quinta-feira, 24 de maio de 2012

desconectado


                


                 FORA DO AR


Eu insistirei nisto, mesmo que se torne enfadonho: a vida dedicada ao exercício do pensamento reflexivo e à leitura cotidiana causa desgosto, insatisfação e desânimo, no tocante à sociabilidade. Por vezes, tenho vontade de fazer uma limpa nos vínculos virtuais de minha rede social on-line. Para que tantos “amigos”, se compartilho com muito poucos algumas palavras? Felizmente (ou não) é possível deletá-los. Não vê como é incrível isso! Na modernidade líquida, as formas de relacionamentos podem ser facilmente desfeitas e, se forem do tipo “virtuais”, aí podemos simplesmente deletá-los. Deletar é mais fácil do que romper com relacionamentos convencionais, que envolvem corpos, olhares, toques, feições. No caso desses, a ruptura pode, muita vez, nos causar certo desconforto ou aborrecimento. Mas, nos relacionamentos virtuais, o desligamento não nos acarreta qualquer enfado. Não raro, pessoas há que esquecem donde proveio a última pessoa que a adicionou. Há muitas pessoas em minha página com quem sequer troco meia palavra. Sinceramente, não vejo muito sentido em conservar imagens de fotos digitais ou impressões verbais, se eu não tenho qualquer relação substancial com as pessoas por trás desses registros. Tudo isso é consequência de uma doença coletiva, de fundo psíquico, que consiste no medo de conviver com a solidão. A ilusão de ter, digamos, 150 “amigos” em nossa página numa rede de relacionamentos virtuais, parece bastar para que fiquemos seguros de que não engrossamos a lista imensa dos solitários da sociedade individualista, que sustenta a ideologia do “egoísmo amoroso” (“ame a si mesmo em primeiro lugar”, expressão do rancor de pessoas profundamente carentes de vínculos sólidos, de amores sinceros, de pessoas que não se dão conta de que produzem os dizeres que reproduzem a liquidez dos vínculos humanos nessa fase líquida de nossa modernidade).

É certo que não posso esperar nada mais do que a mesmice nesses contextos virtuais de relacionamentos. Confesso que já pensei em me deletar. Gosto desta palavra. Ela facilita nossos embaraços sociais. Nas redes sociais de relacionamentos on-line, decerto quantidade não é qualidade. Continuo ainda buscando a minha "turma". Mas preciso encontrá-la aqui na vida real, onde há corpos e calor humano. Onde há contato entre olhares e gestos encarnados.

“Diferentemente dos “relacionamentos reais”, é fácil entrar e sair dos “relacionamentos virtuais”. Em comparação com a “coisa autêntica”, pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar, compreender e manusear”

(BAUMAN, Amor Líquido, p. 13)


Felizmente, conheci pessoas por quem ainda vale a pena manter-me conectado e que, um dia, espero conhecer presencialmente. Mas não custa lembrar novamente as palavras de Bauman:


“(...) as relações virtuais (rebatizadas de “conexões”) estabelecem o padrão que orienta todos os outros relacionamentos. Isso não traz felicidade aos homens e mulheres que se rendem a essa pressão, dificilmente se poderia imaginá-los mais felizes agora do que quando se envolviam nas relações pré-virtuais. Ganha-se de um lado, perde-se de outro”.


                                                           (p. 13)

terça-feira, 15 de maio de 2012

Maio





Maio

É Maio, as folhas pelos caminhos, caídas
O sol é morno, entre nuvens, malicioso...
Descobre-te sob o véu negro ruinoso
As pregas que te fincaram na face outras vidas

De noite, quando a Lua vê-te assim envelhecida
O olhar imundo, a carne cheirosa já consumida
Pranteia por ti. A timidez da aurora macilenta
Destila-te n’alma o inverno a tristeza benta

E Junho, da solidão engravidado...
Convida-te a cismar ao relento...
Enquanto a teus pés tem o frio acumulado

As folhas quebradiças. E o vento morto
De um Julho negro vindo, inunda-te o rosto
Á noite, deita fria nas desgraças de Agosto.

(BAR)

"A leitura engrandece a alma". (Voltaire)

                                                
                                             
                                                 Minhas prateleiras

Quando olho a imensa quantidade de livros que se empilham nas prateleiras de meu quarto, concluo que não terei tempo suficiente para ler todos. A vida é breve demais e a leitura demanda muito tempo e dedicação. Então, deveria eu parar de comprá-los; ignorar a diversidade de meus interesses intelectuais. Por vezes, me pergunto de que adianta ler tanto. Não pretendo eu auferir reconhecimento acadêmico nas várias áreas do saber que me interessam; não tenho tempo para me diplomar nelas. Talvez, nunca produza um livro. Se pudesse produzi-lo, denominá-lo-ia Miscelâneas Intelectuais.
O fato é que, não obstante esse reconhecimento, continuo comprando-os e lendo-os. Uma vida dedicada ao desenvolvimento intelectual exige certa reclusão. Eu convivo com a solidão intelectual e qual não é meu entusiasmo quando deparo com pessoas (poucas) que me falam da importância de ler e me contam sobre os livros que têm lido! E a conversa flui...
Minha socialização, fora do trabalho, fica restrita ao entretenimento. A companhia de pessoas, quando possível, é apenas para a distração. Eu converso mais com os escritores. Enquanto leio, por vezes, falo como se estivesse um interlocutor a dialogar comigo, ou, pelo menos, como se houvesse um interlocutor a ouvir-me. Na ausência de um interlocutor interessado, escrevo e, ao fazê-lo, construo em minha imaginação esse interlocutor. A relação entre quem escreve e quem lê é uma relação imagética, já que o autor constrói uma imagem de leitor e este constrói uma imagem do autor.
Uso a palavra autor ignorando suas implicações sócio-históricas. Sequer tenho uma obra. Entenda o leitor que autor aqui quer apenas dizer agente da escrita. É nesse sentido que sou o autor de meus textos. A autoria em blogs é tema de que se ocupou Dominique Maingueneau; trata-se de uma questão problemática.
Saber dói. Conhecer pode ser perigoso. Intelectualidade demais faz sofrer. O excesso de consciência do real pode acarretar-nos depressão, desgosto. Sei bem o que é isso! Os ignorantes são mais felizes. Possivelmente, os mais facilmente ludibriados, iludíveis, me parece. Entre eles, há os que ignoram, porque ainda não puderam conhecer, e os que ignoram, porque não desejam conhecer. A estes chamo de estúpidos. Destes se diferem os medíocres, que supõem saber demais e ignoram que pouco sabem. E julgam-se capazes de explicar cabalmente os fatos ou as ocorrências do real com os parcos conhecimentos que detêm.
Por vezes, eu me perco em meus pensamentos. Meu espírito fica atado a eles e eu me atordoo. O problema é que a aprendi com a leitura que a convivência com as dúvidas, que não cessam, é indispensável ao desenvolvimento intelectual. Os que se julgam cheios de certezas acabam por não se assombrar com as feições da realidade e ficam a patinar na superfície das questões mais urgentes e intrigantes.
Eu confesso que já pensei em deletar-me; o ambiente virtual me enfada. Os clichês de toda sorte abundam. Que poderia esperar?  Esses meios não irão produzir pensadores, tampouco os reunirão. A mesmice é a regra; os lugares-comuns, a ordem de todos os dias. Então, deles participo para não viver completamente ilhado. Mas a solidão pode ser amiga, ensinou-me Rubem Alves.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

"Quero inundar-me de madrugada a alma e ver a vida com os olhos do meio-dia" (BAR)

                                                

                                                   Pessoa em mim


Dentre tantas passagens surpreendentes que se acham no trabalho de Comte-Sponville, denominado de A vida humana, a que dou a saber abaixo merece nossa atenção:

“Ninguém escolheu viver, nem ser si mesmo.”
(p. 25)

Seguirá  o filósofo contestando a posição de Sartre, para quem “cada pessoa é uma escolha absoluta de si mesma”. Para Sponville, no que estou de acordo, um recém-nascido é  exemplo suficiente para invalidar essa crença. Como poderia ter ele escolhido nascer? O nascimento nos arremessa à existência. Nascer é entrar em relação com o acaso. Nascer é sorte, escreverá Sponville.
Também a personagem Astanavis, professora do curso de suicídio, no qual se matriculou Antoine, no romance Como me tornei um estúpido, de Marin Page, põe-nos diante da nossa insensatez, sempre que supomos ser-nos possível a liberdade absoluta. Suas palavras nos convidam a pensar sobre o que é ser realmente livre. Leiamo-las com esmero:

“- Há uma censura do suicídio. Política, religiosa, social, natural até, pois a senhora Natureza não gosta de que tomemos liberdades com respeito a ela, quer manter-nos sob as rédeas até o fim, quer decidir por nós. Quem decide em relação à morte dos homens? Nós delegamos esta suprema liberdade à doença, aos acidentes, ao crime. Chamamos a isso acaso. Mas é falso. Esse acaso é a sutil vontade da sociedade que pouco a pouco nos envenena com a poluição, que nos massacra com guerras e acidentes... A sociedade decide, assim, a data de nossa morte pela qualidade de nossa alimentação, pela periculosidade de nosso ambiente cotidiano, pelas condições de trabalho e de vida. Nós não escolhemos viver, não escolhemos a nossa língua, o nosso país, a nossa época, os nossos gostos, nós não escolhemos a nossa vida. A única liberdade é a morte; ser livre é morrer.”

(p. 46)

Esses dois trechos me levariam a compor um outro texto. Mas meu objetivo aqui é outro, conforme se verá.

________________________________


Debruçar-me-ei sobre um poema atribuído a Alberto Caeiro, um dos pseudônimos do poeta Fernando Pessoa, com vistas a apresentar uma interpretação que, sem embargo da recorrência às contribuições da Crítica literária, se pretende interessante e desbravadora. Interessante, porquanto creio ter um valor sócio-cultural (ainda que permaneça inacessível ao público em geral ou aos especialistas). Desbravadora, porque pretende revelar sentimentos que me estão escusos, confusos ou dispersos. A indefinição é o que me define hoje; e eu não me atrevo a delinear os contornos de meu estado de alma agora, pois isso me consumiria muito tempo; ademais, se o fizesse, me lançaria a tal empresa sem a esperança de que, ao cabo de tão árduo trabalho espiritual, eu lograsse sucesso.
Não me agrada a teorização da literatura. Confesso resistir à leitura da crítica especializada. O olhar teórico é uma forma de visão que reifica, que engessa, “fragmenta” a realidade observada. Portanto, o olhar teórico sobre a literatura acaba por tratá-la como uma coisa que permanece, que é estável, embora se reconheça sua fugacidade, sua fluidez, sua dinamicidade. O olhar teórico cria uma ilusão de permanência. Por exemplo, a poesia escapa a qualquer tentativa de reificação pelo olhar teórico. Os sentidos poéticos estão sempre dispersos (aliás, como em qualquer outro gênero discursivo); mas, na poesia, além da dispersão dos sentidos, há que admitir a transmutação contínua deles. Para captar tal transmutação, é necessário sentir a poesia, e não lançar sobre ela olhares teóricos. A transmutação deve ser experimentada por cada leitor, que produzirá uma leitura em consonância com os seus propósitos, seu conhecimento de mundo, seu grau de conhecimento intertextual, e com o acúmulo de suas experiências de leitura.
Observe-se agora o poema de Fernando Pessoa, que transcrevo abaixo:

Se Eu PUDESSE trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar.
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade como a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...


O mundo está em mim. Referir as impressões do exterior é necessário, porque, assim, mostro que a exterioridade biossocial não  está apartada de nós, como um mero cenário onde encenamos o drama da vida; essa exterioridade afeta-nos; exerce sobre nós uma influência intensa. Essa exterioridade é interioridade constitutiva; ela desarruma-me a alma.
Para principiar a reflexão sobre o poema de Fernando Pessoa, lanço mão de certos princípios de análise tomados à teoria gerativa de Análise do Discurso. No entanto, não me ocuparei com a exposição do modelo teórico e com a definição de seus conceitos; tais princípios me servirão apenas como instrumentos de interpretação, que me permitirão apresentar uma leitura o mais límpida possível. Quando me refiro à “leitura”, subentenda o leitor o adjetivo “analítico”, pois a leitura que se assenta em níveis implícitos do texto é, por definição, uma leitura analítica, a saber, uma leitura que desconstrói ou disseca o texto, de modo que possa construir-lhe um sentido. No entanto, a leitura que proponho não se realizará para além do poema, de modo a captar os intertextos, conquanto fique claro que toda leitura está em aberto, não é vedada, já que produz silêncios. Embora não me preocupe aqui em fazer uma análise intertextual, o poema, como todo texto, está grávido de intertexto.
Não me delongando na definição de leitura, convém dizer que o poema em tela se estabelece sobre as categorias subjacentes /humanidade/ versus /naturalidade/. Tais categorias constituem a oposição semântica de base do poema. O eu-lírico propõe que se aceite a naturalidade do homem. E para tanto, é necessário reconhecer o dualismo que tece o universo natural, do qual nós, seres humanos, somos elementos integrantes. O eu-lírico propõe, pois, uma (re)conciliação do homem com a natureza.
Como seja importante buscar a sistematicidade da análise que se propõe e como se admita que aquela oposição seja a base sobre a qual se construiu o poema, vou-me deter a meditar sobre o conceito de ‘natureza’ no poema de Fernando Pessoa. De imediato, pode-se afirmar que ‘natureza’ recobre um feixe de oposições; a natureza é um universo de oposições. Tais oposições se revestem de concretude em seqüências como “nem tudo é dias de sol”, “que haja montanhas e planícies”, “rochedos e erva”. Cabe fazer aqui uma ressalva: a oposição entre “rochedos” e “erva” se dá no nível conotativo. Assim, ‘rochedo’ se opõe a ‘erva’, tendo em conta a oposição entre ‘aspereza’ e ‘suavidade’, ou entre ‘o que é tosco ou rude à vida’ e ‘o que é favorável à vida’ (se pensarmos, por exemplo, nas ervas que são utilizadas para fins medicinais). Em “nem tudo é dias de sol”, depreende-se que há dias de chuva; portanto, estabelece-se, por inferência, uma oposição entre ‘sol’ e ‘chuva’. “Sol” é um elemento ‘fórico’ (ou seja, avaliado positivamente em determinada formação discursiva), e “chuva” é um elemento ‘disfórico’ (ou seja, avaliado negativamente).
Por outro lado, o conceito de humanidade se assenta numa suposta estabilidade; é a negação do contraste natural. Os homens, assim, parecem lidar mal com a flutuação entre felicidade e infelicidade; querem experimentar o prazer estável, perene (Freud nos ensinou por que tal condição não nos é possível). A oposição entre /físico/ e /psíquico/, que o eu-lírico se propõe desfazer, está clara no pararelismo entre “Sentir como quem olha” e “Pensar como quem anda”. Convém lembrar que /físico/ se associa a /natural/, e /psíquico/ a /humano/. “Pensar” e “Sentir” são faculdades do espírito; mas o Sentir também participa do físico; situa-se na intersecção; /andar/ e /olhar/ são faculdades físicas, a saber, do corpo. O corpo é um objeto natural; e é o corpo que vincula o homem, enquanto ser racional, ao ambiente natural (primitivo). “Ter um corpo” é admitir que somos um elemento dentre os elementos da natureza; o corpo nos insere no mundo. O homem “civilizado”, “educado” segundo os valores de sua comunidade e/ou sociedade, torna-se insensível às manifestações da natureza, torna-se indiferente à existência de uma natureza viva, da qual ele é um filho que se rebelou.
O conceito de humanidade evoca o conceito de homogeneidade. O homem busca a homogeneidade como aquilo que permite a estabilidade, porque desfaz os contrastes, transformando-os numa massa homogênea. O eu-lírico nos dá testemunho disso no limiar do poema: “Se eu pudesse trincar a terra toda/ E sentir-lhe um paladar/ Seria mais feliz um momento”. Note-se o desejo humano pela absorção do mundo através dos sentidos. O homem tem necessidade de domesticar a natureza. Ocorre que o “eu-lírico”, admitindo que aquela absorção acarreta estado de felicidade (felicidade que é instantânea), confessa-nos que nem sempre quer ser feliz, e acrescenta: “É preciso ser de vez em quando infeliz”. Logo, reconhecer a necessidade de ser infeliz, ou seja, aceitar o contraste entre /felicidade/ e /infelicidade/, torna o homem um ser natural; reintegra-o ao universo natural pela filiação à heterogeneidade, ao que está em eterna relação de contraste. É preciso reeducar para o sofrimento.
Na medida em que aceita as oposições entre os elementos naturais, o homem imerge na natureza, (re)integrando-se  a ela. A reintegração do homem à natureza depende da consciência de que o natural não é estranho ao humano, ao contrário do que se supõe geralmente (antes do social, há o natural): o homem necessita dos fenômenos naturais, por isso, como bem lembra o poeta, “e a chuva, quando falta muito, pede-se / por isso tomo a infelicidade como a felicidade/ Naturalmente, como quem não estranha/ que haja montanhas e planícies (...)”. Lembrou-me um pensamento que registrei certa vez, pelo qual confessei amar as tempestades.
Vale fazer uma pequena digressão, para fundamentar a interpretação que vê a natureza como um elemento reintegrador do homem. O homem é um ser que pode ser estudado sob várias perspectivas. Reconhece-se, consensualmente, que o homem é atravessado por uma dimensão natural e uma dimensão social. A dimensão natural o aproxima a várias espécies animais do planeta, a saber, dispõem-no entre os seres vivos que têm necessidades vitais, cuja existência se desdobra em estágios tais como ‘nascer’, ‘crescer’, ‘desenvolver-se’ e ‘morrer’. Podemos ir mais longe e dizer que somos partes integrantes do universo, visto que formados pelos mesmos elementos que deram origem às estrelas e aos demais corpos celestes. Os elementos químicos característicos da constituição dos seres vivos – carbono, oxigênio e nitrogênio – foram sintetizados nas fornalhas nucleares no interior das estrelas. Somos, pois, seres indissociáveis da estrutura do universo. Por que não filhos do Universo!
A dimensão social, por seu turno, na medida em que pressupõe a capacidade de o homem produzir cultura, traça uma linha divisória entre o homem e as demais espécies animais. É claro que há espécies animais que vivem em comunidades ou espécies de sociedade, como as formigas; mas a vida social humana apresenta características singulares: a) planejamento em função de objetivos específicos; b) divisão e organização de ações e operações; c) socialização dos instrumentos e dos produtos da atividade, ou seja, a acumulação das experiências de produção e a possibilidade de acesso das pessoas aos bens produzidos. Escusa dizer que a técnica fundamental que possibilita a dinamicidade e a recriação (representação) das relações sociais é a linguagem. Esta constitui a base das sociedades  humanas. Ela permite a conversão do instrumento técnico – que nos permite agir sobre a natureza – num signo, o qual permite evocar na mente do outro a ação e a finalidade para as quais o instrumento foi fabricado. O signo permite a socialização do fazer técnico, transformando-o em objeto de conhecimento, a saber, em saber técnico. Não desço a pormenores, embora me sejam interessantes as relações entre linguagem, cognição e cultura.
Em suma, quando se considera o homem em sua dimensão sócio-cultural, é preciso assumir como pressuposto o distanciamento entre ele e o meio bio-físico. O eu-lírico propõe um retorno ao berço natural, mas não como um estado de exílio do ser social – o que seria uma ilusão, pois seres humanos necessitam viver em sociedade; esta é uma superestrutura  que os educa, que os modela, que os condiciona, (embora não sejam completamente subjugados ou determinados). -, e sim como aceitação da dimensão natural como um das dimensões que os constitui.
Deve-se contemplar o belo no polo natural a que se atribui uma qualidade negativa. Nesse tocante, o homem é um ser “polarizado”, ou seja, tendemos a concentrar nosso anseio, afeto, interesse em certas extensões de coisas, rejeitando outras, que se lhes opõem. Por exemplo, amamos os dias de sol e nos demonstramos, muita vez, desfavoráveis aos dias de chuva. No Brasil, especialmente – país edificado sobre o mito da sensualidade, dos corpos dourados e sedutores – o “sol”, como símbolo que justifica/ sustenta a exposição dos corpos, como o elemento (simbólico) que incita a busca pelo padrão tropical de beleza (corpos dourados, bem torneados, etc.) – é supervalorizado. Quem nunca ouviu dizeres do tipo “todo carioca é apaixonado por praia”; “dia nublado não é a cara do carioca”. Não faço incursão aqui em discussão de ordem sócio-cultural, porquanto isso consumiria muito tempo.
O eu-lírico toma, portanto, a natureza como um elemento /eufórico/, ou seja, como um elemento positivo. Argumenta em favor da busca pela serenidade; mas só se pode ser sereno, quando se aceita ser natural. O homem alcança o estado de tranqüilidade, quando aceita saborear a felicidade e degustar a infelicidade. A reintegração do homem ao universo natural o coloca numa mesma cadeia de transformações; o dispõe entre os elementos regidos pelas leis naturais, dentre as quais destaca o eu-lírico a “morte”. A morte se estende a muitos aspectos do mundo bio-físico: os seres morrem, mas também as feições da natureza morrem. A morte é a condição natural que irmana o homem e as feições naturais do mundo: “E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre”.
Reconhecendo-se que o homem necessita contemplar o belo, como fonte de prazer, o eu-lírico nos ensina que é possível experimentar o belo no pólo negativo da natureza: “(...) o poente é belo e é bela a noite que fica...”. A beleza que se experimenta na contemplação do poente é extensiva ao nascimento da noite (pólo negativo).
Ao cabo de seu discurso, estando o homem reintegrado na natureza e convencido de que, em meio ao contraste das feições naturais, a coexistência entre a aspereza e a suavidade, entre a suntuosidade e a simplicidade , enfim, entre o positivo e o negativo, é possível extrair da terra o prazer, o eu-lírico submete sua expressão à síntese da essência do natural – natural que não se deixa domesticar-se completamente, pois esconde em suas entranhas uma vontade própria de vida, uma vontade infinita de potência, cujas forças são grávidas de uma intensidade tal, que escapa ao desejo humano por submetê-las ao seu talante. Destarte, encerra o poeta: “Assim é e assim seja...”.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Dança-me uma lágrima, tombada dos olhos...





A Dança

Deleito-me com a dança...
Embora não dance
Prefiro ficar estacado, num mórbido contemplar
Em minha densa timidez, no silêncio ressoante
A dança que desconcerta, desintegra
Desconjunta a carne lasciva que serpenteia
A alma de sabores invadida
O seio insuflado de emoções floridas
No espírito dançam idéias suicidas
E minhas células tornam-se salões
De sons, desejos e doces sinfonias

Não danço... a tristeza me embala
Ouço o silêncio da orquestra de mágoas
Que faz estremecer-me todo o peito
E admiro-te, Imagem que dança e baila
Sinuosa, revoluteia... as ancas como as notas
De uma ópera escarlate que em mim torna pulsante
A tristura empedernida que me vive a dançar
Faz do coração salões de despedida
De uma dança que minha alma engravida
Do avesso põe-me o corpo retorcido

Num olhar delirante em retumbantes sons
Sinto uma canção que um girassol entoa
É a canção visceral de um Céu enterrado
Silenciosa, ignota aos que em agitação
Não vertem d’alma danças celestiais
E meu seio costurado com dores plangentes
Convida os mortos a tragadas matinais
É a dança que faz o corpo subverter os limites do espaço
Do espaço que nos oprime e encarcera
Dança-me uma lágrima, tombada dos olhos
Quando te vejo a dançar... e dançam mais intensamente
A solitude, a desesperança e o desejo de amar.


(BAR)

sábado, 5 de maio de 2012

"De todos os que preenchem nossa solidão, são os livros os mais anárquicos, os mais instigantes. Leia, e seu silêncio ganhará voz." ( Martha Medeiros)



Verberrando

Preciso retomar minhas leituras matinais. Mas tive de interrompê-las por causa de um forte sentimento que me coagia a escrever. É a vontade costumeira, decerto; mas ela se manifestou assaz enérgica. É certo que filósofos e poetas (escritores, para ser mais exato) escrevem sobre suas próprias vidas. Muitos produziram suas Memórias. E eu, que não suponho equiparar-me aos grandes doutos do saber, também me agrado de escrever sobre minha vida, sobre minha contribuição singela e discreta a uma ínfima parcela do Humano.
Quero ainda cursar filosofia, especializar-me nessa área a que meu espírito e coração se inclinam apaixonados. Não traio meu amor à Linguística. A linguagem me abraça, envolve-me por completo. De que mais é feita a filosofia senão da palavra? A linguagem é tudo. Somos na linguagem e graças a ela.
A leitura estimula a imaginação. E quando leio, sinto-me tão livre, que esqueço tudo que, ao derredor, me cinge a criatividade. Não raro, sinto ser ela castrada. Qual não é a frustração experimentada pelo professor em face de um público apático e desinteressado, ou incapaz de perceber que, para além do imperativo do imediato, do pragmatismo cego, há holofotes de conhecimentos a iluminar nossa prática! É preciso apropriar-se deles, para saber quando e como empregá-los.
Os fragmentos abaixo foram colhidos do livro A vida humana, do renomado filósofo francês André Comte-Sponville, que já conhecemos pelas referências que já fiz a alguns de seus trabalhos. Escusa explicá-los. Leia-os, leitor, para dar-se conta da afinidade intelectual que sinto ter entre algumas de minhas produções e as dele. Sponville - assim o penso – ousa dizer aquilo que, em algum momento, se me afigurou claro e inegável. Ás vezes, ele reitera, não sem o lúcido olhar de um filósofo, pensamentos que, em algum momento, externei. A questão do Mistério, a que, muitas vezes, me referi, em meus textos, está aí estampada. Contemplem-na!




"(...) não se sabe o que havia antes do universo, [...] não é possível sabê-lo e [...] e os religiosos o ignoram tanto quanto os ateus. A verdade não pertence a ninguém. O mistério tampouco."

(p. 14)


"Antes do homem há o mundo, e o mistério do mundo. Estamos dentro; no âmago do mistério - no âmago de tudo. Não, por certo, no centro do universo, pois nada indica que haja um centro (se ele é infinito, a ideia de centro seria contraditória), mas, nele, envolvidos por todos os lados pelo que ele é ou contém (bilhões de galáxias, cada uma composta por bilhões de estrelas ou de sistemas solares), porém incapazes de sair dele vivos, ou simplesmente sair dele".

(p. 15)


Apressei-me para trazê-los à consciência de todos que compartilham comigo da vida virtual no facebook, com o único intento de partilhá-los, sem mais. É possível que poucos venham a se interessar pelo livro ou pelas questões que ele nos suscita. Que nos vale demorar-nos a pensar em algo tão inapreensível como a Existência e o seu sentido (que somente aos seres humanos interessa), a Origem do Universo, o propósito ou despropósito de nossa existência; em suma, para que pensar sobre o Mistério de cuja incomensurável extensão todos tomamos parte. Temos mais o que fazer! Ler sobre a vida íntima dos artistas globais, assistir a programas como Pânico na TV e Big Brother, saber dos fuxicos entre as celebridades, ler as revistas femininas, que nos oferece uma série de “dicas” para “conquistar o homem dos seus sonhos”, ou ainda, não sem o respaldo dos especialistas, um conjunto de dez razões por que os homens traem mais do que as mulheres, etc.
Lembro-me de que uma das poucas verdades que ouvi dizer um padre, um dia, estava na afirmação, dirigida a mim, de que a escolha pela vida intelectual, pela convivência com os livros implica certo isolamento. Em outras palavras, quanto mais intelectualizados nos tornamos tanto mais desinteressados (para não dizer intransigentes) da sociabilidade indiscriminada ficamos. Note-se bem: da sociabilidade indiscriminada! Disso não se conclui, portanto, que os que descobrem o valor dos livros, da leitura e da dedicação ao cultivo dos hectares intelectuais, cuja opulência tratam de explorar, não sejam dados à sociabilidade. A solidão é uma consequência, não que a desejem (muito embora, como nos ensina Rubem Alves, em seu texto A solidão amiga, lhes pareça agradável e útil). Os estudos requerem um silêncio imperturbável, um distanciamento de tudo quanto possa frustrá-los. O agito, o estrépito e as vozes dissonantes que nos envolvem na lida cotidiana devem ser silenciados, na reclusão do espírito que não se atém senão às páginas do saber.
Receio que eu tenha participado da formação de professores que ainda não descobriram o benefício dos livros. Não me culpo, pois que creio ter feito o melhor que me permitiram as condições pedagógico-mercadológicas da instituição. Em muitas instituições da rede de ensino privado, o espírito pedagógico-filosófico docente precisa enfrentar o imperativo econômico que rege as relações interpessoais no interior dela e que se nos aparece sob o slogan do sucesso – de um sucesso a qualquer custo (alto ou baixo, importa a promessa de qualidade).
Qual não é meu espanto ao deparar-me com redações de professores de português repletas de rasura (e nem preciso levantar observações sobre a má formação dos textos!)! E continuaremos a discutir sobre as razões pelas quais os jovens escrevem tão mal e lêem pouco e, quando o fazem, compreendem pouco do que lêem. Felizmente, muitos especialistas atentaram para o fato de que muitos professores de português não lêem ou lêem muito pouco. Como poderiam formar leitores competentes, se eles mesmos não são leitores assíduos à tarefa e são pouco competentes? A “crise” parece ocultar-nos um aspecto decisivo, que nos remete a um círculo vicioso: o professor deixa as cadeiras universitárias com uma formação empobrecida de leitura, ensina seus alunos a ler com base nessa formação empobrecida e estes entram na faculdade sem a devida competência de leitura, e sairão dela para continuar a estender esse empobrecimento, engrossando a quantidade de não-leitores (ou, na melhor das hipóteses, de leitores ineficientes). Tal é a situação nos cursos de Letras na rede privada.
Não deve surpreender ao leitor que eu me emprenhe em suscitar a reflexão, o desejo pelo saber e insista na importância da leitura. Na chamada era do conhecimento ou da informação (que não se confunde com conhecimento; afinal podemos estar mal informados; podemos estar enganados quanto à informação corresponder à verdade), o acesso ao saber é uma etapa fundamental ao exercício pleno da cidadania. Pense-se na imensa quantidade de pessoas que é privada do acesso ao saber livresco, em nosso país? Pense-se na imensa quantidade de pessoas para quem o único acesso à informação e a alguma forma de saber é a televisão? Ora, o saber, produzido pelas artes (pintura, escultura, literaturas, etc.), pelas ciências e filosofia é não só instrumento de poderes, mas algo que nos torna participantes do legado intelectual de nosso gênero; ele conta-nos sobre nossa História - a história do humano e do mundo. Produzir as condições indispensáveis a sua universalização deveria estar entre os deveres de nossos governantes.
Válidas, nesse tocante, são as palavras de Jean François Lyotard, em A condição pós-moderna (2009). Reflitamos sobre elas:

“Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países mais desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em vias de desenvolvimento”.
(p. 5)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

"No ventre da vida dorme um silêncio perturbador" (BAR)




O prelado


A vida não são fragmentos de ruídos
É um silêncio que sentimos
E alguns ousam auscultar
Há beleza na dor
Quando a entoa a poesia
A vida em nada se assemelha a ela
Divórcio perene

Escuta o som da vida
Como quem ouve ressoando
O mar numa concha
Chega mais perto e ouve
O silêncio que do ventre da vida
Ecoa
Se incapaz de escutá-lo
Porque és surdo
Néscio!

Ouve a vida contemplando a morte
Vê a dor que se esconde em tua ilusão
Em face da cruz, baluarte do sofrimento
Nega a vida e o adora
A vida e seu silêncio inquisidor
Fluindo as murchas horas
De tua apatia
Repousado sobre a paz
De tua ignorância
A vida transita entre as sepulturas
E os corpos que ali jazem putrefatos
A ignoram como tu o fazes
A eles não resta senão a podridão
E tu que ousas da vida tudo saber
A eles farás companhia
Quando de tua boca silenciarem os estrépitos
Que te tornam cego para o silêncio
Que irradia da vida

(BAR)


"Há tanta vida lá fora, aqui dentro sempre como uma onda no mar" (Lulu Santos




                                          

                                             As ondas da vida


Intento oferecer à leitura uma reflexão sobre dois textos: um dos quais é a canção Como uma onda, cantada por Lulu Santos – canção ouvida por muitas pessoas, mas, talvez, não muito bem compreendida. O outro texto sobre o qual me debruçarei é um poema-pílula de Paulo Leminski. 

Como uma onda

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará

A vida vem em ondas
Como um mar
Num indo e vindo infinito

Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo
Não adianta fugir
Nem mentir
Pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro sempre

Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar
Como uma onda no mar

Antes de me ocupar na interpretação dessa canção, convém considerar, em linhas gerais, a contribuição filosófica de Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, a quem se atribuiu a alcunha de “Obscuro”, em virtude de ter escrito um livro de estilo difuso. Negou-se a participar da política, desprezava a plebe, poetas, filósofos e religião. Viveu entre 540 a.C. e 470 a.C. Era um homem muito orgulhoso e cheio de desprezo pelos outros.
Tornou-se um misantropo, passando a viver nas montanhas, onde se alimentava de plantas e ervas. Hipócrita, ridicularizava o conhecimento dos médicos e dos físicos. No tocante às circunstâncias de sua morte, Diógenes Laércio nos conta que Heráclito, depois que médicos lhe disseram, em resposta a uma questão que ele lhes fizera, que era impossível esvaziar-lhe o ventre e extrair a água, deitou-se ao sol e pediu aos seus criados que lhe revestissem todo o corpo com esterco; no dia seguinte, faleceu e, não podendo ser retirado de sob o esterco, já em putrefação, foi devorado pelos cães.
Consideremos, doravante, sua filosofia, que, decerto, é mais interessante. Heráclito sustentava a idéia de que tudo é movimento e que nada permanece estático. Dizia que tudo flui, tudo se move. Ilustrava esse princípio com o seguinte exemplo: não podemos entrar duas vezes num mesmo rio, porque, na segunda vez em que entramos, já não será mais o mesmo rio, tampouco seremos a mesma pessoa que entrou na primeira vez.
O princípio defendido por Heráclito se articula a uma doutrina que considera o devir a base da realidade (o mobilismo). O que sucede com todas as coisas é sempre uma alternância entre contrários: coisas quentes esfriam; coisas frias esquentam; coisas secas umedecem, etc. A realidade é a mudança; é a guerra dos opostos. A guerra, a que se referia o filósofo, não se confunde com uma prática de violência; é a condição mesma para a harmonia e a paz. Como pensasse a realidade de modo dialético, afirmava que a doença é que faz da saúde algo bom e agradável; se não existisse a doença, dizia, não haveria por que valorizar a saúde. Fique claro, portanto, a relação recíproca entre os contrários, de modo que a existência de um deles justifica a existência do outro.
O filósofo entendia que os opostos coincidiam como o meio e o fim, em um círculo. Assim é que, por exemplo, a descida e a subida coincidem num caminho, já que o mesmo caminho é para descida e para subida. O frio, assim, é o mesmo que o quente, pois o frio é o quente quando muda; e o quente, o frio depois de mudar. Logo, frio e quente são dois aspectos de uma mesma coisa.
Heráclito buscou estabelecer um princípio que gerava todas as coisas; considerou-o o fogo. Para ele, todas as coisas transformam-se em fogo, e o fogo transforma-se em todas as coisas. O cosmos é um só e se origina do fogo, e pelo fogo é consumido, em determinados períodos, que se repetem pela eternidade.
Em seu livro Do céu, Aristóteles escreve:

“Concordam todos em que o mundo foi gerado; mas, uma vez gerado, alguns afirmam que é eterno e outros que é perecível, como qualquer outra coisa que por natureza se forma. Outros, ainda, que, destruindo-se, alternadamente é ora assim, ora de outro modo, como Empédocles e Heráclito de Éfeso. (...) Também Heráclito assevera que o universo ora se incendeia, ora de novo se compõe do fogo, segundo determinados períodos de tempo, na passagem em que diz – Acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas.”

Segundo Heráclito, uma vez condensado, o fogo se umidifica, transformando-se em água. Esta, por sua vez, solidificando-se, transforma-se em terra, e disso resultam todas as coisas do mundo. A água torna-se vapor, e este, rarefeito, transforma-se em fogo. Claro está, pois, o movimento ininterrupto que tece a realidade.
A filosofia de Heráclito não se resolve nestas rasas palavras, é claro. Para fins de reflexão sobre a canção supra-apresentada, bastam as considerações feitas. Gostaria, antes, de fazer ver ao leitor que a concepção de real de Heráclito como conflito entre os opostos pode ser contemplada também numa canção de Lulu Santos, chamada Certas coisas. Eis a primeira estrofe:

Não existiria som se não
Houvesse o silêncio
Não haveria luz se não
fosse a escuridão
A vida é mesmo assim
Dia e noite
Não e sim


A análise será feita de acordo com o princípio da transformação postulado pelo filósofo grego. Tendo-se em conta o conceito de movimento que rege todos os elementos do mundo, consideremos, de imediato, a reiteração da estrutura comparativa como uma onda no mar, que sugere o “ir e voltar” das ondas, o constante movimento de avanço e retração. Essa reiteração sugere a constância do movimento; de certo modo, o monótono, já que o eu-lírico compara seus estados de alma ao ir e tornar das ondas do mar.
As ondas são, num primeiro plano, símbolo do movimento. Dispensarei pormenores, sempre que o texto se nos apresentar auto-explicativo . Note-se que as idéias de Heráclito, especialmente a idéia fulcral, segundo a qual a realidade é transformação, mudança, encontram eco nos seguintes trechos da canção:

Nada do que foi será
De novo do jeito que já foi um dia
Tudo passa
Tudo sempre passará

Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo

Não há possibilidade, consoante o eu-lírico, de fugir ao movimento constante e ininterrupto da realidade. A estabilidade da alma contrasta com o eterno fluir do mundo, com o devir de todas as coisas. Cabe meditar um pouco sobre a oposição ‘interior e exterior’. O “lá fora” é o espaço de movimento, espaço onde a vida é encenada, onde flui como um rio, cuja água está sempre a encontrar a de outro rio, desembocando no mar, cujas ondas parecem representar o elemento estável, regulador do movimento. Assim, as ondas, ao retroceder, “devolvem” as águas, de modo a renovar o movimento.
No “aqui dentro”, que remete ao interior psíquico-emocional do eu-lírico, há uma constância, uma atonia, um movimento regular. Não há mudança, não há transformação nos estados emocionais do eu-lírico. A vida, a seu turno, é um eterno “vir a ser” regular: aos movimentos da vida subjaz um elemento estável que os engendra. E vale lembrar que Heráclito, embora enfatizasse o movimento, não negava a possibilidade de existir, uma realidade estável por detrás da mudança das coisas.

Tudo que se vê não é
Igual ao que a gente
Viu há um segundo
Tudo muda o tempo todo no mundo

Atentando para o excerto acima, valeria questionar se a diferença entre o que se viu num primeiro instante e o que se viu num instante posterior não é uma diferença de perspectiva. Então, se poderia dizer que as perspectivas também mudam, se movimentam. Ora, um mesmo objeto pode ser “visto”, percebido de modo diferente, segundo o “lugar” de onde o contemplamos, ou seja, segundo a perspectiva que adotamos. Duas ou mais pessoas não vão apresentar a mesma descrição de um objeto; suas descrições vão diferir num ou noutro aspecto, porquanto cada qual possui seu próprio acervo de conhecimentos e experiências de mundo. Portanto, vemos aquilo que nossa herança sócio-cultural, armazenada na memória em forma de conhecimento, nos permite enxergar. Não se conclua disso que as mudanças seriam “ilusões de ótica” ou variações impostas pela percepção. Claro é que existem movimentos verificáveis a olho nu, tais como o desenvolvimento de um ser humano, por exemplo. O crescimento é um tipo de movimento.  O que deve ficar claro, contudo, é que a percepção é uma função cerebral pela qual atribuímos significado a estímulos sensoriais e, desse modo, um indivíduo organiza e interpreta as impressões sensoriais, mediante a percepção. Ao observarmos um ônibus em movimento, podemos questionar se o que está em movimento é  somente o ônibus ou o ônibus e os passageiros, segundo a perspectiva adotada (veja-se o princípio de inércia).
Volvendo ao fragmento supramencionado, certo é que a tese segundo a qual a realidade é constitutiva da transformação de elementos contraditórios constitui a base sobre a qual se erige a arquitetura verbal de toda a canção. Pode-se dizer que a “voz” de Heráclito ressoa no texto (polifonia).
Não suponho que minha reflexão tenha dado conta da significação da canção; há sempre sentidos que escapam à leitura, porque há muitas leituras e cada qual delas deve contentar-se com a idéia de que o sentido pode ser outro. Agora, lanço olhares sobre o poema de Leminski, transcrito abaixo.

Esta vida é uma viagem
Pena eu estar
 Só de passaporte.
(Melhores Poemas, 1996:201)

As palavras “viagem” e “passaporte” remetem ambas à transitoriedade, à efemeridade, ao movimento da vida. Se a vida é uma viagem, conforme afirma o poeta, então valeria perguntar acerca do destino dessa viagem. A que lugar nos leva a vida? Qual é o seu destino? Em outras palavras, qual é o lugar final do movimento? Creio que o leitor se apressará em dizer que é a morte, que se define por ausência de movimento. De fato, a vida é um fluir em direção à morte. Ou não será a morte o ponto inicial e a vida uma viagem de retorno a uma essência que nos é encoberta?
O passaporte, a que se refere o poeta, é a própria condição do existir: uma vez que se nasce, ganha-se um passaporte. No entanto, quando se faz uma viagem, é necessário muito mais do que um passaporte, para que nossa viagem não seja uma experiência desagradável: precisamos de malas, onde colocamos roupas variadas, recursos de higiene (pastas de dente, sabonete, hidratante, etc.), entre outras coisas.
O que significa, pois, viver apenas com o passaporte? É não dispor de recursos que garantam nosso prazer, nossa tranqüilidade, nossa estabilidade, enfim, nossa própria sobrevivência. Não há receitas que nos prescrevam como é viver; não há subsídios para que saibamos experenciar os mais diversos movimentos da vida. Há movimentos incessantes entre duas pessoas que formam um casal; não obstante, desejam quase sempre buscar uma síntese, uma unidade na relação. Não há, contudo, regras que nos orientem nessa eterna busca, que nos ensinem a fruir o prazer das relações. O passaporte também evoca a ideia de 'passagem', 'transitoriedade'. Todos, nesta vida, estamos de passagem; nossa existência é transitória, tem começo e fim; vivemos o tempo que a vida nos permite viver. E ela joga dados com o acaso.
A Vida (com maiúscula, para referir-se à condição de existir que nos transcende, porque não escolhemos) é uma nau sem capitão, apenas tripulantes. Ao nascermos, embarcamos nessa nau, que se lança desnorteada ao mar da existência, balanceando segundo os movimentos de suas águas. Como não haja comandante no plano físico, apelamos a forças sobrenaturais, às quais delegamos a responsabilidade pelo rumo da nau. A nau, então, não mais singra ao acaso; impõe-se-lhe um fado, sobre o qual não temos domínio. Mas, note-se: isso é uma das formas de entender os movimentos da vida e de experienciá-los.
Na medida em que o poeta afirma só ter passaporte, diz-nos também, implicitamente, não ser o senhor de sua existência, não ter domínio sobre os seus movimentos. E, novamente, aqui, vale perguntar se a Vida é um movimento de retorno a uma condição elementar, original, a uma essência que nos é inatingível, senão pela suspensão dos movimentos, a saber, pela morte? Há que se entender, segundo a interpretação que proponho, duas formas de vida: a Vida, com maiúscula, que nos habita, que pulsa em nossas veias, derrama movimento a todos os órgãos do nosso corpo; a Vida que anima o mundo e todos os seres que dela participam; mas há também a vida, com minúscula, que constitui o microuniverso em que cada um de nós transita, no interior do qual gozamos de relativa liberdade; daí falarmos em "minha vida", "a vida dele", "a nossa vida". A vida de cada um de nós é um micromundo. Antes de viver a realidade do mundo, dela participarmos em maior ou menor medida, vivemos em nosso micromundo.
Uma filosofia que procura atrair adeptos, que se pretende séria deve suscitar questões, promover a reflexão, abrir perspectivas, incitar o debate, e não tão-só buscar explicações, respostas, verdades. Nesse sentido, a filosofia é a ginástica do pensamento.