terça-feira, 3 de julho de 2012

"Não se começa a filosofar, se não se debruça seriamente sobre o problema da morte" (BAR)


A morada da morte




Como pensar a vida sem pensar a morte? A felicidade, sem aceitar a infelicidade? A sabedoria, sem aceitar sua loucura? (...)”



(p. 50)

(grifo meu)



Tão logo me deparei com este trecho de Sponville, em Bom dia, angústia (2010), compreendi, por intuição iluminadora (em inglês, insight), por que não me acontece ponderar sobre a vida sem levar em conta o fato da morte. Pessoas há que veem nessa minha disposição natural para o tratamento da morte em minha fala ou escrita um sinal de dissabor, desespero ou de gosto pelo trágico. Mas se esquecem de que a vida é trágica; a vida é decepcionante. Citarei as palavras de Sponville, que nos ensina a esse respeito. Por ora, noto que, entre aquelas pessoas que evitam pensar na morte ou me censuram quando esta palavra visita meus pensamentos ou freqüenta a cavidade de minha boca, está minha namorada. Ela não compreende e ninguém nunca compreendeu. E essa compreensão não conta com o serviço da razão; nada tem de racional. É pura emoção; é pura sensibilidade! Sensibilidade à fragilidade da vida, por certo. Um legado do limiar de minha existência. A razão, em si, não leva-nos à compreensão da relação visceral entre vida e morte. Provam-nos as palavras seguintes de Sponville, ao contar-nos sobre o comportamento de seus amigos, particularmente os inteligentes:



“Alguns de meus amigos, mesmo inteligentes, garantem-me que na morte eles nunca pensam, ou algumas vezes por ano quando muito. Quanto a sentir o sabor dela... Outros, como eu, pensam nela todos os dias, e quase a toda hora de cada dia... Este gosto, é ele o que melhor conhecemos. Como os morangos ao lado nos parecem exóticos! Medo? Não demais, parece-me. Mas esse gosto de nada em todas as coisas, carregar essa sombra do perecer... Não se morre uma vez, afinal de contas, para acabar. Morre-se todos os dias, a cada instante de cada dia. A criança que eu era está morta no adulto que sou, aquele que eu era está morto hoje, ou se sobrevivem em mim é apenas na medida em que lhes sobrevivo, cada qual tranporta seu cadáver consigo, e jamais retornarão os amores antigos... A vida é  pungente porque morre, porque não para de morrer, aqui, à nossa frente, em nós, e o tempo é pungência, essa morte em nós que avança, que escava, que espera, que ameaça... Deve-se pensar nela? Deve-se esquecê-la? Questão de sensibilidade, pelo que creio, mais do que de doutrina”.



                                                  (p. 51)




É de sensibilidade de que se trata, decerto, sempre que levamos em conta a morte. Pensar ou não na sua essência, que não é senão a perda. Enfrentar a angústia na serenidade do pensamento. Que é a angústia? O que manifesta o nada, ensinará Kierkegaard. É ela um pré-sentimento, segundo Lacan, porque destituída de conteúdo específico. É um lugar algum, segundo Heidegger, porque revela o fato de que o que nos ameaça não está presente. A angústia diante da ideia da morte ou mesmo da morte como fato constatado (quando velamos o corpo de um defunto) torna o ausente ameaçador. Mas um ausente sempre presente, em potência. Por isso, escrevi, certa vez, todo ser humano é grávido da morte. A morte está latente em nós. E isso me faz lembrar uma passagem de Pessoa, que observa “somos defuntos adiados”. Escreverá Sponville ainda “(...) viver é morrer; e por isso a vida é ainda mais bela, porque traz em si a morte amarga” (p. 53).

Preciso citá-lo novamente, quiçá, assim, se interesse o leitor em ler seu livro. Uma leitura inquietante e agradável!



“(...) A verdade? Qual verdade? A de viver e de morrer. É a mesma, pois que apenas os viventes morrem, e pois que morrem todos. O raciocínio não muda nada. Não se morre por acidente, doença, velhice. Morre-se por ser mortal, morre-se por viver, por ter vivido. A morte, ou a angústia da morte, ou a certeza da morte, é o próprio sabor da vida, seu amargor essencial.”.



                                                    (p. 49)



Morre-se, porque é necessário morrer. Porque não há vida sem morte; e, para morrer, é preciso antes ter vivido. O leitor experiente não concluirá que Sponville lança um olhar pessimista sobre a existência humana. Não se engane com esse trecho. Para o autor, a vida comanda, embora também a morte o faça. Para ele, a vida basta; tem ela “gosto de felicidade”, sem negar-lhe o gosto de desespero. Leiamos atentamente este trecho, a fim de que nos torne mais clara a visão do autor:



“Que a vida seja decepcionante, sempre decepcionante, no fundo é isso que ela nos ensina de mais claro. Não, por certo, que nela não haja alegrias e prazeres. Mas não os que esperávamos ou não da mesma forma, ou que não poderiam, quando estão presentes, dar-nos a felicidade que deles esperávamos  quando não estavam presentes, quando nos faltavam”.

                                          

                                                    (p. 54)



A vida nos ensina esta dura lição: a decepção, a desilusão: “o amor decepciona. O trabalho decepciona. A filosofia decepciona” (id.ibid.). Que nos resta senão amar verdadeiramente sem crer no amor, sem divinizá-lo, aceitando-o como ele é, como tudo o mais, decepcionante?



“Prefiro o alegre amargor do amor, do sofrimento, da desilusão, do combate, vitórias e derrotas, da resistência, da lucidez, da vida em ato e em verdade. Prefiro a realidade, e a dureza da realidade. Se a vida não corresponde às nossas esperanças que nos enganam, desde o início (desde a nostalgia primeira que as alimenta), e que a vida só possa desde então nos desenganar... Gosto azedo da decepção, do qual nada cura senão o desespero, se for possível, a sapidez muito acre e muito salutar do desespero. Toda esperança é decepcionada, sempre, só existe felicidade inesperada.”.



                                                 (p. 55)

                                               (grifo meu)





Felicidade episódica! Poderíamos amar sem acreditar no amor? Apressar-nos-íamos em responder negativamente. Necessário, contudo, se faz compreender a lógica de Sponville. Escreve o autor: “E como amar verdadeiramente, enquanto se acredita no amor, enquanto se faz dele uma religião, um absoluto, um sonho?” (id.ibid.). É que só podemos amar verdadeiramente quando nos desfazemos das ilusões do amor, quando abandonamos os ideais de amor, quando não mais o idealizamos! Desfazer-se das ilusões que construímos sobre os objetos de desejo é a única forma de viver para quem abandonou as ilusões da transcendência e as mentiras da religião. Eis o que me parece inegável:



“Aquele que só amasse a felicidade não amaria a vida, e com isso se proibiria de ser feliz. O erro é querer selecionar, como nas prateleiras do real. A vida não é um supermercado, cujos clientes seríamos nós. O universo nada tem para nos vender, e nada diferente para nos oferecer senão ele próprio – nada diferente para oferecer senão tudo.”



(p. 56)



Preciso ainda citar estas últimas palavras de Sponville, antes de levar a cabo este texto; principalmente, porque é preciso que se dissipe qualquer dúvida sobre o valor que o autor atribui ao amor na vida dos seres humanos. Não nos enganemos com aquele tom desalentado com que parece encarar o amor. Sponville nos brinda com estas belas palavras a seguir, trecho em que trata da solidão:



“Solidão da arte. Há também uma solidão da dor, e é a mesma. Solidão de viver. Solidão de morrer. Solidão: finitude. A amizade não adianta nada, e, além disso, temos tão poucos amigos... Gostaríamos de ser amados ainda mais, o que confirma simplesmente que de amor, de puro amor, nós mesmos somos muito pouco capazes. Solidão do amor, do amor imenso que esperamos, daquele – também imenso por vezes – que desejaríamos dar...Mas o amor não se dá, nem se possui. O amor é pura perda (...), e essa perda, essa puríssima perda de amar, é a única riqueza, como que uma luz sobre o mundo, como que uma pobreza radiosa, como que uma jóia de alegria e de doçura na infinita solidão dos viventes”.



(p. 54)



Como negar que a vida é uma corrida em direção à morte? E como negar que, ao pensar na morte, temos de lidar com a fragilidade da vida, mas também com o amor, a solidão, o desejo de felicidade e a convivência com a decepção? Como escapar à angústia? Evitando pensar sobre a morte? Para Kierkegaard, quanto menos espírito, menos angústia. Mas a angústia está entranhada na existência, no seu absurdo, para ser mais exato. Para Heidegger, as instituições sociais são o modo que os homens encontraram para se defenderem contra a angústia. Mas, o que é mesmo angústia? Uma forma de ansiedade superlativizada. Que é ansiedade? Um estado emocional desagradável suscitado em nós por um perigo suposto. Ele não está adiante. Angústia em face da morte não é senão o medo da morte. A ansiedade está na raiz de todos os mecanismos de defesa do ego.

Por que, então, pensar a morte? Porque é preciso enfrentá-la. É enfrentando-a na solidão do pensamento que podemos viver a alegre amargura da vida. À assunção de meu ateísmo seguiu-se o sentimento de libertação espiritual e intelectual que compartilho com Sponville. Sem a bengala da ilusão religiosa, vivo a fragilidade e fugacidade da vida. E a aceito, não sem pensá-la na sua relação visceral com a morte, condição final a que estamos destinados desde o nascimento. Entendidas estas palavras, o trecho abaixo não atormentará as noites solitárias do leitor:



“A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos parte uns dos outros. Fantasias individuais e coletivas em torno da morte são frequentemente assustadoras. Como resultado, muitas pessoas, especialmente ao envelhecerem, vivem secreta ou abertamente em constante terror da morte. O sofrimento causado por essas fantasias e pelo medo da morte que engendram pode ser tão intenso quanto a dor física de um corpo em deterioração. Aplacar esses terrores, opor-lhes a simples realidade de uma vida finita, é uma tarefa que ainda temos que enfrentar”.



                      ( A solidão dos moribundos, 2001: 76-77)






Um comentário:

  1. Viver e morrer é de fato uma grande verdade. Pode até parecer meio clichê dizer quer: "Pra morrer basta estar vivo". E não é? E quanto mais vivos mais mortos. Ou não?!

    Adorei o texto e o teu espaço!
    Fiquei!

    Beijo doce!

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