Os pré-socráticos
A busca pela origem
Não escrevo esperando que meus textos angariem o interesse de muitos leitores; deles pouco sei, já que entre os que me leem são poucos os que deixam suas impressões verbais. E tendo reconhecido isso, preciso lidar com a inquietante questão sobre o porquê, afinal, de dedicar-me tanto a escrever e de propalar meus escritos em um blog. De que me serve divulgá-los, se ainda corro o risco de que eles sejam aproveitados por indivíduos fraudulentos? Que me vale escrever sobre temas que cuido serem intelectualmente fecundos, e preciosos se deles conheço poucos interessados?
Bem sei que há, entre meus seletos leitores, os que me confessam apreciar meus jardins de reflexões, meus tecidos verbais; por isso, talvez, o interesse deles me seja suficiente para animar-me a mente e o coração para que eu continue a escrever. Talvez, devesse eu contentar-me com isso. No entanto, logo reconheço que não escrevo para ser lido. Lembro-me de que, durante muitos anos, escrevia para desanuviar o espírito ou para expurgar sentimentos envelhecidos e daninhos que estavam entulhados ali. Minha escrita sempre foi catártica e não visava a um público. Não havia leitor, senão eu mesmo. Escrevia como quem tem necessidade de se expressar quando sabe que alguma coisa está errada. Escrevia como quem tem necessidade de quebrar um silêncio que, de outro modo, o tornaria cúmplice de um dado ponto de vista. Escrevia para incoformar-me em face do que via, sentia, ressentia, do que experienciava. Era a única forma que encontrei para viver apesar do mundo. Não custa reiterar que minha escrita era uma escrita de resistência.
E sigo resistindo. Agora, ao desinteresse generalizado, ao gosto pela mesmice, à inércia intelectual em face das questões mais urgentes e profundas que a sociedade nos coloca, sobre as quais a vida, a todo momento, nos convoca a pensar ; sigo resistindo à dificuldade que muitas pessoas têm de elevar seu espírito acima dos temas triviais que a mídia repisa (especialmente a televisão). E resisto, especialmente, à crença comum, alimentada nos meios educacionais e que convive bem com outras tantas crenças equivocadas, produto de uma era repleta de incertezas, marcada pelo efêmero, pela obsessão pela novidade e consumo desenfreado de bens descartáveis, segundo a qual o conhecimento só vale quando pode ser aplicado ou quando serve para alguma satisfação imediata. Essa crença é alimentada por professores também, que esperam que se lhes dê a receita pedagógica e que vivem a levantar suspeitas sobre a validade de aprender sobre tantas perspectivas teóricas. De que serve tamanha empresa intelectual, se, no final das contas, não precisaremos de nada disso, quando temos de ensinar a jovens desinteressados pelo estudo, pensam.
Este texto, que se vai desnudando, à medida que o escrevo, não carece de justificativa. Deve ele ser encarado como mais um testemunho do quanto me apraz estudar para saber. Ele é a expressão desse saber compartilhado neste espaço virtual. Enquanto o componho, exercito a capacidade de sistematização do pensamento. Escrever é uma forma de exercitar o pensamento, de discipliná-lo, de dar-lhe ordem, unidade, coerência. Também o conhecimento, quando representado na escrita, quando textualizado, é reinterpretado, reconstituído, reestruturado. Escrever permite sistematizar as reflexões prévias, a análise; mas também permite operar a segunda etapa da análise.
Este texto, então, pretende convidar o leitor a uma aventura: a aventura do saber. Pretende guiá-lo no universo da filosofia nascente, para revisitar o pensamento dos filósofos pré-socráticos. Mas também pretende suscitar questões fundamentais sobre o Absoluto, diante do qual o pensamento silencia e a alma se pasma. Deixemos, por alguns instantes, nossas preocupações cotidianas para meditar sobre o princípio que produziu todas as coisas. Vejamos como aqueles filósofos gregos tentaram dar conta das seguintes questões:
a) Qual a origem do cosmos?
b) Como um único princípio pode dar origem a multiplicidade das coisas no mundo?
c) Como o imutável e idêntico a si mesmo pode gerar o mutável e diverso, o múltiplo?
d) Como o uno dá origem ao múltiplo?
e) Como o múltiplo pode retornar ao uno?
PARTE 1 – OS PRÉ-SOCRÁTICOS
Pré-socráticos é a designação que, tradicionalmente, recobre os primeiros filósofos que viveram antes de Sócrates (470-399 a. C). Alguns chegaram a ser contemporâneos do grande filósofo. Sócrates é um marco da divisão cronológica da filosofia grega devido muito ao fato de ele ter proposto uma nova problemática para as discussões filosóficas, qual seja, a humana e social. Com Sócrates, a filosofia passou a se ocupar com questões ético-políticas que até então não apareciam na agenda dos filósofos predecessores. Embora essa compreensão do papel de Sócrates tenha sido a compreensão consagrada pela historiografia da filosofia, ela mascara o fato de que, na verdade, foram os sofistas, anteriores a Sócrates, quem inaugurou uma filosofia que se ocupou com o nomos, ou seja, a ordem humana.
Sabemos constituir tarefa difícil o conhecimento das produções desses filósofos, visto que sua obra praticamente se perdeu, sobrando dela apenas algumas citações ou comentários, encontrados, por exemplo, em Aristóteles (384-323 a.C.), na Metafísica. Não obstante a escassez desse legado, esses filósofos anteciparam muitas questões das quais se ocuparia a ciência moderna. Veja-se, a propósito, a contribuição da escola atomista, da qual faziam parte Leucipo (fundador da escola) e Demócrito (seu discípulo e responsável por desenvolver a doutrina conhecida como atomismo. O atomismo era uma doutrina que sustentava que a realidade é constituída de átomos e que eles se atraem e se repelem no vazio, produzindo, assim, os fenômenos naturais e o movimento. O atomismo antecipou a física atômica contemporânea, cuja noção de átomo deriva dessa tradição, a despeito das grandes diferenças existentes entre um e outro ramo do conhecimento.
A pluralidade parece ter sido a característica determinante desse período do pensamento grego, a despeito de ser possível distinguir nele duas escolas: a Escola jônica e a Escola italiana. A primeira compunha-se dos filósofos Tales de Mileto, Anaxímenes, Xenófanes de Colofon e Heráclito de Éfeso. A segunda compreendia os filósofos Pitágoras de Samos, Filoau de Crotona e Parmênides de Eléia.
A Escola Jônica interessava-se, sobretudo, pela physis (a natureza). (mais adiante, definirei physis). A Escola italiana propunha uma reflexão mais abstrata sobre o mundo e a ela devemos o surgimento da lógica e da metafísica.
Os pré-socráticos procuraram desenvolver uma cosmologia, a saber, uma doutrina que oferecia uma explicação racional sobre a origem e a ordem da natureza, bem como sobre as causas de suas transformações, da geração e perecimento dos seres. Interessaram-se pelo estudo da physis, que pode apresentar, pelo menos, três significados: 1) a ação que produz, que faz nascer; 2) a natureza intima de uma coisa ou ser, ou a disposição espontânea e natural de um ser; 3) uma força que produz ou cria todos os seres. Disso se segue que “nada vem do nada e nada retorna ao nada”. A physis é o princípio de tudo que existe. Há physis e sempre houve, pois que ela é eterna. Todavia, para que haja physis é necessário que haja nela ou antes dela um princípio fundador que a revela. Enquanto a physis pode ser percebida, porque compreende tudo que é (o céu, a terra, a água, o fogo, as estações do ano, os animais, os homens, a moral humana, a política, as ações, os pensamentos dos homens, os deuses, etc.), a arkhé é a origem, o princípio absoluto de tudo que existe. A arkhé está antes de tudo, no começo e no fim de tudo. É o fundamento que dá ordem a todas as coisas, que as governa. É eterna e imutável. Portanto, enquanto a physis é o que se revela, a arkhé é o oculto.
Ao refletir sobre a physis, os filósofos espantavam-se com a perpétua instabilidade das coisas. Admiravam-se do movimento, o qual compreende todas as formas de mudança (qualitativa, quantitativa e de lugar). Assim, para os gregos, a noção de movimento não se limitava a deslocamento de um corpo no espaço, mas abrangia ainda as noções de nascimento/ crescimento/ morte, geração e corrupção dos seres. A kinesis, ou o devir, caracterizava fundamentalmente a natureza e, com pasmo, eles se voltavam para ela a fim de explicá-la.
PARTE 2 – Monismo x Mobilismo
Heráclito de Éfeso, filósofo da Escola jônica, era chamado “o Obscuro”, em virtude da dificuldade de interpretação de seu pensamento. Ele foi um representante do mobilismo, doutrina segundo a qual a realidade da natureza se caracteriza por um movimento contínuo. Tudo flui, ensinará o filósofo. Particularmente importante é o conceito de logos, em seu pensamento, já que por meio dele pode-se explicar a unidade da realidade. O logos é, assim, o princípio que unifica a realidade, é o princípio de racionalidade do cosmos. O cosmos, inicialmente, designava a ordem no mundo humano, visto que dizia respeito às ações humanas que se conformavam ao estabelecido; posteriormente, passou a designar a ação humana que produz a ordem no mundo; finalmente, com a filosofia, passou a designar a ordem do mundo.
Segundo Heráclito, tudo é movimento, tudo está em fluxo ininterrupto, mas atrás da mudança, da diversidade das coisas havia um princípio básico de unidade. Havia uma unidade na pluralidade. Essa concepção pode ser entendida como a expressão do conflito entre os opostos. Esse conflito produz o equilíbrio, porque os opostos se equivalem e se reúnem (dia e noite, calor e frio, vida e morte são opostos que se complementam). Em Heráclito, a pluralidade do real é acessível à experiência sensível. Sua filosofia centra-se nessa experiência. O fogo é, para ele, o elemento primordial, já que o fogo a tudo consome e se autoconsome, enquanto energia. Ele simboliza o dinamismo próprio da realidade.
Parmênides de Eléia, expoente da doutrina monista, segundo a qual existe uma única realidade base por trás do movimento percebido introduziu e desenvolveu a distinção entre realidade e aparência. Destarte, ele situa o movimento no domínio da aparência; é o movimento um aspecto superficial das coisas. A verdadeira realidade é o Ser e só pode ser conhecida pelo pensamento que ultrapassa a experiência sensível. O Ser é imutável, não tem começo, nem fim; é contínuo, indivisível. O Ser identifica-se com o pensamento. Assim, para pensar o ser, o homem deve trilhar o caminho da verdade, da razão e afastar-se da opinião, que é mutável, porque formada de hábitos, percepções, impressões sensíveis, imprecisas e ilusórias. O Ser é o real numa acepção mais abstrata e básica.
Para Parmênides, ao contrário de Heráclito, o movimento não define o real. O filósofo do Ser defendia o pressuposto de que sem o permanente, o imutável não se pode compreender o mutável. A noção de movimento pressupõe, portanto, a de permanência.
Melisso de Samos, discípulo de Parmênides, viria a defender o monismo contra os filósofos do mobilismo, afirmando que o Ser é eterno, imutável, atemporal e incriado (Marcondes, 2008).
ÙLTIMAS NOTAS
Os filósofos pré-socráticos, por se preocuparem em estudar a physis, ficaram conhecidos como physiologoi, ou físicos. Todos estavam interessados em determinar um princípio primordial que deu origem à ordem do mundo. Tales de Mileto, por exemplo, o primeiro filósofo, o fundador da filosofia grega, sem fazer apelo ao sobrenatural, explicava a natureza adotando como princípio gerador a água. Anaximandro, a seu turno, discípulo de Tales, propunha o apeíron (o indeterminado, o ilimitado), que é um princípio abstrato. Coube a ele falar também em arkhé com o sentido já referido. Anaxímenes propôs o ar como princípio primordial, ou seja, como o arkhé. Sendo um elemento incorpóreo e invisível, o ar permitia ao filósofo dar uma explicação de caráter mais abstrato para o real. Xenófanes, a seu turno, concebia a terra como o princípio primordial.
Finalmente, elenco abaixo, com base em Chauí (2010), as principais características do pensamento grego na sua fase pré-socrática:
1) a filosofia nascente era uma cosmologia e, como tal, estava interessada em explicar racionalmente a ordem do mundo, o que implica determinar suas causas, sua forma, compreender suas transformações;
2) Era uma filosofia que não admitia que tudo que existe viesse do nada, por isso assentava no pressuposto de que “nada vem do nada e nada retorna ao nada”. Não há, portanto, criação a partir do nada (como sucede na narrativa do Gênesis em que o Deus judaico-cristão cria o mundo a partir do nada). Assim, o real sempre existiu, pois que é eterno, imortal. Há uma força imperceptível, mas imperecível que conserva a estabilidade e a permanência, malgrado a mutabilidade da superfície das coisas;
3) Era uma filosofia que se ocupa do estudo da physis, que é a base de tudo que existe. Ela é perene e dela tudo brota, tudo deriva;
4) Era uma filosofia que tinha de lidar com o problema do devir (a existência inegável da mudança das coisas, do movimento, do fluir incessante) relativamente à possibilidade de o real poder ser pensado. O pensamento só pode pensar o imutável, o permanente, o Ser. Como o uno, o idêntico a si mesmo se torna múltiplo, diverso? Pressupondo o uno (physis), como pode ele produzir o diverso, o diferente de si e mutável? Pressupondo o múltiplo (kósmos), como, então o uno é possível?
5) Finalmente, era uma filosofia que fundou a distinção, posteriormente explorada por Platão, entre a aparência do mundo e a essência ou verdade do mundo. O domínio da aparência é acessível à experiência sensorial; o da essência, à experiência do pensamento, intelectiva, portanto. Pelo pensamento, busca-se atingir (entenda-se compreender) o ser. Assim, a physis, que é manifestação da arkhé, torna-se, manifesta ao pensamento, e não mais só para os olhos do corpo. Com o decorrer da filosofia pré-socrática, a physis passará a ser visível apenas para o pensamento e oculta para a experiência sensível.
Também encontraremos no Hinduísmo e no Taoísmo uma explicação para a origem de tudo que há. Na primeira, o princípio primordial (portanto, único e unificador) é chamado de Brahman, que é a força primordial que sustenta o mundo. Na segunda, encontramos o Tao, que também encerra o espírito da indivisibilidade, é uno, portanto. O Tao é o absoluto, ou
“(...) caminho, representa o elo que liga todos os tempos. É um caminho de infinidade. É o caminho que rompe a barreira do tempo e do espaço. É tão grande que nos permite apreender todas as coisas. É tão minúsculo que pode caber dentro de um grão de poeira”.
(Iniciação ao Taoísmo, p. 12)
Houve um tempo em que precisei contar com a literatura filosófico-religiosa, como o Taoísmo, o Budismo, o Bhagavad Gita, e ela devo muito minha compreensão mais apurada da vida e do sofrimento. O Budismo reza que nascer é sofrer, viver é sofrer e morrer é sofrer. Uma religião sem deus que me pareceu muito mais inspiradora e consistente com o real, com a aridez da vida. Elas me permitiram tocar de leve o Mistério que nos abraça. Não me refiro ao mistério da origem do universo, que a teoria até então aceita – Big Bang, parece explicar de modo satisfatório. Há vestígios da Grande Explosão no espaço, segundo os cientistas. Nós, leigos, no entanto, não nos satisfazemos com essa verdade. Podemos compreendê-la e aceitá-la, mas, ainda assim, sobra-nos pesadamente um sentimento inexplicável. Esse sentimento é o sentimento de Existir. Os textos hindus reunidos sob a designação Upanixades, a despeito de reconhecerem um “eu” efêmero, que há de fenecer, que se identifica ao “ego”, rezam existir um eu essencial, definido como atman. Este eu é infinito, transcendente. Um eu interconectado a todos os outros seres. Assim, o nosso eu transitório é apenas uma máscara (o que está de acordo com algumas teorias sociológicas e da Análise do Discurso). Há verdade nessa afirmação. O nosso eu é uma imagem, um simulacro, ensina um psicanalista francês. Mas o atman (eu transcendente) é indefinível, inapreensível.
Esse sentimento de unidade do eu, que torna cada um de nós único, esse sentimento que me informa de quem eu sou para além de minha natureza físico-corpórea, mesmo sendo produzido por um cérebro, mesmo sendo uma ilusão deste órgão, como nos ensinam os neurocientistas, esse sentimento é inextinguível.
Os filósofos pré-socráticos estudados aqui, bem como as religiões referidas acima, nos suscitam a grande questão: é possível a existência de uma realidade supra-sensível? É possível que haja existência para além da ordem material de que nos fala a ciência? Há, por detrás de tudo que experienciamos, alguma força invisível que fez brotar a vida? Os cientistas nos falam da expansão cada vez maior do Universo. Falam-nos da extinção do sol, das galáxias. Existirá um Fim? Ou será o universo eterno? Não será, como imaginou Nietzsche, o tempo cíclico? Poderemos falar de fim absoluto ou de términos e recomeços de ciclos cósmicos? Será a vida inesgotável? Creio que, no estado de finitude, que é intrínseco à natureza humana, o sentimento de inesgotabilidade da vida só temos na experiência amorosa. Claro que nos enganamos; no mais, estamos certos de que passaremos, de que vivemos para um dia morrer. O movimento é inevitável, é a ordem natural das coisas, tudo flui, tudo muda. E vivemos cientes de que o nascimento é o início de nossa inescapabilidade ao movimento.