terça-feira, 12 de julho de 2011

"O amor revela mais do que esconde". (BAR)

                                                           Divagações


Disseram-me que eu não devo encarar a vida com tanta seriedade. Às vezes, vale mais uma embriaguez de sentimentos e grandes talagadas de emoções inflamadas e só. O futuro pouco vale se não aprendemos a conviver com cada instante que se apossa de nós. Somos inteiramente num instante. Eu estou todo neste exato momento em que escrevo; não há sequer uma parte de mim que esteja em outro lugar. Meus pensamentos estão contidos nesse breve espaço de tempo em que me esforço por escrever este texto.
Quero que alguém compartilhe comigo desta inquietante sensação de que eu sou neste instante. Beba comigo essa dose exagerada de lucidez. Penso tanto nos dias que virão, nos meses que ainda não nasceram. Penso tanto no futuro, minha vida tem sido projetada para esse futuro, tempo em que chegará a felicidade tão desejada.
Mas o que eu quero realmente é não mais planejar. Quero a amizade de pessoas que chegaram a um tempo de suas vidas em que não planejam mais, apenas vivem  segundo a medida da sabedoria que a vida já lhes proporcionou.
Aprendi que não devemos sempre agradar as pessoas, nem sempre devemos estampar um sorriso gratuito só para parecer simpáticos. Eu sou agradável no trato, delicado na expressão, divertido, quando me cabe, e até cortês. No entanto, há momentos em que posso parecer ser antipático simplesmente por preferir o silêncio, o isolamento. Às vezes, me recolho num estado de anestesiamento, fico absorto e me perguntam o que há comigo. Há momentos em que é melhor calar. Há uma dimensão em mim que prefiro cercar com o silêncio e só compartilhar com quem seja merecedor de minha confiança.
Eu ouso declarar que nada é mais importante nesta existência tão pouco inspiradora que o amor dos que nos querem bem. Nada mais. Nossos pais, nossos avós, e todos que nos educaram e cuidaram de nós são, certamente, o sentido de tudo isso. É claro que não contaremos com eles sempre; um dia, sucumbirão e nos caberá escolher entre viver só ou unir nosso corpo e coração a outra pessoa com quem renovaremos aquela aliança que nos justificava a vida.
Nascer, crescer, reproduzir-se e morrer – processos que explicam o curso de nossa vida biológica, mas que não dão conta da significação de nossa dimensão humana. E as emoções? E os sentimentos? E as experiências? E as tristezas? E as alegrias? E as dores? Onde se encaixa tudo isso? E as paixões? E os amores e desamores? E as lembranças? A memória? A saudade? E o desejo? Onde se encaixa tudo isso?
Quer conhecer bem as pessoas? Atente para o modo como amam. Na forma como amamos, manifestamos o modo como somos e sentimos. O amor revela mais do que esconde. Revela nossa única verdade: somos todos muito carentes.


"Viver a fecundidade da solidão é produzir o melhor de si mesmo". (BAR)


                               

                                           Eu diante de mim
                                Sobre a solidão de nossos dias

Hoje, quando penso no que vivi, nos últimos sete anos de minha vida, nos infernos espirituais em que me afundei, por conta da depressão que me abalou a serenidade, quando penso no que podia ter vivido, se minhas escolhas tivessem sido outras, ou no que não teria vivido; quando penso no longo tempo em que a solidão me foi a única companhia e que, não raro, me abandonava a ela; quando penso nos benefícios que os livros e a leitura assídua e incansável me trouxeram durante esse período; quando penso no alívio que experimentei ao ler o texto Solidão amiga, de Rubem Alves, que muito me ensinou a enfrentar minha ansiedade e meu desespero; quando penso nesse passado que me nega, enquanto sujeito que se realiza no presente, se bem que não possa negar a herança do passado; quando penso em tudo isso, chego à conclusão de que as obras do pensamento, os frutos doces e amargos do intelecto sempre me contentaram, porque sempre foi o Bem maior em minha vida.
É claro que o AMOR sempre esteve a guiar-me os pensamentos e não nego que ele seja, em minha vida, um Bem eminente. Ora, quem levantaria às seis da manhã para compor um roteiro e destiná-lo à pessoa amada que apresentaria um seminário? Quem correria atrás de ônibus para não perder um minuto sequer do tempo em que podia estar junto à pessoa amada? Quem enfrentaria chuva, frio e calor intenso, numa caminhada incansável para estar junto à pessoa que ama? Quem brigaria por mais tempo, quem reivindicaria mais tempo para o amor?
Não vou me alongar nesse tocante; não cabe aqui insistir no quanto me dediquei às mulheres que amei, que foram poucas. Reitero que não serei eu que farei reconhecer o meu valor, serão os outros. Não lamento injustiça e não procuro justiça. Para onde quer que olhemos, vemos injustiças. Não quero ser justificado, quero dar o melhor de mim. Assim, se amo, dou o melhor de mim; quando leciono, dou o melhor de mim. Quando leio, quando escrevo, quando medito, dou o melhor de mim.
Minha inteligência, minha sensibilidade, meu coração, minha alma, minha forma peculiar de me relacionar com a existência, como fato irrecusável e absurdo, minha abertura para o Mistério, minha avidez por questionar e rejeitar dogmas e crenças infundadas, infensas ao bom-senso, meu esforço por conservar minha autenticidade, minha distinção, minha singularidade são o melhor de mim.
Hoje, distribuo, igualmente, ao corpo e ao intelecto os cuidados que lhes são devidos. E isso me contenta, me regozija. Decidi, finalmente, cuidar de mim e isso significa preservar a saúde do corpo e da alma. Minha alma sempre esteve bem alimentada e saudável, em que pese os estados depressivos de que foi acometida, no passado, porque fora nutrida de conhecimento. Os livros são suas vitaminas, suas refeições. O corpo, hoje, está mais forte, vigoroso. Houve um tempo em que valorizei excessivamente os cuidados com a alma em detrimento do corpo. Hoje, corpo e alma estão conciliados. E, no AMOR, busco conservar essa aliança.
Quem de vocês, leitores estimados, antes de dormir, quando o sono insiste em nos escapar, permite o acesso à sua mente de pensamentos metafísicos sobre a possibilidade da vida além-túmulo? Certa vez, uma amiga distante perguntou-me se eu era agnóstico, embora eu já tenha declarado minha simpatia pelo ateísmo. Se por agnóstico entendemos aquele que rejeita a possibilidade de conhecer o Absoluto e até de pensá-lo, então eu sou um agnóstico. No entanto, se o agnóstico for definido como quem “fica-em-cima-do-muro”, sem opinar para um ou outro lado de uma questão, então não sou um agnóstico de fato. E, se como diz Richard Dawkins, em Deus – um delírio (2007) “um ateu (...) é alguém que acredita que não há nada além do mundo natural e físico, nenhuma inteligência sobrenatural vagando por trás do universo observável, que não existe uma alma que sobrevive ao corpo e que não existem milagres (...)” (p. 37), então eu não sou, nesse sentido, um ateu. Não creio no Deus de Abraão, tampouco no Deus de Cristo que, tomado de um sentimento muito humano, ousou questionar Deus sobre o motivo de tê-lo abandonado, na agonia da crucificação. No entanto, creio que haja um universo supra-sensível, uma dimensão espiritual. Talvez, eu seja um ateu espírita. Uma antítese? Decerto, porque o espiritismo funda-se nos ensinamentos do evangelho e assume como pressuposto a existência de Deus, no modo como Jesus Cristo o representou.
Como todo bom leitor, sou intelectualmente inquieto. Inquietude intelectual é uma qualidade que me define, em parte. As religiões infertilizam as mentes, engessam os pensamentos, castram a criatividade da alma. Por esse e outros motivos, hoje, não sou religioso.
Convém, todavia, dar novo curso a estas palavras, pois que não é de religião que pretendo me ocupar aqui. Concentro meus pensamentos na minha relação com a vida. Para tanto, refiro, abaixo, um texto postado por uma amiga professora na página de perfil de seu Orkut. Trata-se de um texto que me chamou atenção e que gostaria de compartilhar com vocês, leitores.

"Temos todo o tempo do mundo". Mas infelizmente as coisas não são bem assim.
Não temos todo o tempo do mundo, não temos tempo a perder. Mas infelizmente perdemos!
Perdemos tempo com muitas coisas, perdemos tempo acreditando em sonhos, perdemos tempo acreditando em alguém, perdemos tempo sem perceber.
Mas não notamos que o tempo passou (e o perdemos) senão quando nos vemos decepcionados com alguma coisa ou com alguém.
Tempo perdido? Talvez sim, talvez não...depende somente do ângulo por onde procuramos enxergar as coisas. Diz um velho ditado que "nada é por acaso" e, a partir deste pensamento podemos enxergar as coisas de um modo
diferente, de um modo em nos vemos mais maduros, talvez até machucados, mas com olhos voltados para o futuro, capazes de enfrentar novamente a vida e seus desafios.
Willian Shakespeare diz em um de seus poemas que "depois de algum tempo você aprende que maturidade tem mais a ver com as experiências que você teve do que com quantos aniversários vc celebrou", e isto é verdade! Somente as experiências podem nos ensinar!
A dor, às vezes, é a nossa melhor amiga!
                                                 
Leiamos duas ou três vezes. Leiamos quantas vezes quisermos, para que não deixemos escapar um punhado sequer da sabedoria que este texto veicula. Inicialmente, repercute a voz de Renato Russo, na canção Tempos perdidos. Lembra? “Somos tão jovens...”. Na canção, Renato diz: “temos todo tempo do mundo...”. Assim, pensam os jovens. É claro que não temos todo o tempo do mundo; nosso tempo aqui neste planeta é breve e pode chegar ao fim sem que sejamos avisados. Decerto, perdemos tempo quando ficamos a ruminar nossas dores e perdemos tempo supervalorizando nossas decepções, nossas frustrações. Decepções e frustrações todos nós experimentamos em muitos momentos da vida e seu impacto negativo sobre nós dependerá do quanto esperamos do outro, dependerá, portanto, da medida de intensidade de nossas expectativas, de nossos anseios.
Somos seres de emoção, e, como tais, somos suscetíveis à dor e ao sofrimento. Não se trata de sugerir que devamos ser indiferentes, insensíveis. Chore a intensidade de sua dor, sofra a medida de seu sofrimento. Mas, no abismo de sua dor, na clausura de seu sofrimento, sempre haverá a possibilidade de ‘abrir uma janela de sua alma’, por onde poderá ver “as coisas de outro ângulo”.
E a razão parece estar com Shakespeare: maturidade não se mede pelo número de aniversários, mas pela quantidade e valor de nossas experiências. Depende do grau de nosso envolvimento anímico e corporal com a existência. Nesse sentido, acho que o AMOR é uma força propulsora para esse envolvimento. Que outro desejo, que outra emoção está tão ligada ao envolvimento com a existência, com a vida? Os amantes não querem viver mais, gozar mais, entregar-se mais? A experiência amorosa nos descentra, nos desloca, nos arremessa a regiões espirituais dantes inacessíveis, porque nossa alma se guiava pelo regime insosso e exigente do cotidiano. O AMOR só exige o melhor de nós: o nosso ser.
Doravante, considerarei o texto de minha amiga Gizelda, postado em seu blog. Leiamo-lo:

"A Solidão concede ao homem intelectualmente superior uma vantagem dupla: primeiro, a de estar só consigo mesmo; segundo, a de não estar com os outros. Esta última será altamente apreciada se pensarmos em quanta coerção, quantos estragos e até mesmo quanto perigo toda a convivência social traz consigo. 

«Todo o nosso mal provém de não podermos estar a sós», diz La Bruyère. A sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas e perversas, pois põe-nos em contacto com seres cuja maioria é moralmente ruim e intelectualmente obtusa ou invertida. O insociável é alguém que não precisa deles. 

Desse modo, ter em si mesmo o bastante para não precisar da sociedade já é uma grande felicidade, porque quase todo o sofrimento provém justamente da sociedade, e a tranquilidade espiritual, que, depois da saúde, constitui o elemento mais essencial da nossa felicidade, é ameaçada por ela e, portanto, não pode subsistir sem uma dose significativa de solidão. Os filósofos cínicos renunciavam a toda a posse para usufruir a felicidade conferida pela tranquilidade intelectual. Quem renunciar à sociedade com a mesma intenção terá escolhido o mais sábio dos caminhos. "

Arthur Schopenhauer, Aforismos para a Sabedoria de Vida

Solidão é questão de estado de espírito.Ninguém precisa ser ou sentir-se superior para gostar de estar só.Há momentos em que nós somos nossa melhor companhia.

Não posso deixar de notar, numa leitura polifônica, a voz de Freud, que, em O Mal estar na cultura (2010), ensina estarem entre as três fontes de sofrimento dos homens justamente as relações sociais. Ilustrativo é o seguinte trecho colhido dessa obra:

“A proteção mais imediata contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas é a solidão voluntária, o distanciamento em relação aos outros. Compreende-se: a felicidade que se pode alcançar por esse caminho é a da quietude”.
(p. 65)

Em seguida, acrescenta:

“Contra o temido mundo externo não é possível defender-se de outra maneira senão por alguma espécie de afastamento, caso se queira resolver essa tarefa por si mesmo”.
(id.ibid.)

É claro que não devemos daí concluir que a felicidade repousa em alimentar uma aversão à vida social. Não se trata de ser misantropo. Devemos sempre ter em conta que nós, seres humanos, somos seres sociáveis; desde os primórdios, nossa vida se organiza em comunidades e nossa sobrevivência depende dessa organização. Nossos ancestrais só conseguiram desbravar o mundo e sobreviver porque formaram tribos, grupos e instauraram a divisão do trabalho, distribuindo papéis aos seus membros. No entanto, como bem mostra Freud, a sociedade está longe de ser a meta de felicidade do homem. A vida civilizada exige que os homens reprimam seus instintos de prazer. Nunca alcançando a felicidade, em virtude dos mecanismos repressores da cultura, os homens devem contentar-se com a sublimação de seus impulsos. Assim fazem os artistas quando se concentram em seu trabalho e dele extraem contentamento e um prazer substitutivo, ou os pesquisadores que se alegram com os resultados de seu trabalho. Entretanto, a sublimação, embora seja uma espécie de compensação à frustração experimentada pelos homens, por não terem realizados seus impulsos mais primitivos, jamais produzirá a mesma intensidade de prazer que aquela realização produziria.
A solidão permite o confronto do ‘eu’ consigo mesmo. Em outras palavras, quem teme deixar-se estar só teme, na verdade, confrontar-se consigo mesmo. A solidão convoca o ‘eu’ a pôr-se diante de si mesmo, para nele mesmo meditar. Também a solidão, ao colocar o mundo entre parênteses, devolve-nos aquela sensação, que nos é tomada no convívio social: a sensação do vazio do ser, ou seja, do nada. É na ociosidade que os grandes filósofos puderam produzir seus pensamentos. Para pensar, é preciso estar em ociosidade. O ócio é oficina para os pensamentos. Se bem conduzido, o ócio proporcionará a produção de pensamentos elevados, fecundos, próprios dos espíritos largos, profundos, libertos.
Eu rejeito, em parte, a lição de Schopenhaeur, filósofo cujos pensamentos, aliás, muito aprecio, porque renunciar à sociedade é, na verdade, para muitos de nós, muito difícil, salvo os eremitas.
Cabe, finalmente, assentar o nosso dilema nos seguintes termos:
a) somos seres projetados para viver em sociedade;
b) construímos sociedades que nos tornam insatisfeitos e infelizes;

O que fazer? Se não estamos dispostos a seguir o conselho do eminente filósofo, devemos buscar relações sociais que nos favoreçam. Frustrações e decepções podem recair sobre nós nessa longa busca. A solidão poderá servir bem como uma balsa nas tempestades, uma balsa que, se bem conduzida, nos permitirá experienciar-nos de um modo mais íntimo. Essa intimidade pessoal, essa imersão em nós mesmos é indispensável para o nosso bem-estar psíquico. É esse olhar interior que nos permitirá lançar luzes sobre as trevas de nossas relações pouco produtivas e favoráveis com os outros.
Mas é bom lembrar que solidão não pode individualizar. Não se trata de acreditar que nos basta a solidão, que nos basta a nós mesmos, que o ego deve ser a prioridade, o centro de nossas disposições emocionais. A solidão deve ser um momento fértil para reflexões, para a partilha de pensamentos. Eu, para escrever, preciso estar sozinho; às vezes, imerso num silêncio inquisidor, às vezes, com a televisão ligada, ou, uma música tocando ao fundo. O importante é que a solidão faça-nos perceber de outro modo. Viver a fecundidade da solidão é produzir o melhor de si mesmo, é pôr a nu o fundo do ser, que, muita vez, se oculta aos olhos do outro, especialmente se esse outro é “intelectualmente obtuso” ou, o que dá no mesmo, estúpido.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Amor através dos discursos

                                                
                  

                       Discursos e Amor

C hamou-me a atenção a seguinte passagem, em O amor em palavras: o discurso amoroso em questão:

“(...) o discurso amoroso, de origem incerta, esteve presente em todos os momentos da história do homem e assim deverá continuar, em movimento constante, até o fim dos tempos. Impreciso, vago, escorregadio. Assim é o discurso. E sobre o amor o que temos? Discursos. E só”
(pp. 34-35)


A autora, Isabel Osório T. D. Coutto, lembra-nos que a relação entre amor e palavra (ou discurso) estava presente em O Banquete, de Platão. Nessa obra, Eros era manifestado de diversas formas através do logos (palavra, linguagem, discurso). Em uma das redações escolares citadas pela autora, um aluno da 8ª série escreve que o amor “é dizer que a gente gosta de uma pessoa e ela gosta de você” (p. 34). Mais adiante, acrescenta: “O amor é dizer que eu te amo e tu me ama”.
A construção ideológica do amor nos chega por meio de vozes, ou discursos, cultural e historicamente determinados. O imaginário do amor é tecido, em grande parte, pelos discursos legados à posteridade em O Banquete. Além disso, o ideário do amor romântico, caracterizado pela necessidade de consumação no laço matrimonial ainda encontra raízes no imaginário do homem pós-moderno. Os valores do amor romântico ainda estão presentes na literatura, no cinema, nas revistas, na televisão.
É preciso, antes de prosseguirmos, considerar, em linhas gerais, a função do discurso relativamente à sociedade que o produz. Discurso deve ser entendido como prática social, que é moldada pela estrutura social e, ao mesmo tempo, é constitutivo dessa estrutura. Através do discurso, a estrutura social é constituída, reproduzida e modificada. Discursos são, pois, formas de ação sobre o mundo e sobre a sociedade. Trata-se de um fenômeno da vida social inter-relacionado a outros elementos dessa vida.
Toda prática discursiva envolve processos sociocognitivos de produção, distribuição e consumo de textos. Tais processos estão relacionados a âmbitos políticos, econômicos e institucionais (ideológicos) específicos.
Portanto, a forma de dizer o amor está intimamente relacionada à forma como desejamos experienciá-lo. Como seja um tema universal, há muitos discursos sobre o amor. A obra referida O Banquete dá-nos testemunho disso. Uma das vertentes discursivas dizem do amor que é um sentimento sublime, o mais elevado, o mais nobre dentre os bons sentimentos. Naquela obra, encontraremos a ideia de amor como força ordenadora do cosmos, ou força responsável pela harmonia do universo.
Uma interessante amostra discursiva dos “retratos” do amor através dos séculos é o poema de Carlos Drummond de Andrade, referido abaixo. Leiamos com atenção:

Balada do amor através das idades

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria do meu bergantim.
Mas quando eu ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois, (tempos mais amenos)
fui cortesão em Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina;

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

(Carlos Drummond de Andrade)

Note-se que o poema, de estilo narrativo, expressa a experiência amorosa através das épocas. Na primeira estrofe, faz-se referência ao amor na Grécia Antiga, mais precisamente no tempo mítico da Guerra de Tróia. Na segunda estrofe, o amor é experienciado no período cristão, em Roma. Ele era um soldado romano que se apaixona por uma cristã lançada aos leões. A cada período os amantes se encontram, como se reencarnassem, mas nunca conseguem viver juntos. A morte é seu destino. Na última estrofe, finalmente, chega-se à época moderna, em que vive o homem prático, individualista, independente, que vai ao cinema, e não precisa enfrentar leões; um típico consumidor das sociedades modernas que tem dinheiro no bolso, que não tem de duelar para viver junto à pessoa amada, muito embora ainda conserve o sonho de felicidade amorosa oferecida pelos filmes hollywoodianos.
Embora pareça simplista a visão do estudante sobre o amor, ele não deixa de revelar a relação entre Eros e Logos, discutida em O Banquete. Claro é que o aluno não tem consciência disso, o que nos mostra que o imaginário do amor é devedor da construção ideológica através do discurso da Antiguidade Clássica. Ora, ele dá testemunho do resultado dos saberes acumulados pelas gerações durante séculos.
O imaginário do amor é construído discursivamente pelas vozes (autores, personagens, pessoas comuns...) que o dizem através das épocas. Atualmente, fala-se em amor líquido, contrariamente à concepção tradicional do amor como sentimento de permanência, de fidelidade à própria união que o engendrou. O amor líquido é descartável, fugaz, porque escorre, se dissipa, dada a sua fragilidade, e urgência. O amor líquido é resultado de práticas sociais em que os envolvidos são estimulados ao consumo desenfreado de coisas e pessoas.
É interessante notar que há duas grandes vertentes de estudo sobre o amor: uma realista, de que se encarrega a ciência, preocupada com a descrição dos processos fisiológicos ocorridos no organismo de um indivíduo “acometido” de amor e/ou paixão; e uma idealista, mais abstrata e especulativa.
O amor, como abstração, como matéria de pensamento, se dissolve em face da carência de modelos de experiência amorosa que a sustentem. Em outras palavras, é comum que se diga que não sabemos o que é o amor, que há um grande hiato entre o que se diz do amor e a forma como o experienciamos. Sucede que, em geral, não somos incentivados, ou ensinados a pensar sobre o amor, a refletir sobre a experiência amorosa. Disso não se segue que pensar sobre o amor seja garantia de prosperidade; mas pensá-lo permite-nos situá-lo na dimensão da vida real e reconhecê-lo nas  suas diversas manifestações. Nossa dificuldade de entendê-lo se deve, em parte, à dificuldade de dizê-lo, de pensá-lo.
O amor é corpo, é intimidade da alma; é sua nudez revelada no convívio com a pessoa amada. Discurso nenhum apreenderá toda a dimensão anímica que torna o amor um sentir que nos alegra, que nos anima, que, para muitos, justifica a existência – um absurdo destinado a sucumbir.

domingo, 10 de julho de 2011

Quando tenho de ficar só...



                                                                Anoitecer

Na sala, um falatório com risadas estridentes, entremeadas com exaltações e gargalhadas. Todos embalados por uma conversa trivial sobre chá, café e adoçante. A alegria trivial de uma vida comum preenche os espíritos que interagem, num fim de domingo em que minha alma sucumbe ao vazio do tédio.
Prefiro recolher-me em um quarto para escrever. E, então, estou eu diante desta tela de computador esforçando-me para que as combinações verbais que estampo neste papel virtual me permitam algum grau de expressão lírica. Nesse momento, incomodam-me as palavras; quero rejeitá-las, mas não consigo. Sua companhia lembra-me os dias desgostosos a que ficou presa minha alma; quero afastá-las, mas não consigo.
Diante de mim, meu cachorro perambula, desnorteado. Tenho de acudi-lo, mas meu corpo está preguiçoso. Uma pausa. Por um momento, esqueço que ele não mais escuta; é vão chamar pelo seu nome. Uma pausa.
Olho minhas últimas fotos... Apaixono-me por mim. Admiro-me. Mas não posso evitar uma leve inquietação: por que continuo solteiro? E não me venham dizer que eu sou exigente ou pachorrento, ou acomodado. Acontece que não tenho sorte no amor. É meu destino. Também não lamento, porque lamentar não me é proveitoso. Apenas constato, interpreto o que me parece intrigante.
Não é que não me considere atraente, em muitos sentidos. Não é que não seja eu merecedor. Talvez, como me disse, certa vez, uma amiga, eu tenha muitas pretendentes, se bem que não as conheço. E não as conheço porque, talvez, eu seja mesmo desatento.
As férias não me beneficiam. Os amigos sumiram; o único que restou não responde às minhas solicitações. A verdade é que meus amigos namoram ou estão noivos e alguns deles são companhia apenas para conversas triviais ou entretenimentos como jogar vídeo-game.
Com o tempo, os amigos se afastam; é a ordem normal da maturidade; uns namoram, outros casam. A vida se encarrega de nos distanciar. Por outro lado, quanto mais estudamos, quanto mais lemos, quanto mais elevado nosso grau de cultura, mais seletivos ficamos.
Eu experiencio a solidão do intelecto e dela, raramente, sou retirado. 

"Toda esperança é vã numa vida destinada a ser finita" (BAR)

                    
                         

                                        Especulações dominicais
                                               Sobre morte e amor

Toda esperança é vã à vida destinada a ser finita. Não lembro onde li ser a esperança válida só para quem espera. Eu nada espero. A manhã deste domingo convidou-me a recolher-me junto aos livros. Apanhei cinco livros, que estavam na prateleira, se bem que só  li algumas páginas de quatro deles. Dentre eles, destaca-se o livro O amor em palavras: o discurso amoroso em questão (2011) presenteado a mim por uma aluna minha do curso de Letras, a quem muito agradeci o carinho. A autora do livro, Isabel Osório Tubino Do Coutto, veio entregar-me um exemplar e estampou-me na folha de rosto uma dedicatória. Senti-me honrado, evidentemente, e trocamos algumas poucas palavras sobre meu interesse em Análise do Discurso (já que a pesquisa de que o livro é um produto foi orientada nessa linha teórica).
Comecei a leitura hoje, por isso me custa fazer qualquer avaliação. É claro que o tema me é caro e que a proposta do trabalho afina-se com as teses já por mim propaladas em meus textos destinados à discussão sobre a experiência amorosa. O objetivo da autora é pensar o amor por meio da prática discursiva. O que disseram e o que dizem os homens sobre o amor historicamente? Quem é o sujeito que diz? A ênfase da análise recai, aliás, sobre o conceito de sujeito, tão caro ao analista do discurso.
Uma frase se destaca na Introdução. Escreve a autora:

“Falar de amor implica deixar a desejar, por mais que se diga, sempre vai ficar faltando alguma coisa”
(p. 22)

O sujeito escolhido pela autora é o adolescente. Assim, sua preocupação recaiu sobre a análise de redações de alunos do ensino fundamental de uma escola pública. Nestes trabalhos, os alunos foram solicitados a definir amor e paixão.
Conceitos como formação discursiva e formação ideológica são fundamentais numa análise que se oriente pelos pressupostos teóricos e metodológicos da Análise do Discurso. Nesse sentido, citando um autor como Jurandir Freire Costa, em Sem Fraude nem favor, Coutto traz à cena as três formações ideológicas em que se situa o amor em nossa cultura:

“ é um sentimento universal e natural;
é um sentimento surdo à “voz da razão”;
é condição sine quan non da felicidade”.
(p. 19)

A ideia de que sem amor nada faz sentido é recorrente no discurso do adolescente, consoante nos dão testemunho as redações analisadas. O que é preciso saber é que esse sujeito que diz do amor está inscrito no processo sócio-histórico de produção de sentidos, mesmo que ele não tenha consciência disso. E ele não pode evitar essa ligação. Dizemos sempre de um dado lugar social e nosso dizer se insere num conjunto historicamente estabelecido de acontecimentos internos ou externos ao texto, ou seja, numa memória discursiva. Ademais, todo discurso instaura um interdiscurso (a presença de diferentes discursos no interior de um dado discurso). Na verdade, todo discurso está calcado em discursos anteriores, ao mesmo tempo, que instaura a possibilidade do aparecimento de outros discursos. Cada palavra enunciada mantém relação com o silêncio fundante. Cada vez que enunciamos ou produzimos um discurso “abrimos” espaço para o silenciamento, porque nenhum discurso diz tudo. A crença na possibilidade de se dizer tudo é efeito da ideologia. A ideologia representa a transparência do sentido e seu fechamento. Sucede, contudo, que os sentidos estão “abertos”. Eles tomam diferentes direções; e a linguagem é opaca, não transparente. Devemos sempre ter em conta que o sentido pode ser outro, que ele não está ali ‘boiando no texto’, mas é produzido sócio-historicamente. Por isso, em Análise do Discurso, fala-se em um processo sócio-histórico de produção de sentidos, de cujo curso o sujeito é instado a participar.
Como campo interdisciplinar, que congrega o materialismo histórico, a Lingüística e uma teoria do discurso, a Análise do Discurso pensa o discurso na sua relação com a História. Em outras palavras, o linguístico é indissociável do histórico. Assim, a produção de sentidos é conseqüência de processos históricos determináveis discursivamente.
A esta altura, talvez o leitor se pergunte o que tem a ver o início deste texto, em que considero a esperança com o seu desenvolvimento até aqui. Acredito que a coerência comece a se lhe afigurar doravante.
Meu cachorrinho está velhinho, magro, cego e surdo. Vive choroso e batendo com a cabeça nas coisas; às vezes, me deparo com ele parado diante da parede. Uma cena trágica de nossa condição de seres vivos, seres destinados ao envelhecimento, à enfermidade e à morte. O pouco tempo de vida que resta ao meu cachorrinho aviva-me a consciência da fragilidade da vida e faz-me, inevitavelmente, retornar ao que, para mim, é essencial: o amor.
O livro, aqui mencionado, lembra-nos a importância da experiência amorosa em nossas vidas; traz-nos à consciência o valor do amor como condição de felicidade. Muitos homens e mulheres acreditaram (e ainda acreditam) que o amor é condição para a felicidade; portanto, que esta só pode ser plenamente alcançada na experiência amorosa. Como bem observa a autora, o amor sempre foi considerado signo de felicidade. Ao contrário, segundo ela, acredita-se que quem não ama é infeliz (p. 16).
Este texto não resulta da intenção inicial que tomava forma em meu espírito. Inicialmente, pretendia escrever sobre o valor do conhecimento, da linguagem e sobre minha relação com esses dois valores. Nada muito diferente do que costumo tratar neste blog; no entanto, uma vez avivada a consciência de que a morte chega a todos nós, seres vivos, pressentida no sofrimento de meu cachorrinho, preciso declarar, enfaticamente, que O AMOR É O MAIOR VALOR DESTA VIDA.
Se, por um lado, é vã toda esperança; por outro lado, ainda desconfio de que minha felicidade amorosa está ligada a um ser que ainda não conheci. Talvez, alguém sensível e inteligente o bastante para apreender essa inquietante relação entre morte e amor, uma relação que nos constitui, enquanto seres destinados a morrer. A morte é um fantasma que dorme conosco todas as noites; o amor é uma forma de exorcizá-lo quando acordamos, ou uma força que nos encoraja a enfrentá-la.
O valor máximo do amor está na consciência aguçada da morte. Morte como fato inevitável; amor como possibilidade sempre e incansavelmente desejada.
Pobre do homem que no intercurso entre o nascimento e a morte não soube o que é amar e ser amado. Se, como se diz, a morte é que dá valor à vida; é só o amor que é capaz de sustentá-lo e justificá-lo. Um coração acumulado de amor é mais satisfeito e pode, assim, cumprir seu destino: a morte.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Não temos tempo a perder...

                                                   




 Enquanto houver vida


Estas horas invernais
Em que o frio congela
Caem como fogos infernais
Na alma que não cessa

De desejar o AMOR
De que está grávido o sonho
Tenho medo de viver sozinho
Porque nasci sozinho
E morrerei sozinho

Nunca dantes estive tão em paz
Uma paz que me alegra
Que me entedia
Que me consola
Que me concilia comigo

Estou tão acostumado à tristeza
Que agora me afeiçoei à alegria
Tímida
Bem vestida
Comportada

A tristeza me apertava
Sufocava-me a alma
Prefiro vestir a alegria
Simples
Fugaz
Do momento

Quando não penso
Que tudo deve ter um fim
Mesmo a vida
Tão fugidia
E inexplicavelmente
Inquietante

Ah! A vida terá um fim
Mesmo que ignoremos
Mesmo que fiquemos
A planejar simplesmente
A esperar

Que aconteça
O sonho que deixamos de sonhar
o futuro a quem pertence?
Se nos resta o presente
Que respiramos
Enquanto há vida
E o desejo de amar

(BAR)


Quem acredita (nunca) alcança...





                  
  Mais é claro que o sol vai voltar amanhã


Nunca me calei a respeito de minha inclinação a acolher as reflexões ateístas; creio, todavia, que foram poucas as vezes em que eu declarei ter aprendido mais sobre a Bíblia, de cuja leitura, deveras, não me ocupo, lendo alguns autores ateístas ou agnósticos. Dentre eles, destaca-se, pela contribuição, Bart. D. Ehrman, autor de O problema com Deus. Ehrman é um dos maiores especialistas do mundo nos estudos do Novo Testamento e das origens do Cristianismo e, antes de tornar-se agnóstico, foi pastor numa igreja anglicana nos Estados Unidos. Certamente, não só uma autoridade nos estudos bíblicos, mas também alguém que exerceu a função de ministro ordenado pela igreja.
Este texto não se destina à reflexão das contribuições do pensamento ateísta. Não pretendo apresentar argumentos contrários à crença na existência de um ser Todo-poderoso e inteiramente comprometido com a existência humana. Quero discorrer sobre o ensinamento do livro Eclesiastes, um dos livros sapienciais das Escrituras hebraicas. O próprio autor, ao destinar uma seção para uma breve leitura desse livro, observa ser ele um dos seus livros preferidos da Bíblia. Como todos os livros estudados por Ehrman, o Eclesiastes não dá conta da pergunta: por que existe tanto sofrimento no mundo? Trata-se de uma questão insolúvel. Claro, se Deus existe e é infinitamente benevolente, por que tanto sofrimento no mundo?
Comecemos notando que o Eclesiastes se distingue dos demais livros, como o dos Provérbios, na medida em que a sabedoria apresentada naquele livro não resulta do acúmulo por gerações de sábios, mas

“é baseada nas observações de um homem enquanto pensa na vida em todos os seus aspectos e na certeza da morte”.
(p. 166)

Esse homem comum que transmite sua sabedoria, após refletir sobre as condições da existência no mundo, não está interessado em responder àquela questão anteriormente mencionada. O Eclesiastes ensinará que a vida frequentemente não faz sentido e que, ao cabo de tudo, todos nós, indiscriminadamente, morreremos. A morte é a única certeza que temos. Não sabemos se a vida tem algum sentido; mas sabemos certamente que um dia vamos morrer.
O autor nos esclarece, à página 168, que a palavra-chave para entender o Eclesiastes é vaidade. O ensinamento aí presente é bem simples: tudo é efêmero, fugaz e, portanto, é inútil se apegar aos prazeres terrenos. Vejamos o que se encontra no limiar daquela página:

“(...) Toda a vida é vaidade. Ela passa rapidamente e se acaba. A palavra hebraica é hevel, que também pode ser traduzida como “vazio”, “absurdo”, “inutilidade”. Hevel literalmente se refere a um vapor que se desfaz, assim a ideia básica é algo como “fugaz”, “efêmero”. A palavra aparece cerca de trinta vezes nesse livro relativamente curto. Para seu autor, tudo no mundo é efêmero e destinado a logo acabar – até mesmo nós. Dar valor e importância em demasia às coisas deste mundo é inútil, vão: todas as coisas são fugazes, efêmeras.”
(p. 168)

Desde já, deve-se rechaçar a ideia de que, em face de tal condição, o suicídio seja inevitável. Tampouco, tem a vida menos valor. Em sete momentos do livro, o autor do Eclesiastes recomenda aos leitores que devem “comer, beber e ser felizes”; ou seja, devem desfrutar a vida enquanto têm tempo. Assim, devemos estar certos de que a única coisa boa que temos é a vida mesma. Ela é o único valor.
Convém aqui dizer que o autor de Eclesiastes acredita não haver uma vida melhor após a morte e que recompensas e punições são distribuídas não segundo o mérito de cada um e que tal distribuição depende do acaso. Não há recompensas para os bons e os sábios, nem castigos para os injustos depois da morte. Para ele, vida é. A vida é tudo que existe. Nesse sentido, parece esboçar o pensamento existencialista desenvolvido por Sartre. Aqui, parece possível inferir o conceito de facticidade, ou seja, uma designação que recobre a ideia de que a existência pertence à ordem do fato e não é necessária, pois que não tem nenhuma razão que a fundamente. As coisas estão aí, simplesmente como são, sem necessidade nem possibilidade de ser de outra forma. Por isso, em Sartre, a existência é absurda. Não há uma razão suficiente que a justifique. As coisas estão aí e eu estou entre elas; isso é um fato. Nossa consciência, então, apreende a si mesma como um fato.
Segundo o ensinamento do Eclesiastes, é inútil acumular riqueza, pois que, se um dia iremos morrer, tudo que acumulamos será herdado pelas gerações seguintes. A riqueza é transitória.
Também uma enorme quantidade de prazer desejada é inútil, porque o corpo perece. Nós envelheceremos, adoeceremos, sentiremos dor, sofrimento e morreremos. Qual é, então, o sentido de desfrutar grande quantidade de prazer?
Quando jovens, nós não estamos, em geral, preocupados em pensar sobre as questões ventiladas pelo Eclesiastes. Quero dizer, não estamos preocupados com o que podemos fazer no tempo que temos de vida, estando sempre conscientes de que a vida nos pode ser tomada a qualquer momento por uma fatalidade. Quem poderá garantir que você, leitor, estará vivo daqui a um mês, ou um ano? Embora goze de boa saúde, quem lhe poderá garantir que a vida lhe será abreviada por um acidente?
Assistindo às reportagens sobre o velório do ex-presidente Itamar Franco, e vendo aquela gente em torno de seu caixão, pensei: será mesmo só isso a vida? A pessoa , o ser Itamar Franco expirou completamente? Tudo aquilo que experimentou, que o alegrou, que o emocionou; toda a sua significação humana terminou ali naquele caixão?
Cada um de nós é uma história subjetiva encarnada. Cada um de nós é um pequeno universo, extremamente complexo, de experiências, de desejos, emoções, sentimentos, significações. Todo esse complexo se extingue completamente com a morte? É só isso? E os que já nascem sofrendo? A morte é credor universal, recairá sobre todos; mas uns sofrem mais do que outros, embora todos sofram em alguma medida. Alguns sofrem desde que nascem, outros virão a sofrer mais tarde. A intensidade do sofrimento pode variar, mas a morte para todos virá.
Então, nos resta apenas a vida, cerceada no tempo. Segundo o IBGE, a expectativa de vida dos brasileiros é de pouco mais de 71 anos. No Japão, esse índice ultrapassa os 80. É claro que a diferença será determinada pelas condições socioeconômicas mais ou menos favoráveis.
Evidentemente, estar consciente da morte não significa saber quando vamos morrer. E acredito que a possibilidade de darmos valor à vida, ou de construir-lhe um sentido depende dessa incapacidade de prever o dia em que morreremos.
A existência do ser humano se desenvolve, então, entre dois extremos: o incognoscível que precede o nascimento (não sabemos donde viemos) e o incognoscível de que a morte está grávida (não sabemos se vamos para outro lugar, depois da morte).
Freud ensinava que o ser humano busca o prazer e, consequentemente, tenta evitar o desprazer. Aristóteles, a seu turno, preconizou a felicidade como o objetivo último da vida humana. Nesse sentido, ser feliz é um bem da alma, que se guia pela virtude. O homem feliz é um homem virtuoso, que não acumula inquietações. Felicidade é ausência de preocupações. A felicidade é resultado de uma atividade bem-sucedida. O homem é feliz quando desenvolve plenamente suas qualidades específicas: a linguagem, a racionalidade e a sociabilidade.
Decerto, grande parte de nossa felicidade depende do bom convívio com o outro. Ter boas relações sociais e afetivas é indispensável à nossa felicidade.
A despeito da brevidade da vida, desde que nascemos, somos projetados para o futuro. Nossos pais são os primeiros responsáveis por essa projeção. Eles esperam de nós, eles nos preparam para o futuro. No entanto, esse “futuro” é sempre escapável, inatingível, no sentido de que ele não é. O futuro é a negação do presente por um breve instante. O futuro, repito, é a não-consciência. O que há é apenas o presente, o presente em que estou aqui sentado em face deste computador escrevendo e você, leitor, do outro lado, em algum outro lugar, lendo. Há duas horas atrás, quando eu ainda não escrevia, só é passado, porque estou consciente do agora em que escrevo e lembro do momento em que ainda não escrevia. Daqui a três horas, quando baterem as seis horas da tarde, o que, agora é futuro, se realizará e, portanto, tornar-se-á presente. A minha consciência só é possível no presente. Tanto o passado quanto o futuro são a não-consciência. É claro que do passado podemos tomar consciência pelo conhecimento e pela lembrança. Mas o meu “eu” do passado só existe pela memória, só é avivado na lembrança.
É possível que, a esta altura, o leitor experimente um sentimento de angústia, mas deve ele contentar-se com o fato de que somos sempre livres para escolher. Nesse sentido, escolhemos quem somos e escolhemos o que fazer do que fizeram de nós. Podemos escolher simplesmente esperar. Conservar a esperança é também uma escolha. Podemos, contudo, escolher agir, segundo um propósito que nos pareça benéfico.
O que não podemos é viver com arrependimento. Creio em que nós devemos viver sem nunca nos arrepender. Talvez, esteja aqui um objetivo relevante para as nossas vidas: evitar o arrependimento.
Quando aceitei o fato de que quem eu sou é resultado das escolhas que fiz e que sempre poderei fazer escolhas segundo a minha vontade e que, portanto, minhas escolhas podem ser de outro modo, reconciliei-me com o mundo, com a vida neste mundo. Esperar demais é perigoso. Agir mais parece melhor. Viver a intensidade de um instante.
Numa vida à qual nos custa atribuir algum sentido, creio ser válido buscar o prazer no essencial: como no beijo apaixonado, no amor que cultivamos no coração e partilhamos, nos passeios noturnos com a pessoa amada, no sexo com amor, no cuidado com o corpo e com a alma, na alimentação, na saciedade.
Sei que pareço repetitivo, mas, depois de muito meditar, não encontro valor maior nesta vida senão no AMOR. O resto são negócios, aos quais não podemos escapar, mas que estão longe de satisfazer os nossos desejos mais íntimos, mais viscerais, mais urgentes que não cessam de reclamar prioridade e saciedade.
Ponho termo a este texto com uma frase escrita por uma moça distante que conheci no ciberespaço, há muito tempo: “na vida, não existe nada melhor que o amor, pode ter certeza”. Isso só já basta.

sábado, 2 de julho de 2011

sem demora


Sem demora

É já hora de ir
Tenho de me recompor
Olhar adiante um azul tímido
O céu nebuloso ou claro
Tenho de tomar a rua
O caminho a que sou obrigado
Tenho de ir
Embora eu queira ficar
Aqui
Sozinho
Com o meu coração
Ele me cansa
Ele me pesa
Ele não cessa
De tanto exigir
Tenho de ir
Sem demora
Sem hora
Mas quero ficar
Esperar
Que uma nota de alívio
Me caia da alma
Uma fagulha lírica
Um estilhaço de inspiração
Um pedaço de sentimento
De alegria
Um silêncio fugidio
Qualquer coisa
Que me faça compreender
Uma alma que só quer amar

(BAR)