quinta-feira, 5 de julho de 2012

"Quem sou eu?" Essa pergunta só faz quem se sabe ignorante de sua resposta" (BAR)


                                   Solidão dos pensamentos

                                           A memória do Eu


Nesta nova oportunidade em que me encontro com as palavras, em que ponho em movimento este comboio verbal (pois este texto nada mais é do que um comboio de palavras), escreverei sobre mim. Nada mais trivial, decerto. Nada mais ordinário. Que interesse terá o tema para o leitor desconheço, por ora. Mas esteja certo, leitor (melhor seria, “leitora”), de que não me ocuparei de mim reunindo neste papel virtual um bando de banalidades subjetivas. A proposta é sempre alguma forma de reflexão. Preciso reler-me e compartilhar com você essa releitura; e quem sabe, assim, provocar-lhe o instinto de releitura de si. Ao termo deste texto, tendo já elaborado um gesto de interpretação, quiçá, estará motivado a desenvolver uma leitura de si mesmo na sua intimidade intrapsíquica.

Durante essa proposta de releitura de mim mesmo, convidarei o leitor a pensar sobre alguns fenômenos fundamentais à história existencial de cada um de nós, enquanto indivíduos. Portanto, não passará despercebida ao leitor uma base teórica subjacente a guiar-me as reflexões – ou melhor, o movimento espiritual de instrospecção. O rigor conceitual é um mau hábito que adquiri ao longo de minha formação acadêmica, sobretudo, ao longo de minhas experiências de leitura de filosofia. Por instrospecção, em psicologia, devemos entender um método através do qual uma consciência individual examina seu próprio conteúdo, a saber, seus sentimentos e ideias. A instrospecção é uma etapa da psicoterapia e conta, portanto, com a participação do terapeuta, cuja função é induzir o paciente a avaliar seus próprios sentimentos, levando-o a se dar conta das causas que lhes são subjacentes. Uma vez identificadas essas causas, o paciente poderá modificar seus padrões de comportamento pessoal e social. Na ausência de um terapeuta, imponho-me a dupla tarefa de agente indutor (ou condutor) e agente realizador.

A memória é, sem dúvida, um fenômeno fundamental na construção da história existencial de todos nós. Esse sentimento de continuidade do ‘eu’ – que somos hoje e que fomos no passado – só é possível graças à memória. Dela depende a construção de nossa identidade pessoal. A problemática da identidade é, decerto, um tema muito interessante, mas não me ocuparei dele aqui. Ater-me-ei ao conceito de memória.

Todos nós sabemos mais ou menos o que é a memória. Em geral, tendemos a pensar nela como uma espécie de unidade de processamento de arquivos. Claro, não é bem assim que, ordinariamente, a pensamos. Na verdade, muitos de nós pensam-na como uma espécie de recipiente mental em que se inserem nossas experiências de mundo. O Dicionário Técnico de Psicologia (2006), dá-nos a saber a seguinte definição, que refiro na íntegra abaixo:



“MEMÓRIA – Retenção de aptidões e informações recebidas através de processos de aprendizagem, abrangendo quatro operações fundamentais: decorar, reter, recordar e reconhecer explicitamente”.

                                                            

                                                          (p. 203)





O mesmo dicionário elenca vários tipos de memória. No entanto, apenas dois tipos me interessam para efeito de discussão e esses dois tipos não se topam na referida obra, mas no livro Inteligência Multifocal – Análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores – do psiquiatra Augusto Jorge Cury. (Está aí um aspecto de minha personalidade que vim a desenvolver com a maturidade intelectual: não consigo escrever sobre temas intrigantes, sem algum embasamento teórico; por isso, desenvolvi o hábito de me cercar dos livros, a fim de que o que eu afirme não seja nem equivocado, nem superficial). É claro que o equívoco está sempre presente no próprio processo de se fazer da linguagem. Todo dizer traz o equívoco em potência. De qualquer modo, o superficial, quando não é previsto por um código tácito de comportamento ou convivência, me incomoda.

Há, portanto, dois tipos de memória, consoante ensina Cury: a memória existencial e a memória de uso contínuo. O conceito é de fácil compreensão, conforme veremos (e bastante elucidativo, porque confirma nossas intuições sobre como experienciamos no presente o que vivemos no passado, quando resgatamos nossas experiências na memória). A memória existencial diz respeito às experiências vividas e que são registradas; a memória de uso contínuo inclui as informações disponíveis para uso e que são continuamente rearquivadas, tais como endereços, número de telefones, senhas, fórmulas de matemática, trechos de poemas, etc. O acesso a essas informações é mais fácil e imediato porque elas estão sempre disponíveis para uso contínuo. Claro é que, uma vez não sejam frequentemente usadas, tais informações tenderão a se situar em zonas na memória cujo acesso se tornará mais difícil.

Há uma passagem interessante, em que Cury compara a natureza da memória humana à forma de funcionamento da memória de um computador, com vistas a tornar patente no que diferem uma da outra. Cuido oportuno citá-la:



“O processo de arquivamento da memória humana não é segmentado como nos computadores. Nestes, os arquivos são segmentados e as informações são arquivadas em sistemas de códigos ou endereços. Nos computadores procuramos as informações através de rígidos e engessados sistemas de códigos, da mesma forma como procuramos um livro numa biblioteca. Na memória humana não ocorre assim, sua leitura não é unidrecional mas multifocal. Nela, ao contrário, dos computadores, os arquivos têm canais de comunicação entre si. (...)”.



(p. 81)





Não me alongarei nos pormenores da teoria multifocal da mente, proposta pelo autor. É preciso reter o essencial, nessa passagem: as experiências arquivadas estão inter-relacionadas e o acesso a elas na memória é operado por um processo de leitura (interpretação). Por isso, um pequeno gesto de uma pessoa pode desencadear reações de alegria, de ansiedade, já que são ativados em nossa mente, pela memória, conteúdos de experiências importantes de nossa história pessoal. O cheiro de um perfume pode nos provocar sensações de bem-estar e alegria ou de raiva, porque pode nos remeter a experiências agradáveis ou não.

O mais interessante ainda está por vir. E nos assoma à consciência na leitura do subtítulo “O Passado não é lembrado, mas reconstruído”, que se acha na página 82 do trabalho do autor. Não há uma recordação das experiências do passado, mas uma interpretação mediante a qual elas são reconstruídas em nossas mentes.



Não nos lembramos das experiências originais  do passado; sempre reconstruímos interpretativamente essas experiências a partir da leitura multifocal da história intrapsíquica e dos sistemas de variáveis intrapisíquicas do presente que atuam psicodinamicamente nessas experiências”.



(p. 82)



Que a ignorância sobre o que é leitura multifocal e o que são essas variáveis intrapsíquicas não nos perturbe a compreensão. Não tenho a intenção de esclarecê-las, porque me estenderia demais. O fato é que o acesso às experiências vividas passa por um filtro interpretativo e é passível de toda sorte de distorções. O essencial das experiências se perdeu. Ou, como escreve Cury, “(...) a história existencial (intrapsíquica) está morta essencialmente na memória” (ibid.id.). A realidade essencial das experiências vividas sofreu “o caos psicodinâmico”. Assim é que



“O primeiro beijo, o primeiro diploma, o primeiro desafio, o primeiro salário, a primeira derrota, nunca mais são resgatados de maneira pura, de maneira tão intensa. Toda “recordação” tem um débito emocional em relação à experiência original (...)”.



                                                                (ibid.id.)



É por isso que o mais atroz dos sofrimentos não causará o mesmo impacto doloroso que experimentamos, quando sua “lembrança” (não há lembrança, a rigor) ainda é recente, depois de alguns anos do evento que o desencadeou ter ocorrido. Também é por isso que a emoção de alegria em experiências de amor, quando resgatadas, não exercerão sobre nós a mesma intensidade emocional. A formação de nossa personalidade depende do trabalho de leitura de nossas experiências subjetivas e sociais na memória.

Por que as experiências do passado não podem ser recuperadas essencialmente? Por que não são elas experienciadas na memória da mesma forma que as experienciamos realmente? Porque a memória visa à produção contínua de novas experiências, ideias, pensamentos e emoções. O apagamento do essencial das experiências do passado, ou seu anuviamento, é necessário para que não só a personalidade se desenvolva, mas também para que a inteligência se construa. Cury daí extrai um questionamento:



“Já pensou se pudéssemos resgatar o passado exatamente como ele é e se tivéssemos, ainda, a capacidade plena de lembrar de todas as experiências contidas na memória? Isso poderia paralisar a produção de novas experiências, o que engessaria o desenvolvimento da inteligência”.

                                                   

                                                          (p. 83)



A “morte” das experiências (pensamentos, emoções), ou seja, seu arquivamento na memória, viabiliza novas oportunidades de releituras da memória, engendrando novos pensamentos e emoções. A memória, ao ler o passado, permite a produção de novas experiências e informações. E o “eu”? Que influência sofre nesse processo? Vou-me ocupar do conceito de eu, mais adiante. Vale, porém, notar que, no processo de leitura da memória, o “eu sou” (que compreende as experiências do presente) se desorganiza e entra a fazer parte da memória, tornando-se o “eu fui histórico”. Esse “eu fui” é a história intrapsíquica de cada um de nós. Ele influencia o “eu sou”. Ao longo de nossas experiências de vida, o “eu sou” torna-se continuamente o “eu fui histórico”, mas é também reorganizado continuamente, tornando-se um “novo eu sou”. Há um contínuo reestruturar-se do “eu sou”. Finalmente, atentemos nas palavras seguintes de Cury:



“A cada momento em que resgatamos e reconstruímos uma experiência do passado, nós o fazemos de maneira diferente, com proximidade ou grande distanciamento em relação às dimensões intelecto-emocionais da experiência original. É por esse motivo que nossas recordações da interpretação reproduzem de maneira diferente as experiências do passado nos diversos momentos em que as recordamos. Em determinado momento, podemos recordar [ entenda-se “reconstruir] uma experiência de angústia existencial vivenciada no passado, ligada a uma perda, a uma frustração psicossocial ou a uma dificuldade socioprofissional, etc., e ficarmos comovidos com ela e, em outro momento podemos recordá-la sem grandes emoções. Uma mãe pode recordar a perda de um filho com grande sofrimento num determinado momento e, em outro momento, recordá-la sem grandes dores emocionais.”



                                                                (p. 85)





É lugar-comum o afirmar que nossa personalidade é construída nas nossas relações com o meio. Os outros significativos (pais, avós, professores, etc.) são co-responsáveis pela constituição de nossa personalidade. Mas é sempre bom lembrar que o indivíduo não é inteiramente condicionado, que sua história intrapsíquica não é completamente plasmada nas relações com esses outros significativos. Ensina Cury que há “múltiplas variáveis intrapsíquicas” em ação no processo de construção da histórica intrapsíquica de um indivíduo.



Agora, posso já pavimentar novos caminhos verbais, fazendo recair as expressões de meu espírito sobre o “eu”. Para considerar o que significa o “eu”, tomarei a mim mesmo como referência. Dizer que mudamos é clichê. Mudamos sim; é fato incontestável. As fotografias o provam, o espelho não mente. Ou será que mente? Lembro que, quando  sentimos o corpo, forjamos dele uma imagem. A experiência nossa do próprio corpo é uma experiência imagética. Ensina J. D Nasio,



“(...) sempre que sentimos nosso corpo, o vemos ou julgamos, estejamos certos, forjamos dele uma imagem deformada, inteiramente afetiva e resolutamente falsa. Para resumir, nunca percebemos o nosso corpo tal como é, mas tal como o imaginamos; o percebemos como fantasia, isto é, mergulhado nas brumas de nossos sentimentos, reavivado na memória, submetido ao julgamento do Outro interiorizado e percebido através da imagem familiar que já temos dele”.



                                                          (p. 63)



Isso explica por que muitas mulheres se sentem gordas, quando não o são; ou, em casos patológicos, como na anorexia, uma mulher possa ver-se como gorda, quando, na verdade, suas coxas e quadris são puros pele e osso.

Ah sim! A imagem! A interpretação e as distorções daí resultantes! Inevitáveis! E o Outro, que interiorizamos e que se torna o juiz de nossos comportamentos. Forjamos uma imagem exagerada do corpo; fazemos dele uma ideia falsa.  Parece que o espelho mente. Mas é claro que mudamos...

Nós mudamos – é fato -, mas quase sempre não apreendemos essa mudança. Refiro-me à mudança psico-emocional. Nos últimos oito anos, eu atravessei períodos intensos de mudança, não sem grande dose de sofrimento. Mas não é do sofrimento que me ocuparei. Não é possível compartilhar sofrimento; podemos comunicá-lo enquanto experiência, mas seu conteúdo não é partilhável, porque não pode ser sentido. Cada qual tem sua dor e sabe qual é sua medida, porque a sentiu. Um sofrimento comunicável nunca é um sofrimento sentido.  É da mudança que se trata. E essa mudança envolve minha avidez de conhecimento, minha relação visceral com os livros (o deleite com a leitura), minha visão sobre o amor, a assunção e anunciação do ateísmo, a produção poética, a escrita, a convivência, as amizades ou ausência significativa delas. A mudança compreende todo esse conjunto de experiências. Não pretendo me deter em cada uma delas. Talvez, não consiga dar conta de todas. Por isso, escreverei sem reuni-las numa ordem que me permite submetê-las rigorosamente à avaliação.

Divago... Uma pergunta arranha-me a alma: O que é o Eu? Ou o ego, de Freud. A designação pouco importa. Fiquemos com o Eu. Está aí uma questão com a qual deveríamos nos deparar a todo momento, porque o Outro se impõe à nossa presença quase sempre. E esse Outro é também um Eu. Se para muitas pessoas custa apreender seu próprio Eu (digo, muitos não são dados ao autoconhecimento, à introspecção), é forçoso que elas não só reconheçam uma outra mente, mas também um outro Eu diante do qual constroem sua identidade. Como essa é uma das questões com que me debato, decidi comprar um dicionário de psicologia. E lá encontro, no verbete Eu uma série de perspectivas teóricas sobre esse constructo. Duas definições são apontadas como fundamentais: a) o Eu como o sujeito, o agente, a pessoa individual ou uma região específica do ser; b) o Eu como indivíduo que se revela a si mesmo, de uma dada maneira. Ele é o gestor da psique, mas não é sempre o responsável por todos os pensamentos conscientes; alguns pensamentos que assomam à consciência, lhe escapam ao controle. Ou não é verdade que nos ocorrem pensamentos negativos que não queríamos? E nos culpamos! Mas o Eu não é culpado da presença deles. Não é difícil ver que o Eu é responsável pelas nossas relações com o mundo; mas esse Eu é corporificado, encarnado; não existe sem um corpo. Também ele não é produto de uma mente abstrata, mas é efeito de um cérebro. A mente é um processo; na verdade, a mente é o que o cérebro faz. O cérebro produz a mente, ele é um processador de informações. A mente é uma espécie de órgão. Chomsky fala em “órgão mental”. A mente é constituída de um conjunto de órgãos mentais ou módulos mentais, não diretamente acessíveis a olho nu, mas cada qual organizado segundo um designe que o especializa para interagir com o mundo.

Esse Eu é um sentimento, um sentimento de si mesmo. Qual é a substância desse Eu? O psiquiatra - já citado – J. D. Nasio escreve ser ela a própria imagem do corpo. E explica:



“Não somos nosso corpo em carne e osso, somos o que sentimos e vemos de nosso corpo: sou o corpo que sinto e o corpo que vejo. Nosso eu é a ideia íntima que forjamos de nosso corpo, isto é, a representação mental de nossas sensações corporais, representação mutante e incessantemente influenciada por nossa imagem do espelho”.



(p. 54)



As citações se acham no livro Meu corpo e suas imagens (2009). Mais adiante, ficamos sabendo que o Eu é uma entidade essencialmente imaginária. É claro que ele é um sentimento de existir (e chegarei a esse ponto logo). Mas o eu é indissociável do corpo, ou melhor, da imagem do corpo. Nasio nos ensina que o Eu se compõe de duas imagens corporais diferentes, embora indissociáveis: “a imagem mental de nossas sensações corporais e a imagem especular da aparência do nosso corpo” (p. 55). A sensação de ser Eu decorre do sentir/ viver o meu corpo e vê-lo movimentar-se através de um espelho.

O interessante é que, uma vez sendo um produto imagético, a apreensão do Eu se torna quase impossível ao próprio indivíduo, pelo menos o é integralmente. Corrobora essa ideia o seguinte trecho de Nasio:



“Sentir viver meu corpo e vê-lo em movimento proporciona-me a certeza imediata de ser eu mesmo, certeza que, não obstante, esconde minha ignorância do que sou e de onde venho. O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é. Agitado pela profusão de minhas sensações internas e pela visão do meu corpo, sei que existo mas não sei que sou”.



(p. 55)





O Eu é o “lugar de desconhecimento”, segundo Lacan. O autor, mais adiante, definirá imagem, arrolando vários tipos. Para efeito de compreensão da natureza do Eu, segundo o autor, devemos entender por imagem uma representação mental que se imprime na superfície de nossa consciência ou do nosso inconsciente. A imagem é, basicamente, sempre um duplo,



“ (...) pode existir seja em nós, em nossa cabeça, à maneira de uma representação mental consciente ou inconsciente, seja fora de nós, visível sobe uma superfície, ou ainda posta em movimento num comportamento significativo”.



(p. 66)





Não escapamos à interpretação. Isso é notável, mesmo quando consideramos a natureza dessa entidade psíquica a que se chama Eu. Não atingimos a sua essência, quer porque ela está velada pela imagem construída de si por ele mesmo, seja porque a essência não é senão a própria imagem construída. Avulta-me no espírito uma dúvida! O autor entende a imagem do corpo como a própria substância do nosso eu (p. 54). Que será substância para o autor? Terá ele tomado esta palavra no seu sentido estritamente filosófico ou ordinário. Uma consulta ao Dicionário Básico de Filosofia, de Danilo Marcondes, não me ajudou muito. Por substância, devemos entender aquilo que é em si, aquilo cuja realidade não depende de mais nada e que serve de suporte para atributos. Spinoza postulava que a única substância era Deus, porque ela não dependia de mais nada para ser. A essência é “o ser mesmo das coisas, aquilo que a coisa é, ou que faz dela aquilo que ela é” (p.93). O exemplo oferecido a respeito de Aristóteles lança alguma luz. Assim é que uma cor branca só existe se houver uma coisa que tenha essa cor. A cor em si não existe fora da substância. A substância é a realidade imediata, é a coisa mesma que tem a cor branca. Felizmente, sem mais delongas, encontrei em outro dicionário a resposta que procurava. Em Dicionário Oxford de filosofia, há no verbete substância a identificação desta com o conceito de essência, pelo menos é esta uma das formas de concebê-la (mas não a única – vimos que pode ser aquilo que existe por si mesmo, sem de nada mais depender).

Parece-me, então, correto admitir que a essência (ou substância) do Eu é a imagem. Imagem do corpo, diga-se bem. Porque o corpo é a primeira substância. Escreve ele, à página 63, “não vamos nos iludir, a coisa mais importante para nós é o corpo” (p. 63). A imagem do corpo é a base para a construção da imagem do Eu. Todavia, é imperioso lembrar que o Eu se constitui de “um conjunto de imagens de si mutantes e frequentemente contraditórias” (p. 55).

Então, esse Eu que sinto mudou significativamente ao longo desses últimos oito anos. (a palavra significativamente é importante aí, porque sinaliza para uma mudança cujo efeito assemelha-se a uma espécie de libertação, sem qualquer conotação mística ou transcendente). A mais profundamente perturbadora libertação foi a ruptura total com a crença em Deus. Trata-se de uma experiência que já externei alhures, mas cujo conteúdo emocional jamais poderá ser experimentado por quem dela toma conhecimento em meus textos. O sentir não é acessível. O que senti e o que sinto ainda hoje não pode ser verbalizado; e mesmo que pudesse, jamais poderia ser sentido reciprocamente. O sentir é singular e está intrinsecamente relacionado à minha história intrapsíquica, enfim, pessoal. Tem a ver com a aurora de minha vida (que não me herdou revolta, mas uma lucidez inacessível a muito poucos). Liberto das ilusões da religião, da tirania de Deus (que não é senão um estratagema psicológico para cingir o rebanho a esperanças vãs – o leitor que o comprove por si mesmo lendo o livro “Onde a religião termina?, de Marcelo da Luz, ex-sacerdote católico, conscienciólogo - 

http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noticia/2011/05/24/marcelo-da-luz-fala-sobre-seu-polemico-livro-5291.php), 
pude reconciliar-me com esta existência e, sobretudo, me solidarizar com o sofrimento alheio em escala mundial, sem fingir ignorá-lo. Pelo menos, o egoísmo religioso foi abandonado em mim. A leitura de Feuerbach (Preleções sobre religião) ajuda-nos a compreender a natureza desse egoísmo. (Deus faz isso ou aquilo por mim – estranhamente nada faz pelos milhões de miseráveis deste planeta, nada faz para evitar que uma criança inocente morra vítima da dengue ou de qualquer outra moléstia!).

A quebra do encanto (seja religioso, seja do amor) acompanhou-se de um profundo espanto diante da existência, de seu absurdo. Esse Eu se defronta incessantemente com o Mistério. Cientistas anunciaram a descoberta (embora o resultado ainda não seja concluso) de uma partícula chamada bóson de Higgs (em homenagem a Peter Higgs, cientista que postulou a existência dessa partícula, pelo menos teoricamente, há décadas). Teria ela dado origem ao Universo. Não mais a água, de Tales; nem o ar de Anaxímenes; tampouco o aiperon (um princípio abstrato ilimitado e indefinido que subjaz à natureza) de Anaximandro. Não mais o Tao, de Lao Tse, nem o Brâman, dos hiduístas. Não mais Deus, dos judeus, cristãos e mulçumanos (embora os cientistas tenham-na batizado de “partícula de Deus” (provavelmente, por causar mais visibilidade na mídia e mais interesse popular do que o nome “bóson de Higgs”, cuja compreensão depende de que saibamos que Bóson refere-se à estatística formulada por Satyendranath Bose, físico indiano e Albert Einstein. Essa estatística aplicava-se a fótons e mésons, especialmente). É claro que precisei pesquisar isso, porque ignorava completamente quem era Higgs, quem foi Satyendranath Bose; e continuo ignorando como opera a estatística de Bose-Einstein, que se situa no nível da física quântica (obscura em si).

A partícula de Higgs é uma das partículas fundamentais que permitem a existência do Universo ou de tudo que existe. Mas sempre podemos nos indagar sobre a causa primeira, retrocedendo ad infinitum. Mas Deus certamente não é a solução adequada, além de todos os problemas que essa hipótese acarreta (escusa mencioná-los), persistiria ainda a pergunta: quem criou Deus? E se nos apressássemos em admitir que Deus é incriado, vale perguntar “por que não podemos dizer disso da partícula de Higgs?” Por que não podemos dizer isso do próprio Universo? Por que não um Universo eterno? Estamos fadados, pela própria estrutura de nossa cognição, a pensar em termos de causa-efeito. O Universo tem uma causa? Se sim (“para tudo que existe há uma causa”), que causa é esta? Se Deus se demonstrou claramente uma hipótese insustentável, então devemos investigar a validade de outra hipótese. Não temos evidência da existência de Deus, então buscaremos evidências de outra causa. A ciência nos oferece algumas. Talvez, Hegel estivesse errado (e ele parece ter errado sob muitos aspectos), ao postular que o real é racional. Talvez, não seja sempre racional. Talvez, nossa razão nos impõe limites, esquemas de raciocínio que não parecem eficazes para pensar sobre a Origem de Tudo. A fórmula “para todo efeito tem de haver uma causa” ( ou, nos termos da razão suficiente de Leibniz, “para todo fato que ocorre há uma razão pela qual esse fato ocorre”, e ocorre de uma determinada maneira e não de outra) pode ser inadequada quando queremos buscar entender como o Universo começou a existir.

Um pensamento explosivo sacudiu minha alma agora! Talvez, a vida não seja senão uma fração da eternidade do Universo. O certo é que cada Eu passará. Nós passaremos, mas o mundo continuará, a vida continuará, a despeito dos barulhos apocalípticos de certos segmentos evangélicos aqui e em outros cantos do mundo. Se a previsão da ciência estiver correta, o planeta sucumbirá daqui a bilhões de anos (se não me equivoco quanto à estimativa feita pelos cientistas). De qualquer modo, nem eu nem o leitor estaremos aqui. O Eu passa; o mundo fica.

Sobra-nos o sentimento de Eu em face do Mistério. Estamos condenados a construir sentidos, sempre muito frágeis. Desiludi-me do amor, porque não careço mais dele. Não carece sobrecarregá-lo com ideais. Quando o fazemos, ele se esfacela, porque é frágil. Sim, o amor é frágil, porque a vida é frágil. E descobrimos que tudo que é frágil carece de cuidado, assim devemos proceder com os bebês. Dispensamos-lhes cuidados, dada a sua fragilidade. Fragilidade e fraqueza são o mesmo. No final das contas, inclinamo-nos às coisas frágeis e às que exibem fraquezas e descobrimos que elas são mais valiosas do que o diamante. Quanto ao diamante, é interessante saber que a Natureza tem sua poesia: os átomos de carbono produzem tanto cristais de diamante, famosos por sua dureza, quanto cristais de grafite, caracteristicamente macio. Isso dependerá da forma que assumam; para cada formação de átomos de carbonos, uma substância: dura, como o diamante, ou macia, como o grafite.

Tanto o conhecimento como o amor são valores que nos instam a partilhar. Viver é doar-se, ainda que um pouco; os que não se doam vivem profundamente infelizes. O Eu precisa dar testemunho de si; que seja verdadeiro e significativo é o que desejamos. Precisamos deixar pegadas, deixar rastros nessa existência fugidia, fugaz e absurda. A profundidade das pegadas e a extensão de nossos rastos dependerão do grau de nossa imersão nesse existir que não é senão um devir. Porque o “tempo não para”, o mundo não cessa de girar a roda da vida...  E precisamos seguir em direção à morte inevitável... na contramão ou no fluxo sempiterno...

terça-feira, 3 de julho de 2012

"Não se começa a filosofar, se não se debruça seriamente sobre o problema da morte" (BAR)


A morada da morte




Como pensar a vida sem pensar a morte? A felicidade, sem aceitar a infelicidade? A sabedoria, sem aceitar sua loucura? (...)”



(p. 50)

(grifo meu)



Tão logo me deparei com este trecho de Sponville, em Bom dia, angústia (2010), compreendi, por intuição iluminadora (em inglês, insight), por que não me acontece ponderar sobre a vida sem levar em conta o fato da morte. Pessoas há que veem nessa minha disposição natural para o tratamento da morte em minha fala ou escrita um sinal de dissabor, desespero ou de gosto pelo trágico. Mas se esquecem de que a vida é trágica; a vida é decepcionante. Citarei as palavras de Sponville, que nos ensina a esse respeito. Por ora, noto que, entre aquelas pessoas que evitam pensar na morte ou me censuram quando esta palavra visita meus pensamentos ou freqüenta a cavidade de minha boca, está minha namorada. Ela não compreende e ninguém nunca compreendeu. E essa compreensão não conta com o serviço da razão; nada tem de racional. É pura emoção; é pura sensibilidade! Sensibilidade à fragilidade da vida, por certo. Um legado do limiar de minha existência. A razão, em si, não leva-nos à compreensão da relação visceral entre vida e morte. Provam-nos as palavras seguintes de Sponville, ao contar-nos sobre o comportamento de seus amigos, particularmente os inteligentes:



“Alguns de meus amigos, mesmo inteligentes, garantem-me que na morte eles nunca pensam, ou algumas vezes por ano quando muito. Quanto a sentir o sabor dela... Outros, como eu, pensam nela todos os dias, e quase a toda hora de cada dia... Este gosto, é ele o que melhor conhecemos. Como os morangos ao lado nos parecem exóticos! Medo? Não demais, parece-me. Mas esse gosto de nada em todas as coisas, carregar essa sombra do perecer... Não se morre uma vez, afinal de contas, para acabar. Morre-se todos os dias, a cada instante de cada dia. A criança que eu era está morta no adulto que sou, aquele que eu era está morto hoje, ou se sobrevivem em mim é apenas na medida em que lhes sobrevivo, cada qual tranporta seu cadáver consigo, e jamais retornarão os amores antigos... A vida é  pungente porque morre, porque não para de morrer, aqui, à nossa frente, em nós, e o tempo é pungência, essa morte em nós que avança, que escava, que espera, que ameaça... Deve-se pensar nela? Deve-se esquecê-la? Questão de sensibilidade, pelo que creio, mais do que de doutrina”.



                                                  (p. 51)




É de sensibilidade de que se trata, decerto, sempre que levamos em conta a morte. Pensar ou não na sua essência, que não é senão a perda. Enfrentar a angústia na serenidade do pensamento. Que é a angústia? O que manifesta o nada, ensinará Kierkegaard. É ela um pré-sentimento, segundo Lacan, porque destituída de conteúdo específico. É um lugar algum, segundo Heidegger, porque revela o fato de que o que nos ameaça não está presente. A angústia diante da ideia da morte ou mesmo da morte como fato constatado (quando velamos o corpo de um defunto) torna o ausente ameaçador. Mas um ausente sempre presente, em potência. Por isso, escrevi, certa vez, todo ser humano é grávido da morte. A morte está latente em nós. E isso me faz lembrar uma passagem de Pessoa, que observa “somos defuntos adiados”. Escreverá Sponville ainda “(...) viver é morrer; e por isso a vida é ainda mais bela, porque traz em si a morte amarga” (p. 53).

Preciso citá-lo novamente, quiçá, assim, se interesse o leitor em ler seu livro. Uma leitura inquietante e agradável!



“(...) A verdade? Qual verdade? A de viver e de morrer. É a mesma, pois que apenas os viventes morrem, e pois que morrem todos. O raciocínio não muda nada. Não se morre por acidente, doença, velhice. Morre-se por ser mortal, morre-se por viver, por ter vivido. A morte, ou a angústia da morte, ou a certeza da morte, é o próprio sabor da vida, seu amargor essencial.”.



                                                    (p. 49)



Morre-se, porque é necessário morrer. Porque não há vida sem morte; e, para morrer, é preciso antes ter vivido. O leitor experiente não concluirá que Sponville lança um olhar pessimista sobre a existência humana. Não se engane com esse trecho. Para o autor, a vida comanda, embora também a morte o faça. Para ele, a vida basta; tem ela “gosto de felicidade”, sem negar-lhe o gosto de desespero. Leiamos atentamente este trecho, a fim de que nos torne mais clara a visão do autor:



“Que a vida seja decepcionante, sempre decepcionante, no fundo é isso que ela nos ensina de mais claro. Não, por certo, que nela não haja alegrias e prazeres. Mas não os que esperávamos ou não da mesma forma, ou que não poderiam, quando estão presentes, dar-nos a felicidade que deles esperávamos  quando não estavam presentes, quando nos faltavam”.

                                          

                                                    (p. 54)



A vida nos ensina esta dura lição: a decepção, a desilusão: “o amor decepciona. O trabalho decepciona. A filosofia decepciona” (id.ibid.). Que nos resta senão amar verdadeiramente sem crer no amor, sem divinizá-lo, aceitando-o como ele é, como tudo o mais, decepcionante?



“Prefiro o alegre amargor do amor, do sofrimento, da desilusão, do combate, vitórias e derrotas, da resistência, da lucidez, da vida em ato e em verdade. Prefiro a realidade, e a dureza da realidade. Se a vida não corresponde às nossas esperanças que nos enganam, desde o início (desde a nostalgia primeira que as alimenta), e que a vida só possa desde então nos desenganar... Gosto azedo da decepção, do qual nada cura senão o desespero, se for possível, a sapidez muito acre e muito salutar do desespero. Toda esperança é decepcionada, sempre, só existe felicidade inesperada.”.



                                                 (p. 55)

                                               (grifo meu)





Felicidade episódica! Poderíamos amar sem acreditar no amor? Apressar-nos-íamos em responder negativamente. Necessário, contudo, se faz compreender a lógica de Sponville. Escreve o autor: “E como amar verdadeiramente, enquanto se acredita no amor, enquanto se faz dele uma religião, um absoluto, um sonho?” (id.ibid.). É que só podemos amar verdadeiramente quando nos desfazemos das ilusões do amor, quando abandonamos os ideais de amor, quando não mais o idealizamos! Desfazer-se das ilusões que construímos sobre os objetos de desejo é a única forma de viver para quem abandonou as ilusões da transcendência e as mentiras da religião. Eis o que me parece inegável:



“Aquele que só amasse a felicidade não amaria a vida, e com isso se proibiria de ser feliz. O erro é querer selecionar, como nas prateleiras do real. A vida não é um supermercado, cujos clientes seríamos nós. O universo nada tem para nos vender, e nada diferente para nos oferecer senão ele próprio – nada diferente para oferecer senão tudo.”



(p. 56)



Preciso ainda citar estas últimas palavras de Sponville, antes de levar a cabo este texto; principalmente, porque é preciso que se dissipe qualquer dúvida sobre o valor que o autor atribui ao amor na vida dos seres humanos. Não nos enganemos com aquele tom desalentado com que parece encarar o amor. Sponville nos brinda com estas belas palavras a seguir, trecho em que trata da solidão:



“Solidão da arte. Há também uma solidão da dor, e é a mesma. Solidão de viver. Solidão de morrer. Solidão: finitude. A amizade não adianta nada, e, além disso, temos tão poucos amigos... Gostaríamos de ser amados ainda mais, o que confirma simplesmente que de amor, de puro amor, nós mesmos somos muito pouco capazes. Solidão do amor, do amor imenso que esperamos, daquele – também imenso por vezes – que desejaríamos dar...Mas o amor não se dá, nem se possui. O amor é pura perda (...), e essa perda, essa puríssima perda de amar, é a única riqueza, como que uma luz sobre o mundo, como que uma pobreza radiosa, como que uma jóia de alegria e de doçura na infinita solidão dos viventes”.



(p. 54)



Como negar que a vida é uma corrida em direção à morte? E como negar que, ao pensar na morte, temos de lidar com a fragilidade da vida, mas também com o amor, a solidão, o desejo de felicidade e a convivência com a decepção? Como escapar à angústia? Evitando pensar sobre a morte? Para Kierkegaard, quanto menos espírito, menos angústia. Mas a angústia está entranhada na existência, no seu absurdo, para ser mais exato. Para Heidegger, as instituições sociais são o modo que os homens encontraram para se defenderem contra a angústia. Mas, o que é mesmo angústia? Uma forma de ansiedade superlativizada. Que é ansiedade? Um estado emocional desagradável suscitado em nós por um perigo suposto. Ele não está adiante. Angústia em face da morte não é senão o medo da morte. A ansiedade está na raiz de todos os mecanismos de defesa do ego.

Por que, então, pensar a morte? Porque é preciso enfrentá-la. É enfrentando-a na solidão do pensamento que podemos viver a alegre amargura da vida. À assunção de meu ateísmo seguiu-se o sentimento de libertação espiritual e intelectual que compartilho com Sponville. Sem a bengala da ilusão religiosa, vivo a fragilidade e fugacidade da vida. E a aceito, não sem pensá-la na sua relação visceral com a morte, condição final a que estamos destinados desde o nascimento. Entendidas estas palavras, o trecho abaixo não atormentará as noites solitárias do leitor:



“A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos parte uns dos outros. Fantasias individuais e coletivas em torno da morte são frequentemente assustadoras. Como resultado, muitas pessoas, especialmente ao envelhecerem, vivem secreta ou abertamente em constante terror da morte. O sofrimento causado por essas fantasias e pelo medo da morte que engendram pode ser tão intenso quanto a dor física de um corpo em deterioração. Aplacar esses terrores, opor-lhes a simples realidade de uma vida finita, é uma tarefa que ainda temos que enfrentar”.



                      ( A solidão dos moribundos, 2001: 76-77)






segunda-feira, 2 de julho de 2012

"Nem sempre a vida me cai bem; mas nela vou-me apertando" (BAR)


Conciliado


Quero a vida como está

Nada dela espero

Nada ela há de me dar

Porque não necessito



Quero a vida do jeito que é

Instável

Dolorosamente suportável

Não tenho esperança

Deixo-a aos desesperados

Aos conformados



Quero a vida no seu lugar

Nem mais adiante

Onde não existo

Nem lá onde a memória mora

Quero a vida inteira

Não fragmentada



Quero a vida com sua crueza

Desvelada toda vez que a aproximo

Do pensamento

Quero-a nua e isenta de culpa

Doendo no absurdo

Com que me espanto!



Quero a vida apenas

Nada a ela acrescentar

Quero a vida como está

Imersa na minh’alma

Indiferente a mim!



(BAR)

domingo, 1 de julho de 2012

"O amor não cabe na palavra amor" (BAR)


Ao meu amor,







Assim se expressou Sponville, em seu Bom dia, angústia! (1997):





“As cartas de amor durarão mais tempo, muito amiúde, do que o amor. Elas sobreviverão a ele. Estarão ainda aqui, se se quiser, quando o amor estiver morto: atestarão o que tiver acontecido, o que eternamente continuará verdadeiro, mas que talvez, sem a escrita, teríamos esquecido ou perdido”.

(p. 39)



Perdi a conta das cartas que já compus, das que duraram mais que o amor. Cartas em que derramei minha alma, desnudei a emoção terna e fecunda do amor. Do amor primaveril, que se doa sem grandes consequências. Crescemos e desistimos de escrever cartas de amor. Elas testemunham uma ingenuidade que devemos superar, porque é parte de nosso crescimento. O amor da maturidade não se insufla de sonhos, mas ancora-se na solidez dos projetos. Todo amor aspira à eternidade, escrevi eu, certa vez; mas é necessário morrer. E nosso esforço é fazer com que a eternidade do amor caiba na finitude de nossa existência. Todo EU TE AMO, produzido na verdade de nosso coração, é um sopro de eternidade. Dizer EU TE AMO é a forma que encontramos para silenciar a angústia. Porque nada é eterno, nem mesmo o amor. Que se amem intensamente na brevidade da vida é o que desejam os amantes. Não nos cansamos de ouvir e dizer EU TE AMO; os apaixonados sabem disso. Querem ouvir todos os dias essa frase; querem pronunciá-la. Ao pronunciá-la, todos os dias, lembramos ao outro o compromisso; selamos nosso acordo. Por vezes, me esforcei por formular metáforas que captassem bem a densidade do amor que dediquei. Não careço mais delas, quando descubro que posso dizer alegremente EU TE AMO. Amor e reciprocidade são sinônimos; isso deveria ser evidente. Amor recíproco é redundância. Redundância do coração, que se doa, que se entrega, que se derrama. EU TE AMO, é o silêncio do amor que se impõe aos nossos corações. Isso é bastante, porque o amor é bastante.

terça-feira, 26 de junho de 2012

"Que seja amena a sorte na brevidade da vida!" (BAR)


                      Temporada


Desfiz a mala de projetos. Devolvi-os às gavetas. Recomeçar. É preciso. Apenas a companhia da solidão de meus passos. O não-ser como ventre de possibilidades, potência que a vida, por mais monótona, não cala. Estou seguro como nunca dantes estive. Amores e desamores vêm e vão como as ondas que o mar faz deitar sobre nossos pés. A vida, apenas, e o devir de Heráclito. Fluindo, na alternância dos opostos. E já posso ouvir a canção ‘nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia tudo passa tudo passará...’  A vida tem sido, para mim, um exercício de solidão. Não da solidão superficial que preenche o vazio deixado pela falta de entretenimento circunstancial. Mas da solidão que se entranha na alma, que nos aparta do mundo. É certo que, há tempos, sou eu que comando, não ela. Valho-me dela como um homem errante se vale de uma cabana abandonada. É meu lugar de refúgio, longe do qual mantenho o estrupido do cotidiano. Para suportá-la, deito a alma nas páginas de livros. E me demoro a saboreá-las com o espírito. Que é a leitura senão a alimentação diária da alma? É certo que viverei, ainda por muito tempo, anonimamente no coração alheio. E viverei serenamente à espera de ser descoberto. Quem sabe o amor um dia volte a adejar suas asas e redescubra em meu seio um bom lugar para se aninhar? Despeço-me como um retirante que precisa deixar sua terra natal. Embora saudoso, é improvável que a ela regresse. Assim deve ser, como o fora antes. A vida flui; as memórias, com o tempo, se embaçam. Que seja breve ou não a estiagem do amor. Por ora, quero apenas estar só, absorto. Que as estações da vida sejam amenas!

domingo, 24 de junho de 2012

Poemas para a saudade





A poesia de outrora


Queria a poesia de outrora
Talhada na dor e na melancolia
E ver de novo a alma como agora
Saudosa da mortalha da alegria

Os versos de antanho que bendiziam
O amor das horas solitárias
Que em minha alma morriam
Em veladas noites funerárias

Não é mais a poesia dor fremente
Monumento de paixões temerárias
É um motivo para compor tão somente

Mas não tendo mais a dor pulsante em mim
Que me animava a alma e a poesia
Morre-me a saudade de amar sem fim!


(BAR)





Imersão

Quero uma imersão duradoura
A poesia de outrora caducou
Repleta antes de rimas e melancolia
Metricamente esculpida no ventre da alma
O encanto se esfacelou!

O espelho me lembra quem não sou mais
O jovem que em versos exaltava o amor
Erigia ao sofrimento templos de culto!
Porque dele se nutriam os versos

Quero uma imersão mais duradoura!
Uma comunhão de espíritos desconformados
Afinidade nas letras do descontentamento
Amantes da labuta do pensamento
E do romance que arrebata noites comuns!

Quero uma imersão mais duradoura!
Que outrora punha o mundo entre parênteses
Para só o amor ocupar-nos os pensamentos!
Quero uma imersão mais duradoura!
Porque viver à margem é atar a alma ao desalento

Mas a margem é preferível quando o meio é raso
Margeio as vivências superficiais como o marinheiro
Que deseja navegar por águas profundas
Lá onde a imersão é possível
E o que nos espera não sabemos!

(BAR)

sexta-feira, 22 de junho de 2012

"Mais um ano longe de ser criança? Isso não me parece ser o mesmo que crescer." (Richard Bach)


                             Sobre o crescimento humano

  

Uma pessoa só cresce (e refiro-me a crescimento espiritual, à maturidade), quando capaz de reconhecer que o mundo não se dobra em face de seus desejos. Somos seres desejantes, e não há como deixar de sê-lo. O desejo nos impulsiona a viver; calado o desejo, resta a apatia, a melancolia. O desejo está no princípio; a ação vem depois. Nem sempre agimos segundo desejamos, a experiência no-lo prova. E não podemos ter tudo que desejamos. É preciso domar o desejo (e não me refiro ao que pode nos levar à ruína, mas ao desejo que visa a algum benefício). Para isso, há a cultura e seu produto psíquico, o superego – que comanda e censura, impedindo a plenitude da satisfação dos desejos. Há uma compensação à castração do desejo - o princípio de realidade, que nos impele a buscar para o desejo objetos  substitutivos, cuja fruição  esteja adequado às exigências do superego; afinal, é ele quem comanda.

Dei passos largos e me perdi. Volto ao que me interessa. Não o desejo que transgride às exigências do superego (que é o juiz social em nossa mente); mas o desejo realizável, embora limitado por pressões externas. Portanto, é do desejo frustrável que se trata. Amadurecemos quando nos damos conta de que entre o desejo e a realização há uma série de condições adversas que devemos nos esforçar por superar, embora, não raro, a superação não esteja ao nosso alcance. Não é raro que, nesses casos, o desejo nos conduza à utopia (que nada mais é do que o “não-lugar, o lugar nenhum). Mas, então, me lembro do poema de Eduardo Galeano, cujos versos finais nos ensinam que devemos caminhar:  “Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Transcrevo-o abaixo na íntegra:



A utopia está lá no horizonte

Me aproximo dois passos,

Ela se afasta dos passos.

Caminho dez passos

E o horizonte corre dez passos

Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.

Para que serve a utopia?

Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.



(Eduardo Galeano)



Vemos, assim, que a utopia, embora, por definição, infactível, ajuda-nos a avançar. Nesse sentido, ela nos leva a resistir à apatia. Ela nos move para frente e é possível que, durante o percurso tenhamos razões para nos contentar. Se nosso crescimento, eu dizia, depende de que reconheçamos, como cantava Cazuza, que aquele garoto que pretendia mudar o mundo agora está deitado num divã, não se segue daí que devemos concordar plenamente com ele; afinal, se queremos resistir ao conformismo, não podemos deixar o tal garoto em cima do muro, como mero espectador no teatro da existência, um coadjuvante no palco da vida. O Dasein pressupõe a transcendência do homem no mundo. A apatia é o efeito das frustrações que experimentamos por força das coerções sociais. A vida precisa superá-las. Para viver, precisamos resistir a elas. Digo às frustrações, é claro.

Tendo já a maturidade limado as suntuosas estruturas de nossos desejos de primavera, o que nos resta, no final das contas? O que, afinal, importa? Ter nosso cantinho, nosso cônjuge, possivelmente filhos, um carrinho na garagem e um emprego (porque é preciso, não há como viver sem trabalhar, embora o desejemos, nos lembra Sponville). E, a esta altura, quero fazer eco a Sponville – e me perdoem a pequena digressão (mas se verá que ela não perturba o itinerário deste comboio de palavras). Lê-se, na página 26, de seu livro Bom-dia, angústia (2010), o seguinte:



“O trabalho é um esforço, um sofrimento, uma fadiga. A riqueza, um luxo e um descanso. “O dinheiro não traz felicidade”, dizem, e isso é muito claro pois que nada o traz. Mas que luxo, porém, a preguiça, e que prazer o luxo!”.





Permita-me o leitor que eu me detenha um pouco nesse trecho. Percebo coisas interessantes nele, e quero trazê-las à sua consciência. O uso das aspas destacando o enunciado “O dinheiro não traz felicidade” serve de índice do que se costuma chamar, em Análise do Discurso, de “heterogeneidade mostrada”. Trata-se da recuperação explícita de outro discurso. Apreende-se, pelos recursos da linguagem, a presença do Outro (que é fundante de todo ato de linguagem). Esse discurso é atribuído a um enunciador genérico, que chamarei, seguindo a tradição desse campo, de “Vox populi”. É a voz popular que o diz, e o autor adere a esse discurso (e à perspectiva que se enuncia). E justifica sua adesão evocando Freud. Não explicitamente, é claro, mas quem leu O mal-estar na cultura (2010) sabe que, nessa obra, Freud advoga ser a felicidade inalcançável ao homem, dadas as condições repressivas da cultura. Na verdade, para Freud “nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição” (p. 63). Entenda-se tanto a constituição física quanto psíquica. Citando esses breves excertos de Freud, ocorre-me que a leitura daquela obra é extremamente importante para a compreensão da natureza humana. Contemplamos nela a dimensão visceral de nosso sofrimento. Nela, o drama nu de nossa condição!

Eu dizia que, se, no final das contas, desejamos ter uma família, uma moradia e um emprego (e um carro na garagem, talvez), haverá ainda espaço para o desejo? Se o trabalho é uma obrigação enfadonha, da qual não podemos escapar, se quisermos sobreviver, resta ainda espaço para um desejo que vai além de uma melhor remuneração? Devemos lembrar, e para tanto me apoio na argumentação de Sponville, que o valor do trabalho se acha fora dele. Ou seja, se acha na sua recompensa, qual seja, no dinheiro que se ganha, no salário que se recebe. Não me alongarei na discussão sobre o valor social do dinheiro, para a qual remeto o leitor à obra aqui referida de Sponville. Nela, se topa um capítulo, intitulado de O dinheiro, do qual, aliás, extraí aquele excerto. Convém, desde já, alertar o leitor sobre o perigo do reducionismo, particularmente, em matéria de interpretação textual. Preciso ser mais claro: devemos ter o cuidado para não fragmentar o discurso do outro ao pretender evocá-lo ou explicitá-lo em nosso texto, visto que podemos  deturpar o pensamento do autor. Em todo caso, não há como evitar o fato de que sempre procedemos tentando adequar as passagens citadas ao curso argumentativo que tomamos, para, assim, validar nossas conclusões. Cuido que Sponville diz, a seguir. o essencial a respeito do trabalho, em seu livro A Vida Humana (2009). Atente-se para o excerto:



“Engana-se sobre o trabalho quem vê nele apenas um fim em si ou mesmo um valor moral. É o que provam as férias e o salário. Trabalhar? É bem preciso. Mas quem o faria de graça? Quem não prefere o repouso, o lazer, a liberdade? O trabalho, considerado em si mesmo, não vale nada. Por isso é pago. Ele desgasta. Por isso pede repouso. Não é um valor (moral); por isso tem um valor (mercantil). Não é um dever. Por isso tem um preço.”



(p. 58)



Note-se bem que, ao se perguntar “quem não prefere o repouso, o lazer e a liberdade?” ao trabalho, Sponville nos deixa entrever um questionamento: há possibilidade de alguma liberdade no trabalho? Liberdade é incompatível com trabalho? Talvez, ainda, uma questão prévia se nos imponha ao espírito: há alguma forma de experimentar liberdade na vida em sociedade? Em que medida somos verdadeiramente livres? Não pretendamos dar respostas definitivas; não é a isso que se propõe a filosofia. Não é essa a sua lição fundamental. Mais valem as questões do que as respostas. E estas, quando dadas, abrem oportunidade para novas questões. E a busca pela verdade é um movimento incessante! De fato, a liberdade no trabalho não é plena; por vezes, muito limitada, ou quase nenhuma. Poderá refutar-me o leitor, observando, estando o trabalhador reduzido ao cumprimento de suas obrigações, sem qualquer liberdade de ação divergente de tal condição, resta-lhe a liberdade de escolher deixar o emprego. Tão-logo, no entanto, atentamos mais de perto para o drama humano, reconhecemos que esse trabalhador terá sua liberdade ainda mais limitada pelas condições externas, pois que precisa sobreviver, precisa do dinheiro para sustentar a si e a sua família (caso a tenha). As contas ignoram nossa liberdade!

No magistério – quem é professor bem o sabe -, precisamos acalentar desejos e nos esforçar por realizá-los. Sabemos outrossim que as condições administrativas da instituição são adversas. Lembro-me de que, tendo apresentado um projeto de um curso de leitura na faculdade onde trabalhava, e a despeito do reconhecimento de sua qualidade e validade, o curso nunca fora implantado, por razões organizacionais (parece que o programa curricular não deixava margem à inserção de uma nova disciplina, reconhecidamente importante!). Na ocasião, argumentei, me respaldando na constatação da baixa qualidade da compreensão textual e produção escrita dos alunos nos cursos que ministrei, entre os quais os ministrados na cadeira de Letras, que era urgente que se oferecesse um curso destinado tão-só ao trabalho com leitura e compreensão textual (aí implicadas as atividades de produção escrita). Era preciso exercitar a prática de leitura crítica e o exercício da escrita contínua, dizia eu, como uma tentativa de amenizar um problema, certamente mais grave e anterior, a baixa qualificação escolar de nossos estudantes. Atrelado a esse difícil problema, havia outro, a saber, a admissão desses estudantes para os cursos superiores. Todos sabíamos (os professores que o digam!) que muitos estudantes que ali estavam não dispunham de uma competência textual e de leitura satisfatória para avançar no percurso de sua formação acadêmica. Culpá-los por isso é um erro, embora despercebido por alguns professores. São esses estudantes antes vítimas! Se uma instituição de ensino privado, como um mercado, precisa de lucro para se manter, não havendo alternativa senão admitir o maior número de estudantes possível (a quantidade faz o lucro!), resta aos profissionais diretamente ligados ao ensino (nós, professores), ou nivelar nossas aulas por baixo (para que não haja um grande índice de reprovação e possível evasão), ou esforçarmo-nos por oferecer um curso com um mínimo de qualidade, buscando angariar apoios daqueles que são responsáveis pela administração (coordenadores, diretor, reitor...). A nossa liberdade, como se vê, está limitada na própria constituição desse sistema hierárquico; acima de nós, o coordenador do curso; acima deste, o diretor de um departamento; e acima deste o sub-reitor; e acima deste o reitor...

Eis, então, algo que preciso aprender com a maturidade: a desenvolver o sentimento de comando numa escala hierárquica. Não lido bem com a condição de estar acima de outros, de comandar, de submeter decisões à minha aprovação. Não porque eu seja incapaz de exercer comando, mas porque prefiro o estreitamento de vínculos, o espírito de congregação, que é próprio da sala de aula. Não nego a hierarquia também nesse espaço, é claro. Não há como escapar a ela. Estruturas hierárquicas estão na base das vivências sociais. Isso é inegável! Mas, por outro lado, sabemos que a relação professor-aluno, em nossa cultura, é marcada não pelo distanciamento, mas pela proximidade. Por isso, o estudante se dirige ao professor empregando a forma “você”, em geral. E o professor não se aborrece com isso! O “você” é a forma não-marcada para a hierarquia. Com ela, estabelecemos uma relação de proximidade com o interlocutor.

Malgrado o fato de nunca ter podido ministrar o curso previsto em meu projeto, ainda acalento o desejo de reunir numa sala de aula leitores, cujo objeto de sua atenção serão os textos. Um trabalho que, necessitando recompensa, tendo um preço, traria prazer. E eis que a voz de Freud ecoa-me na alma: “há sempre a frustração do prazer! A infelicidade é mais gorda; a felicidade mais magra!” Mas aí me lembro de que há o desejo e a sua inevitabilidade; e também a utopia, que nos faz avançar.