sábado, 24 de dezembro de 2016

É preciso sentir a necessidade da experiência, da observação, ou seja, a necessidade de sair de nós próprios para aceder à escola das coisas, se as queremos conhecer e compreender. (Durkheim)

                              
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                A ciência de Durkheim
    As marcas positivistas de seu pensamento


                                       Bruno de Andrade Rodrigues


Resumo

Esta exposição resultou de um esforço por compreender as bases em que se sustenta o pensamento de Durkheim, para o que procuramos apontar a influência que sobre seu pensamento exerceu a doutrina positivista, da qual Augusto Comte foi fundador e maior expoente. Nossa investigação se pautou pelo pressuposto de que, embora Durkheim pareça ter-se recusado o rótulo de positivista, seu racionalismo científico é devedor da herança epistemológica positivista, inaugurada por Comte. Nosso objetivo não foi, nesse tocante, restituir a Durkheim aquilo mesmo que ele parece ter rejeitado; mas enfatizar ter sido ele um cientista de seu tempo.




Introdução


Três são os objetivos perseguidos neste trabalho, o primeiro dos quais é de ordem geral, qual seja, apontar as marcas da corrente filosófica recoberta pela designação positivismo no modo como se desenvolveu o pensamento de Durkheim, para cuja tarefa nos servimos, além da seção de Introdução, os capítulos primeiro, segundo e terceiro de seu As Regras do Método Sociológico (2007)[1]. O segundo objetivo consiste em demonstrar de que modo sua concepção de fatos sociais está embebida na afluência de pressupostos que, remontando a modos anteriores de fazer ciência, não deixam de encontrar lugar na visão de mundo positivista[2]. O terceiro e último objetivo deste texto repousa na preocupação em sustentar a visão de que o racionalismo científico de Durkheim não está em conflito com o método positivista, mas deve ser visto como uma tentativa de conciliar a primazia dada à experiência pelo positivismo com o rigor da razão enaltecido pelo racionalismo cartesiano, tendo em vista a necessidade – apontada pelo próprio Durkheim – de aplicá-lo à conduta humana.
O desenvolvimento deste artigo se estruturará em cinco seções, das quais as quatro primeiras se apresentarão com as suas respectivas subseções. Na primeira seção, passaremos em revista o que foi o positivismo inaugurado por Augusto Comte (1798-1857), momento em que desceremos a considerações sobre a relação entre o positivismo e o empirismo, sobre o método esposado por Comte e sua visão sobre a sociologia. Não descuraremos de notar como Comte encarava a sociologia e o papel que lhe atribuía na sua classificação das ciências.
 Na segunda seção, ocupar-nos-emos do contexto sócio-histórico em que se inscreve o positivismo, cingindo-nos aos aspectos que tocam mais diretamente aos objetivos deste trabalho. Por conseguinte, não objetivamos a exaustão.
A terceira seção será consagrada à discussão de uma visão crítica de ciência que encontra, na contemporaneidade, apoio entre filósofos, particularmente entre os que se dedicam aos estudos epistemológicos ou da filosofia da ciência[3]. Dessa visão dará testemunho a vertente pragmaticista de ciência. Nessa terceira seção, cuidamos indispensável trazer à cena uma questão cara à atividade científica, qual seja, a distinção entre o objeto observacional e o objeto teórico. Nosso propósito é realçar, por meio do contraste entre a visão crítica de ciência, que marca a contemporaneidade, e a visão positivista, os aspectos da própria concepção positivista que encontraram abrigo no pensamento de Durkheim. A escolha por inserir esta seção entre as duas primeiras seções e a que será destinada à influência do modelo positivista sobre o pensamento durkheimiano tem, portanto, o propósito de iluminar as regiões que fazem de Durkheim um pensador comprometido com um modo de fazer ciência marcante em seu tempo e cuja história pode ser rastreada tendo por referência a Revolução Científica do século XVI, tarefa esta a cuja realização não nos poderíamos devotar neste trabalho, evidentemente.
A quarta seção é destinada ao exame do pensamento de Durkheim, tendo em vista as marcas da influência positivista e a maneira como a concepção de fatos sociais – conceito sobre o qual nos debruçaremos com a devida atenção – dá testemunho de um modo de fazer ciência que recupera o primado do domínio objetivo, caro aos positivistas.
A quinta e última seção recobre as conclusões encaminhas pela argumentação desenvolvida neste artigo.



1. O positivismo de Augusto Comte

Segundo Comte, o positivismo não é uma corrente filosófica dentre outras, mas a corrente filosófica que acompanha, promove e estrutura o último estágio que o conhecimento humano atingiu[4], o qual foi fundado e condicionado pela ciência. Comte pretendeu por fim às persistentes investigações sobre o incognoscível e, ocupando-se com o mundo real, criou um vasto campo de estudo e de observação que visava a restabelecer e a realizar um programa universal, cujo propósito era regulamentar e regenerar a vida humana, tanto privada quanto pública. Influenciado pelo progresso contínuo das ciências, Comte rezava que só se podem conhecer os fenômenos e suas relações, mas não a sua essência, ou suas causas íntimas, quer fossem eficientes, quer fossem finais. Essas causas permaneceriam incognoscíveis.
Toda a sua obra é, portanto, uma síntese geral dos conhecimentos de seu tempo, cujo projeto fundamental consistia em ligar a cultura humanística à cultura científica, compondo, desse modo, um novo humanismo baseado na ciência. A ciência, tal como concebida por ele, deveria ser capaz de redescobrir e reavaliar as necessidades humanas, atribuindo-lhes um significado de valor universal.
A ideia de progresso constitui um aspecto fundamental no desenvolvimento de seu pensamento. Comte pensava o progresso como uma lei da história da humanidade. Não nos poderíamos escusar de pontuar a crença que Comte nutria também na eficácia das ciências naturais e na possibilidade de criação de uma ciência da sociedade – a sociologia.
O positivismo é também uma doutrina que se propõe organizar moral e intelectualmente a sociedade. O termo positivo – vale notar – significa ‘real’ e se opõe ao quimérico; o ‘útil’ em oposição ao ocioso; a ‘certeza’ em oposição à ‘indecisão’; o ‘preciso’ por oposição ao ‘vago’. Também significa o contrário de negativo e supõe o absoluto em vez do relativo. Em suma, positivo é sinônimo de objetivo (tomado esse termo em oposição a subjetivo).



1.2. Proximidade e afastamento do positivismo em relação ao empirismo

Comte assumiu o postulado empirista segundo o qual todo conhecimento deve certificar-se de sua validade por socorro à experiência sensível. O recurso à experiência sensível como meio de validação do conhecimento supõe o exercício da observação sistemática. Todavia, sustentava Comte que o verdadeiro espírito positivo está muito distante do empirismo, já que, diferentemente deste, não visa, em sua atividade, à acumulação estéril de fatos. O positivismo também se afasta, em grande medida, evidentemente, do misticismo, que se limita a uma interpretação sobrenatural dos fatos.
Na visão de Comte, a ciência só é verdadeiramente possível, quando se busca conhecer os fenômenos tendo em vista suas relações constantes de concomitância e sucessão, a saber, suas leis. A determinação de suas leis permite a previsão racional. O espírito positivo deve orientar-se pela razão; precisa ver para prever. Um conhecimento é, portanto, útil quando permite prever e controlar o fenômeno. Destarte, a previsão racional deve destinar-se à construção da sociedade positiva.



1.3. A sociologia na visão de Comte

É consabido que Comte propôs uma classificação das ciências orientada pelos seguintes critérios:
a) a ordem cronológica de seu aparecimento;
b) a complexidade crescente de cada uma das ciências;
c) a sua generalidade decrescente;
d) a dependência mútua.

Com vistas a atender os propósitos estabelecidos para esta exposição, limitar-nos-emos a considerar os objetivos atribuídos à sociologia nessa classificação. Chamada também de física social, a sociologia, sendo a mais complexa, a menos geral e a mais recente das ciências recobertas pela classificação comtiana, ocupa a última posição do conjunto. Consoante propunha Comte, a sociologia não só deve estudar cientificamente os fenômenos sociais, mas também deve estabelecer uma base racional e científica que torne possível uma reforma intelectual e moral da sociedade. Para tanto, o espírito positivo deve penetrar a organização das estruturas sociais e políticas. A sociologia constitui o ponto de partida da moral, da política e da religião.
Vale notar que é com a ordem e o progresso que Comte procurou superar as duas principais correntes de seu tempo: a conservadora, à luz da qual os problemas existentes na sociedade emanavam da destruição da ordem anterior – a ordem medieval; e a iluminista, que congregava correntes que alardeavam a necessidade de progresso e para as quais os problemas sociais advinham do fato de que a ordem anterior não havia sido completamente destruída. Essas correntes advogavam, por isso, a continuidade da revolução.
Comte, ao contrário, afirmava que a história da sociedade se desenvolve em direção ao progresso; essa história supõe a evolução humana e o aperfeiçoamento das estruturas sociais (modos de organização político-econômicos). Mas o progresso não poderia prescindir da ordem. Assim, Comte mantinha que ‘sem ordem não há progresso’. O progresso não é senão o desenvolvimento da própria ordem. Há, pois, uma complementaridade entre ordem e progresso.
A fim de restaurar a unidade social, Comte propôs uma síntese entre ordem e progresso. A sociologia foi dividida em dois domínios de estudo: a estática social e a dinâmica social. O primeiro domínio se encarrega do estudo da harmonia prevalecente entre as diversas condições da existência, visando ao estabelecimento da ordem social. O segundo compreende a investigação do desenvolvimento ordenado da sociedade, visando a estabelecer as leis do progresso.



1.4. O método de Comte

Augusto Comte servia-se do método histórico-genético-indutivo, que se definia pela observação dos fatos, pela descoberta, por indução, das leis que governavam a coexistência e sucessão deles, e pela dedução, a partir dessas leis, de novos fatos que escaparam à observação, mas foram atestados pela experiência. Essa dedução apoiava-se nas relações de consequência e correlação entre os fatos.
O que se chamava método objetivo era o método geral do raciocínio, que se compunha da combinação de todos os métodos particulares então conhecidos, a saber, dedução, indução, observação, experiência, nomenclatura, comparação, analogia, filiação histórica (Ribeiro, 2003, p. 18).



2. O pensamento liberal e o positivismo

O século XIX foi marcado não só pela vitória do liberalismo europeu, que se prendia ao direito natural, para o qual a natureza humana é a base da própria lei natural, cuja única realidade é a liberdade do homem, mas também pelo reconhecimento de que só existe uma só natureza material (cientificismo), que compreende o mundo dos valores e o mundo dos fatos.
O liberalismo afirmava que o desenvolvimento moral, cultural, econômico e político da sociedade só seria alcançado pelo livre desenvolvimento do espírito e das faculdades do indivíduo. O respeito à liberdade e à igualdade inata dos indivíduos constituía um corolário dessa forma de liberalismo. Destarte, assumia-se como pressuposto o valor da personalidade que tinha primazia sobre todas as condições históricas, políticas, sociais e culturais. O liberalismo, enquanto sistema de pensamento, assentava-se na crença de que a personalidade individual era soberana e ilimitada; ela precedia ao Estado. Seu credo revolucionário não fazia transigência quando um direito fundamental era transgredido.
A forma original do liberalismo precisou, no entanto, alterar-se, a fim de adaptar-se às exigências tanto do empirismo, à luz do qual todo conhecimento deriva dos dados da experiência sensível, quanto do materialismo, para o qual a matéria e suas leis constituem a totalidade do existente e a base para a explicação de tudo. Na tentativa de conciliação entres esses dois domínios do saber humano, a estrutura apriorística do racionalismo liberal fora seriamente reduzida.
À medida que a ciência e o pensamento político-social tendiam, cada vez mais, a acolher os postulados empiristas, a autoridade do racionalismo, ao qual subjazia a primazia da razão, da capacidade de pensar, se enfraquecia. Os partidários do cientificismo irrompiam na cena cultural contestando o racionalismo abstrato sustentado pelos adeptos do liberalismo. Aqueles nutriam grande confiança no progresso contínuo e propunham que os fatos só poderiam dar-se a conhecer pela experiência sensível, a única forma de experiência válida.
Doravante, os domínios da natureza e da história encontravam-se reconciliados, e coube ao romantismo filosófico a tarefa de buscar certo equilíbrio em face da ciência. Esse equilíbrio expressou-se na tentativa de regular os estados espirituais à época, segundo uma severidade crítica – condição esta para que se estabelecesse um sistema de noções sobre o homem e as sociedades. Em última instância, tratava-se de restabelecer os fundamentos do empirismo à moda de Bacon e Galileu, cingindo o ceticismo desses modelos às realidades metafísicas e teológicas.
É nessas condições sócio-históricas marcadas por uma incontestável confiança na experiência sensível como base para a produção do conhecimento científico que o positivismo passa a dominar o pensamento comum do século XIX. Tomado como método, o positivismo assentava na certeza do rigor dos fatos da experiência, que eram considerados o fundamento da construção teórica. Enquanto doutrina, o positivismo supunha-se a própria revelação da ordem natural geral, a que se ligavam fatos particulares; era a ciência por excelência, à qual competia dar a conhecer essa ordem, que é a própria dimensão universal da realidade, o significado geral da mecânica e dinâmica do universo.
Impõe-se-nos esclarecer, a essa altura, que os positivistas não estavam interessados em determinar as causas últimas dos fenômenos, tampouco de revelar-lhes a essência. Seu empreendimento pautava-se por um único imperativo: determinar as leis, a saber, os princípios constantes entre os fenômenos. Ao método a priori substituía-se o método a posteriori. Necessário era observar o mecanismo do mundo.
Sem perder de vista o propósito basilar a que visa este trabalho, qual seja, o de identificar as marcas da influência do pensamento positivista no pensamento de Durkheim, cumpre pontuar que, para os positivistas, as leis naturais, então descobertas, constituíam a formulação geral de um fato particular, cuidadosamente observado. Disso se segue que, para Comte, a ciência, não sendo mais do que uma forma sistematizada de bom senso, fixa-nos o lugar de meros espectadores dos fenômenos exteriores, que são, portanto, independentes de nós, de modo que não nos restaria senão submetermo-nos às leis que os regem.
Em oposição aos postulados do direito natural e do pacto social, bem como das doutrinas teológicas, Comte preconizou a adoção de novos métodos na investigação científica dos problemas sociais. Importa-nos notar que seu método de investigação, com o qual procurou determinar os fatos e as relações entre eles, foi tomado aos filósofos ingleses Bacon e Hume (entre outros). Como, em última instância, sua preocupação consistia em reformar a sociedade, Comte preconizou que era necessário, em primeiro lugar, desvendar as leis que regem os fatos sociais não sem se prevenir de afastar as concepções abstratas e as especulações metafísicas, que não atingiam, segundo ele, conhecimento algum.
Antes de levar a cabo esta seção, parece-nos oportuno retomar o conceito de positivismo, com vistas a precisá-lo e a trazer à cena a importância que a noção de fatos desempenhava na filosofia comtiana.
Em termos gerais, pode-se definir o positivismo como uma doutrina filosófica, que sustenta, de um lado, um experimentalismo sistemático (visa a determinar as leis que governam os fenômenos e as relações entre eles com base na experiência sensível); e que, de outro lado, considera anticientífico o estudo que busque conhecer as causas finais. É pela observação e pela experiência que o positivista se dedica a descobrir as relações permanentes (leis) que existem entre os fatos, sempre tendo em vista a reforma econômica, política e social.
O positivismo admite que o espírito humano é capaz de conhecer verdades positivas, ou seja, que se situam na ordem experimental, mas lança por terra a pretensão de resolver as questões metafísicas, as quais não contam com o apoio da observação e da experiência.
Segundo Comte, no terceiro estado do desenvolvimento do espírito humano – o positivo ou científico -, dá-se a descoberta das leis efetivas, mediante o raciocínio sistemático e a observação acurada. A explicação dos fatos se reduz à relação entre os fenômenos particulares e algumas leis gerais. Quanto maior o progresso da ciência, menor é o número das leis[5]. Comte acreditava que a nova ordem social seria mantida pela ciência.
Finalmente, cumpre notar que o termo filosofia era empregado por Comte no sentido que lhe atribuía, especialmente, Aristóteles, recobrindo, assim, o sistema geral do conhecimento humano.



2.1. Uma nota sobre a atmosfera epistêmica do século XIX

No século XIX, prevalecia a tendência de separar o estudo dos fenômenos físicos dos fenômenos morais e espirituais. O século XIX se caracterizou, nesse tocante, pela rejeição a recuperar os antigos mitos do século XVIII. Para o que nos interessa, urge sublinhar a robustez e influência exercida pela ideologia denominada de cientificismo àquela altura. O cientificismo é a doutrina segundo a qual a única forma de conhecimento possível é a que nos fornece uma ciência baseada no modelo físico-matemático. Ademais, essa doutrina reza que todo fenômeno deve-se reduzir a uma explicação calcada sobre o domínio do físico. O cientificismo reduz todo fenômeno, portanto, a um único domínio de explicação.
Visto que se funda em visões reducionistas e materialistas, o pensamento cientificista exclui de seu escopo questões como vida, consciência, subjetividade e liberdade. Tende a declarar a redutibilidade desses domínios a processos materiais. Na contemporaneidade, a ideologia cientificista toma forma nas estruturas de pensamento que consideram a ciência a mais elevada forma de conhecimento alcançada pelo homem. As mentalidades estruturadas por uma visão cientificista do mundo veem a ciência como signo de liberdade do espírito, como um modo de ver as coisas depurado de qualquer preconceito e de todo dogmatismo. O cientificismo contemporâneo limita a questão social a uma abordagem técnica e pragmática (Japiassu, 2011,p. 14).




3. Uma visão crítica sobre o fazer ciência
3.1. A visão pragmaticista de ciência

Remontando aos filósofos americanos W. James (1842-1910), C.S. Peirce (1839-1914) e J. Dewey (1859-1952), a concepção pragmaticista de ciência mantém que o método científico não demanda regras rígidas, que não há um modelo metodológico único e que o método varia segundo o objeto de estudo e a abordagem adotada.
Para atender aos nossos propósitos, convém notar que, à luz dessa concepção de ciência, cuja exposição aqui se justifica pela necessidade de demarcar, por contraste, as influências do modelo positivista no desenvolvimento do pensamento de Durkheim, a verdade não é um dado para ser descoberto, não está pronta na realidade, mas resulta de um modo de apresentar as razões e as justificações que ligam o já conhecido ao conhecimento então produzido. A verdade é, pois, passível de revisão e reavaliação permanentes.
Interessa-nos, para efeito de argumentação, referir e sublinhar o que se segue:

O conhecimento é um campo de forças sujeito à revisão permanente, onde cabe argumentar e sustentar afirmações não pelo puro e simples acordo com os fatos, mas porque não há argumentos contrários suficientes para derrubá-las. Nossos esquemas conceptuais variam; por trás de cada descrição ou explicação há sempre uma teoria (Araújo, 2003, p. 208, grifos nossos).

Tendo em vista o cotejo com a visão positivista de ciência, pode-se depreender do excerto acima que a visão pragmaticista convida-nos a questionar o estatuto dos fatos e de sua relação com as proposições científicas. Ademais, patenteia-nos que, ao contrário do que quer-nos fazer crer o positivismo, toda explicação que se apresente calcada sobre a observação ‘pura’ de pressupostos teóricos constitui uma ficção científica. Essa precedência da teoria à observação pode ser reformulada com uma proposição bem assentada na epistemologia moderna: não há observação desprovida de pressupostos teóricos, os quais a iluminam e a orientam.
O que pretendemos é chamar a atenção para a dependência da observação em relação à teoria – dependência que a ideologia positivista parece mascarar. Aquilo que é apreendido por um observador é afetado pelas suas expectativas, pelas suas crenças, pelas suas experiências prévias, pelos seus preconceitos. Essa visão epistemológica entra em claro conflito com a explicação indutivista de ciência, segundo a qual as leis e as teorias que constituem a ciência encontram base em proposições de observações publicamente atestáveis, e não em experiências subjetivas de observadores individuais. As proposições de observação não são publicamente ou diretamente acessíveis a um observador, porque, formuladas numa linguagem pública, envolvem teorias cujos graus de generalidade e sofisticação variam (Chalmers, 2007, p. 53). Se as proposições de observação formam, consoante sustentam os indutivistas, a base segura da ciência, segue-se que “algum tipo de teoria deve preceder todas as proposições de observação” (ib.id.). Elas podem ser tão falíveis quanto as teorias que pressupõem.
Segundo Chalmers, proposições de observação devem ser elaboradas nos termos de alguma teoria. Proposições de observação são sempre elaboradas na linguagem de uma teoria e sua precisão depende do grau de precisão da estrutura teórica de que se servem. Teorias precisas são um pré-requisito para proposições de observação precisas.




3.2. A distinção entre objeto observacional e objeto teórico

Todas as ciências constituídas operam recortes no mundo das aparências, que constitui o mundo da diversidade. Elas delimitam o campo da diversidade observacional, de acordo com os objetivos perseguidos, com o tipo de entidades e as explicações que lhes parecem adequadas (Borges, 2004, p. 34).
Desse trabalho de esquadrinhamento da diversidade sensível do real resultam duas espécies de objeto: o objeto observacional, que é geral e comum a diferentes teorias; e o objeto teórico, que tem caráter descritivo-explicativo e que difere entre as diversas teorias científicas. Cada teoria se ocupa, portanto, de um objeto que lhe é próprio. Cada teoria, consoante observa Neto, delimita uma certa “região” da realidade que se transforma em seu objeto de estudo. Decerto, essa “setorização” da realidade nem sempre é precisa, o que explica as disputas entre as disciplinas científicas pelas áreas de investigação. Em todo caso, importa-nos fazer ver que o objeto observacional de uma teoria científica é a “região” sobre a qual ela faz recair seu foco de atenção. Esse objeto é o conjunto de fenômenos observáveis.
Uma vez delimitado o objeto observacional, a teoria identificará as entidades básicas, com base nas quais vai atribuir propriedades aos fenômenos que constituem seu campo e vai estabelecer relações entre eles, de modo que o objeto observacional se transformará em objeto teórico.
O objeto teórico é, portanto, uma construção dependente das escolhas das entidades básicas do objeto geral do estudo e do nível de adequação pretendido. Todo objeto teórico é, por natureza, limitado, dadas as condições que tornam possível a sua construção. O objeto teórico guia o olhar do cientista sobre a diversidade do observacional, permitindo-lhe um alcance preestabelecido. Assim, o cientista só verá aquilo que o objeto teórico lhe permitir ver. Atente-se para as palavras de Neto a seguir:

Teorias diferentes podem construir objetos teóricos diferentes sobre um objeto observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer entidades básicas, predicados e relações diferentes no objeto observacional (Neto, 2004, p. 37).


À noção de objeto teórico prende-se o reconhecimento de que as teorias fabricam a realidade que lhes é própria. Esse mundo fabricado pela teoria não se confunde com o mundo tal como o observamos. O mundo teórico inclui não só os fenômenos (fatos observáveis), mas também as entidades teóricas.  Assim, por exemplo, na Linguística, a fonologia estruturalista delimita um objeto teórico, no interior do qual sons coexistem com fonemas. Os sons são “coisas”: são observáveis, existem no tempo e no espaço; podem ser percebidos por nossos sentidos, etc. Os fonemas, ao contrário, são constructos teóricos, desprovidos de realidade física; por isso, não existem no mundo da experiência sensível, tão-só no mundo teórico. Pode-se outrossim ilustrar a distinção entre objeto observacional e objeto teórico contrastando dois paradigmas da Linguística moderna: o formalismo, que recobre o estruturalismo, por exemplo, de Leonard Bloomfield, e o gerativismo de Noam Chomsky, de um lado; e o funcionalismo de Halliday, de outro. Tanto os formalistas quanto os funcionalistas compartilham, grosso modo, um objeto observacional: a língua; mas seus objetos teóricos diferem radicalmente. Os formalistas descrevem a língua fazendo abstração do uso e dos fatores sócio-culturais envolvidos nas práticas linguísticas; preocupam-se exclusivamente com a forma dos enunciados. Os funcionalistas, ao contrário, fundam suas teorias no uso da linguagem e dão primazia às funções a que serve o uso da língua. Mesmo entre os objetos teóricos do gerativismo de Chomsky e do estruturalismo de base behaviorista de Bloomfield há diferença. O objeto teórico do gerativismo é a competência linguística dos falantes nativos; os estruturalistas preocupam-se com a realização formal dos enunciados, independentemente de fatores psicológicos ou sociais. Seguindo a tradição fundada por Ferdinand de Saussure (1916), os estruturalistas se ocupam da langue em si e por si mesma, adotando sobre ela um ponto de vista externo, já que não estão interessados nos parâmetros ou regras de uma gramática internalizada pelos falantes nativos, base da aquisição de uma competência linguística, mas apenas em descrever a estrutura de enunciados descontextualizados.[6]
Antes de levar a cabo esta seção, necessário parece-nos fazer alguma consideração sobre o conceito de teoria, visto que vimos insistindo em que a toda observação por que se orienta a atividade científica subjaz uma teoria. Não estamos preocupados em adotar uma das muitas definições de teoria científica propostas. Tampouco nos interessa discutir o conceito de teoria, mas tão-somente precisar o que entendemos por teoria quando consideramos sua relação inevitável com a prática de observação.
Entre os antigos gregos, à teoria (theoria) associava-se a ideia de “eu vejo”. To theion significa “eu vejo (orao) o divino (theion)”. A primeira tarefa da filosofia consistia em ver  ou contemplar o essencial do mundo, o que nele é mais real (Ferry, 2010, p. 40). Para os antigos, a teoria era uma prática ou um exercício que permitia a contemplação da ordem justa e boa do cosmo (o divino).
Conquanto tenha uma longa história a separação entre teoria e prática, observa Deleuze que essa separação decorre de uma má compreensão do papel do pensamento. Segundo ele, toda teoria real é uma prática, já que expressa uma atividade do espírito que é orientada para compreender as coisas.
Quando assumimos que toda prática de observação levada a efeito pelo cientista está impregnada de pressupostos teóricos, queremos dizer que ele se compromete, mesmo que nem sempre consciente disto, com um dado conjunto de hipóteses, crenças, proposições, noções, conceitos que lhe vão orientar essa prática.




4. Émile Durkheim e sua ciência do fato social

O sociólogo e filósofo francês Émile Durkheim é considerado o fundador da sociologia científica. A ele deve-se a elaboração de uma ciência do fato social, caracterizada por uma preocupação ética. Durkheim buscou caracterizar o fato social como fenômeno coletivo, dando especial valor à interpretação histórica.
Nesta seção, vamo-nos debruçar sobre o exame das bases do método sociológico durkheimiano, para cuja tarefa nos ateremos ao conceito de fato social, ao primado da objetividade que seu texto, nos capítulos que serviram de base para nossa análise, deixa entrever, e a relação entre o seu racionalismo científico e o legado positivista.
Antes, porém, de atacar a questão dos fatos sociais, a fim de mostrar em que medida este conceito é devedor de pressupostos de base positivista, devemos ponderar que Durkheim estava ciente do caráter provisório das proposições científicas, como se atesta no seguinte passo:(...) não resta dúvida de que nossas fórmulas estão destinadas a ser reformuladas no futuro” (Durkheim, 2007, p. XVI). O reconhecimento de Durkheim do caráter provisório das proposições científicas era extensivo ao método, conforme se lê em: “Em matéria de método, aliás, jamais se pode fazer senão o provisório, pois os métodos mudam à medida que a ciência muda” (ib.id.). Com essas referências, reconhecemos que Durkheim se distancia de qualquer pretensão positivista a considerar as proposições científicas como expressões que revelam uma verdade não suscetível de crítica e revisão, bem como de qualquer pretensão positivista a consagrar um único método científico por excelência, que seria imune à mudança.
Não obstante reconhecer que o próprio Comte viu os fenômenos sociais como coisas, Durkheim o critica por ele ter tomado para objeto de sua sociologia não os fenômenos sociais como tais, mas a ideia de progresso da humanidade no tempo (p. 20). Por conseguinte, não pretendemos sustentar que Durkheim tenha seguido o projeto comtiano de ciência ou, particularmente, de ciência sociológica. Nosso intento não é – insistimos - compreender Durkheim ou propor uma leitura de Durkheim na base de uma hermenêutica positivista; mas pontuar traços de uma visão científica positivista em seu pensamento.
A questão com base na qual se orientarão as reflexões que, doravante, desenvolveremos sobre o conceito de fatos sociais é a seguinte: os fatos sociais são fatos dados à observação empírica ou construídos pelo cientista com base em alguma teoria implícita de que já dispõe? Em outras palavras, estamos preocupados em determinar se a noção de fatos sociais, em Durkheim, descreve fenômenos que se impõem à observação do sociólogo como dados do domínio objetivo, que se prestam à descrição e à classificação ou se esses fatos têm em sua base alguma teoria (tal como a definimos anteriormente), sem a qual eles mesmos não teriam a qualidade de científicos.
Com vistas a responder a essa questão, cuidaremos de expor a concepção durkheimiana de fato social. Será indispensável verificar qual das alternativas implicadas na questão o modo como Durkheim define o fato social endossa. Durkheim oferece-nos, em vários momentos, a definição de fatos sociais. A que se segue foi colhida da página 3 de sua obra As regras do método sociológico (2007):

[os fatos sociais] consistem em maneiras de pensar, de agir e de sentir, exteriores ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses fatos se impõem a ele.



Durkheim preocupou-se em esclarecer sua concepção de fatos sociais, visto que, como ele mesmo reconheceu, ela acarretou confusão em seus leitores. Intentando ser fiel ao esclarecimento do próprio autor, vamo-nos deter a apresentar o modo como ele o trouxe a lume.
Durkheim começa precisando o significado de “coisa”, pois que da má compreensão desse significado decorreu, segundo ele, a referida confusão. Classificar como coisas os fatos sociais é dizer que esses fatos são dotados de um grau de realidade equivalente ao grau de realidade que comportam as coisas naturais. Não se trata de dizer, previne o próprio Durkheim, que os fatos sociais são coisas materiais; trata-se de concebê-los[7] como um objeto que se impõe ao espírito, que exige do espírito que saia de si mesmo, para compreendê-lo mediante a observação e a experimentação, numa atividade que envolve a apreensão progressiva de características mais visíveis ou exteriores, cujo fim é atingir níveis menos visíveis e mais profundos.
Ainda que não nos seja possível descer a pormenores sobre as implicações dessa concepção de fatos sociais como coisas, notamos que ela funda uma abordagem do objeto da sociologia: estabelece um modo de ver o tecido social. Destarte, os fatos sociais de que se compõe o tecido social não são acessíveis pela introspecção, e sua abordagem se orienta pelo princípio de que se ignora o que eles são. Ainda que os fatos sociais sejam produto da atividade humana, nós ignoramos sua gênese.
Segundo Durkheim, “todo objeto de ciência é uma coisa” (p. XVIII), pois que exterior a nós, é por nós ignorado. Mas os fatos são, no momento em que se prestam a uma investigação científica, coisas ignoradas, dado que nossas representações deles carecem de um método e se elaboram sem crítica, por isso, são destituídos de valor científico. Um domínio importante no conceito de fatos sociais, para Durkheim, é o da exterioridade às consciências individuais. Assim, os fatos sociais são considerados como coisas, porque são exteriores às consciências individuais; mas também o são, porque exercem sobre os indivíduos um poder coercitivo. Poder coercitivo e exterioridade são, portanto, dois aspectos fundamentais do conceito de fatos sociais. Esses dois aspectos dotam os fatos sociais de uma realidade objetiva (p.XXX). Durkheim os vê como uma realidade sui generis, que não se confundem com os fenômenos psíquicos e individuais.
A objetividade dos fatos sociais, que se expressa na forma de uma independência relativamente às formas individuais que eles assumem, constitui um registro da influência da doutrina positivista no desenvolvimento do pensamento de Durkheim. Como um cientista do seu tempo e, intentando lançar os fundamentos de uma ciência sociológica, Durkheim assume um domínio objetivo da realidade, que delimita relativamente ao domínio das manifestações ou fenômenos subjetivos. É no domínio objetivo que Durkheim situa os fatos sociais.
A influência positivista toma forma também na oposição, de resto evidente, entre as categorias da coletividade e do individual. Durkheim – vale lembrar – opõe maneiras de ser coletivas, que se impõem ao indivíduo, que são elas mesmas fatos sociais, portanto, passíveis de descrição e explicação científicas, às formas individuais que essas manifestações assumem.
A tentativa de sustentar serem os fatos sociais distintos de suas representações individuais, a assunção de que eles podem ser estudados “num estado de pureza” (p.8), bem como a proeminência que o todo tem sobre as partes constitutivas no curso da investigação parecem-nos também indicativas de traços da influência da filosofia positivista no empreendimento sociológico de Durkheim.
Cremos não estar distante Durkheim de uma perspectiva positivista quando nega ao sentimento a qualidade de critério para a verdade científica. Sua adesão a um racionalismo estrito, que chega a evocar “as luzes racionais”, não parece suficientemente determinante para imunizá-lo de uma influência positivista, caso possamos interpretar sua sobreestima da razão em contrate com a desvalorização dos sentimentos. Veja-se, a esse propósito, o seguinte excerto, em que Durkheim pretende suprimir do âmbito da ciência qualquer influência dos sentimentos:

Longe de nos proporcionarem luzes superiores às luzes racionais, eles [os sentimentos] são feitos exclusivamente de estados fortes, é verdade, mas confusos. Atribuir-lhes tal preponderância é conceder às faculdades inferiores da inteligência a supremacia sobre as mais elevadas, é condenar-se a uma logomaquia mais ou menos oratória. Uma ciência feita assim pode satisfazer os espíritos que gostam de pensar com sua sensibilidade e não com seu entendimento, que preferem as sínteses imediatas e confusas da sensação às análises pacientes e luminosas da razão (pp. 34-35).[8]


Durkheim, alinhando-se com a prática científica de seu tempo, herdeira do fazer científico dos séculos XVII e XVIII, crê que são os fatos que determinam um modo de interpretá-los, de classificá-los. Nesse sentido, a natureza das coisas, não o pesquisador, é que “diz” como deve ser estudada. Depois de Durkheim, se consumiu muita tinta, a fim de demonstrar que a realidade não diz nada sobre como “quer” ser analisada, que é inevitável que a observação esteja impregnada de pressupostos teóricos, que é o observador, com seu conjunto de experiências prévias, de crenças, de valores que impõe certo “recorte” sobre essa realidade.
Reunindo as propriedades do fato social, as quais dispomos abaixo, forçoso será notar que a noção de fato social estabelece o domínio da objetividade “pura” como o domínio do fazer científico por excelência. Ademais, ela mascara os próprios pressupostos teóricos que lhe são subjacentes e sem os quais a sua pretensa objetividade não teria valor para o método científico:

1)      É uma maneira de fazer fixada ou não;
2)     É uma maneira de fazer suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior;
3)     É toda maneira de fazer que é geral na totalidade de uma dada sociedade e cuja existência independe de suas manifestações individuais.

A fim de que se delimite ou se determine um dado acontecimento como fato social, necessário é que certas crenças estejam já orientando a observação. Por exemplo, é preciso que haja uma crença sobre a existência de uma realidade objetiva que não é, de modo algum, afetada por crenças, disposições, interpretações subjetivas; que haja a crença de que a totalidade social se impõe aos indivíduos, fixando padrões de comportamento, ditando-lhes normas, mobilizando certos dispositivos coercitivos. Crenças como estas não são “descobertas” pela observação, não derivam da observação de fatos previamente dados. É de esperar que, sendo o sociólogo também um homem de sociedade (essa tautologia é proposital), dispõe ele também de certas crenças, de certas expectativas sobre o modo como funciona estruturalmente uma sociedade. Essas crenças e expectativas já estão disponíveis e vão influenciar a observação. A observação, sempre acompanhada de raciocínios e interpretações, virá a corroborar ou a invalidar as hipóteses e as crenças que o cientista já dispunha. Uma vez corroboradas, as hipóteses ou crenças serão reformuladas num sistema de princípios precisos, consistentes e  representativos/construtivos da realidade observada.



4.1. O racionalismo científico de Durkheim e sua relação com o positivismo

Considere-se a seguinte passagem em que Durkheim nos apresenta a pretensão de seu racionalismo científico e deixa entrever o que chama de “seu positivismo”.

Nosso principal objetivo, com efeito, é estender à conduta humana o racionalismo científico, mostrando que, considerada no passado, ela é redutível a relações de causa e efeito que uma operação não menos racional pode transformar a seguir em regras de ação para o futuro. O que chamamos nosso positivismo não é senão uma consequência desse racionalismo (p. XIV).


Notemos, de início, que o racionalismo científico de Durkheim se volta para a vida prática. Pretende ser um instrumento de intervenção na ordem social. Seu racionalismo científico é extensivo aos modos de comportamento humano. Durkheim, assim, visa a estabelecer um método científico que sirva para transformar a prática, que intervenha nos fenômenos sociais, ajustando-os quando se manifestam sob formas patológicas.
Essa intervenção supõe o trabalho científico de distinção entre fenômenos normais, aqueles que são o que devem ser e que se apresentam em formas gerais na sociedade ou grupo social, e fenômenos patológicos, que não são gerais e revelam um excesso nas maneiras como se manifestam. Essa propensão a assumir que o saber científico possa estar a serviço de uma transformação das condições sociais ou, mais particularmente, que a ciência sociológica seja também uma das forças transformadoras da sociedade afina-se com a atitude positivista[9]. O passo, a seguir, ilustra de que modo, para Durkheim, o conhecimento sociológico deve estar a serviço da prática.

Para que a sociologia trate os fatos sociais como coisas, é preciso que o sociólogo sinta a necessidade de aprender com eles. Ora, como o objeto principal de toda ciência da vida, tanto individual como social, é, em suma, definir o estado normal, explicá-lo e distingui-lo de seu contrário, se a normalidade não acontecer nas coisas mesmas, se, ao contrário, ela for um caráter que imprimimos desde fora nestas ou que lhes recusamos por razões quaisquer, acaba-se essa salutar dependência (p. 75).


É interessante ver o modo como Durkheim articula uma perspectiva teórica a uma perspectiva da prática: a teoria está a serviço da prática. A objetividade dos fatos sociais, o seu caráter de “coisas” é dependente da necessidade de o sociólogo aprender com eles; e esse aprendizado é indispensável à sua intervenção, sempre que as condições se lhe apresentarem como ‘anormais’. A normalidade dos fatos, tal como Durkheim a pensa, é testemunho de sua pretensão a estabelecer a objetividade como o domínio da ciência sociológica, tendência que é comum aos cientistas que o precederam: toda ciência, para ser considerada como tal, deve ser forma de conhecimento objetivo da realidade. O sociólogo não intervém para determinar o que é normal ou anormal, já que ‘normal’ e ‘anormal’ são qualidades inerentes aos fatos mesmos, de modo que, preocupado com o caráter objetivo de sua investigação, o sociólogo deve esforçar-se por identificar essas qualidades e descrevê-las. Mas não deve ele limitar-se a isso, já que, em última instância, “convém não esquecer, com efeito, que, se há interesse em distinguir o normal do anormal, é sobretudo com vistas a esclarecer a prática” (p. 62).
Do que se expôs a respeito do racionalismo científico de Durkheim, parece lícito concluir que esse racionalismo assenta nos pressupostos de que há uma realidade objetiva que se dá à observação; de que a razão não pode lograr conhecimento verdadeiro do real sem estar ancorada na experiência, da qual se devem excluir as influências de emoções e sentimentos; de que o conhecimento obtido na investigação da conduta humana, considerada como domínio estruturado por relações de causa e efeito, deve estar a serviço de ações intervenientes na sociedade. Cuidamos que essas características do racionalismo científico durkheimiano são herança do modo positivista de conceber e fazer ciência. Também Durkheim, a despeito de seu claro racionalismo, não fazia concessão a um racionalismo do tipo abstrato – fato, assim nos parece, que também contribui para que seu pensamento se alinhe com o positivismo característico de seu tempo.



4.2. A primazia da objetividade

É lugar-comum dizer que a objetividade do trabalho científico depende de que o observador tome como ponto de partida a sensação e não os conceitos abstraídos dela. Nesse tocante, Durkheim afina-se com um empirismo estrito – a matéria-prima de todos os conceitos é a sensação. Mas não tardará em esposar uma visão que valoriza sobremaneira a objetividade, para a qual o próprio princípio básico do empirismo constituirá uma ameaça. Durkheim adverte que “a sensação é facilmente subjetiva” (p. 44), o que o leva a recomendar, sempre tendo como modelo de referência o modo de proceder nas ciências naturais, o afastamento dos dados sensíveis que venham a perturbar a atividade de observação, por serem demasiado subjetivos. Da eliminação dos dados subjetivos da sensação, depende, segundo Durkheim, o conservar aqueles que possibilitem atingir um grau de objetividade suficiente. O autor pretende, a serviço da preservação da objetividade, livrar a atividade científica de todo e qualquer juízo de valor.
Escusa dizer que a objetividade pretendida para a ciência sociológica segue os moldes da objetividade em que se fundam as ciências da natureza. É ilustrativo dessa tendência o uso frequente que Durkheim faz do vocabulário do domínio discursivo das ciências biológicas, do qual são exemplos os termos “espécie”, “evolução”, “adaptação”, “saúde”, “doença”, “patológico”, etc.
Essa pretensão de Durkheim de fundar o método sociológico nos moldes do método das ciências naturais, o qual supõe uma separação estrita entre o observador e a realidade observada, cujas leis ele supõe poder desvelar, parece corroborar a visão, aqui sustentada, segundo a qual Durkheim é um herdeiro do positivismo.



5. Conclusão

Este trabalho não deve ser lido como a expressão de uma tentativa de classificar Durkheim de positivista. A despeito de nos parecer claras as marcas da ideologia positivista no desenvolvimento do pensamento durkheimiano, cuidamo-nos de não afirmar, em momento algum, que Durkheim é positivista[10], sob pena de, se assim o fizéssemos, reduzir a complexidade e valor de seu pensamento a um único sistema filosófico. Ademais, não cremos que tenha alguma vantagem uma investigação sobre o pensamento de Durkheim que, ao cabo, endossasse a conclusão de que ele deve merecer algum rótulo filosófico e ideologicamente consagrado pela história do pensamento. Nosso objetivo basilar foi mostrar que Durkheim foi influenciado, sob vários aspectos, por um modo de pensar positivista e que essa influência se deixa ver através das marcas que se podem encontrar em seu pensamento. Essas marcas serão aqui recapituladas, tendo como eixo o primado da objetividade pretendida para a ciência sociológica.
Durkheim compartilha com o positivismo a confiança no rigor dos fatos da experiência, os quais são tomados como fundamentos para construções teóricas ulteriores. As bases de seu método sociológico supõem a necessidade de observação dos fenômenos. Os fenômenos ou fatos são dotados de uma realidade objetiva que se impõe às consciências individuais (são exteriores a elas e sobre elas exercem um poder coercitivo). Afinado com o pensamento positivista, Durkheim também pensa que os fatos sociais devem ser considerados como coisas tanto quanto o são as coisas materiais. Esses fatos podem ser estudados num estado “puro”, sem que haja qualquer interferência de sentimentos ou pré-noções que perturbem a análise objetiva. Tanto quanto os positivistas, Durkheim acalenta a crença de que os fatos é que devem fixar um modo de interpretação e classificação.
O sentimento não pode ser tomado como critério para estabelecer a verdade científica. A razão deve ancorar-se na observação ou na experiência, deve elaborar sobre uma objetividade que está calcada sobre os cânones em que se baseia a objetividade pretendida pelo método das ciências da natureza. Segue-se daí que um racionalismo do tipo abstrato deve ser rejeitado.
O primado da objetividade também assume a forma de uma dependência da teoria em relação à observação. Nesse tocante, procuramos argumentar, contrariamente ao que nos fazia crer Durkheim, que a própria realidade dos fatos sociais como “coisas” que se impõem à observação, como domínio fundante da objetividade, de que depende o estabelecimento de uma ciência sociológica, era já produto de certa teoria prévia, sem a qual a própria observação e a descrição seriam desprovidas de um ponto de ancoragem. Os pressupostos teóricos, longe de perturbar a observação e estorvar a descrição que se pretende “objetiva”, as orientam e as iluminam.
O próprio projeto de Durkheim, qual seja, o de fundar uma ciência sociológica seria inviável – talvez, sequer lhe ocorresse como um empreendimento a que toda uma obra seria devotada – se ele não se apropriasse de uma tradição cientificista (não sem em face dela tomar uma posição que lhe seria própria) que, remontando a séculos precedentes, marcou tão profundamente a sua época. Parece-nos que qualquer tentativa de ler Durkheim que ignorasse esse fato incorreria no perigo de subestimar seu pensamento e deturpar o valor inaugural de sua obra.


Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Inês L. Filosofia da ciência. In: Introdução à Filosofia. Susana de Castro (org.). Petrópolis: RJ, Vozes, 2003, pp. 194-211.

CHALMERS, A. F. O que é ciência, afinal. São Paulo: Brasiliense, 2007.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FERRY, Luc.  Aprender a viver – Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

JAPIASSU, Hilton. Ciências – questões impertinentes. São Paulo: Ideias e Letras, 2011.
________ MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006.

NETO, José Borges. Ensaios de Filosofia da Linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2004

RIBEIRO, João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 2003.

SCHÓPKE, Regina. Dicionário filosófico – conceitos fundamentais. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

















[1] Os capítulos se intitulam, respectivamente O que é um fato social; Regras relativas à observação dos fatos sociais; Regras relativas à distinção entre normal e patológico.
[2] Veja-se, nesse tocante, a proposta Bacon, segundo a qual a atividade científica deveria prescindir de julgamentos com base nas experiências subjetivas, nos gostos e preconceitos do cientista.
[3] Vejam-se, nesse tocante, Feyreband (1977), Thomas S. Kuhn (2006) e A. F. Chalmers (2007).
[4] Comte descreve um desenvolvimento histórico do espírito humano que compreende três estados: o teológico, o metafísico e o positivo. Nesse último estado, o espírito humano teria atingido o ápice de seu desenvolvimento, produzindo a ciência.
[5] Veja-se, a título de exemplo, a lei da gravitação universal formulada por Isaac Newton, que subsume as três leis da mecânica clássica.
[6] A tradição formalista foi, inclusive, bastante criticada por basear sua descrição em modelos formais de enunciados que não são eles mesmos produtos do uso efetivo da língua. Trata-se de frases, muitas vezes inventadas, para fins de descrição formal.
[7] O itálico pretende sinalizar que já se pode ver a delimitação dos fatos sociais como produto de certa teoria que pretende conferir-lhe uma realidade objetiva.
[8] Não se negue aí a rejeição durkheimiana a uma ingenuidade empirista que tende a ver o conhecimento como derivado das sensações e certa disposição para fixar, à moda kantiana, um ‘lugar’ para a razão no processo de construção do conhecimento.
[9] Isso não é o mesmo que afirmar que Durkheim acalentava a mesma pretensão de reformar moral e intelectualmente a sociedade, à semelhança de Augusto Comte; mas sim que o saber científico e sociológico, particularmente, deveria ter uma utilidade interveniente na prática social.
[10] O uso do verbo “ser”, por nós estudado em nossa tese de doutorado, é um instrumento especializado para categorizar entidades com base na qualidade delas predicada. 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

“O canalha é sempre cordial, um ameno, um amorável e costuma ter uma fluorescente aura de simpatia.” (Nelson Rodrigues)

     
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                        Por que um canalha não pode ser filósofo?


A questão que dá título a esta exposição pressupõe já, formalmente, a incompatibilidade entre os tipos ‘canalha’ e ‘filósofo’. Procuraremos argumentar no sentido da impossibilidade de um canalha ser um filósofo. O percurso argumentativo articulará entre si três momentos: o primeiro dos quais é destinado à definição do tipo que chamamos ‘canalha’; o segundo momento recobre a apresentação de alguns pressupostos gerais atinentes ao modo como a filosofia se define na Antiguidade; no terceiro e último momento, apresentaremos o retrato platônico do filósofo na República. Ao cabo desse percurso, esperamos tornar suficientemente convincente nossa crença de que o canalha não pode ser filósofo.
A questão primeira que se nos impõe em nossa tentativa de negar ser possível a um canalha ser filósofo é a seguinte: quem é o canalha? Consideremo-lo um tipo existencial, à moda nietzscheana, que reúne em si as seguintes principais características: 1) é um fingidor; b) é corruptível; c) é avesso a padrões éticos; d) é escravo de suas paixões; e) é um traidor. A característica a) diz respeito ao fato de o canalha fingir ser quem não é; a característica b) diz respeito ao fato de ele ser propenso à corrupção moral, sempre que o que está em jogo é a fruição de seus próprios prazeres; a característica c), que se prende a b), diz respeito ao fato de o canalha não se comprometer com padrões éticos; a característica d) toca ao fato de o canalha agir sempre movido por suas paixões, buscando satisfazer seus interesses egoístas; finalmente, a característica e) diz respeito ao fato de o canalha faltar ao cumprimento de seus juramentos.
Tendo definido o canalha pela apresentação dessas cinco características, passamos ao segundo momento de nosso percurso. Esse segundo momento, conforme dissemos, recobre a apresentação de pressupostos respeitantes à experiência filosófica na Antiguidade. Começo a apresentação desses pressupostos, citando Hadot (2010, p. 18), que assinala: “A filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver”. Mais adiante, acrescenta: “A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria”. (ib.id.). A concepção de filosofia como ‘modo de viver’ se concilia com outra forma de encarar a filosofia, da qual nos dá testemunho o próprio Hadot. Para ele e para nós, a filosofia é exercício espiritual, que se realiza pelo discurso e pela meditação e que se destina a operar uma modificação e transformação no ‘eu’ de quem a pratica. Cabe, a esta altura, observar que, contrariamente ao que subjaz à posição segundo a qual o comportamento moral de uma pessoa pode ser dissociado de seu discurso filosófico (dissociação esta que está na base da crença na possibilidade de um canalha ser filósofo), a experiência filosófica como “maneira de viver” proíbe-nos de dissociar o discurso filosófico do modo de viver filosófico. Acompanhando Hadot, sustentamos que o discurso filosófico é, ao mesmo tempo, meio e confirmação do modo de viver do qual a filosofia é expressão. Portanto, não cabe opor a filosofia como discurso teórico à sabedoria como modo de vida a que se chega quando o discurso atinge seu acabamento e perfeição.
Uma boa maneira de definir o modo de viver filosófico, que já descortina o terceiro momento de nossa exposição e que se afina com a compreensão socrático-platônica da própria filosofia, encontramo-la em Hadot (p. 102): “Viver de modo filosófico é, principalmente, voltar-se para a vida intelectual e espiritual, realizar uma conversão que põe em jogo “toda a alma”, isto é, toda a vida moral”. Em Platão, a filosofia é experimentar-se, ou ainda, é fazer a experiência de não ser o que se deveria ser. A filosofia, na tradição socrático-platônica, é uma experiência de cuidado de si indissociável do cuidado da cidade e dos outros. Com Sócrates, a filosofia se torna um exercício espiritual que convida o homem a examinar seus valores, sua maneira de agir, “para tomar cuidado consigo mesmo, como também para uma ruptura radical com a vida cotidiana, com os hábitos e as convenções da vida corrente, com o mundo que lhes é familiar” (Hadot, 2010, p. 66).
Uma breve digressão se faz necessária. Toda discussão sobre a incompatibilidade entre um modo de ser ‘canalha’ e um modo de ser filosófico deve estear-se na crítica, feita por Hadot, à representação da filosofia como mero conteúdo conceitual. Essa representação da filosofia como mero conteúdo conceitual tem relação direta com sua redução a uma disciplina acadêmica. Essa redução da filosofia a uma disciplina acadêmica é consequência da separação entre o discurso filosófico e o modo de vida filosófico, que se inicia com a modernidade[1].
Retomando-se o curso de nossa discussão, intentando rejeitar a crença na possibilidade de um canalha poder ser filósofo, insistimos na necessidade de retomar a relação, estabelecida pelos gregos, marcante em Platão, entre sabedoria, conhecimento e virtude. A virtude é indissociável da sabedoria, a qual, não sendo acúmulo de conhecimentos, é “um estado de liberação total das paixões, de lucidez perfeita, de conhecimento de si e do mundo” (Hadot, 2014, p. 57). A sabedoria, no entanto, não é propriedade do filósofo. É importante insistir neste fato: o filósofo não é o sábio; o filósofo é amante da sabedoria, ele deseja a sabedoria e se devota a buscá-la a partir do reconhecimento de que “nada sabe”.
Na tradição socrático-platônica – que é a tradição na qual nos movemos nesta exposição -, a ciência ou o saber jamais são conhecimento puro e abstrato. A virtude é um saber que escolhe o bem e quer o bem; é uma disposição interior na qual pensamento, vontade e desejo se fundem numa unidade. Para Platão, a virtude é ciência, e a própria ciência é virtude. A ciência, tal como pensada e praticada na Academia, destinava-se à formação do homem, a uma lenta e difícil formação de seu caráter. A ciência visava ao desenvolvimento harmonioso da personalidade humana. Em suma, a ciência era um modo de vida destinado a assegurar uma vida boa e, consequentemente, a “salvação” da alma.
Cumpre ainda elucidar a figura do filósofo, tal como dela nos dá testemunho Platão na República. A questão que orienta toda a problemática do Livro VI é a seguinte: quem é filósofo e quem não é filósofo? Em diferentes passagens deste livro, Platão nos fala do filósofo como a) aquele que conhece o que é imutável (484a-d), b) ser virtuoso cuja alma é justa, cordata e moderada (486a-e), c) o que luta pelo ser (490a-e), d) o que se torna divino e ordenado, porque convive com o que é divino e ordenado (500a-e). Também nos diz Platão que o filósofo é aquele capaz de contemplar a essência da Justiça e o Belo em si. Acrescenta que os filósofos são pintores que utilizam o modelo divino. Eles são educadores da alma: cabe a eles criar nos homens a temperança, a justiça e toda a virtude. Platão “pinta”, por assim dizer, o mundo do filósofo. Como é este mundo próprio do filósofo? Acompanhando Platão, somos levados a concluir que o mundo dos filósofos é o mundo das Ideias, dos modelos imutáveis das coisas sensíveis. A vida do filósofo é devotada à compreensão dos Princípios. O filósofo é aquele que se volta para a contemplação do Bem, que é o horizonte a partir do qual o mundo inteligível se ilumina, tornando possível a compreensão dos Princípios.
Uma dimensão importante na constituição da figura do filósofo é a paidéia filosófica. A paidéia é uma conversão da alma que se volta do mundo sensível para o mundo inteligível. A paidéia é uma forma de educar o olhar, de ensinar a ver. É pela paidéia que o filósofo se torna quem ele é: amante da sabedoria, incorruptível e fiel à filosofia. Essa forma de pedagogia filosófica torna os filósofos os únicos capazes de guardar as leis e os costumes da cidade, sem se perderem nas aparências das coisas e das opiniões. Eles são avessos à mentira. São também os mais aptos para governar porquanto dispõem da condição para o bem governar, a saber, o conhecimento da Justiça e do Bem em si.
Sendo necessariamente virtuoso, o filósofo é um homem em cuja alma a parte racional domina as partes apetitiva e irascível. A alma do filósofo é, portanto, uma alma virtuosa porque não cede aos apelos irracionais das paixões. A parte racional de sua alma tem como virtude o conhecimento. O filósofo é, portanto, aquele que vive uma vida justa, o que equivale a dizer que cada parte de sua alma realiza sua própria excelência sob a orientação da parte superior, que é a razão.
Deter-nos-emos um pouco na consideração do sentido da razão como parte superior da alma humana. A razão é responsável por dar a medida. A parte racional da alma – repetimos - cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. Dessa qualidade da parte racional da alma, Platão nos dá testemunho, fazendo Sócrates dizer a Adiamanto:

- Diremos além disso que há pessoas que, quando têm sede, recusam beber?
- Sim, há muitas, que o fazem muitas vezes.
- Então, que se dirá acerca delas? Que na alma delas não está presente o elemento que impele mas sim o que impede de beber, o qual é distinto do que impele e superintende nele?
- É o que parece.
- Porventura o elemento que impede tais atos não provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o que impele e arrasta deriva de estados especiais e mórbidos?
- Acho que sim.
- Não é, portanto, sem razão que consideraremos que são dois elementos, distintos um do outro, chamando àquele pelo qual ela raciocina, o elemento racional da alma, e aquele pelo qual ama, tem fome e sede e esvoaça em volta de outros desejos, o elemento irracional e da concupiscência, companheiro de certas satisfações e desejos.[2]

A parte racional é a parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio divino em nós. A psicologia proposta e descrita por Platão se articula com sua teoria ética. Não podemos perder de vista essa articulação, já que, ao dividir a psykhé em três partes, Platão está interessado em determinar as condições necessárias para que um homem pratique o bem e seja virtuoso. Se dominado pelas partes apetitiva e irascível, esse homem não pode tornar-se virtuoso. É preciso, para tanto, que a parte superior e melhor da alma comande as demais partes. A própria possibilidade de haver justiça, discutida no livro IV de A República, supõe o comando do superior e melhor sobre o que é inferior e pior. Em outras palavras, para haver justiça, a parte racional da alma, que é a parte superior e melhor, deve governar as partes inferiores, a apetitiva e irascível. Que não reste dúvida sobre a relação necessária que Platão estabelece entre a vida virtuosa e a parte racional da alma. Esclarecemo-la. Platão sustenta a crença – que deve a seu mestre Sócrates – de que as paixões do desejo e da cólera levam à produção de apetites em nosso corpo, os quais concorrem para toldar a inteligência. O obscurecimento da inteligência por esses apetites que decorrem das paixões do desejo impedem-na de realizar sua atividade própria, que é conhecer. O que resulta daí é a ignorância, que é o próprio vício. Logo, incapaz de exercer a razão, o indivíduo fica impossibilitado de conhecer as virtudes e de tornar-se virtuoso. É assim que a vida virtuosa dependerá unicamente da parte racional da alma.
Se nos perguntarmos sobre qual é a tarefa ética da parte racional da alma, a resposta deve já nos saltar evidente: dominar as outras partes da alma, de modo a harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a concupiscência é o que chamamos temperança (sophrosýne). Sophrosýne é moderação. A temperança é a virtude da alma concupiscente que se deixa dominar pela razão. Uma alma que se dispõe para a temperança resiste aos impulsos e prazeres, modera os apetites e impõe-lhes uma medida racional.
A vida se diz virtuosa, quando cada uma das partes da alma realiza sua própria virtude sob o comando da razão. Por outro lado, a vida viciosa é aquela na qual todas as partes da alma falham na tarefa de realizar a sua excelência ou virtude que lhe é própria. Acresça-se que nos falta dizer qual é a virtude própria da parte irascível da alma. A parte irascível da alma serve de intermediário na ação da razão sobre a parte concupiscente da alma. A razão não atua diretamente sobre a parte concupiscente, já que é preciso que, no comando da concupiscência pela razão, intervenha o sentimento de defesa da vida pelo qual é responsável a parte irascível. A virtude da parte irascível da alma é a coragem (thýmos) ou a prudência (phrónesis). Dominando a parte irascível da alma, a razão possibilita a ela discernir entre o que é bom e o que é prejudicial para a vida do corpo.
Tomemos, agora, a vida viciosa, da qual podemos dizer ser a vida do canalha. Essa vida se caracteriza pela desarmonia entre as partes da alma. Nenhuma das partes da alma consegue realizar a excelência que lhe é própria. Trata-se de uma vida injusta, porque lhe falta o comedimento, a ordem interior. Nela, os apetites dominam a parte racional ou a parte colérica, fazendo-as se enganar e tornando-as conflitantes entre si.
Somente o filósofo é apto para intuir a Ideia de Justiça, sem a qual não é possível a realização de uma cidade justa. Platão estende o governo dos apetites e da cólera pela razão à compreensão do governo da cidade, a qual é concebida como um conjunto hierarquizado de funções cada qual com sua dýnamis e sua areté. Assim, no Livro V, Platão mostra que a justiça é harmonia no Estado e na alma. Como o filósofo é aquele cuja alma é harmoniosa, aquele que é mais apto para atingir o conhecimento verdadeiro, para contemplar a Ideia de Justiça, somente a ele poderia ser conferida a função de governante da cidade justa. Suas propriedades intelectuais e éticas são garantidas pelo exercício da dialética que conduz à intuição da Verdade e do Bem em si.
Concluímos, pois, nosso itinerário descritivo da figura do filósofo, destacando do método dialético, indispensável na formação do filósofo, dois aspectos: o primeiro dos quais consiste no fato de a dialética ser o caminho para descobrir quais Ideias participam de outras e quais não podem participar de outras. A dialética é, assim, um processo ascensional que visa às Essências. Pela dialética, o filósofo é levado a reconhecer que há entre as Ideias um princípio de comunicabilidade e que a maneira como as Essências se comunicam entre si se reflete na maneira como as coisas sensíveis se comunicam. A teoria da participação, coração da doutrina platônica, revela que estamos vinculados às Essências e que o ato de pensar não se separa do ato de nos vincularmos dialeticamente aos deuses. O filósofo, portanto, é aquele que, por ter memória, visa às Essências. O filósofo é, por natureza, virtuoso – repitamos – e, como a virtude, em Platão, é um processo ascensional, o próprio filósofo é aquele ascensionalmente voltado para as realidades divinas. Nada semelhante se dá com o tipo canalha, avesso a qualquer horizonte vinculativo, infiel, movido por interesses egoístas para cuja satisfação ele se lançará irrefletidamente sem o menor escrúpulo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
_____________ Exercícios Espirituais e filosofia antiga. São Paulo: Realizações Editora, 2014.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2009.




[1] Não se segue daí que não haja filósofos modernos que, de algum modo, experienciam a filosofia como modo de viver. Citem-se, por exemplo, Blaise Pascal, Schopenhauer e Nietzsche.
[2] Ib.id.,439d.

domingo, 18 de dezembro de 2016

"Quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência" (Schopenhauer)


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                     Uma lição de Schopenhauer
                   Um comentário sobre o destino humano


Na seção 63 de O mundo como vontade e representação, Schopenhauer dedica-se a discorrer sobre uma forma de justiça a que ele chama JUSTIÇA ETERNA. Essa justiça – assevera Schopenhauer – existe e “está na essência do universo”. Após recapitular brevemente os pontos essenciais de sua doutrina, Schopenhauer delega exclusivamente à Vontade a responsabilidade pela existência do mundo e por sua organização. Assim, o mundo é tal como é porque a Vontade assim o quis. Em seguida, Schopenhauer dirige a seus leitores a seguinte pergunta: “Querem saber o que valem, no sentido moral da palavra, os homens, considerados em geral e no conjunto?” (p. 369). Pede o filósofo que se considere o destino dos homens “em conjunto e em geral”. Eis a seguinte descrição que dá Schopenhauer desse destino:


“Eis esse destino: necessidade, miséria, lamentos, dor, morte. É que a eterna justiça vela: se, considerado na totalidade, eles não valessem tão pouco, o seu destino médio não seria tão horrível. É neste sentido que podemos dizer: o tribunal do universo é o próprio universo. Se fosse possível colocar numa balança, num dos pratos, todos os sofrimentos do mundo, e, no outro todas as faltas do mundo, a agulha da balança ficaria perpendicular,fixamente.” (p. 369-370).


É por temor à incorporação dessa verdade incontestável – “a insignificância humana em face da vontade universal, ou do próprio universo”- que os seres humanos criaram um Deus que é Pai, do qual esperam não só proteção contra as intempéries da vida, mas também – principalmente - elevação ao lugar de máxima importância na (humanamente inventada) hierarquia universal. No seu íntimo, entanto, cada indivíduo sabe que sua vida é, em escala universal, tão insignificante quanto a de um mosquito, que pode, sem muito esforço, adoecê-lo e aniquilá-lo. Pode-se imaginar de quão intenso terror seriam tomados todos os indivíduos que se detivessem a meditar seriamente sobre sua condição existencial. A vida de cada um deles só é possível sob a condição de um autoengano imperturbável. E sempre zelosa de preservá-la, a imensa maioria deles evita a filosofia, já que uma vida filosófica tem um custo o qual eles não estão dispostos a pagar: a redução ao máximo possível das ilusões que tornam suportável viver , acompanhada da consequente hipertrofia da consciência, isto é, do mais alto estágio de seu desenvolvimento, que é a própria Lucidez. É a Lucidez o maior perigo para o homem divorciado da filosofia, porque a Lucidez flerta com a loucura e com a possibilidade de suicídio. E porque a filosofia não é um objeto de estudo, mas uma experiência pessoal, não surpreende que os indivíduos em geral evitem vivê-la intimamente; não oferecendo salvação alguma, a filosofia, “condenando” o homem à Lucidez, não pode fazer – e aqui faço eco a Cioran – senão afiar a faca do conhecimento interior do homem, a fim de que ele possa suportar ou pôr fim à própria vida com alguma dignidade.
            

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Aforismos

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"Ser naturalmente inapto para odiar. É isso uma forma grosseira de desumanização cometida pela natureza. De tudo que a vida me privou, o ter-me privado da aptidão para o ódio foi seu mais poderoso atentado contra mim". (BAR)


"Impulsividade, quer dizer, incapacidade de contar até três. O um é o extremo onde tudo se decide" (BAR)




"Tenho no corpo sensações oceânicas; na alma, inumeráveis precipícios". (BAR)



“Não conseguir odiá-la é a confissão definitiva de meu amor. O sacrifício derradeiro de um amor não realizado. Exercitar o esquecimento: meu grandiloquente tributo nietzschiano ao nunca mais!”. (BAR)

Poema - O excesso de consciência flerta com o desespero

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Corrosão

A vantagem de devotar uma vida ao estudo
É ter o espírito sempre afiado para o dilaceramento
O espírito, tão acostumado à decepção
Pode, assim, satisfazer-se na crítica corrosiva
Que desfia todo o mal que lhe foi causado
Assim, reinstitui-se a justiça que, de resto,
Só evita o enlouquecimento concludente

Há, entanto, um custo muito alto: o excesso de consciência
O excesso de consciência flerta com o desespero
O espírito desesperante se estremece, se agita
Vibra numa cadência fúnebre
Como seja corpo, o espírito precisa resistir ao esgotamento
Privado que foi do poder de sua mais forte expressão!
O gozo interdito precisa encontrar uma solução
Tendo julgado inútil o suicídio,
Resta-lhe o enfrentamento, o embate, de resto
                                                 [uma causa perdida
É que o espírito desesperante – (diga-se filosofante)
Sabe que só a morte é eterna
Que a sexualidade não tem outro sentido senão
vencer o infinito pelo Eros
E tendo se demorado na reflexão das razões,
Conclui (sem certeza)
Que deve adorar a vida pela infinidade de motivos
que não a sustentam

Entanto, adorando a vida, sabe
Assim começou a luta: ou a existência ou eu.
E ambos saímos diminuídos e vencidos

Um pesar que ninguém entendeu: o de ser pessimista
Não é fácil cortar relações com a vida
E ver tudo que mais estima transformado
Em fogos-fátuos do Vazio que o absorve




(BAR)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Poema - Conheço-o bastante para não pactuar com o desejo de sua existência

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A infidelidade à Vontade

Da próxima vez eu prometo
Que nada prometerei
Eu prometo que desconfiarei
De quem me disser
“Que em seu caminho Deus me pôs”
Prometo não trair-me a mim mesmo
Não conciliar-me com a mentira!
Rirei na certeza de que nada significo
Pois Deus é puramente um nome”
Nada significa para mim
Deus e o Nada são como os avessos
De uma moeda antiga

Então, darei as costas
Não sem antes advertir
“Não pronunciarás o nome de Deus em vão”
O nome de Deus cheira mal
Cheira-me à podridão, à hipocrisia!
Deus foi o erro mais grave da humanidade!
A maldição da História!
Deus foi o pior dos crimes!

E querem chamar Deus de amor
E assim aviltam o amor, já tão maltrapilho
“Deus é amor”
Que significa essa proposição?
Que Deus e o amor são uma ilusão

Não me comprometam com Deus
Pois que me ofendem
Não que Deus seja-me ofensivo,
Já que Nada é, não pode sê-lo
É que o conheço bastante
Para não pactuar com o desejo de sua existência

Admiro apenas os cristãos
Que, ao crerem saber a vontade de Deus
São a ela fiéis
Ser fiel à vontade de Deus
É saber que Deus é infalível
Um Deus equivocado merece repúdio!
Devotos equivocados
Na direção da vontade de Deus
São meros encenadores

A modernidade tornou Deus blasè
Outrora Deus frequentava o indizível
O impensável
“Aquilo em relação ao qual não se pode pensar algo maior”
Deus presidia solenidades
Se bem que já era fiador de indulgências
O porteiro dos Céus!

Hoje, Deus já não afiança como outrora
A própria Vontade de Deus altera-se segundo as conveniências,
Deus já não tem mais vontade alguma
A vontade de Deus não é mais necessidade;
O fiel não medita sobre a Vontade de Deus,
Crer chegar a ela a posteriori
“Não foi dessa vez!”
“Não foi a vontade de Deus!”

Que decadência da Vontade!

(BAR)