
A ciência de Durkheim
As marcas positivistas de seu pensamento
Bruno de
Andrade Rodrigues
Resumo
Esta
exposição resultou de um esforço por compreender as bases em que se sustenta o
pensamento de Durkheim, para o que procuramos apontar a influência que sobre
seu pensamento exerceu a doutrina positivista, da qual Augusto Comte foi
fundador e maior expoente. Nossa investigação se pautou pelo pressuposto de que,
embora Durkheim pareça ter-se recusado o rótulo de positivista, seu
racionalismo científico é devedor da herança epistemológica positivista,
inaugurada por Comte. Nosso objetivo não foi, nesse tocante, restituir a
Durkheim aquilo mesmo que ele parece ter rejeitado; mas enfatizar ter sido ele
um cientista de seu tempo.
Introdução
Três
são os objetivos perseguidos neste trabalho, o primeiro dos quais é de ordem
geral, qual seja, apontar as marcas da corrente filosófica recoberta pela
designação positivismo no modo como
se desenvolveu o pensamento de Durkheim, para cuja tarefa nos servimos, além da
seção de Introdução, os capítulos
primeiro, segundo e terceiro de seu As
Regras do Método Sociológico (2007)[1].
O segundo objetivo consiste em demonstrar de que modo sua concepção de fatos sociais está embebida na afluência
de pressupostos que, remontando a modos anteriores de fazer ciência, não deixam
de encontrar lugar na visão de mundo positivista[2].
O terceiro e último objetivo deste texto repousa na preocupação em sustentar a
visão de que o racionalismo científico
de Durkheim não está em conflito com o método positivista, mas deve ser visto
como uma tentativa de conciliar a primazia dada à experiência pelo positivismo
com o rigor da razão enaltecido pelo racionalismo cartesiano, tendo em vista a
necessidade – apontada pelo próprio Durkheim – de aplicá-lo à conduta humana.
O
desenvolvimento deste artigo se estruturará em cinco seções, das quais as
quatro primeiras se apresentarão com as suas respectivas subseções. Na primeira
seção, passaremos em revista o que foi o positivismo inaugurado por Augusto
Comte (1798-1857), momento em que desceremos a considerações sobre a relação
entre o positivismo e o empirismo, sobre o método esposado por Comte e sua
visão sobre a sociologia. Não descuraremos de notar como Comte encarava a
sociologia e o papel que lhe atribuía na sua classificação das ciências.
Na segunda seção, ocupar-nos-emos do contexto
sócio-histórico em que se inscreve o positivismo, cingindo-nos aos aspectos que
tocam mais diretamente aos objetivos deste trabalho. Por conseguinte, não objetivamos
a exaustão.
A
terceira seção será consagrada à discussão de uma visão crítica de ciência que
encontra, na contemporaneidade, apoio entre filósofos, particularmente entre os
que se dedicam aos estudos epistemológicos ou da filosofia da ciência[3].
Dessa visão dará testemunho a vertente pragmaticista de ciência. Nessa terceira
seção, cuidamos indispensável trazer à cena uma questão cara à atividade
científica, qual seja, a distinção entre o objeto observacional e o objeto
teórico. Nosso propósito é realçar, por meio do contraste entre a visão crítica
de ciência, que marca a contemporaneidade, e a visão positivista, os aspectos
da própria concepção positivista que encontraram abrigo no pensamento de
Durkheim. A escolha por inserir esta seção entre as duas primeiras seções e a
que será destinada à influência do modelo positivista sobre o pensamento
durkheimiano tem, portanto, o propósito de iluminar as regiões que fazem de
Durkheim um pensador comprometido com um modo de fazer ciência marcante em seu
tempo e cuja história pode ser rastreada tendo por referência a Revolução
Científica do século XVI, tarefa esta a cuja realização não nos poderíamos
devotar neste trabalho, evidentemente.
A
quarta seção é destinada ao exame do pensamento de Durkheim, tendo em vista as
marcas da influência positivista e a maneira como a concepção de fatos sociais – conceito sobre o qual
nos debruçaremos com a devida atenção – dá testemunho de um modo de fazer
ciência que recupera o primado do domínio objetivo, caro aos positivistas.
A
quinta e última seção recobre as conclusões encaminhas pela argumentação
desenvolvida neste artigo.
1. O positivismo de Augusto Comte
Segundo
Comte, o positivismo não é uma corrente filosófica dentre outras, mas a
corrente filosófica que acompanha, promove e estrutura o último estágio que o
conhecimento humano atingiu[4],
o qual foi fundado e condicionado pela ciência. Comte pretendeu por fim às
persistentes investigações sobre o incognoscível e, ocupando-se com o mundo
real, criou um vasto campo de estudo e de observação que visava a restabelecer
e a realizar um programa universal, cujo propósito era regulamentar e regenerar
a vida humana, tanto privada quanto pública. Influenciado pelo progresso
contínuo das ciências, Comte rezava que só se podem conhecer os fenômenos e
suas relações, mas não a sua essência, ou suas causas íntimas, quer fossem
eficientes, quer fossem finais. Essas causas permaneceriam incognoscíveis.
Toda
a sua obra é, portanto, uma síntese geral dos conhecimentos de seu tempo, cujo
projeto fundamental consistia em ligar a cultura humanística à cultura
científica, compondo, desse modo, um novo humanismo baseado na ciência. A
ciência, tal como concebida por ele, deveria ser capaz de redescobrir e
reavaliar as necessidades humanas, atribuindo-lhes um significado de valor
universal.
A
ideia de progresso constitui um
aspecto fundamental no desenvolvimento de seu pensamento. Comte pensava o
progresso como uma lei da história da humanidade. Não nos poderíamos escusar de
pontuar a crença que Comte nutria também na eficácia das ciências naturais e na
possibilidade de criação de uma ciência da sociedade – a sociologia.
O
positivismo é também uma doutrina que se propõe organizar moral e
intelectualmente a sociedade. O termo positivo
– vale notar – significa ‘real’ e se opõe ao quimérico; o ‘útil’ em oposição ao
ocioso; a ‘certeza’ em oposição à ‘indecisão’; o ‘preciso’ por oposição ao
‘vago’. Também significa o contrário de negativo e supõe o absoluto em vez do
relativo. Em suma, positivo é sinônimo de objetivo
(tomado esse termo em oposição a subjetivo).
1.2. Proximidade e afastamento do
positivismo em relação ao empirismo
Comte
assumiu o postulado empirista segundo o qual todo conhecimento deve
certificar-se de sua validade por socorro à experiência sensível. O recurso à
experiência sensível como meio de validação do conhecimento supõe o exercício
da observação sistemática. Todavia, sustentava Comte que o verdadeiro espírito
positivo está muito distante do empirismo, já que, diferentemente deste, não
visa, em sua atividade, à acumulação estéril de fatos. O positivismo também se
afasta, em grande medida, evidentemente, do misticismo, que se limita a uma interpretação
sobrenatural dos fatos.
Na
visão de Comte, a ciência só é verdadeiramente possível, quando se busca
conhecer os fenômenos tendo em vista suas relações constantes de concomitância
e sucessão, a saber, suas leis. A determinação de suas leis permite a previsão
racional. O espírito positivo deve orientar-se pela razão; precisa ver para prever. Um conhecimento é,
portanto, útil quando permite prever e controlar o fenômeno. Destarte, a
previsão racional deve destinar-se à construção da sociedade positiva.
1.3. A sociologia na visão de Comte
É
consabido que Comte propôs uma classificação das ciências orientada pelos
seguintes critérios:
a)
a ordem cronológica de seu aparecimento;
b)
a complexidade crescente de cada uma das ciências;
c)
a sua generalidade decrescente;
d)
a dependência mútua.
Com
vistas a atender os propósitos estabelecidos para esta exposição,
limitar-nos-emos a considerar os objetivos atribuídos à sociologia nessa
classificação. Chamada também de física social, a sociologia, sendo a mais
complexa, a menos geral e a mais recente das ciências recobertas pela
classificação comtiana, ocupa a última posição do conjunto. Consoante propunha
Comte, a sociologia não só deve estudar cientificamente os fenômenos sociais,
mas também deve estabelecer uma base racional e científica que torne possível
uma reforma intelectual e moral da sociedade. Para tanto, o espírito positivo
deve penetrar a organização das estruturas sociais e políticas. A sociologia
constitui o ponto de partida da moral, da política e da religião.
Vale
notar que é com a ordem e o progresso que Comte procurou superar as
duas principais correntes de seu tempo: a conservadora,
à luz da qual os problemas existentes na sociedade emanavam da destruição da
ordem anterior – a ordem medieval; e a iluminista,
que congregava correntes que alardeavam a necessidade de progresso e para as
quais os problemas sociais advinham do fato de que a ordem anterior não havia
sido completamente destruída. Essas correntes advogavam, por isso, a
continuidade da revolução.
Comte,
ao contrário, afirmava que a história da sociedade se desenvolve em direção ao
progresso; essa história supõe a evolução humana e o aperfeiçoamento das
estruturas sociais (modos de organização político-econômicos). Mas o progresso
não poderia prescindir da ordem. Assim, Comte mantinha que ‘sem ordem não há
progresso’. O progresso não é senão o desenvolvimento da própria ordem. Há,
pois, uma complementaridade entre ordem e progresso.
A
fim de restaurar a unidade social, Comte propôs uma síntese entre ordem e
progresso. A sociologia foi dividida em dois domínios de estudo: a estática social e a dinâmica social. O primeiro domínio se encarrega do estudo da
harmonia prevalecente entre as diversas condições da existência, visando ao
estabelecimento da ordem social. O segundo compreende a investigação do
desenvolvimento ordenado da sociedade, visando a estabelecer as leis do
progresso.
1.4. O método de Comte
Augusto
Comte servia-se do método histórico-genético-indutivo, que se definia pela observação
dos fatos, pela descoberta, por indução, das leis que governavam a coexistência
e sucessão deles, e pela dedução, a partir dessas leis, de novos fatos que
escaparam à observação, mas foram atestados pela experiência. Essa dedução
apoiava-se nas relações de consequência e correlação entre os fatos.
O
que se chamava método objetivo era o
método geral do raciocínio, que se compunha da combinação de todos os métodos
particulares então conhecidos, a saber, dedução,
indução, observação, experiência, nomenclatura, comparação, analogia, filiação
histórica (Ribeiro, 2003, p. 18).
2. O pensamento liberal e o positivismo
O
século XIX foi marcado não só pela vitória do liberalismo europeu, que se
prendia ao direito natural, para o qual a natureza humana é a base da própria
lei natural, cuja única realidade é a liberdade do homem, mas também pelo
reconhecimento de que só existe uma só natureza material (cientificismo), que
compreende o mundo dos valores e o mundo dos fatos.
O
liberalismo afirmava que o desenvolvimento moral, cultural, econômico e
político da sociedade só seria alcançado pelo livre desenvolvimento do espírito
e das faculdades do indivíduo. O respeito à liberdade e à igualdade inata dos
indivíduos constituía um corolário dessa forma de liberalismo. Destarte,
assumia-se como pressuposto o valor da personalidade que tinha primazia sobre
todas as condições históricas, políticas, sociais e culturais. O liberalismo,
enquanto sistema de pensamento, assentava-se na crença de que a personalidade
individual era soberana e ilimitada; ela precedia ao Estado. Seu credo
revolucionário não fazia transigência quando um direito fundamental era
transgredido.
A
forma original do liberalismo precisou, no entanto, alterar-se, a fim de
adaptar-se às exigências tanto do empirismo, à luz do qual todo conhecimento
deriva dos dados da experiência sensível, quanto do materialismo, para o qual a
matéria e suas leis constituem a totalidade do existente e a base para a
explicação de tudo. Na tentativa de conciliação entres esses dois domínios do
saber humano, a estrutura apriorística do racionalismo liberal fora seriamente
reduzida.
À
medida que a ciência e o pensamento político-social tendiam, cada vez mais, a
acolher os postulados empiristas, a autoridade do racionalismo, ao qual
subjazia a primazia da razão, da capacidade de pensar, se enfraquecia. Os
partidários do cientificismo irrompiam na cena cultural contestando o
racionalismo abstrato sustentado pelos adeptos do liberalismo. Aqueles nutriam
grande confiança no progresso contínuo e propunham que os fatos só poderiam
dar-se a conhecer pela experiência sensível, a única forma de experiência
válida.
Doravante,
os domínios da natureza e da história encontravam-se reconciliados, e coube ao
romantismo filosófico a tarefa de buscar certo equilíbrio em face da ciência.
Esse equilíbrio expressou-se na tentativa de regular os estados espirituais à
época, segundo uma severidade crítica – condição esta para que se estabelecesse
um sistema de noções sobre o homem e as sociedades. Em última instância,
tratava-se de restabelecer os fundamentos do empirismo à moda de Bacon e
Galileu, cingindo o ceticismo desses modelos às realidades metafísicas e
teológicas.
É
nessas condições sócio-históricas marcadas por uma incontestável confiança na
experiência sensível como base para a produção do conhecimento científico que o
positivismo passa a dominar o pensamento comum do século XIX. Tomado como
método, o positivismo assentava na certeza do rigor dos fatos da experiência,
que eram considerados o fundamento da construção teórica. Enquanto doutrina, o
positivismo supunha-se a própria revelação da ordem natural geral, a que se
ligavam fatos particulares; era a ciência por excelência, à qual competia dar a
conhecer essa ordem, que é a própria dimensão universal da realidade, o
significado geral da mecânica e dinâmica do universo.
Impõe-se-nos
esclarecer, a essa altura, que os positivistas não estavam interessados em
determinar as causas últimas dos fenômenos, tampouco de revelar-lhes a
essência. Seu empreendimento pautava-se por um único imperativo: determinar as leis, a saber, os princípios constantes
entre os fenômenos. Ao método a priori
substituía-se o método a posteriori.
Necessário era observar o mecanismo do mundo.
Sem
perder de vista o propósito basilar a que visa este trabalho, qual seja, o de
identificar as marcas da influência do pensamento positivista no pensamento de
Durkheim, cumpre pontuar que, para os positivistas, as leis naturais, então
descobertas, constituíam a formulação geral de um fato particular,
cuidadosamente observado. Disso se segue que, para Comte, a ciência, não sendo
mais do que uma forma sistematizada de bom senso, fixa-nos o lugar de meros
espectadores dos fenômenos exteriores, que são, portanto, independentes de nós,
de modo que não nos restaria senão submetermo-nos às leis que os regem.
Em
oposição aos postulados do direito natural e do pacto social, bem como das
doutrinas teológicas, Comte preconizou a adoção de novos métodos na
investigação científica dos problemas sociais. Importa-nos notar que seu método
de investigação, com o qual procurou determinar os fatos e as relações entre
eles, foi tomado aos filósofos ingleses Bacon e Hume (entre outros). Como, em
última instância, sua preocupação consistia em reformar a sociedade, Comte
preconizou que era necessário, em primeiro lugar, desvendar as leis que regem
os fatos sociais não sem se prevenir de afastar as concepções abstratas e as
especulações metafísicas, que não atingiam, segundo ele, conhecimento algum.
Antes
de levar a cabo esta seção, parece-nos oportuno retomar o conceito de
positivismo, com vistas a precisá-lo e a trazer à cena a importância que a
noção de fatos desempenhava na
filosofia comtiana.
Em
termos gerais, pode-se definir o positivismo
como uma doutrina filosófica, que sustenta, de um lado, um experimentalismo
sistemático (visa a determinar as leis que governam os fenômenos e as relações
entre eles com base na experiência sensível); e que, de outro lado, considera
anticientífico o estudo que busque conhecer as causas finais. É pela observação
e pela experiência que o positivista se dedica a descobrir as relações
permanentes (leis) que existem entre os fatos, sempre tendo em vista a reforma
econômica, política e social.
O
positivismo admite que o espírito humano é capaz de conhecer verdades
positivas, ou seja, que se situam na ordem experimental, mas lança por terra a
pretensão de resolver as questões metafísicas, as quais não contam com o apoio
da observação e da experiência.
Segundo
Comte, no terceiro estado do desenvolvimento do espírito humano – o positivo ou
científico -, dá-se a descoberta das leis efetivas, mediante o raciocínio
sistemático e a observação acurada. A explicação dos fatos se reduz à relação
entre os fenômenos particulares e algumas leis gerais. Quanto maior o progresso
da ciência, menor é o número das leis[5].
Comte acreditava que a nova ordem social seria mantida pela ciência.
Finalmente,
cumpre notar que o termo filosofia era empregado por Comte no sentido que lhe
atribuía, especialmente, Aristóteles, recobrindo, assim, o sistema geral do
conhecimento humano.
2.1. Uma nota sobre a atmosfera
epistêmica do século XIX
No
século XIX, prevalecia a tendência de separar o estudo dos fenômenos físicos
dos fenômenos morais e espirituais. O século XIX se caracterizou, nesse
tocante, pela rejeição a recuperar os antigos mitos do século XVIII. Para o que
nos interessa, urge sublinhar a robustez e influência exercida pela ideologia
denominada de cientificismo àquela
altura. O cientificismo é a doutrina segundo a qual a única forma de
conhecimento possível é a que nos fornece uma ciência baseada no modelo
físico-matemático. Ademais, essa doutrina reza que todo fenômeno deve-se
reduzir a uma explicação calcada sobre o domínio do físico. O cientificismo
reduz todo fenômeno, portanto, a um único domínio de explicação.
Visto
que se funda em visões reducionistas e materialistas, o pensamento
cientificista exclui de seu escopo questões como vida, consciência,
subjetividade e liberdade. Tende a declarar a redutibilidade desses domínios a
processos materiais. Na contemporaneidade, a ideologia cientificista toma forma
nas estruturas de pensamento que consideram a ciência a mais elevada forma de
conhecimento alcançada pelo homem. As mentalidades estruturadas por uma visão
cientificista do mundo veem a ciência como signo de liberdade do espírito, como
um modo de ver as coisas depurado de qualquer preconceito e de todo dogmatismo.
O cientificismo contemporâneo limita a questão social a uma abordagem técnica e
pragmática (Japiassu, 2011,p. 14).
3. Uma visão crítica sobre o fazer
ciência
3.1. A visão pragmaticista de ciência
Remontando
aos filósofos americanos W. James (1842-1910), C.S. Peirce (1839-1914) e J.
Dewey (1859-1952), a concepção pragmaticista de ciência mantém que o método
científico não demanda regras rígidas, que não há um modelo metodológico único
e que o método varia segundo o objeto de estudo e a abordagem adotada.
Para
atender aos nossos propósitos, convém notar que, à luz dessa concepção de
ciência, cuja exposição aqui se justifica pela necessidade de demarcar, por
contraste, as influências do modelo positivista no desenvolvimento do
pensamento de Durkheim, a verdade não é um dado para ser descoberto, não está
pronta na realidade, mas resulta de um modo de apresentar as razões e as
justificações que ligam o já conhecido ao conhecimento então produzido. A
verdade é, pois, passível de revisão e reavaliação permanentes.
Interessa-nos,
para efeito de argumentação, referir e sublinhar o que se segue:
O
conhecimento é um campo de forças sujeito à revisão permanente, onde cabe
argumentar e sustentar afirmações não
pelo puro e simples acordo com os fatos, mas porque não há argumentos
contrários suficientes para derrubá-las. Nossos esquemas conceptuais variam; por trás de cada descrição ou explicação há
sempre uma teoria (Araújo, 2003, p. 208, grifos nossos).
Tendo
em vista o cotejo com a visão positivista de ciência, pode-se depreender do
excerto acima que a visão pragmaticista convida-nos a questionar o estatuto dos
fatos e de sua relação com as proposições científicas. Ademais, patenteia-nos
que, ao contrário do que quer-nos fazer crer o positivismo, toda explicação que
se apresente calcada sobre a observação ‘pura’ de pressupostos teóricos
constitui uma ficção científica. Essa precedência da teoria à observação pode
ser reformulada com uma proposição bem assentada na epistemologia moderna: não
há observação desprovida de pressupostos teóricos, os quais a iluminam e a
orientam.
O
que pretendemos é chamar a atenção para a dependência da observação em relação
à teoria – dependência que a ideologia positivista parece mascarar. Aquilo que
é apreendido por um observador é afetado pelas suas expectativas, pelas suas
crenças, pelas suas experiências prévias, pelos seus preconceitos. Essa visão
epistemológica entra em claro conflito com a explicação indutivista de ciência,
segundo a qual as leis e as teorias que constituem a ciência encontram base em
proposições de observações publicamente atestáveis, e não em experiências
subjetivas de observadores individuais. As proposições de observação não são
publicamente ou diretamente acessíveis a um observador, porque, formuladas numa
linguagem pública, envolvem teorias cujos graus de generalidade e sofisticação
variam (Chalmers, 2007, p. 53). Se as proposições de observação formam,
consoante sustentam os indutivistas, a base segura da ciência, segue-se que
“algum tipo de teoria deve preceder todas as proposições de observação”
(ib.id.). Elas podem ser tão falíveis quanto as teorias que pressupõem.
Segundo
Chalmers, proposições de observação devem ser elaboradas nos termos de alguma
teoria. Proposições de observação são sempre elaboradas na linguagem de uma
teoria e sua precisão depende do grau de precisão da estrutura teórica de que
se servem. Teorias precisas são um pré-requisito para proposições de observação
precisas.
3.2. A distinção entre objeto
observacional e objeto teórico
Todas
as ciências constituídas operam recortes no mundo das aparências, que constitui
o mundo da diversidade. Elas delimitam o campo da diversidade observacional, de
acordo com os objetivos perseguidos, com o tipo de entidades e as explicações
que lhes parecem adequadas (Borges, 2004, p. 34).
Desse
trabalho de esquadrinhamento da diversidade sensível do real resultam duas
espécies de objeto: o objeto
observacional, que é geral e comum a diferentes teorias; e o objeto teórico, que tem caráter
descritivo-explicativo e que difere entre as diversas teorias científicas. Cada
teoria se ocupa, portanto, de um objeto que lhe é próprio. Cada teoria,
consoante observa Neto, delimita uma certa “região” da realidade que se
transforma em seu objeto de estudo. Decerto, essa “setorização” da realidade
nem sempre é precisa, o que explica as disputas entre as disciplinas
científicas pelas áreas de investigação. Em todo caso, importa-nos fazer ver
que o objeto observacional de uma teoria científica é a “região” sobre a qual
ela faz recair seu foco de atenção. Esse objeto é o conjunto de fenômenos
observáveis.
Uma
vez delimitado o objeto observacional, a teoria identificará as entidades
básicas, com base nas quais vai atribuir propriedades aos fenômenos que
constituem seu campo e vai estabelecer relações entre eles, de modo que o
objeto observacional se transformará em objeto teórico.
O
objeto teórico é, portanto, uma construção dependente das escolhas das
entidades básicas do objeto geral do estudo e do nível de adequação pretendido.
Todo objeto teórico é, por natureza, limitado, dadas as condições que tornam
possível a sua construção. O objeto teórico guia o olhar do cientista sobre a
diversidade do observacional, permitindo-lhe um alcance preestabelecido. Assim,
o cientista só verá aquilo que o objeto teórico lhe permitir ver. Atente-se
para as palavras de Neto a seguir:
Teorias
diferentes podem construir objetos teóricos diferentes sobre um objeto
observacional que é supostamente o mesmo, bastando para isso reconhecer
entidades básicas, predicados e relações diferentes no objeto observacional
(Neto, 2004, p. 37).
À
noção de objeto teórico prende-se o
reconhecimento de que as teorias fabricam a realidade que lhes é própria. Esse
mundo fabricado pela teoria não se confunde com o mundo tal como o observamos.
O mundo teórico inclui não só os fenômenos (fatos observáveis), mas também as
entidades teóricas. Assim, por exemplo,
na Linguística, a fonologia estruturalista delimita um objeto teórico, no
interior do qual sons coexistem com fonemas. Os sons são “coisas”: são
observáveis, existem no tempo e no espaço; podem ser percebidos por nossos
sentidos, etc. Os fonemas, ao contrário, são constructos teóricos, desprovidos
de realidade física; por isso, não existem no mundo da experiência sensível,
tão-só no mundo teórico. Pode-se outrossim ilustrar a distinção entre objeto observacional
e objeto teórico contrastando dois paradigmas da Linguística moderna: o
formalismo, que recobre o estruturalismo, por exemplo, de Leonard Bloomfield, e
o gerativismo de Noam Chomsky, de um lado; e o funcionalismo de Halliday, de
outro. Tanto os formalistas quanto os funcionalistas compartilham, grosso modo,
um objeto observacional: a língua;
mas seus objetos teóricos diferem radicalmente. Os formalistas descrevem a
língua fazendo abstração do uso e dos fatores sócio-culturais envolvidos nas
práticas linguísticas; preocupam-se exclusivamente com a forma dos enunciados.
Os funcionalistas, ao contrário, fundam suas teorias no uso da linguagem e dão
primazia às funções a que serve o uso da língua. Mesmo entre os objetos
teóricos do gerativismo de Chomsky e do estruturalismo de base behaviorista de
Bloomfield há diferença. O objeto teórico do gerativismo é a competência
linguística dos falantes nativos; os estruturalistas preocupam-se com a
realização formal dos enunciados, independentemente de fatores psicológicos ou
sociais. Seguindo a tradição fundada por Ferdinand de Saussure (1916), os
estruturalistas se ocupam da langue
em si e por si mesma, adotando sobre ela um ponto de vista externo, já que não estão interessados nos parâmetros ou regras de
uma gramática internalizada pelos falantes nativos, base da aquisição de uma
competência linguística, mas apenas em descrever a estrutura de enunciados
descontextualizados.[6]
Antes
de levar a cabo esta seção, necessário parece-nos fazer alguma consideração sobre
o conceito de teoria, visto que vimos
insistindo em que a toda observação por que se orienta a atividade científica
subjaz uma teoria. Não estamos preocupados em adotar uma das muitas definições
de teoria científica propostas. Tampouco nos interessa discutir o conceito de
teoria, mas tão-somente precisar o que entendemos por teoria quando
consideramos sua relação inevitável com a prática de observação.
Entre
os antigos gregos, à teoria (theoria)
associava-se a ideia de “eu vejo”. To
theion significa “eu vejo (orao)
o divino (theion)”. A primeira tarefa
da filosofia consistia em ver ou
contemplar o essencial do mundo, o que nele é mais real (Ferry, 2010, p. 40).
Para os antigos, a teoria era uma prática ou um exercício que permitia a
contemplação da ordem justa e boa do cosmo (o divino).
Conquanto
tenha uma longa história a separação entre teoria e prática, observa Deleuze
que essa separação decorre de uma má compreensão do papel do pensamento.
Segundo ele, toda teoria real é uma prática, já que expressa uma atividade do
espírito que é orientada para compreender as coisas.
Quando
assumimos que toda prática de observação levada a efeito pelo cientista está
impregnada de pressupostos teóricos, queremos dizer que ele se compromete,
mesmo que nem sempre consciente disto, com um dado conjunto de hipóteses,
crenças, proposições, noções, conceitos que lhe vão orientar essa prática.
4. Émile Durkheim e sua ciência do fato
social
O
sociólogo e filósofo francês Émile Durkheim é considerado o fundador da
sociologia científica. A ele deve-se a elaboração de uma ciência do fato
social, caracterizada por uma preocupação ética. Durkheim buscou caracterizar o
fato social como fenômeno coletivo, dando especial valor à interpretação
histórica.
Nesta
seção, vamo-nos debruçar sobre o exame das bases do método sociológico
durkheimiano, para cuja tarefa nos ateremos ao conceito de fato social, ao primado da objetividade que seu texto, nos
capítulos que serviram de base para nossa análise, deixa entrever, e a relação
entre o seu racionalismo científico e o legado positivista.
Antes,
porém, de atacar a questão dos fatos sociais, a fim de mostrar em que medida
este conceito é devedor de pressupostos de base positivista, devemos ponderar
que Durkheim estava ciente do caráter provisório das proposições científicas,
como se atesta no seguinte passo: “(...) não
resta dúvida de que nossas fórmulas estão destinadas a ser reformuladas no
futuro” (Durkheim, 2007, p. XVI). O reconhecimento de Durkheim do caráter
provisório das proposições científicas era extensivo ao método, conforme se lê
em: “Em matéria de método, aliás, jamais se pode fazer senão o provisório, pois
os métodos mudam à medida que a ciência muda” (ib.id.). Com essas referências,
reconhecemos que Durkheim se distancia de qualquer pretensão positivista a
considerar as proposições científicas como expressões que revelam uma verdade
não suscetível de crítica e revisão, bem como de qualquer pretensão positivista
a consagrar um único método científico por excelência, que seria imune à
mudança.
Não
obstante reconhecer que o próprio Comte viu os fenômenos sociais como coisas,
Durkheim o critica por ele ter tomado para objeto de sua sociologia não os
fenômenos sociais como tais, mas a ideia de progresso da humanidade no tempo
(p. 20). Por conseguinte, não pretendemos sustentar que Durkheim tenha seguido
o projeto comtiano de ciência ou, particularmente, de ciência sociológica. Nosso
intento não é – insistimos - compreender Durkheim ou propor uma leitura de
Durkheim na base de uma hermenêutica positivista; mas pontuar traços de uma
visão científica positivista em seu pensamento.
A
questão com base na qual se orientarão as reflexões que, doravante, desenvolveremos
sobre o conceito de fatos sociais é a
seguinte: os fatos sociais são fatos dados
à observação empírica ou construídos pelo cientista com base em alguma teoria
implícita de que já dispõe? Em outras palavras, estamos preocupados em
determinar se a noção de fatos sociais, em Durkheim, descreve fenômenos que se
impõem à observação do sociólogo como dados do domínio objetivo, que se prestam
à descrição e à classificação ou se esses fatos têm em sua base alguma teoria
(tal como a definimos anteriormente), sem a qual eles mesmos não teriam a
qualidade de científicos.
Com
vistas a responder a essa questão, cuidaremos de expor a concepção durkheimiana
de fato social. Será indispensável
verificar qual das alternativas implicadas na questão o modo como Durkheim
define o fato social endossa. Durkheim oferece-nos, em vários momentos, a
definição de fatos sociais. A que se segue foi colhida da página 3 de sua obra As regras do método sociológico (2007):
[os
fatos sociais] consistem em maneiras de pensar, de agir e de sentir, exteriores
ao indivíduo, e que são dotadas de um poder de coerção em virtude do qual esses
fatos se impõem a ele.
Durkheim
preocupou-se em esclarecer sua concepção de fatos sociais, visto que, como ele
mesmo reconheceu, ela acarretou confusão em seus leitores. Intentando ser fiel
ao esclarecimento do próprio autor, vamo-nos deter a apresentar o modo como ele
o trouxe a lume.
Durkheim
começa precisando o significado de “coisa”, pois que da má compreensão desse
significado decorreu, segundo ele, a referida confusão. Classificar como coisas
os fatos sociais é dizer que esses fatos são dotados de um grau de realidade
equivalente ao grau de realidade que comportam as coisas naturais. Não se trata
de dizer, previne o próprio Durkheim, que os fatos sociais são coisas
materiais; trata-se de concebê-los[7]
como um objeto que se impõe ao espírito, que exige do espírito que saia de si
mesmo, para compreendê-lo mediante a observação e a experimentação, numa
atividade que envolve a apreensão progressiva de características mais visíveis
ou exteriores, cujo fim é atingir níveis menos visíveis e mais profundos.
Ainda
que não nos seja possível descer a pormenores sobre as implicações dessa
concepção de fatos sociais como coisas, notamos que ela funda uma abordagem do
objeto da sociologia: estabelece um modo de ver o tecido social. Destarte, os fatos
sociais de que se compõe o tecido social não são acessíveis pela introspecção,
e sua abordagem se orienta pelo princípio de que se ignora o que eles são.
Ainda que os fatos sociais sejam produto da atividade humana, nós ignoramos sua
gênese.
Segundo
Durkheim, “todo objeto de ciência é uma coisa” (p. XVIII), pois que exterior a
nós, é por nós ignorado. Mas os fatos são, no momento em que se prestam a uma
investigação científica, coisas ignoradas, dado que nossas representações deles
carecem de um método e se elaboram sem crítica, por isso, são destituídos de
valor científico. Um domínio importante no conceito de fatos sociais, para Durkheim, é o da exterioridade às consciências
individuais. Assim, os fatos sociais são considerados como coisas, porque são
exteriores às consciências individuais; mas também o são, porque exercem sobre
os indivíduos um poder coercitivo. Poder coercitivo e exterioridade são,
portanto, dois aspectos fundamentais do conceito de fatos sociais. Esses dois
aspectos dotam os fatos sociais de uma realidade objetiva (p.XXX). Durkheim os
vê como uma realidade sui generis,
que não se confundem com os fenômenos psíquicos e individuais.
A
objetividade dos fatos sociais, que se expressa na forma de uma independência
relativamente às formas individuais que eles assumem, constitui um registro da
influência da doutrina positivista no desenvolvimento do pensamento de
Durkheim. Como um cientista do seu tempo e, intentando lançar os fundamentos de
uma ciência sociológica, Durkheim assume um domínio objetivo da realidade, que
delimita relativamente ao domínio das manifestações ou fenômenos subjetivos. É
no domínio objetivo que Durkheim situa os fatos sociais.
A
influência positivista toma forma também na oposição, de resto evidente, entre
as categorias da coletividade e do individual. Durkheim – vale lembrar – opõe
maneiras de ser coletivas, que se impõem ao indivíduo, que são elas mesmas
fatos sociais, portanto, passíveis de descrição e explicação científicas, às
formas individuais que essas manifestações assumem.
A
tentativa de sustentar serem os fatos sociais distintos de suas representações
individuais, a assunção de que eles podem ser estudados “num estado de pureza”
(p.8), bem como a proeminência que o todo tem sobre as partes constitutivas no
curso da investigação parecem-nos também indicativas de traços da influência da
filosofia positivista no empreendimento sociológico de Durkheim.
Cremos
não estar distante Durkheim de uma perspectiva positivista quando nega ao
sentimento a qualidade de critério para a verdade científica. Sua adesão a um
racionalismo estrito, que chega a evocar “as luzes racionais”, não parece
suficientemente determinante para imunizá-lo de uma influência positivista,
caso possamos interpretar sua sobreestima da razão em contrate com a
desvalorização dos sentimentos. Veja-se, a esse propósito, o seguinte excerto,
em que Durkheim pretende suprimir do âmbito da ciência qualquer influência dos
sentimentos:
Longe
de nos proporcionarem luzes superiores às luzes racionais, eles [os
sentimentos] são feitos exclusivamente de estados fortes, é verdade, mas
confusos. Atribuir-lhes tal preponderância é conceder às faculdades inferiores
da inteligência a supremacia sobre as mais elevadas, é condenar-se a uma
logomaquia mais ou menos oratória. Uma ciência feita assim pode satisfazer os
espíritos que gostam de pensar com sua sensibilidade e não com seu
entendimento, que preferem as sínteses imediatas e confusas da sensação às
análises pacientes e luminosas da razão (pp. 34-35).[8]
Durkheim,
alinhando-se com a prática científica de seu tempo, herdeira do fazer
científico dos séculos XVII e XVIII, crê que são os fatos que determinam um
modo de interpretá-los, de classificá-los. Nesse sentido, a natureza das
coisas, não o pesquisador, é que “diz” como deve ser estudada. Depois de
Durkheim, se consumiu muita tinta, a fim de demonstrar que a realidade não diz
nada sobre como “quer” ser analisada, que é inevitável que a observação esteja
impregnada de pressupostos teóricos, que é o observador, com seu conjunto de
experiências prévias, de crenças, de valores que impõe certo “recorte” sobre
essa realidade.
Reunindo
as propriedades do fato social, as quais dispomos abaixo, forçoso será notar
que a noção de fato social estabelece o domínio da objetividade “pura” como o
domínio do fazer científico por excelência. Ademais, ela mascara os próprios
pressupostos teóricos que lhe são subjacentes e sem os quais a sua pretensa
objetividade não teria valor para o método científico:
1)
É uma maneira de fazer fixada ou não;
2)
É uma maneira de fazer suscetível de exercer sobre o
indivíduo uma coerção exterior;
3)
É toda maneira de fazer que é geral na totalidade de uma
dada sociedade e cuja existência independe de suas manifestações individuais.
A
fim de que se delimite ou se determine um dado acontecimento como fato social,
necessário é que certas crenças estejam já orientando a observação. Por
exemplo, é preciso que haja uma crença sobre a existência de uma realidade
objetiva que não é, de modo algum, afetada por crenças, disposições,
interpretações subjetivas; que haja a crença de que a totalidade social se
impõe aos indivíduos, fixando padrões de comportamento, ditando-lhes normas,
mobilizando certos dispositivos coercitivos. Crenças como estas não são
“descobertas” pela observação, não derivam da observação de fatos previamente
dados. É de esperar que, sendo o sociólogo também um homem de sociedade (essa
tautologia é proposital), dispõe ele também de certas crenças, de certas
expectativas sobre o modo como funciona estruturalmente uma sociedade. Essas
crenças e expectativas já estão disponíveis e vão influenciar a observação. A
observação, sempre acompanhada de raciocínios e interpretações, virá a
corroborar ou a invalidar as hipóteses e as crenças que o cientista já dispunha.
Uma vez corroboradas, as hipóteses ou crenças serão reformuladas num sistema de
princípios precisos, consistentes e representativos/construtivos da
realidade observada.
4.1. O racionalismo científico de
Durkheim e sua relação com o positivismo
Considere-se
a seguinte passagem em que Durkheim nos apresenta a pretensão de seu
racionalismo científico e deixa entrever o que chama de “seu positivismo”.
Nosso
principal objetivo, com efeito, é estender à conduta humana o racionalismo
científico, mostrando que, considerada no passado, ela é redutível a relações
de causa e efeito que uma operação não menos racional pode transformar a seguir
em regras de ação para o futuro. O que chamamos nosso positivismo não é senão
uma consequência desse racionalismo (p. XIV).
Notemos,
de início, que o racionalismo científico de Durkheim se volta para a vida
prática. Pretende ser um instrumento de intervenção na ordem social. Seu
racionalismo científico é extensivo aos modos de comportamento humano.
Durkheim, assim, visa a estabelecer um método científico que sirva para
transformar a prática, que intervenha nos fenômenos sociais, ajustando-os
quando se manifestam sob formas patológicas.
Essa
intervenção supõe o trabalho científico de distinção entre fenômenos normais,
aqueles que são o que devem ser e que se apresentam em formas gerais na
sociedade ou grupo social, e fenômenos patológicos, que não são gerais e
revelam um excesso nas maneiras como se manifestam. Essa propensão a assumir
que o saber científico possa estar a serviço de uma transformação das condições
sociais ou, mais particularmente, que a ciência sociológica seja também uma das
forças transformadoras da sociedade afina-se com a atitude positivista[9].
O passo, a seguir, ilustra de que modo, para Durkheim, o conhecimento
sociológico deve estar a serviço da prática.
Para
que a sociologia trate os fatos sociais como coisas, é preciso que o sociólogo
sinta a necessidade de aprender com eles. Ora, como o objeto principal de toda
ciência da vida, tanto individual como social, é, em suma, definir o estado
normal, explicá-lo e distingui-lo de seu contrário, se a normalidade não
acontecer nas coisas mesmas, se, ao contrário, ela for um caráter que
imprimimos desde fora nestas ou que lhes recusamos por razões quaisquer,
acaba-se essa salutar dependência (p. 75).
É
interessante ver o modo como Durkheim articula uma perspectiva teórica a uma
perspectiva da prática: a teoria está a
serviço da prática. A objetividade dos fatos sociais, o seu caráter de “coisas”
é dependente da necessidade de o sociólogo aprender com eles; e esse
aprendizado é indispensável à sua intervenção, sempre que as condições se lhe
apresentarem como ‘anormais’. A normalidade dos fatos, tal como Durkheim a
pensa, é testemunho de sua pretensão a estabelecer a objetividade como o
domínio da ciência sociológica, tendência que é comum aos cientistas que o
precederam: toda ciência, para ser considerada como tal, deve ser forma de
conhecimento objetivo da realidade. O sociólogo não intervém para determinar o
que é normal ou anormal, já que ‘normal’ e ‘anormal’ são qualidades inerentes
aos fatos mesmos, de modo que, preocupado com o caráter objetivo de sua
investigação, o sociólogo deve esforçar-se por identificar essas qualidades e
descrevê-las. Mas não deve ele limitar-se a isso, já que, em última instância,
“convém não esquecer, com efeito, que, se há interesse em distinguir o normal
do anormal, é sobretudo com vistas a esclarecer a prática” (p. 62).
Do
que se expôs a respeito do racionalismo científico de Durkheim, parece lícito
concluir que esse racionalismo assenta nos pressupostos de que há uma realidade
objetiva que se dá à observação; de que a razão não pode lograr conhecimento
verdadeiro do real sem estar ancorada na experiência, da qual se devem excluir
as influências de emoções e sentimentos; de que o conhecimento obtido na
investigação da conduta humana, considerada como domínio estruturado por
relações de causa e efeito, deve estar a serviço de ações intervenientes na
sociedade. Cuidamos que essas características do racionalismo científico
durkheimiano são herança do modo positivista de conceber e fazer ciência.
Também Durkheim, a despeito de seu claro racionalismo, não fazia concessão a um
racionalismo do tipo abstrato – fato, assim nos parece, que também contribui
para que seu pensamento se alinhe com o positivismo característico de seu
tempo.
4.2. A primazia da objetividade
É
lugar-comum dizer que a objetividade do trabalho científico depende de que o
observador tome como ponto de partida a sensação e não os conceitos abstraídos
dela. Nesse tocante, Durkheim afina-se com um empirismo estrito – a
matéria-prima de todos os conceitos é a sensação. Mas não tardará em esposar
uma visão que valoriza sobremaneira a objetividade, para a qual o próprio princípio
básico do empirismo constituirá uma ameaça. Durkheim adverte que “a sensação é
facilmente subjetiva” (p. 44), o que o leva a recomendar, sempre tendo como
modelo de referência o modo de proceder nas ciências naturais, o afastamento
dos dados sensíveis que venham a perturbar a atividade de observação, por serem
demasiado subjetivos. Da eliminação dos dados subjetivos da sensação, depende,
segundo Durkheim, o conservar aqueles que possibilitem atingir um grau de
objetividade suficiente. O autor pretende, a serviço da preservação da
objetividade, livrar a atividade científica de todo e qualquer juízo de valor.
Escusa
dizer que a objetividade pretendida para a ciência sociológica segue os moldes
da objetividade em que se fundam as ciências da natureza. É ilustrativo dessa
tendência o uso frequente que Durkheim faz do vocabulário do domínio discursivo
das ciências biológicas, do qual são exemplos os termos “espécie”, “evolução”,
“adaptação”, “saúde”, “doença”, “patológico”, etc.
Essa
pretensão de Durkheim de fundar o método sociológico nos moldes do método das
ciências naturais, o qual supõe uma separação estrita entre o observador e a
realidade observada, cujas leis ele supõe poder desvelar, parece corroborar a
visão, aqui sustentada, segundo a qual Durkheim é um herdeiro do positivismo.
5. Conclusão
Este
trabalho não deve ser lido como a expressão de uma tentativa de classificar
Durkheim de positivista. A despeito de nos parecer claras as marcas da
ideologia positivista no desenvolvimento do pensamento durkheimiano,
cuidamo-nos de não afirmar, em momento algum, que Durkheim é positivista[10],
sob pena de, se assim o fizéssemos, reduzir a complexidade e valor de seu
pensamento a um único sistema filosófico. Ademais, não cremos que tenha alguma
vantagem uma investigação sobre o pensamento de Durkheim que, ao cabo,
endossasse a conclusão de que ele deve merecer algum rótulo filosófico e
ideologicamente consagrado pela história do pensamento. Nosso objetivo basilar
foi mostrar que Durkheim foi influenciado, sob vários aspectos, por um modo de
pensar positivista e que essa influência se deixa ver através das marcas que se
podem encontrar em seu pensamento. Essas marcas serão aqui recapituladas, tendo
como eixo o primado da objetividade pretendida para a ciência sociológica.
Durkheim
compartilha com o positivismo a confiança no rigor dos fatos da experiência, os
quais são tomados como fundamentos para construções teóricas ulteriores. As
bases de seu método sociológico supõem a necessidade de observação dos
fenômenos. Os fenômenos ou fatos são dotados de uma realidade objetiva que se
impõe às consciências individuais (são exteriores a elas e sobre elas exercem
um poder coercitivo). Afinado com o pensamento positivista, Durkheim também
pensa que os fatos sociais devem ser considerados como coisas tanto quanto o
são as coisas materiais. Esses fatos podem ser estudados num estado “puro”, sem
que haja qualquer interferência de sentimentos ou pré-noções que perturbem a
análise objetiva. Tanto quanto os positivistas, Durkheim acalenta a crença de
que os fatos é que devem fixar um modo de interpretação e classificação.
O
sentimento não pode ser tomado como critério para estabelecer a verdade
científica. A razão deve ancorar-se na observação ou na experiência, deve
elaborar sobre uma objetividade que está calcada sobre os cânones em que se
baseia a objetividade pretendida pelo método das ciências da natureza. Segue-se
daí que um racionalismo do tipo abstrato deve ser rejeitado.
O
primado da objetividade também assume a forma de uma dependência da teoria em
relação à observação. Nesse tocante, procuramos argumentar, contrariamente ao
que nos fazia crer Durkheim, que a própria realidade dos fatos sociais como
“coisas” que se impõem à observação, como domínio fundante da objetividade, de
que depende o estabelecimento de uma ciência sociológica, era já produto de
certa teoria prévia, sem a qual a própria observação e a descrição seriam
desprovidas de um ponto de ancoragem. Os pressupostos teóricos, longe de
perturbar a observação e estorvar a descrição que se pretende “objetiva”, as
orientam e as iluminam.
O
próprio projeto de Durkheim, qual seja, o de fundar uma ciência sociológica
seria inviável – talvez, sequer lhe ocorresse como um empreendimento a que toda
uma obra seria devotada – se ele não se apropriasse de uma tradição
cientificista (não sem em face dela tomar uma posição que lhe seria própria)
que, remontando a séculos precedentes, marcou tão profundamente a sua época. Parece-nos
que qualquer tentativa de ler Durkheim que ignorasse esse fato incorreria no
perigo de subestimar seu pensamento e deturpar o valor inaugural de sua obra.
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fundamentais. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
[1] Os capítulos se intitulam,
respectivamente O que é um fato social;
Regras relativas à observação dos fatos sociais; Regras relativas à distinção
entre normal e patológico.
[2] Veja-se, nesse tocante, a proposta Bacon,
segundo a qual a atividade científica deveria prescindir de julgamentos com
base nas experiências subjetivas, nos gostos e preconceitos do cientista.
[3] Vejam-se, nesse tocante, Feyreband (1977),
Thomas S. Kuhn (2006) e A. F. Chalmers (2007).
[4] Comte descreve um desenvolvimento
histórico do espírito humano que compreende três estados: o teológico, o
metafísico e o positivo. Nesse último estado, o espírito humano teria atingido
o ápice de seu desenvolvimento, produzindo a ciência.
[5]
Veja-se, a título de exemplo, a lei
da gravitação universal formulada por Isaac Newton, que subsume as três leis da
mecânica clássica.
[6] A tradição formalista foi, inclusive,
bastante criticada por basear sua descrição em modelos formais de enunciados
que não são eles mesmos produtos do uso efetivo da língua. Trata-se de frases,
muitas vezes inventadas, para fins de descrição formal.
[7] O itálico pretende sinalizar que já se
pode ver a delimitação dos fatos sociais como produto de certa teoria que
pretende conferir-lhe uma realidade objetiva.
[8] Não se negue aí a rejeição durkheimiana a
uma ingenuidade empirista que tende a ver o conhecimento como derivado das
sensações e certa disposição para fixar, à moda kantiana, um ‘lugar’ para a
razão no processo de construção do conhecimento.
[9] Isso não é o mesmo que afirmar que
Durkheim acalentava a mesma pretensão de reformar moral e intelectualmente a
sociedade, à semelhança de Augusto Comte; mas sim que o saber científico e
sociológico, particularmente, deveria ter uma utilidade interveniente na
prática social.
[10] O uso do verbo “ser”, por nós estudado em
nossa tese de doutorado, é um instrumento especializado para categorizar
entidades com base na qualidade delas predicada.