquela altura, o sentido estava estilhaçado, a vida não fazia sentido.
Há outra apostila, intitulada de Especulações filosóficasO saber pela palavra, que reúne textos sobre temática variada, muito embora atinente à filosofia. Homem de filosofia, leitura e imagem: o fascínio da televisão, racionalidade e pós-modernidade, pensamento e escrita, o que é a verdade, a expansão humana pela linguagem, as ondas da vida, o ser e o real: Parmênides e Platão – são os títulos que constam dessa coletânea.
Outra apostila, intitulada de Expressões da alma – o retorno ao interior, é também uma coletânea de textos com temática intimista. Meus textos quase sempre eram expressão da busca por um autoconhecimento pelos caminhos da filosofia e das religiões (no plural, porque me interessavam também o budismo e o espiritismo).  Os textos que se acham nessa coletânea apresentam os seguintes títulos: Os livros em mim, Eu sou o caminho, a verdade e a vida, Conhecendo o Budismo: Iluminação e Ilusão, Descaminhos ausentes, Con-versando sobre linguagem, Reminiscência: o despertar do conhecimento esquecido.
Tamanha a importância dos livros para mim, que no texto Os livros em mim, iniciei o primeiro parágrafo com as seguintes palavras:

“Ultimamente, meu espírito tem estado em ebulição. As ideias fervem amiúde como água borbulhante numa leiteira. É este o efeito benéfico dos livros: eles fazem a mente fervilhar. Num átimo em que fui tomado de uma emoção abrangente, que se expande para todas as células de meu corpo, injetando-me inquietude lírica, pensei se seria possível absorver todos os conteúdos livrescos, armazenando-os com saliência na memória. Delírio inconsistente!”

Polígrafo é o título de outra coletânea de textos. Polígrafo designa aquele que escreve sobre vários assuntos e esta coletânea encerra textos sobre temas diversos. Eis os títulos: Uma experiência inspiradora – o amor pela docência, O mundo ignoto: a incansável busca (texto que data de 26 de março de 2010), A ascensão espiritual: reconhecendo-se para além da materialidade, A importância de Ferdinand de Saussure e Noam Chomsky na formação acadêmica do graduando em Letras, O mundo através da palavra: a linguagem em meu Espírito.
Pensamentos e outros desvendamentos é outra apostila que reúne textos que versam sobre a formação do leitor crítico, a condição social humana, a sociedade de consumo, a contribuição de Noam Chomsky para a formação do professor de português, a consciência cósmica, a estruturação cósmico-humana, imagens e miragens no capitalismo avançado, a democracia no capitalismo avançado e as ideias de Marx e Engels. Outras duas apostilas estampam os títulos Releituras celestiais - espiritualidade e consciência cósmica e Meditações filosóficas.
Por fim, outra apostila encerra textos densamente líricos, entre muitos poemas. Na folha inicial, que não estampa um título, se topam fragmentos de outros textos que escrevi. O primeiro dos quais é bastante ilustrativo daquele período profundamente marcado pela interiorização e por uma expressão verbal muito intimista. Eu precisava haver-me comigo mesmo. O trecho a seguir fora mal compreendido pela minha psicóloga, que questionou a ideia de que “existir é condição necessária para a solidão”. Leiamo-lo:

Existir é condição necessária para a solidão. E muitos se espantam com a ideia de que uma pessoa pode sentir-se sozinha no meio de muitas pessoas: é que a mente tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde ressoam os gritos de um “eu” encarcerado, que, em algum momento de sua vida, deu-se conta do absurdo da existência”.

A doutora da alma queria me mostrar que a existência não leva necessariamente à solidão. Mas o que ela não percebeu foi o sentido que eu pretendia produzir quando usei a palavra existência neste texto. Num primeiro nível de sentido, parece que estou declarando o óbvio: só podem ser solitários os que existem. É necessário existir para ser solitário. No entanto, ela passou ao largo da significação da palavra quando consideramos a condição humana. Uma pedra existe tanto quanto eu, como presença no mundo. Mas, diferentemente desta pedra que se coloca à minha consciência como ser que existe enquanto totalidade em si mesmo, eu não sou aquilo que penso ser; o que sou me escapa. Além disso, eu sei que tenho consciência de que existo. A existência da pedra é bruta. Ela existe para uma consciência. Nós, seres humanos, existimos como seres conscientes da existência e seres autoconscientes vinculados a um mundo que buscamos compreender. O ser da consciência, ensina Sartre, “é um ser para o qual, em seu ser, está em questão o seu ser” (p. 122 – O Ser e o Nada.). Esse ser não coincide consigo mesmo, como no caso da pedra.
A existência a que eu me referia era, então, uma existência humana, portanto, impregnada de consciência. Uma existência que se coloca como um problema para o ser humano. Àquela altura, a minha existência enfrentava o fato mesmo de existir, tornava-se auto-reflexiva. Eu não escrevi “A solidão é condição necessária para existir”. Existimos sem que tenhamos de sentir-nos solitários. Aliás, existir é estar em relação com, é exteriorizar-se, é relação do ser que se projeta para o Outro. É movimento de abertura do ser. Mas há muitas pessoas que existem sem nunca colocar para o pensamento o problema de estar consciente da existência. O que significa existir quando a consciência apreende a existência, quando a consciência se defronta com a existência, quando se ocupa dela? Muitas pessoas não se preocupam com estas questões. Tão-só existem, vivem, ao sabor das vicissitudes. Para mim, a existência constituía (e ainda constitui) um problema que eu tinha de enfrentar. Quando tomei consciência do que é existir, vi-me imerso em solidão. Percebi que a ninguém mais isso parecia ser um problema. O existir aí não é a simples presença no mundo, mas a consciência do absurdo dessa presença. Minha busca era a busca pela potência de existir na solidão (experiência que encontramos no amor). Eu queria existir mais em minha solidão. Lendo Rubem Alves (“A solidão amiga”) aprendi a “ser mais” por causa da solidão, e não mais a despeito dela.
Hoje, reconciliado com a vida, liberto dos grilhões da fé e do dogmatismo religioso, pela descoberta do prazer filosófico, posso revistar-me lendo os textos daquela época para reencontrar-me aqui, amante das palavras e desejoso de viver.