
Solidão
dos pensamentos
A memória do Eu
Durante
essa proposta de releitura de mim mesmo, convidarei o leitor a pensar sobre
alguns fenômenos fundamentais à história existencial de cada um de nós,
enquanto indivíduos. Portanto, não passará despercebida ao leitor uma base
teórica subjacente a guiar-me as reflexões – ou melhor, o movimento espiritual
de instrospecção. O rigor conceitual
é um mau hábito que adquiri ao longo de minha formação acadêmica, sobretudo, ao
longo de minhas experiências de leitura de filosofia. Por instrospecção, em psicologia, devemos entender um método através do qual uma consciência individual examina seu
próprio conteúdo, a saber, seus sentimentos e ideias. A instrospecção é uma
etapa da psicoterapia e conta, portanto, com a participação do terapeuta, cuja
função é induzir o paciente a avaliar seus próprios sentimentos, levando-o a se
dar conta das causas que lhes são subjacentes. Uma vez identificadas essas
causas, o paciente poderá modificar seus padrões de comportamento pessoal e
social. Na ausência de um terapeuta, imponho-me a dupla tarefa de agente
indutor (ou condutor) e agente realizador.
A
memória é, sem dúvida, um fenômeno fundamental na construção da história
existencial de todos nós. Esse sentimento de continuidade do ‘eu’ – que somos
hoje e que fomos no passado – só é possível graças à memória. Dela depende a
construção de nossa identidade pessoal. A problemática da identidade é, decerto,
um tema muito interessante, mas não me ocuparei dele aqui. Ater-me-ei ao
conceito de memória.
Todos
nós sabemos mais ou menos o que é a memória. Em geral, tendemos a pensar nela
como uma espécie de unidade de
processamento de arquivos. Claro, não é bem assim que, ordinariamente, a
pensamos. Na verdade, muitos de nós pensam-na como uma espécie de recipiente
mental em que se inserem nossas experiências de mundo. O Dicionário Técnico de Psicologia (2006), dá-nos a saber a seguinte
definição, que refiro na íntegra abaixo:
“MEMÓRIA – Retenção de aptidões e informações recebidas através de
processos de aprendizagem, abrangendo quatro operações fundamentais: decorar,
reter, recordar e reconhecer explicitamente”.
(p. 203)
O mesmo
dicionário elenca vários tipos de memória. No entanto, apenas dois tipos me
interessam para efeito de discussão e esses dois tipos não se topam na referida
obra, mas no livro Inteligência
Multifocal – Análise da construção dos pensamentos e da formação de pensadores
– do psiquiatra Augusto Jorge Cury. (Está aí um aspecto de minha personalidade
que vim a desenvolver com a maturidade intelectual: não consigo escrever sobre
temas intrigantes, sem algum embasamento teórico; por isso, desenvolvi o hábito
de me cercar dos livros, a fim de que o que eu afirme não seja nem equivocado,
nem superficial). É claro que o equívoco está sempre presente no próprio
processo de se fazer da linguagem.
Todo dizer traz o equívoco em potência. De qualquer modo, o superficial, quando
não é previsto por um código tácito de comportamento ou convivência, me
incomoda.
Há,
portanto, dois tipos de memória, consoante ensina Cury: a memória existencial e a memória
de uso contínuo. O conceito é de fácil compreensão, conforme veremos (e
bastante elucidativo, porque confirma nossas intuições sobre como
experienciamos no presente o que vivemos no passado, quando resgatamos nossas
experiências na memória). A memória
existencial diz respeito às experiências vividas e que são registradas; a memória de uso contínuo inclui as
informações disponíveis para uso e que são continuamente rearquivadas, tais
como endereços, número de telefones, senhas, fórmulas de matemática, trechos de
poemas, etc. O acesso a essas informações é mais fácil e imediato porque elas
estão sempre disponíveis para uso contínuo. Claro é que, uma vez não sejam
frequentemente usadas, tais informações tenderão a se situar em zonas na memória
cujo acesso se tornará mais difícil.
Há uma
passagem interessante, em que Cury compara a natureza da memória humana à forma
de funcionamento da memória de um computador, com vistas a tornar patente no
que diferem uma da outra. Cuido oportuno citá-la:
“O processo de arquivamento da memória humana não é segmentado como nos
computadores. Nestes, os arquivos são segmentados e as informações são
arquivadas em sistemas de códigos ou endereços. Nos computadores procuramos as
informações através de rígidos e engessados sistemas de códigos, da mesma forma
como procuramos um livro numa biblioteca. Na memória humana não ocorre assim,
sua leitura não é unidrecional mas multifocal. Nela, ao contrário, dos
computadores, os arquivos têm canais de comunicação entre si. (...)”.
(p. 81)
Não me
alongarei nos pormenores da teoria multifocal da mente, proposta pelo autor. É
preciso reter o essencial, nessa passagem: as
experiências arquivadas estão inter-relacionadas e o acesso a elas na memória é
operado por um processo de leitura (interpretação). Por isso, um pequeno
gesto de uma pessoa pode desencadear reações de alegria, de ansiedade, já que
são ativados em nossa mente, pela memória, conteúdos de experiências
importantes de nossa história pessoal. O cheiro de um perfume pode nos provocar
sensações de bem-estar e alegria ou de raiva, porque pode nos remeter a
experiências agradáveis ou não.
O mais
interessante ainda está por vir. E nos assoma à consciência na leitura do
subtítulo “O Passado não é lembrado, mas
reconstruído”, que se acha na página 82 do trabalho do autor. Não há uma
recordação das experiências do passado, mas uma interpretação mediante a qual elas são reconstruídas em nossas
mentes.
“Não nos lembramos das experiências
originais do passado; sempre reconstruímos
interpretativamente essas experiências a partir da leitura multifocal da
história intrapsíquica e dos sistemas de variáveis intrapisíquicas do presente
que atuam psicodinamicamente nessas experiências”.
(p. 82)
Que a
ignorância sobre o que é leitura multifocal e o que são essas variáveis
intrapsíquicas não nos perturbe a compreensão. Não tenho a intenção de esclarecê-las,
porque me estenderia demais. O fato é que o acesso às experiências vividas
passa por um filtro interpretativo e é passível de toda sorte de distorções. O
essencial das experiências se perdeu. Ou, como escreve Cury, “(...) a história
existencial (intrapsíquica) está morta essencialmente na memória” (ibid.id.). A
realidade essencial das experiências vividas sofreu “o caos psicodinâmico”.
Assim é que
“O primeiro beijo, o primeiro
diploma, o primeiro desafio, o primeiro salário, a primeira derrota, nunca mais
são resgatados de maneira pura, de maneira tão intensa. Toda “recordação” tem
um débito emocional em relação à experiência original (...)”.
(ibid.id.)
É por
isso que o mais atroz dos sofrimentos não causará o mesmo impacto doloroso que
experimentamos, quando sua “lembrança” (não há lembrança, a rigor) ainda é
recente, depois de alguns anos do evento que o desencadeou ter ocorrido. Também
é por isso que a emoção de alegria em experiências de amor, quando resgatadas,
não exercerão sobre nós a mesma intensidade emocional. A formação de nossa
personalidade depende do trabalho de leitura de nossas experiências subjetivas
e sociais na memória.
Por que
as experiências do passado não podem ser recuperadas essencialmente? Por que
não são elas experienciadas na memória da mesma forma que as experienciamos
realmente? Porque a memória visa à produção contínua de novas experiências,
ideias, pensamentos e emoções. O apagamento do essencial das experiências do
passado, ou seu anuviamento, é necessário para que não só a personalidade se
desenvolva, mas também para que a inteligência se construa. Cury daí extrai um
questionamento:
“Já pensou se pudéssemos resgatar o passado exatamente como ele é e se
tivéssemos, ainda, a capacidade plena de lembrar de todas as experiências
contidas na memória? Isso poderia paralisar a produção de novas experiências, o
que engessaria o desenvolvimento da inteligência”.
(p. 83)
A
“morte” das experiências (pensamentos, emoções), ou seja, seu arquivamento na
memória, viabiliza novas oportunidades de releituras da memória, engendrando
novos pensamentos e emoções. A memória, ao ler o passado, permite a produção de
novas experiências e informações. E o “eu”? Que influência sofre nesse
processo? Vou-me ocupar do conceito de eu, mais adiante. Vale, porém, notar
que, no processo de leitura da memória, o “eu sou” (que compreende as
experiências do presente) se desorganiza e entra a fazer parte da memória,
tornando-se o “eu fui histórico”. Esse “eu fui” é a história intrapsíquica de
cada um de nós. Ele influencia o “eu sou”. Ao longo de nossas experiências de
vida, o “eu sou” torna-se continuamente o “eu fui histórico”, mas é também
reorganizado continuamente, tornando-se um “novo eu sou”. Há um contínuo reestruturar-se
do “eu sou”. Finalmente, atentemos nas palavras seguintes de Cury:
“A cada momento em que resgatamos e
reconstruímos uma experiência do passado, nós o fazemos de maneira diferente,
com proximidade ou grande distanciamento em relação às dimensões
intelecto-emocionais da experiência original. É por esse motivo que nossas
recordações da interpretação reproduzem de maneira diferente as experiências do
passado nos diversos momentos em que as recordamos. Em determinado momento,
podemos recordar [ entenda-se “reconstruir] uma experiência de angústia
existencial vivenciada no passado, ligada a uma perda, a uma frustração
psicossocial ou a uma dificuldade socioprofissional, etc., e ficarmos comovidos
com ela e, em outro momento podemos recordá-la sem grandes emoções. Uma mãe
pode recordar a perda de um filho com grande sofrimento num determinado momento
e, em outro momento, recordá-la sem grandes dores emocionais.”
(p. 85)
É
lugar-comum o afirmar que nossa personalidade é construída nas nossas relações
com o meio. Os outros significativos (pais, avós, professores, etc.) são
co-responsáveis pela constituição de nossa personalidade. Mas é sempre bom
lembrar que o indivíduo não é inteiramente condicionado, que sua história
intrapsíquica não é completamente plasmada nas relações com esses outros
significativos. Ensina Cury que há “múltiplas variáveis intrapsíquicas” em ação
no processo de construção da histórica intrapsíquica de um indivíduo.
Agora,
posso já pavimentar novos caminhos verbais, fazendo recair as expressões de meu
espírito sobre o “eu”. Para considerar o que significa o “eu”, tomarei a mim
mesmo como referência. Dizer que mudamos é clichê. Mudamos sim; é fato
incontestável. As fotografias o provam, o espelho não mente. Ou será que mente?
Lembro que, quando sentimos o corpo,
forjamos dele uma imagem. A experiência nossa do próprio corpo é uma
experiência imagética. Ensina J. D Nasio,
“(...) sempre que sentimos nosso corpo, o vemos ou julgamos, estejamos
certos, forjamos dele uma imagem deformada, inteiramente afetiva e
resolutamente falsa. Para resumir, nunca percebemos o nosso corpo tal como é,
mas tal como o imaginamos; o percebemos como fantasia, isto é, mergulhado nas
brumas de nossos sentimentos, reavivado na memória, submetido ao julgamento do
Outro interiorizado e percebido através da imagem familiar que já temos dele”.
(p. 63)
Isso
explica por que muitas mulheres se sentem gordas, quando não o são; ou, em
casos patológicos, como na anorexia, uma mulher possa ver-se como gorda,
quando, na verdade, suas coxas e quadris são puros pele e osso.
Ah sim!
A imagem! A interpretação e as distorções daí resultantes! Inevitáveis! E o
Outro, que interiorizamos e que se torna o juiz de nossos comportamentos.
Forjamos uma imagem exagerada do corpo; fazemos dele uma ideia falsa. Parece que o espelho mente. Mas é claro que
mudamos...
Nós
mudamos – é fato -, mas quase sempre não apreendemos essa mudança. Refiro-me à
mudança psico-emocional. Nos últimos oito anos, eu atravessei períodos intensos
de mudança, não sem grande dose de sofrimento. Mas não é do sofrimento que me
ocuparei. Não é possível compartilhar sofrimento; podemos comunicá-lo enquanto
experiência, mas seu conteúdo não é partilhável, porque não pode ser sentido.
Cada qual tem sua dor e sabe qual é sua medida, porque a sentiu. Um sofrimento
comunicável nunca é um sofrimento sentido. É da mudança que se trata. E essa mudança envolve
minha avidez de conhecimento, minha relação visceral com os livros (o deleite
com a leitura), minha visão sobre o amor, a assunção e anunciação do ateísmo, a
produção poética, a escrita, a convivência, as amizades ou ausência
significativa delas. A mudança compreende todo esse conjunto de experiências. Não
pretendo me deter em cada uma delas. Talvez, não consiga dar conta de todas.
Por isso, escreverei sem reuni-las numa ordem que me permite submetê-las
rigorosamente à avaliação.
Divago...
Uma pergunta arranha-me a alma: O que é o Eu?
Ou o ego, de Freud. A designação pouco importa. Fiquemos com o Eu. Está aí uma questão com a qual
deveríamos nos deparar a todo momento, porque o Outro se impõe à nossa presença
quase sempre. E esse Outro é também um Eu. Se para muitas pessoas custa
apreender seu próprio Eu (digo, muitos não são dados ao autoconhecimento, à
introspecção), é forçoso que elas não só reconheçam uma outra mente, mas também
um outro Eu diante do qual constroem sua identidade. Como essa é uma das
questões com que me debato, decidi comprar um dicionário de psicologia. E lá
encontro, no verbete Eu uma série de
perspectivas teóricas sobre esse constructo. Duas definições são apontadas como
fundamentais: a) o Eu como o sujeito, o agente, a pessoa individual ou uma
região específica do ser; b) o Eu como indivíduo que se revela a si mesmo, de
uma dada maneira. Ele é o gestor da psique, mas não é sempre o responsável por
todos os pensamentos conscientes; alguns pensamentos que assomam à consciência,
lhe escapam ao controle. Ou não é verdade que nos ocorrem pensamentos negativos
que não queríamos? E nos culpamos! Mas o Eu não é culpado da presença deles.
Não é difícil ver que o Eu é responsável pelas nossas relações com o mundo; mas
esse Eu é corporificado, encarnado; não existe sem um corpo. Também ele não é
produto de uma mente abstrata, mas é efeito de um cérebro. A mente é um
processo; na verdade, a mente é o que o cérebro faz. O cérebro produz a mente,
ele é um processador de informações. A mente é uma espécie de órgão. Chomsky
fala em “órgão mental”. A mente é constituída de um conjunto de órgãos mentais
ou módulos mentais, não diretamente acessíveis a olho nu, mas cada qual
organizado segundo um designe que o especializa para interagir com o mundo.
Esse Eu
é um sentimento, um sentimento de si mesmo. Qual é a substância desse Eu? O
psiquiatra - já citado – J. D. Nasio escreve ser ela a própria imagem do corpo.
E explica:
“Não somos nosso corpo em carne e
osso, somos o que sentimos e vemos de nosso corpo: sou o corpo que sinto e o
corpo que vejo. Nosso eu é a ideia
íntima que forjamos de nosso corpo, isto é, a representação mental de nossas
sensações corporais, representação mutante e incessantemente influenciada por
nossa imagem do espelho”.
(p. 54)
As
citações se acham no livro Meu corpo e
suas imagens (2009). Mais adiante, ficamos sabendo que o Eu é uma entidade
essencialmente imaginária. É claro que ele é um sentimento de existir (e
chegarei a esse ponto logo). Mas o eu é indissociável do corpo, ou melhor, da
imagem do corpo. Nasio nos ensina que o Eu se compõe de duas imagens corporais
diferentes, embora indissociáveis: “a imagem mental de nossas sensações
corporais e a imagem especular da aparência do nosso corpo” (p. 55). A sensação
de ser Eu decorre do sentir/ viver o meu corpo e vê-lo movimentar-se através de
um espelho.
O
interessante é que, uma vez sendo um produto imagético, a apreensão do Eu se
torna quase impossível ao próprio indivíduo, pelo menos o é integralmente.
Corrobora essa ideia o seguinte trecho de Nasio:
“Sentir viver meu corpo e vê-lo em movimento proporciona-me a certeza
imediata de ser eu mesmo, certeza que, não obstante, esconde minha ignorância
do que sou e de onde venho. O eu é
tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é. Agitado pela
profusão de minhas sensações internas e pela visão do meu corpo, sei que existo
mas não sei que sou”.
(p. 55)
O Eu é
o “lugar de desconhecimento”, segundo Lacan. O autor, mais adiante, definirá imagem, arrolando vários tipos. Para
efeito de compreensão da natureza do Eu, segundo o autor, devemos entender por
imagem uma representação mental que se imprime na superfície de nossa
consciência ou do nosso inconsciente. A imagem é, basicamente, sempre um duplo,
“ (...) pode existir seja em nós, em nossa cabeça, à maneira de uma
representação mental consciente ou inconsciente, seja fora de nós, visível sobe
uma superfície, ou ainda posta em movimento num comportamento significativo”.
(p. 66)
Não
escapamos à interpretação. Isso é notável, mesmo quando consideramos a natureza
dessa entidade psíquica a que se chama Eu. Não atingimos a sua essência, quer
porque ela está velada pela imagem construída de si por ele mesmo, seja porque
a essência não é senão a própria imagem construída. Avulta-me no espírito uma
dúvida! O autor entende a imagem do corpo como a própria substância do nosso eu
(p. 54). Que será substância para o autor? Terá ele tomado esta palavra no seu
sentido estritamente filosófico ou ordinário. Uma consulta ao Dicionário Básico de Filosofia, de
Danilo Marcondes, não me ajudou muito. Por substância, devemos entender aquilo
que é em si, aquilo cuja realidade não depende de mais nada e que serve de
suporte para atributos. Spinoza postulava que a única substância era Deus,
porque ela não dependia de mais nada para ser. A essência é “o ser mesmo das
coisas, aquilo que a coisa é, ou que faz dela aquilo que ela é” (p.93). O
exemplo oferecido a respeito de Aristóteles lança alguma luz. Assim é que uma
cor branca só existe se houver uma coisa que tenha essa cor. A cor em si não
existe fora da substância. A substância é a realidade imediata, é a coisa mesma
que tem a cor branca. Felizmente, sem mais delongas, encontrei em outro
dicionário a resposta que procurava. Em Dicionário
Oxford de filosofia, há no verbete substância
a identificação desta com o conceito de essência, pelo menos é esta uma das
formas de concebê-la (mas não a única – vimos que pode ser aquilo que existe
por si mesmo, sem de nada mais depender).
Parece-me,
então, correto admitir que a essência (ou substância) do Eu é a imagem. Imagem
do corpo, diga-se bem. Porque o corpo é a primeira substância. Escreve ele, à
página 63, “não vamos nos iludir, a coisa
mais importante para nós é o corpo” (p. 63). A imagem do corpo é a base
para a construção da imagem do Eu. Todavia, é imperioso lembrar que o Eu se
constitui de “um conjunto de imagens de si mutantes e frequentemente
contraditórias” (p. 55).
Então,
esse Eu que sinto mudou significativamente ao longo desses últimos oito anos.
(a palavra significativamente é
importante aí, porque sinaliza para uma mudança cujo efeito assemelha-se a uma
espécie de libertação, sem qualquer conotação mística ou transcendente). A mais
profundamente perturbadora libertação foi a ruptura total com a crença em Deus.
Trata-se de uma experiência que já externei alhures, mas cujo conteúdo
emocional jamais poderá ser experimentado por quem dela toma conhecimento em
meus textos. O sentir não é acessível. O que senti e o que sinto ainda hoje não
pode ser verbalizado; e mesmo que pudesse, jamais poderia ser sentido
reciprocamente. O sentir é singular e está intrinsecamente relacionado à minha
história intrapsíquica, enfim, pessoal. Tem a ver com a aurora de minha vida
(que não me herdou revolta, mas uma lucidez inacessível a muito poucos).
Liberto das ilusões da religião, da tirania de Deus (que não é senão um
estratagema psicológico para cingir o rebanho a esperanças vãs – o leitor que o
comprove por si mesmo lendo o livro “Onde a religião termina?, de Marcelo da
Luz, ex-sacerdote católico, conscienciólogo -
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noticia/2011/05/24/marcelo-da-luz-fala-sobre-seu-polemico-livro-5291.php),
pude reconciliar-me com esta existência e, sobretudo, me solidarizar com o sofrimento alheio em escala mundial, sem fingir ignorá-lo. Pelo menos, o egoísmo religioso foi abandonado em mim. A leitura de Feuerbach (Preleções sobre religião) ajuda-nos a compreender a natureza desse egoísmo. (Deus faz isso ou aquilo por mim – estranhamente nada faz pelos milhões de miseráveis deste planeta, nada faz para evitar que uma criança inocente morra vítima da dengue ou de qualquer outra moléstia!).
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noticia/2011/05/24/marcelo-da-luz-fala-sobre-seu-polemico-livro-5291.php),
pude reconciliar-me com esta existência e, sobretudo, me solidarizar com o sofrimento alheio em escala mundial, sem fingir ignorá-lo. Pelo menos, o egoísmo religioso foi abandonado em mim. A leitura de Feuerbach (Preleções sobre religião) ajuda-nos a compreender a natureza desse egoísmo. (Deus faz isso ou aquilo por mim – estranhamente nada faz pelos milhões de miseráveis deste planeta, nada faz para evitar que uma criança inocente morra vítima da dengue ou de qualquer outra moléstia!).
A
quebra do encanto (seja religioso, seja do amor) acompanhou-se de um profundo
espanto diante da existência, de seu absurdo. Esse Eu se defronta
incessantemente com o Mistério. Cientistas anunciaram a descoberta (embora o
resultado ainda não seja concluso) de uma partícula chamada bóson de Higgs (em homenagem a Peter
Higgs, cientista que postulou a existência dessa partícula, pelo menos
teoricamente, há décadas). Teria ela dado origem ao Universo. Não mais a água,
de Tales; nem o ar de Anaxímenes; tampouco o aiperon (um princípio abstrato ilimitado e indefinido que subjaz à
natureza) de Anaximandro. Não mais o Tao, de Lao Tse, nem o Brâman, dos
hiduístas. Não mais Deus, dos judeus, cristãos e mulçumanos (embora os
cientistas tenham-na batizado de “partícula de Deus” (provavelmente, por causar
mais visibilidade na mídia e mais interesse popular do que o nome “bóson de
Higgs”, cuja compreensão depende de que saibamos que Bóson refere-se à
estatística formulada por Satyendranath Bose, físico indiano e Albert Einstein.
Essa estatística aplicava-se a fótons e mésons, especialmente). É claro que
precisei pesquisar isso, porque ignorava completamente quem era Higgs, quem foi
Satyendranath Bose; e continuo ignorando como opera a estatística de
Bose-Einstein, que se situa no nível da física quântica (obscura em si).
A
partícula de Higgs é uma das partículas fundamentais que permitem a existência
do Universo ou de tudo que existe. Mas sempre podemos nos indagar sobre a causa
primeira, retrocedendo ad infinitum. Mas
Deus certamente não é a solução adequada, além de todos os problemas que essa
hipótese acarreta (escusa mencioná-los), persistiria ainda a pergunta: quem
criou Deus? E se nos apressássemos em admitir que Deus é incriado, vale
perguntar “por que não podemos dizer disso da partícula de Higgs?” Por que não
podemos dizer isso do próprio Universo? Por que não um Universo eterno? Estamos
fadados, pela própria estrutura de nossa cognição, a pensar em termos de
causa-efeito. O Universo tem uma causa? Se sim (“para tudo que existe há uma
causa”), que causa é esta? Se Deus se demonstrou claramente uma hipótese
insustentável, então devemos investigar a validade de outra hipótese. Não temos
evidência da existência de Deus, então buscaremos evidências de outra causa. A
ciência nos oferece algumas. Talvez, Hegel estivesse errado (e ele parece ter
errado sob muitos aspectos), ao postular que o real é racional. Talvez, não
seja sempre racional. Talvez, nossa razão nos impõe limites, esquemas de
raciocínio que não parecem eficazes para pensar sobre a Origem de Tudo. A
fórmula “para todo efeito tem de haver uma causa” ( ou, nos termos da razão suficiente de Leibniz, “para todo
fato que ocorre há uma razão pela qual esse fato ocorre”, e ocorre de uma
determinada maneira e não de outra) pode ser inadequada quando queremos buscar
entender como o Universo começou a existir.
Um
pensamento explosivo sacudiu minha alma agora! Talvez, a vida não seja senão
uma fração da eternidade do Universo. O certo é que cada Eu passará. Nós
passaremos, mas o mundo continuará, a vida continuará, a despeito dos barulhos
apocalípticos de certos segmentos evangélicos aqui e em outros cantos do mundo.
Se a previsão da ciência estiver correta, o planeta sucumbirá daqui a bilhões
de anos (se não me equivoco quanto à estimativa feita pelos cientistas). De
qualquer modo, nem eu nem o leitor estaremos aqui. O Eu passa; o mundo fica.
Sobra-nos
o sentimento de Eu em face do Mistério. Estamos condenados a construir sentidos,
sempre muito frágeis. Desiludi-me do amor, porque não careço mais dele. Não
carece sobrecarregá-lo com ideais. Quando o fazemos, ele se esfacela, porque é
frágil. Sim, o amor é frágil, porque a vida é frágil. E descobrimos que tudo
que é frágil carece de cuidado, assim devemos proceder com os bebês.
Dispensamos-lhes cuidados, dada a sua fragilidade. Fragilidade e fraqueza são o
mesmo. No final das contas, inclinamo-nos às coisas frágeis e às que exibem
fraquezas e descobrimos que elas são mais valiosas do que o diamante. Quanto ao
diamante, é interessante saber que a Natureza tem sua poesia: os átomos de
carbono produzem tanto cristais de diamante, famosos por sua dureza, quanto
cristais de grafite, caracteristicamente macio. Isso dependerá da forma que
assumam; para cada formação de átomos de carbonos, uma substância: dura, como o
diamante, ou macia, como o grafite.
Tanto o
conhecimento como o amor são valores que nos instam a partilhar. Viver é
doar-se, ainda que um pouco; os que não se doam vivem profundamente infelizes.
O Eu precisa dar testemunho de si; que seja verdadeiro e significativo é o que
desejamos. Precisamos deixar pegadas, deixar rastros nessa existência fugidia,
fugaz e absurda. A profundidade das pegadas e a extensão de nossos rastos dependerão
do grau de nossa imersão nesse existir que não é senão um devir. Porque o
“tempo não para”, o mundo não cessa de girar a roda da vida... E precisamos seguir em direção à morte
inevitável... na contramão ou no fluxo sempiterno...
Oi Bruno!
ResponderExcluirFalar do eu, da noção de si mesmo, da relação com o mundo e todas as suas intersubjetividades é muito complexo. Mas quem não explora esse caminho dentro de si mesmo, será eterno prisioneiro em seu território social ou religioso, como mostra alegoria de Platão, absolutizados pelo aparente.
Adorei o texto, como sempre bem embasado, deixando um leque de sugestões de boas leituras... É sempre enriquecedor vir aqui te ler... Obrigada por doar-se, por partilhar todo esse conhecimento.
O mundo gira, o tempo passa, mas você fica, o seu “eu” já está registrado, já deixou pegadas na memória existencial de quem passou por aqui.
Bjusss
quando vc inicia dizendo q falará sobre si mesmo, já nos remete à possibilidade de um 'eu' não só seu! =)
ResponderExcluircom todas essas transformações, evoluções, descobertas, possibilidades de resposta ao eu... me veio à lembrança uma frase, q eu vi sobre o inegável 'elemento' agregado àquele - o ser -, q dizia mais menos isso: o ser é um ato linguístico.
bom de pensar, principalmente pq ser é, ao mesmo tempo, um verbo. e nós somos! [ou quase] não é?
beijobeijo
Ando tentando buscar respostas que sejam lógicas (pelo menos pra mim). As vezes o nosso EU anda tão preso dentro de nós que só os gritos ecoam aqui fora!
ResponderExcluirSomos conjugados a cada novo amanhecer, penso.
Parabéns!
Ps.: Obrigada pela recomendação do livro, já estou procurando.
Beijo doce!