
Por
que um canalha não pode ser filósofo?
A
questão que dá título a esta
exposição pressupõe já, formalmente, a incompatibilidade entre os tipos ‘canalha’
e ‘filósofo’. Procuraremos argumentar no sentido da impossibilidade de um
canalha ser um filósofo. O percurso argumentativo articulará entre si três
momentos: o primeiro dos quais é destinado à definição do tipo que chamamos
‘canalha’; o segundo momento recobre a apresentação de alguns pressupostos
gerais atinentes ao modo como a filosofia se define na Antiguidade; no terceiro
e último momento, apresentaremos o retrato platônico do filósofo na República. Ao cabo desse percurso,
esperamos tornar suficientemente convincente nossa crença de que o canalha não
pode ser filósofo.
A questão primeira que se
nos impõe em nossa tentativa de negar ser possível a um canalha ser filósofo é
a seguinte: quem é o canalha? Consideremo-lo um tipo existencial, à moda
nietzscheana, que reúne em si as seguintes principais características: 1) é um
fingidor; b) é corruptível; c) é avesso a padrões éticos; d) é escravo de suas
paixões; e) é um traidor. A característica a) diz respeito ao fato de o canalha
fingir ser quem não é; a característica b) diz respeito ao fato de ele ser
propenso à corrupção moral, sempre que o que está em jogo é a fruição de seus
próprios prazeres; a característica c), que se prende a b), diz respeito ao
fato de o canalha não se comprometer com padrões éticos; a característica d)
toca ao fato de o canalha agir sempre movido por suas paixões, buscando
satisfazer seus interesses egoístas; finalmente, a característica e) diz
respeito ao fato de o canalha faltar ao cumprimento de seus juramentos.
Tendo definido o canalha
pela apresentação dessas cinco características, passamos ao segundo momento de
nosso percurso. Esse segundo momento, conforme dissemos, recobre a apresentação
de pressupostos respeitantes à experiência filosófica na Antiguidade. Começo a
apresentação desses pressupostos, citando Hadot (2010, p. 18), que assinala: “A
filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver”. Mais adiante, acrescenta: “A
filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria”. (ib.id.). A
concepção de filosofia como ‘modo de viver’ se concilia com outra forma de
encarar a filosofia, da qual nos dá testemunho o próprio Hadot. Para ele e para
nós, a filosofia é exercício espiritual, que se realiza pelo discurso e pela
meditação e que se destina a operar uma modificação e transformação no ‘eu’ de
quem a pratica. Cabe, a esta altura, observar que, contrariamente ao que subjaz
à posição segundo a qual o comportamento moral de uma pessoa pode ser
dissociado de seu discurso filosófico (dissociação esta que está na base da
crença na possibilidade de um canalha ser filósofo), a experiência filosófica
como “maneira de viver” proíbe-nos de dissociar o discurso filosófico do modo
de viver filosófico. Acompanhando Hadot, sustentamos que o discurso filosófico
é, ao mesmo tempo, meio e confirmação do modo de viver do qual a filosofia é
expressão. Portanto, não cabe opor a filosofia como discurso teórico à
sabedoria como modo de vida a que se chega quando o discurso atinge seu
acabamento e perfeição.
Uma boa maneira de definir
o modo de viver filosófico, que já descortina o terceiro momento de nossa
exposição e que se afina com a compreensão socrático-platônica da própria
filosofia, encontramo-la em Hadot (p. 102): “Viver de modo filosófico é,
principalmente, voltar-se para a vida intelectual e espiritual, realizar uma
conversão que põe em jogo “toda a alma”, isto é, toda a vida moral”. Em Platão,
a filosofia é experimentar-se, ou ainda, é fazer a experiência de não ser o que
se deveria ser. A filosofia, na tradição socrático-platônica, é uma experiência
de cuidado de si indissociável do cuidado da cidade e dos outros. Com Sócrates,
a filosofia se torna um exercício espiritual que convida o homem a examinar
seus valores, sua maneira de agir, “para tomar cuidado consigo mesmo, como
também para uma ruptura radical com a vida cotidiana, com os hábitos e as
convenções da vida corrente, com o mundo que lhes é familiar” (Hadot, 2010, p.
66).
Uma breve digressão se
faz necessária. Toda discussão sobre a incompatibilidade entre um modo de ser
‘canalha’ e um modo de ser filosófico deve estear-se na crítica, feita por
Hadot, à representação da filosofia como mero conteúdo conceitual. Essa
representação da filosofia como mero conteúdo conceitual tem relação direta com
sua redução a uma disciplina acadêmica. Essa redução da filosofia a uma
disciplina acadêmica é consequência da separação entre o discurso filosófico e
o modo de vida filosófico, que se inicia com a modernidade[1].
Retomando-se o curso de
nossa discussão, intentando rejeitar a crença na possibilidade de um canalha
poder ser filósofo, insistimos na necessidade de retomar a relação,
estabelecida pelos gregos, marcante em Platão, entre sabedoria, conhecimento e
virtude. A virtude é indissociável da sabedoria, a qual, não sendo acúmulo de
conhecimentos, é “um estado de liberação total das paixões, de lucidez
perfeita, de conhecimento de si e do mundo” (Hadot, 2014, p. 57). A sabedoria,
no entanto, não é propriedade do filósofo. É importante insistir neste fato: o
filósofo não é o sábio; o filósofo é amante da sabedoria, ele deseja a
sabedoria e se devota a buscá-la a partir do reconhecimento de que “nada sabe”.
Na tradição
socrático-platônica – que é a tradição na qual nos movemos nesta exposição -, a
ciência ou o saber jamais são conhecimento puro e abstrato. A virtude é um
saber que escolhe o bem e quer o bem; é uma disposição interior na qual
pensamento, vontade e desejo se fundem numa unidade. Para Platão, a virtude é
ciência, e a própria ciência é virtude. A ciência, tal como pensada e praticada
na Academia, destinava-se à formação do homem, a uma lenta e difícil formação
de seu caráter. A ciência visava ao desenvolvimento harmonioso da personalidade
humana. Em suma, a ciência era um modo de vida destinado a assegurar uma vida
boa e, consequentemente, a “salvação” da alma.
Cumpre ainda elucidar a
figura do filósofo, tal como dela nos dá testemunho Platão na República. A questão que orienta toda a
problemática do Livro VI é a seguinte: quem
é filósofo e quem não é filósofo?
Em diferentes passagens deste livro, Platão nos fala do filósofo como a) aquele
que conhece o que é imutável (484a-d), b) ser virtuoso cuja alma é justa,
cordata e moderada (486a-e), c) o que luta pelo ser (490a-e), d) o que se torna
divino e ordenado, porque convive com o que é divino e ordenado (500a-e).
Também nos diz Platão que o filósofo é aquele capaz de contemplar a essência da
Justiça e o Belo em si. Acrescenta que os filósofos são pintores que utilizam o
modelo divino. Eles são educadores da alma: cabe a eles criar nos homens a
temperança, a justiça e toda a virtude. Platão “pinta”, por assim dizer, o
mundo do filósofo. Como é este mundo próprio do filósofo? Acompanhando Platão,
somos levados a concluir que o mundo dos filósofos é o mundo das Ideias, dos
modelos imutáveis das coisas sensíveis. A vida do filósofo é devotada à
compreensão dos Princípios. O filósofo é aquele que se volta para a
contemplação do Bem, que é o horizonte a partir do qual o mundo inteligível se
ilumina, tornando possível a compreensão dos Princípios.
Uma dimensão importante
na constituição da figura do filósofo é a paidéia filosófica. A paidéia é uma
conversão da alma que se volta do mundo sensível para o mundo inteligível. A
paidéia é uma forma de educar o olhar, de ensinar a ver. É pela paidéia que o
filósofo se torna quem ele é: amante da sabedoria, incorruptível e fiel à
filosofia. Essa forma de pedagogia filosófica torna os filósofos os únicos
capazes de guardar as leis e os costumes da cidade, sem se perderem nas
aparências das coisas e das opiniões. Eles são avessos à mentira. São também os
mais aptos para governar porquanto dispõem da condição para o bem governar, a
saber, o conhecimento da Justiça e do Bem em si.
Sendo necessariamente
virtuoso, o filósofo é um homem em cuja alma a parte racional domina as partes
apetitiva e irascível. A alma do filósofo é, portanto, uma alma virtuosa porque
não cede aos apelos irracionais das paixões. A parte racional de sua alma tem
como virtude o conhecimento. O filósofo é, portanto, aquele que vive uma vida
justa, o que equivale a dizer que cada parte de sua alma realiza sua própria
excelência sob a orientação da parte superior, que é a razão.
Deter-nos-emos um pouco
na consideração do sentido da razão como parte superior da alma humana. A razão
é responsável por dar a medida. A parte racional da alma – repetimos - cumpre a
função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. Dessa
qualidade da parte racional da alma, Platão nos dá testemunho, fazendo Sócrates
dizer a Adiamanto:
- Diremos além disso que há pessoas que, quando têm
sede, recusam beber?
- Sim, há muitas, que o fazem muitas vezes.
- Então, que se dirá acerca delas? Que na alma delas não está presente o
elemento que impele mas sim o que impede de beber, o qual é distinto do que
impele e superintende nele?
- É o que parece.
- Porventura o elemento que impede tais atos não
provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o que impele e arrasta
deriva de estados especiais e mórbidos?
- Acho que sim.
- Não é, portanto, sem
razão que consideraremos que são dois elementos, distintos um do outro,
chamando àquele pelo qual ela raciocina, o elemento racional da alma, e aquele
pelo qual ama, tem fome e sede e esvoaça em volta de outros desejos, o elemento
irracional e da concupiscência, companheiro de certas satisfações e desejos.[2]
A parte racional é a
parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio
divino em nós. A psicologia proposta e descrita por Platão se articula com sua
teoria ética. Não podemos perder de vista essa articulação, já que, ao dividir
a psykhé em três partes, Platão está
interessado em determinar as condições necessárias para que um homem pratique o
bem e seja virtuoso. Se dominado pelas partes apetitiva e irascível, esse homem
não pode tornar-se virtuoso. É preciso, para tanto, que a parte superior e
melhor da alma comande as demais partes. A própria possibilidade de haver
justiça, discutida no livro IV de A
República, supõe o comando do superior e melhor sobre o que é inferior e
pior. Em outras palavras, para haver justiça, a parte racional da alma, que é a
parte superior e melhor, deve governar as partes inferiores, a apetitiva e
irascível. Que não reste dúvida sobre a relação necessária que Platão
estabelece entre a vida virtuosa e a parte racional da alma. Esclarecemo-la.
Platão sustenta a crença – que deve a seu mestre Sócrates – de que as paixões
do desejo e da cólera levam à produção de apetites em nosso corpo, os quais
concorrem para toldar a inteligência. O obscurecimento da inteligência por
esses apetites que decorrem das paixões do desejo impedem-na de realizar sua
atividade própria, que é conhecer. O que resulta daí é a ignorância, que é o
próprio vício. Logo, incapaz de exercer a razão, o indivíduo fica
impossibilitado de conhecer as virtudes e de tornar-se virtuoso. É assim que a
vida virtuosa dependerá unicamente da parte racional da alma.
Se nos perguntarmos sobre
qual é a tarefa ética da parte racional da alma, a resposta deve já nos saltar
evidente: dominar as outras partes da
alma, de modo a harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a
concupiscência é o que chamamos temperança
(sophrosýne). Sophrosýne é moderação. A temperança é a virtude da alma
concupiscente que se deixa dominar pela razão. Uma alma que se dispõe para a
temperança resiste aos impulsos e prazeres, modera os apetites e impõe-lhes uma
medida racional.
A vida se diz virtuosa,
quando cada uma das partes da alma realiza sua própria virtude sob o comando da
razão. Por outro lado, a vida viciosa é aquela na qual todas as partes da alma
falham na tarefa de realizar a sua excelência ou virtude que lhe é própria.
Acresça-se que nos falta dizer qual é a virtude própria da parte irascível da
alma. A parte irascível da alma serve de intermediário na ação da razão sobre a
parte concupiscente da alma. A razão não atua diretamente sobre a parte
concupiscente, já que é preciso que, no comando da concupiscência pela razão,
intervenha o sentimento de defesa da vida pelo qual é responsável a parte
irascível. A virtude da parte irascível da alma é a coragem (thýmos) ou a prudência (phrónesis). Dominando a parte irascível
da alma, a razão possibilita a ela discernir entre o que é bom e o que é
prejudicial para a vida do corpo.
Tomemos, agora, a vida
viciosa, da qual podemos dizer ser a vida do canalha. Essa vida se caracteriza
pela desarmonia entre as partes da alma. Nenhuma das partes da alma consegue
realizar a excelência que lhe é própria. Trata-se de uma vida injusta, porque
lhe falta o comedimento, a ordem interior. Nela, os apetites dominam a parte
racional ou a parte colérica, fazendo-as se enganar e tornando-as conflitantes
entre si.
Somente o filósofo é apto
para intuir a Ideia de Justiça, sem a qual não é possível a realização de uma
cidade justa. Platão estende o governo dos apetites e da cólera pela razão à
compreensão do governo da cidade, a qual é concebida como um conjunto
hierarquizado de funções cada qual com sua dýnamis
e sua areté. Assim, no Livro V,
Platão mostra que a justiça é harmonia no Estado e na alma. Como o filósofo é
aquele cuja alma é harmoniosa, aquele que é mais apto para atingir o
conhecimento verdadeiro, para contemplar a Ideia de Justiça, somente a ele
poderia ser conferida a função de governante da cidade justa. Suas propriedades
intelectuais e éticas são garantidas pelo exercício da dialética que conduz à
intuição da Verdade e do Bem em si.
Concluímos, pois, nosso
itinerário descritivo da figura do filósofo, destacando do método dialético,
indispensável na formação do filósofo, dois aspectos: o primeiro dos quais
consiste no fato de a dialética ser o caminho para descobrir quais Ideias
participam de outras e quais não podem participar de outras. A dialética é,
assim, um processo ascensional que visa às Essências. Pela dialética, o
filósofo é levado a reconhecer que há entre as Ideias um princípio de
comunicabilidade e que a maneira como as Essências se comunicam entre si se
reflete na maneira como as coisas sensíveis se comunicam. A teoria da
participação, coração da doutrina platônica, revela que estamos vinculados às
Essências e que o ato de pensar não se separa do ato de nos vincularmos
dialeticamente aos deuses. O filósofo, portanto, é aquele que, por ter memória,
visa às Essências. O filósofo é, por natureza, virtuoso – repitamos – e, como a
virtude, em Platão, é um processo ascensional, o próprio filósofo é aquele
ascensionalmente voltado para as realidades divinas. Nada semelhante se dá com
o tipo canalha, avesso a qualquer horizonte vinculativo, infiel, movido por
interesses egoístas para cuja satisfação ele se lançará irrefletidamente sem o
menor escrúpulo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HADOT, Pierre.
O que é filosofia antiga. São Paulo:
Edições Loyola, 2010.
_____________ Exercícios Espirituais e filosofia antiga. São
Paulo: Realizações Editora, 2014.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret,
2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário