Sobre o crescimento humano
Uma pessoa só cresce (e refiro-me a
crescimento espiritual, à maturidade), quando capaz de reconhecer que o mundo
não se dobra em face de seus desejos. Somos seres desejantes, e não há como
deixar de sê-lo. O desejo nos impulsiona a viver; calado o desejo, resta a
apatia, a melancolia. O desejo está no princípio; a ação vem depois. Nem sempre
agimos segundo desejamos, a experiência no-lo prova. E não podemos ter tudo que
desejamos. É preciso domar o desejo (e não me refiro ao que pode nos levar à ruína,
mas ao desejo que visa a algum benefício). Para isso, há a cultura e seu
produto psíquico, o superego – que comanda e censura, impedindo a plenitude da
satisfação dos desejos. Há uma compensação à castração do desejo - o princípio
de realidade, que nos impele a buscar para o desejo objetos substitutivos, cuja fruição esteja adequado às exigências do superego;
afinal, é ele quem comanda.
Dei passos largos e me perdi. Volto
ao que me interessa. Não o desejo que transgride às exigências do superego (que
é o juiz social em nossa mente); mas o desejo realizável, embora limitado por
pressões externas. Portanto, é do desejo frustrável que se trata. Amadurecemos
quando nos damos conta de que entre o desejo e a realização há uma série de
condições adversas que devemos nos esforçar por superar, embora, não raro, a
superação não esteja ao nosso alcance. Não é raro que, nesses casos, o desejo
nos conduza à utopia (que nada mais é do que o “não-lugar, o lugar nenhum). Mas,
então, me lembro do poema de Eduardo Galeano, cujos versos finais nos ensinam
que devemos caminhar: “Para que serve a
utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Transcrevo-o
abaixo na íntegra:
A utopia está lá no horizonte
Me aproximo dois passos,
Ela se afasta dos passos.
Caminho dez passos
E o horizonte corre dez passos
Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não
deixe de caminhar.
(Eduardo Galeano)
Vemos, assim, que a utopia, embora,
por definição, infactível, ajuda-nos a avançar. Nesse sentido, ela nos leva a
resistir à apatia. Ela nos move para frente e é possível que, durante o
percurso tenhamos razões para nos contentar. Se nosso crescimento, eu dizia,
depende de que reconheçamos, como cantava Cazuza, que aquele garoto que
pretendia mudar o mundo agora está deitado num divã, não se segue daí que
devemos concordar plenamente com ele; afinal, se queremos resistir ao
conformismo, não podemos deixar o tal garoto em cima do muro, como mero
espectador no teatro da existência, um coadjuvante no palco da vida. O Dasein pressupõe a transcendência do homem
no mundo. A apatia é o efeito das frustrações que experimentamos por força das
coerções sociais. A vida precisa superá-las. Para viver, precisamos resistir a
elas. Digo às frustrações, é claro.
Tendo já a maturidade limado as
suntuosas estruturas de nossos desejos de primavera, o que nos resta, no final
das contas? O que, afinal, importa? Ter nosso cantinho, nosso cônjuge, possivelmente
filhos, um carrinho na garagem e um emprego (porque é preciso, não há como
viver sem trabalhar, embora o desejemos, nos lembra Sponville). E, a esta
altura, quero fazer eco a Sponville – e me perdoem a pequena digressão (mas se
verá que ela não perturba o itinerário deste comboio de palavras). Lê-se, na
página 26, de seu livro Bom-dia,
angústia (2010), o seguinte:
“O
trabalho é um esforço, um sofrimento, uma fadiga. A riqueza, um luxo e um
descanso. “O dinheiro não traz felicidade”, dizem, e isso é muito claro pois
que nada o traz. Mas que luxo, porém, a preguiça, e que prazer o luxo!”.
Permita-me o leitor que eu me
detenha um pouco nesse trecho. Percebo coisas interessantes nele, e quero
trazê-las à sua consciência. O uso das aspas destacando o enunciado “O dinheiro
não traz felicidade” serve de índice do que se costuma chamar, em Análise do Discurso,
de “heterogeneidade mostrada”. Trata-se da recuperação explícita de outro
discurso. Apreende-se, pelos recursos da linguagem, a presença do Outro (que é
fundante de todo ato de linguagem). Esse discurso é atribuído a um enunciador
genérico, que chamarei, seguindo a tradição desse campo, de “Vox populi”. É a
voz popular que o diz, e o autor adere a esse discurso (e à perspectiva que se
enuncia). E justifica sua adesão evocando Freud. Não explicitamente, é claro,
mas quem leu O mal-estar na cultura
(2010) sabe que, nessa obra, Freud advoga ser a felicidade inalcançável ao
homem, dadas as condições repressivas da cultura. Na verdade, para Freud
“nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição”
(p. 63). Entenda-se tanto a constituição física quanto psíquica. Citando esses
breves excertos de Freud, ocorre-me que a leitura daquela obra é extremamente
importante para a compreensão da natureza humana. Contemplamos nela a dimensão
visceral de nosso sofrimento. Nela, o drama nu de nossa condição!
Eu dizia que, se, no final das
contas, desejamos ter uma família, uma moradia e um emprego (e um carro na
garagem, talvez), haverá ainda espaço para o desejo? Se o trabalho é uma
obrigação enfadonha, da qual não podemos escapar, se quisermos sobreviver,
resta ainda espaço para um desejo que vai além de uma melhor remuneração?
Devemos lembrar, e para tanto me apoio na argumentação de Sponville, que o
valor do trabalho se acha fora dele. Ou seja, se acha na sua recompensa, qual
seja, no dinheiro que se ganha, no salário que se recebe. Não me alongarei na
discussão sobre o valor social do dinheiro, para a qual remeto o leitor à obra
aqui referida de Sponville. Nela, se topa um capítulo, intitulado de O dinheiro, do qual, aliás, extraí aquele excerto. Convém, desde já, alertar o
leitor sobre o perigo do reducionismo, particularmente, em matéria de
interpretação textual. Preciso ser mais claro: devemos ter o cuidado para não
fragmentar o discurso do outro ao pretender evocá-lo ou explicitá-lo em nosso
texto, visto que podemos deturpar o pensamento do
autor. Em todo caso, não há como evitar o fato de que sempre procedemos tentando
adequar as passagens citadas ao curso argumentativo que tomamos, para, assim,
validar nossas conclusões. Cuido que Sponville diz, a seguir. o essencial a
respeito do trabalho, em seu livro A
Vida Humana (2009). Atente-se para o excerto:
“Engana-se
sobre o trabalho quem vê nele apenas um fim em si ou mesmo um valor moral. É o
que provam as férias e o salário. Trabalhar? É bem preciso. Mas quem o faria de
graça? Quem não prefere o repouso, o lazer, a liberdade? O trabalho,
considerado em si mesmo, não vale nada. Por isso é pago. Ele desgasta. Por isso
pede repouso. Não é um valor (moral); por isso tem um valor (mercantil). Não é
um dever. Por isso tem um preço.”
(p. 58)
Note-se bem que, ao se perguntar
“quem não prefere o repouso, o lazer e a liberdade?” ao trabalho, Sponville nos
deixa entrever um questionamento: há possibilidade de alguma liberdade no
trabalho? Liberdade é incompatível com trabalho? Talvez, ainda, uma questão
prévia se nos imponha ao espírito: há alguma forma de experimentar liberdade na
vida em sociedade? Em que medida somos verdadeiramente livres? Não pretendamos
dar respostas definitivas; não é a isso que se propõe a filosofia. Não é essa a
sua lição fundamental. Mais valem as questões do que as respostas. E estas,
quando dadas, abrem oportunidade para novas questões. E a busca pela verdade é
um movimento incessante! De fato, a liberdade no trabalho não é plena; por
vezes, muito limitada, ou quase nenhuma. Poderá refutar-me o leitor,
observando, estando o trabalhador reduzido ao cumprimento de suas obrigações,
sem qualquer liberdade de ação divergente de tal condição, resta-lhe a
liberdade de escolher deixar o emprego. Tão-logo, no entanto, atentamos mais de
perto para o drama humano, reconhecemos que esse trabalhador terá sua liberdade
ainda mais limitada pelas condições externas, pois que precisa sobreviver,
precisa do dinheiro para sustentar a si e a sua família (caso a tenha). As
contas ignoram nossa liberdade!
No magistério – quem é professor
bem o sabe -, precisamos acalentar desejos e nos esforçar por realizá-los.
Sabemos outrossim que as condições administrativas da instituição são adversas.
Lembro-me de que, tendo apresentado um projeto de um curso de leitura na
faculdade onde trabalhava, e a despeito do reconhecimento de sua qualidade e
validade, o curso nunca fora implantado, por razões organizacionais (parece que
o programa curricular não deixava margem à inserção de uma nova disciplina,
reconhecidamente importante!). Na ocasião, argumentei, me respaldando na
constatação da baixa qualidade da compreensão textual e produção escrita dos
alunos nos cursos que ministrei, entre os quais os ministrados na cadeira de
Letras, que era urgente que se oferecesse um curso destinado tão-só ao trabalho
com leitura e compreensão textual (aí implicadas as atividades de produção
escrita). Era preciso exercitar a prática de leitura crítica e o exercício da
escrita contínua, dizia eu, como uma tentativa de amenizar um problema,
certamente mais grave e anterior, a baixa qualificação escolar de nossos
estudantes. Atrelado a esse difícil problema, havia outro, a saber, a admissão
desses estudantes para os cursos superiores. Todos sabíamos (os professores que
o digam!) que muitos estudantes que ali estavam não dispunham de uma
competência textual e de leitura satisfatória para avançar no percurso de sua
formação acadêmica. Culpá-los por isso é um erro, embora despercebido por alguns
professores. São esses estudantes antes vítimas! Se uma instituição de ensino
privado, como um mercado, precisa de lucro para se manter, não havendo
alternativa senão admitir o maior número de estudantes possível (a quantidade
faz o lucro!), resta aos profissionais diretamente ligados ao ensino (nós,
professores), ou nivelar nossas aulas por baixo (para que não haja um grande
índice de reprovação e possível evasão), ou esforçarmo-nos por oferecer um
curso com um mínimo de qualidade, buscando angariar apoios daqueles que são
responsáveis pela administração (coordenadores, diretor, reitor...). A nossa
liberdade, como se vê, está limitada na própria constituição desse sistema
hierárquico; acima de nós, o coordenador do curso; acima deste, o diretor de um
departamento; e acima deste o sub-reitor; e acima deste o reitor...
Eis, então, algo que preciso
aprender com a maturidade: a desenvolver o sentimento de comando numa escala
hierárquica. Não lido bem com a condição de estar acima de outros, de comandar,
de submeter decisões à minha aprovação. Não porque eu seja incapaz de exercer
comando, mas porque prefiro o estreitamento de vínculos, o espírito de
congregação, que é próprio da sala de aula. Não nego a hierarquia também nesse
espaço, é claro. Não há como escapar a ela. Estruturas hierárquicas estão na
base das vivências sociais. Isso é inegável! Mas, por outro lado, sabemos que a
relação professor-aluno, em nossa cultura, é marcada não pelo distanciamento,
mas pela proximidade. Por isso, o estudante se dirige ao professor empregando a
forma “você”, em geral. E o professor não se aborrece com isso! O “você” é a
forma não-marcada para a hierarquia. Com ela, estabelecemos uma relação de
proximidade com o interlocutor.
Malgrado o fato de nunca ter podido
ministrar o curso previsto em meu projeto, ainda acalento o desejo de reunir
numa sala de aula leitores, cujo objeto de sua atenção serão os textos. Um
trabalho que, necessitando recompensa, tendo um preço, traria prazer. E eis que
a voz de Freud ecoa-me na alma: “há sempre a frustração do prazer! A
infelicidade é mais gorda; a felicidade mais magra!” Mas aí me lembro de que há
o desejo e a sua inevitabilidade; e também a utopia, que nos faz avançar.
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