sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

"Como todos os sonhadores confundi o desencanto com a verdade!" (Sartre)

                  


                                        Desencantos verbais

O convívio  com os livros me desencanta. Falarei de mim aqui, do que me diz respeito. A leitura é a atividade de que me ocupo cotidianamente e à qual dispenso uma grande quantidade de tempo. E quanto mais leio, quanto mais aprendo e quanto mais reconheço quão vasto é o terreno de minha ignorância, mais quero percorrê-lo. No entanto, esse percurso incita-me a levantar-me com rigor crítico em face de tudo que me permito perceber. Tudo carece de clareza: compreende os acontecimentos, as opiniões, as ideias, as imagens, os textos que se apresentam a nós como objeto de interpretação, ou seja, de leitura. Estamos a todo momento lendo o mundo, buscando apreendê-lo pela leitura da palavra. O equívoco, aos incautos, é inevitável: pensam que o texto reflete o mundo tal como é. Enganam-se: o mundo é textualizado. O texto (ou discurso) reconstrói o mundo, fornece um modelo de mundo – o modelo de mundo textual.
Parece-me que a vida perde um pouco de sua força quando abandonamos nossos projetos. O homem é um projeto, ensinara Sartre; abandonar projetos é abandonar a si mesmo. Os livros me entulham a cabeça de projetos; estimulam-me até as vísceras os pensamentos, sacode-os, fazem-nos vibrar na milionésima potência do desejo de ser mais. Ante a mim, excertos de conversas sobre o tema ateísmo. Estampados na tela do computador os enunciados diversos de participantes, mal amparados argumentativamente. Um deles é até honesto, ao confessar não ser bom com as palavras. Excogitei da ideia de escrever sobre tais contribuições a fim de patentear aos meus leitores as inconsistências, os lugares-comuns, a fragilidade dos argumentos. Fá-lo-ia com o propósito de justificar meu desencanto ao envolver-me nesses debates pouco férteis. Há, devo dizer, aqui ou ali, uns que se destacam e isso me aproveita; no entanto, a quantidade de pensamentos rasos nutridos ora no letramento científico (não suponho que seja adequado, longe disso), ora amparado no adestramento doutrinário, faz-me desistir da empresa.
Como nossas relações uns com os outros e com o mundo são mediadas pela linguagem, os desentendimentos, as más interpretações, o equívoco estão sempre virtualmente presentes. O entusiasmo com que defendo minhas posições ateístas foi incomodamente notado. Não obstante, a indiferença mútua (entre mim e os religiosos) tem sido uma espécie de terreno comum onde viceja complacência. Quando me imiscuo em debates (imiscuo-me porque os debates são “coisas” alheias), procuro uma saída, lanço luzes que alcançam os caminhos obscuros que se abriram, luzes que permitem avanços. Alguns os reconhecem e se agradam deles; outros os ignoram. Nunca sou a voz primeira (não existe uma voz primeira, adâmica!). Aprendi com a filosofia a demorar-me na observação, no exame silencioso, na contemplação, na admiração. Só tomo parte quando reconheço a oportunidade, quando uma brecha de silêncio se nota e o silêncio pede para ser preenchido com minhas palavras, que abrirão outros silenciamentos. O silêncio é fundante. A linguagem NÃO É TRANSPARENTE; pelas palavras escorrem silêncios. Explico-me: nunca dizemos tudo que temos a intenção de dizer. É por um efeito ideológico que acreditamos na suficiência da linguagem, na sua completude, na sua transparência, na sua capacidade de fechar o sentido, de dar-lhe um acabamento, de dar-lhe limites precisos no discurso que produzimos. Mas os sentidos vazam, seguem direções diversas. O trecho abaixo, colhido de As formas do silêncio (2007), de Eni Puccinelli Orlandi, ilustra bem o que venho dizendo a respeito do lugar do silêncio na linguagem:

“As palavras são cheias, ou melhor, carregas de silêncio. Não se pode excluí-lo das palavras assim como não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do silêncio só pela verbalização”.

(p. 67)

Se não se pode recuperá-lo apenas pela verbalização, então o sentido do silêncio extrapola a linguagem; está situado nos intervalos entre as palavras ou atrás delas. Está para além da materialidade do texto. Veja-se o caso das paráfrases. A paráfrase não é uma mera reprodução do significado por meio de combinações sintáticas diferentes; há sempre algo que escapa; há sempre um silêncio rico de significações. O silêncio não é o vazio, o sem-sentido, mas a condição mesma para o sentido, a fertilidade para os sentidos. Ele atravessa as palavras.
Oponho-me ferrenhamente aos discursos dogmáticos e autoritários também porque pretendem sufocar o silêncio, porque pretendem dizer o sentido definitivo, porque nos querem fazer crer que nada mais há para ser dito.
Basta-me, por ora.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A religião do Imperador

                          
                           Para fazer a crítica
                         A originalidade do Cristianismo

Todo aquele que escreve o faz pressupondo uma audiência, mas não formada por quaisquer leitores, mas de leitores tipificados. O projeto do trabalho artesanal que é a escrita deve, para lograr sucesso, prever uma classe de leitores interessados, sobretudo, no assunto de que haverá de se tratar. Creio, porém, que o bom escritor não é aquele que acerta na previsão de sua audiência (é possível que os leitores em potencial sequer tomem conhecimento do texto); o bom escritor é aquele que compõe uma obra (textos ou livros) que satisfaz a si mesmo. O ganho aí não advém da grande projeção de sua obra, que se lança à incerteza dos temperamentos, gostos e inclinações dos leitores; o ganho advém do reconhecimento pelo escritor de que, ao compô-la, auferiu avanços intelectuais. É que escrever faz avançar o conhecimento. Eu escrevo também para, meditando sobre o que aprendi, em minhas leituras diárias, consolidar conhecimentos. A escrita permite-me, pois, experimentar esses conhecimentos.
Tenho-me comprometido com a causa ateísta nos debates em redes sociais, não sem alguma insatisfação. Enfado-me com a forma agressiva como os participantes atuam na defesa de suas posições infensas à religião, particularmente cristã – uma agressividade que, em alguns, mascara o empobrecimento de uma retórica embasada culturalmente, do que resulta a enxurrada de palavreados (ou a escassez deles) que não fazem senão, basicamente, insistir na supremacia do discurso científico sobre a irracionalidade, supostamente inerente, do discurso religioso. Trata-se, aos olhos de um debatedor arguto, da disseminação sem peias da ideologia do neocientificismo, agora mais robusta e disposta a declarar guerra às aspirações “infantis” alimentadas pela religião. Ela reza o poder indiscutível de a ciência fornecer explicações amplamente aceitas sobre a nossa origem e, como se não bastasse, quer fazer crer aos religiosos que essas explicações devem ser suficientes para nos confortar em face da certeza de que morreremos, em face da consciência de que a vida se passa entre dois nadas. Essa ideologia (aliás, muito ingênua, já que ignora toda uma literatura dedicada a repensar o alcance do projeto da cientificidade) quer dissipar o absurdo, conferindo ao Nada quase a mesma qualidade que tem o sagrado, num sentido específico: tanto um quanto outro exige conformação. Temos de aceitar o fato de que viemos do nada e retornaremos ao nada, e temos de reconhecer que o sentido da vida não é transcendente, mas imanente, não é dado por um Deus grandioso, de cujo plano cósmico todos nós participamos por uma relação pessoal de amor e obediência, mas é vivido por nós e dependente da atribuição de significações feita por nós às nossas experiências de mundo.
O erro nesta postura crítica e agressiva repousa na ignorância ou desleixo na consideração da gênese cristã, da história de sua consolidação como a religião do império de Constantino (no ano 312 de nossa era), repousa também na negligência na consideração dos aspectos que tornaram o Cristianismo superior tanto ao paganismo quanto as religiões orientais. Em suma, repousa na falta de uma visão critica sobre a estrutura do que Paul Veyne, em Quando nosso mundo se tornou cristão (2011), chamou de “fabulação” desenvolvida pelo cristianismo.
Procurarei mostrar, no que se segue, que as posições ateístas não podem limitar-se a margear a ideologia cristã; deve atingir-lhe o núcleo, deve penetrar-lhe as vísceras, e isso só é possível se conhecermos a história de sua formação, se conhecermos a sua narrativa, as forças que tornaram essa religião tão grandiosa e poderosa no mundo ocidental.

1. O contexto sócio-histórico no século IV

A conversão sincera do imperador Constantino, em 312, ao cristianismo foi um fato determinante para a ascensão dessa religião. Ela se tornou a religião digna de seu trono. Constantino fora um imperador complacente com os ritos pagãos que ainda sobreviviam, a despeito de ter assumido o cristianismo como a religião oficial do império.
Dentre os motivos que levarão o imperador a converter-se ao cristianismo, depois de um sonho em que Deus teria se revelado anunciando-lhe a vitória na batalha que visaria a tomar a Itália de Maxêncio, de quem os cristãos diziam era um perseguidor, está a crença acalentada por ele segundo a qual um grande imperador deveria ter um grande deus.
A cristianização do Império foi lenta, mas promissora graças ao poder de Constantino. O historiador Paul Veyne, cujo trabalho referi acima e no qual minhas reflexões se apoiarão, esclarece-nos:

“Graças a Constantino, a lenta porém completa cristianização do Império pôde começar; a Igreja, de “seita” proibida que tinha sido, tornou-se mais do que uma seita lícita: estava instalada no Estado e acabará um dia por suplantar o paganismo como religião integrada aos costumes. Durante os três primeiros séculos, o cristianismo permaneceu como uma seita, porém de modo algum no sentido pejorativo que os alemães dão a essa palavra (...)”.
(pp. 29-30)

O cristianismo, de fato, se tornaria superior ao paganismo, como veremos, mas não deixou de apropriar-se de alguns de seus elementos. Continuemos notando, por ora, que o cristianismo, a despeito de ter-se tornado a uma religião legal por força da adesão cordial do imperador Constantino, teve de enfrentar a hostilidade e indiferença populares, bem como passou a constituir “o grande problema religioso do século ou seu pior erro” (p. 35) na opinião de eruditos. Deve-se dizer que o cristianismo só veria a se tornar a religião oficial do Império Romano no fim do século IV com Teodósio. Mas antes mesmo de seu reconhecimento como religião oficial, o cristianismo era o tema preferido nos debates públicos. No século III, a  questão de maior interesse, que entrava na pauta das discussões sociais, era a das grandes verdades e do destino da alma. A inquietação provocada nas classes dominantes decorria da questão de saber qual era o lugar do cristianismo em relação ao paganismo.
Decerto, o cristianismo se tornou superior ao paganismo, atraindo nos séculos posteriores milhões de adeptos. Mas a questão a ser ventilada é: quais os fatores que foram determinantes do poder dessa nova religião? Ou, em outras palavras, o que explica sua grande influência sobre milhões de pessoas no mundo ainda hoje? A resposta encontra-se no reconhecimento de três principais forças com que contou o cristianismo: a autoridade de Constantino, a autoridade da Igreja e a originalidade e carisma de seu Salvador, Jesus Cristo. Vou-me deter a considerar o papel desempenhado pela figura do Salvador, articulando-o ao projeto cristão: a de ser uma religião do amor. Eis aqui a força propulsora de sua grande influência.

2. Uma religião do amor

“Poucas religiões – talvez nenhuma – conheceram no correr dos séculos um enriquecimento espiritual e intelectual igual ao do cristianismo; no século de Constantino, essa religião ainda era sumária, mas, mesmo assim, superou o paganismo”.
                                                                 (p. 35)

O cristianismo se destacou por constituir-se numa religião que professava o amor (o amor a Deus, o amor ao próximo, portanto, a fraternidade). Esse amor, entretanto, não entrava nas letras dos textos primitivos cristãos, que se ocupavam com a pregação de uma obediência à Lei de Deus. A despeito de professar o amor, o cristianismo jamais abandonou seu compromisso por estabelecer uma moral rigorosa conforme à Lei de Deus. Nesse sentido, assemelhava-se às seitas filosóficas da época; delas se distinguia, no entanto, pela promessa de uma retribuição original: a existência humana passa a ganhar uma significação metafísica, já que tornara-se parte de um plano cósmico elaborado por Deus. Esse ser era um ser vivo, absoluto e eterno.  A relação entre os indivíduos e Deus passou a ser uma relação pessoal, íntima, assentada no amor mútuo e na autoridade, que a tudo governa (mesmo que seu governo se dê por representantes determinados pela sua Vontade). Escreve Veyne:

“Graças ao deus cristão, essa vida recebia a unidade de um campo magnético no qual cada ação, cada movimento interior adquiria um sentido, bom ou mau – sentido que o próprio homem não se dava por si próprio, diferentemente dos filósofos, mas o orientava na direção de um ser absoluto e eterno, que não era um princípio, mas um ser vivo”.

(p. 37)

É preciso frisar bem o tipo de relação que o cristianismo instaura entre os homens e Deus: uma relação pessoal que se estabelece pelo interesse que Deus tem na alma de cada indivíduo. Há uma paixão mútua entre cada ser humano e Deus. Essa relação em nada se compara ao tipo de relacionamento entre homens e divindades no paganismo. Aqui os deuses viviam para si mesmos e só se interessavam pelo destino dos homens, caso houvesse algum benefício em troca. Para efeito de ilustração desse novo modelo de relacionamento entre homens e divindade instaurado pelo cristianismo, Veyne propõe-nos uma situação imaginária:

“(...) uma mulher do povo podia ir contar suas infelicidades familiares ou conjugais à Madona; se as tivesse contado a Hera ou Afrodite, a deusa se perguntaria que extravagância tinha passado pela cabeça daquela tola mulher que lhe vinha falar de coisas com as quais ela não tinha nada a ver.”

(p. 37)

A figura do Messias, o Cristo, é o elemento fulcral dessa ideologia do amor incondicional e universal propalada pelo cristianismo. É ele o representante fundamental de quem irradia esse amor. Esse amor provém de uma Família, cujos membros são o Pai, a Mãe, o Filho (Cristo) e o Irmão. Isso explica a tenaz rejeição da Igreja, em nossos tempos, à formação de famílias que se desviam desse modelo. O cristianismo instaura um modelo de Família, na figura soberana de um patriarca celestial, ao qual se subordina a mãe, o filho e o irmão; em outras palavras, se deve subordinar toda a humanidade.
O Filho – o Cristo – é o intermediário da relação entre os homens e deus. Mas vale lembrar que esse Deus, cuja Lei é inexorável e severa, está interessado no destino das almas, e não apenas na sorte dos reinos, dos governos, da humanidade.
Não é a dimensão humana de Cristo que importará, mas sua natureza sobre-humana. É este Homem-Deus que se sacrificou pela humanidade e é ele o único caminho que leva a Deus. A superioridade do cristianismo se deve também à autoridade e ao carisma do Messias. Escreverá Veyne nesse tocante:

“Uma patética relação de amor reunia de modo profundamente piedoso a humanidade e a divindade em torno do Senhor Jesus. Entretanto, por sua vez, a alma humana recebia uma natureza celeste. O paganismo não ignorara totalmente a amizade entre uma divindade e um determinado indivíduo (...); em compensação (...), ignorou qualquer relação apaixonada e mútua de amor e de autoridade, relação que não termina nunca, que não é ocasional como no paganismo, porque é essencial tanto para Deus como para o homem. Quando um cristão se punha em pensamento diante de seu deus, sabia que não deixava de ser olhado e de ser amado. Enquanto os deuses pagãos viviam antes de tudo para si mesmos.”
(p. 41)

A Cruz não é símbolo de maldição, de morte, mas da vitória de Cristo sobre ela. A cruz é símbolo de Salvação e, aos olhos dos cristãos, importa a Ressurreição do Messias, não tanto sua Paixão. Aqui vê-se insinuando a crença em que o sofrimento é um mal necessário ao alcance da Ressurreição através de Cristo. Precisamos suportar o sofrimento confiantes na palavra de Deus, de que fora testemunha Jesus Cristo, para vencermos a morte, como Cristo a venceu. Lembrará Veyne a respeito da importância de Cristo:

“(...) Cristo não era um ser mitológico vivendo em uma temporalidade feérica. Diferentemente dos deuses pagãos, ele “era real” e até humano. Ora, sua época era muito receptiva aos “homens divinos”, aos taumaturgos, aos profetas que viviam entre os homens e que muitos tomavam por mestres”.
(p. 43)


3. A natureza do Deus cristão

No Cristianismo, Deus e homens têm entre si uma relação pessoal, íntima. Esse Deus é resultado de um antropomorfismo, ou seja, pensado como um Ser a quem se atribui qualidades humanas, embora elevadas a graus não mensuráveis em termos humanos. Por um processo ideológico, a filiação entre homem e divindade, no cristianismo, tomou forma no seguinte enunciado: “o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”. Esse Deus é, ao mesmo tempo, Pai e autoridade. A ele não se deve mais render oferendas, mas obedecer à sua Lei. A moral desempenha, no cristianismo, um papel fundamental, não conhecido no paganismo.
Com um Deus absoluto e todo-poderoso, fonte de severidade e amor, criador de todas as coisas, a narrativa cristã pôde conceder à existência humana um sentido metafísico e sublime. Pôde ainda explicar a nossa origem e o nosso destino após a morte do corpo.
É interessante pensarmos mais uma vez na relação entre Deus e os homens, dentro do projeto cristão. Deus rebaixa-se tomando parte da natureza de um homem, chamado Jesus, a quem coube restaurar a aliança desfeita entre homens e divindade, devido ao pecado daqueles. Disso se segue que o Cristianismo promove uma íntima aproximação entre os homens e seu deus.
Cabe aqui tornar clara a importância do Deus cristão no fortalecimento da fé e no grande alcance que teve esta religião que, desde a origem e durante os tempos vindouros, andara de mãos dadas com o poder político. Veyne mostrará, além disso, que não é a natureza monoteísta que distingue o cristianismo do paganismo (a rigor, o cristianismo não deixa de professar um politeísmo, se considerado o valor providencial das figuras de Jesus e Maria), mas a grandiosidade de seu Deus:

“A originalidade do cristianismo não é o seu pretenso monoteísmo, mas o gigantismo de seu deus, criador do céu e da terra, gigantismo estranho aos deuses pagãos e herdeiro do deus bíblico; o deus do cristianismo é tão grande que, apesar do seu antropomorfismo (o homem pode ser feito à sua imagem), pôde se tornar um deus metafísico: sem deixar de manter seu caráter humano, vivo, apaixonado, protetor. O gigantismo do deus judeu permitirá que ele um dia assuma a função de fundamento e de autor da ordem cósmica e do Bem, função desempenhada pelo deus supremo no pálido deísmo dos filósofos gregos”.

(p. 39)
(grifo meu)
Cabe salientar as qualidades do Deus cristão: um ser absoluto, portador de qualidades humanas, de presença viva, amante de cada indivíduo, zeloso, piedoso e Pai bondoso.  Um Deus grandioso a quem os homens devem amor e obediência.


4. Uma nova era para a imaginação: a soberania da fé a despeito das inconsistências

Não é a crença na imortalidade da alma que tornou o cristianismo uma religião poderosa. Essa crença era comum a muitas doutrinas e lendas, no mundo pagão. Tampouco, segundo o autor, não parece ser correto derivar o sentimento religioso do medo da morte. No caso do cristianismo, a crença na vida além-túmulo depende da crença em Deus e na fé em sua Palavra.
A esta altura, e no que se seguirá, quero chamar a atenção dos debatedores ateus para o fato de que as inconsistências que se deixam ver na doutrina cristã não constituem, ao que parecem, um problema para a fé cristã. Veyne nos ensinará o porquê.
Nós, ateus, insistimos, por exemplo, na incompatibilidade entre o dogma do Inferno e a crença num deus bom, amoroso e piedoso. Insistimos ainda na incongruência que há entre um elemento representativo do Mal (o inferno) e um Deus que ama suas criaturas e demonstra para com elas compaixão.
O dogma do Inferno constitui um grande problema para teólogos e filósofos cristãos. Agostinho chegou a dizer que a justiça de Deus não se identifica à nossa, afirmação que não deixa de entrever uma contradição, já que entra em conflito com o antropomorfismo atribuído a Deus. Assim, Deus, embora semelhante aos homens em muitos aspectos, distingue-se deles na concepção de Justiça. A justiça de Deus não é a dos homens. Pensar assim é fugir ao problema acarretado pela crença na destinação dos ímpios ao Inferno. É ignorar o fato de que as qualidades apreciadas por nós atribuídas a Deus são qualidades nossas. O Deus cristão, sendo produto de um antropomorfismo, haverá, forçosamente, de ter um senso de justiça semelhante ao nosso, ainda que a ele possamos acrescentar a característica 'perfeita'. 
Veyne descreve o quadro dramático que se constrói com a introdução do dogma do Inferno na construção imaginária de um Deus que é bom e amoroso:

“(...) o deus de amor e de justiça é também o deus que preparou para uma infinidade de seres humanos, ao cabo de uma prova ou de uma loteria da qual era o inventor, um confinamento num campo de permanência eterna para impressionantes suplícios sem fim. Eis o que diz um teólogo atual: “É uma questão de saber por que esse Deus tão amoroso desejou uma ordem de coisas incluindo o pecado e o Inferno; definitivamente, a questão é insolúvel”.
(p. 49)

Talvez, o leitor, a esta altura, ria-se da seriedade com que o teólogo trata da suposta “questão”, sendo incapaz de ver que a incrível dificuldade a que se refere não é senão produto do pensamento humano. Enunciar “Deus é amoroso, mas Deus reservou um inferno para os descrentes” é articular proposições contraditórias. Ou Deus é amoroso e nos reserva o Paraíso, por sua piedade, ou Deus é juiz imparcial, para quem o amor pouco vale, quando tem de decidir que pena será aplicada.
O autor nos dará uma explicação para o fato de, não obstante a crença na existência do Inferno, para onde serão levadas as almas subversivas, os crentes ainda se manterem firmes na fé em Deus. Para o autor, o que explica isso é o fato de o Inferno não ser senão uma representação, uma ideia que não tem a força do amor e da fé que eles dispensam sobre Deus.

“De tal modo que, a inconsistência, além de seu grande efeito melodramático, não leva à revolta ou à descrença: nos cérebros, os afetos e as ideias não estão na mesma camada”.

(p. 49)
(grifo meu)

O amor a Deus suplanta a incoerência, ou, ao menos, a mascara aos olhos da alma. No Cristianismo, o sentimento é mais forte do que o intelecto; a inteligência é suplantada pela crença na crença em Deus (conforme sugere Daniel Dennett). O autor nos lembra ainda que “uma doutrina religiosa não é uma teoria da justiça e também não pretende ter uma coerência filosófica” (id.ibid.). Para ele, a introdução da ideia de Inferno mais valoriza a doutrina do que a prejudica, mais atrai do que repele. Considerado por ele uma espécie de best seller, ao unir amor ao terror, o cristianismo exibe sua força de atração, já que

“Os inventores do Inferno e das penas eternas em dobro (o fogo no sentido próprio da palavra, o castigo da privação de Deus) acreditaram em um thriller que obtivesse um grande sucesso: aterrorizou um grande público, porque as pessoas sempre se deixam impressionar pelas ficções apavorantes; quanto aos autores do thriller, sem dúvida lhes agradava imaginar os inimigos da Verdade sendo queimados”.

(p. 50)

É à luz da metáfora do best seller que podemos compreender dois fatos importantes relativos ao poder do cristianismo. O primeiro diz respeito à sua influência socio-histórica; o segundo à permanência de sua influência psicológica a despeito das inconsistências de sua doutrina. Para ilustrar o primeiro fato, o autor nos dá a saber a metáfora do best seller:

“O sucesso do cristianismo talvez possa ser comparado a um best seller (no caso, de uma obra-prima mundial, aos olhos do incréu que sou). Ele “agarra pelas tripas” seus leitores e, se agarrar não chega a atingir as multidões, pelo menos atinge a religião dominante precedente, no mínimo a uma elite espiritual ou ética vinda de todas as classes da sociedade, ricos e pobres, ignorantes e cultos ou semicultos, entre os quais um certo imperador”.
(p. 44)

A trama do enredo deste best seller envolve psicologicamente seus leitores (crentes). Todavia, para que seja envolvente, o best seller deve incluir, segundo o autor:

“Um pai misericordioso mas impiedoso, uma loteria do tudo ou nada, os pavores infernais que aumentam o sucesso do best seller envolvendo as imaginações (a pintura religiosa o testemunha), e que tudo isso seja santo: não pedimos mais nada”.

(p. 50)

Esse best seller inova na medida em que fornece uma representação da mundo no qual só há duas espécies: o Deus amoroso e os homens que ao poder do primeiro deve submeter-se. Esse Deus reserva um destino sublime, elevado, para eles após a morte e eles o provam em seus corações. Há um preço nisso: a adoração, a obediência, a humilhação do humano em face da grandiosidade de Deus.
Com o advento da Igreja, a palavra de ordem passou a ser obediência moral. Com a Igreja, impunha-se aos crentes a disciplina, o rigor na execução dos mandamentos de Deus, na obediência à sua Lei. Quanto ao amor, deve ele circunscrever-se ao interior, habitar as regiões mais íntimas da alma. E que lá permaneça como uma força que alimenta a fé em Deus.

Acredito ter conseguido aqui pavimentar um caminho seguro onde possam se situar as posições críticas dos ateus. Compreender as motivações que levaram o Cristianismo a gozar do status como religião predominante no mundo ocidental em nossa era é indispensável a uma argumentação que pretenda ir além dos dizeres agastados e impregnados de grande dose de agressividade, que não fazem senão caminhar em círculo.
Antes de fazer o exame, precisamos conhecer melhor o objeto sobre a qual ele recai. A crítica ateísta é infértil ou cega sempre que simplesmente martela a irracionalidade, ressalta a ilusão ou insistem em ridicularizar a ingenuidade daqueles que acreditam em deus.



segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O uso da linguagem é forma de ação social.

                    

                       
                          As marcas do sujeito do discurso

Usar a língua é operar com textos. Embora a discussão que proponho aqui se atenha ao texto escrito, vale entender por textos peças linguísticas que servem à interação social. Os textos que produzimos, seja na modalidade oral da língua, seja na modalidade escrita, resultam de escolhas operadas por nós no domínio das significações. Eles são o resultado do processo de produção de significados. A formação dos enunciados, quer na modalidade oral, quer na modalidade escrita, é resultado de escolhas significativas feitas pelos usuários da língua. No momento mesmo em que escrevo este texto, as concatenações verbais, a própria  tessitura do texto são produto de escolhas feitas em minha mente.
Nesse momento em que escrevo, minhas escolhas são determinadas por três funções básicas: a ideacional, a interpessoal e a textual. A primeira diz respeito à codificação na linguagem das experiências humanas. Usamos a língua para representar o mundo. Represento, neste momento, os conhecimentos que adquiri e que me permitirão tratar do tema de que se ocupará este texto. A função interpessoal diz respeito ao estabelecimento de papéis sociais assumidos pelos participantes da interação. Essa função pressupõe a existência de pelo menos dois enunciadores. No caso de um texto escrito, o enunciador é responsável por se relacionar com potenciais enunciadores-leitores mediante a produção do texto. O texto instaura, pois, a interação (ainda que ela seja entendida de outro modo, no caso do texto escrito, já que os interlocutores (autor e leitores) não estão presentes, mas distantes no tempo e no espaço).
Finalmente, a função textual toca mais diretamente à produção do texto, como processo de contextualização das unidades lingüísticas (todo texto gera contexto). Diz respeito, pois, à inserção do texto  em contextos. Textos só funcionam em contextos.
Nada na língua é gratuito: cada escolha léxico-gramatical se fará de acordo com as nossas necessidades comunicativas e será determinada pelo contexto sociocomunicativo.
Elenco, abaixo, alguns princípios que orientarão a análise empreendida aqui:

1 p. A forma de nossos textos é determinada pelas funções a que servem. Trata-se de um princípio enunciado na corrente teórica recoberta pela designação de funcionalismo. Ele também pode ser enunciado assim: a função exerce influência sobre a forma da lingua. Entenda-se função como ‘finalidade’, ‘propósito’, de tal sorte que “x” tem a forma “xa” em virtude de cumprir a função “y” (ou “z”...);

2.p. Todos os enunciados que produzimos são dialógicos, na medida em que necessariamente remetem a outro enunicados, anteriormente produzidos, recuperáveis numa memória discursiva, ou na medida em que projetam outros enunciados. Ou seja, os enunciados abrem “espaços discursivos”, criam as condições para futuras enunciações;

3p. Todo texto fornece “pistas” na base das quais ancoramos nossa interpretação. Estas pistas são importantes na produção do sentido para o texto por duas razões: elas nos permitem fazer inferências que visam a trazer à tona significados subjacentes à superfície textual, como também nos permitem “ativar” os conhecimentos necessários – que estão armazenados em nossa memória – para a compreensão do texto. A mobilização desses conhecimentos se dá pela ativação deles via as expressões linguísticas (ou “pistas” dadas textualmente).

4p. A coerência é um fenômeno que transcende o texto, na medida em que não é uma qualidade do texto em si, embora dele dependa. A coerência não está no texto, mas é produzida, na interlocução, pelos usuários da língua, a partir do texto. Coerência é um princípio de interpretabilidade e ela resulta de uma conexão cognitiva expressa nas relações conceituais pelas expressões linguísticas do texto. Ela depende de um cálculo de sentido operado pelos interlocutores. O autor escreve um texto para ser coerente, e cabe ao leitor reconstruir na leitura a coerência para o texto. Um texto, não sendo incoerente em si, pode sê-lo para um leitor, num dado contexto. A incoerência, sempre situada, pode decorrer da dificuldade de o leitor ‘calcular um sentido’ para o texto, em virtude de não dispor de determinados conhecimentos indispensáveis à sua compreensão.

Vou mostrar como os enunciadores operam suas escolhas linguísticas (entende-se “para produzir significados”) de acordo com suas necessidades sociocomunicativas. Quero mostrar também como os pontos de vista, as avaliações do autor são depreendidos das escolhas que ele atualiza textualmente. Para tanto, ofereço à leitura Cartas de Leitores, publicadas na Revista O Globo. Trata-se de um gênero textual através do qual os leitores da revista exprimem suas opiniões sobre as matérias lidas, ou manifestam sugestões para os editores da revista. São gêneros que permitem aos leitores fazer ecoar a sua voz. Eles abrem um espaço dialógico dos leitores-autores com os editores ou potenciais leitores da revista.
Escolhi esse gênero textual em virtude da frequência com que as marcas linguísticas que exprimem atitudes valorativas do enunciador ocorrem. Vejam-se dois exemplos de cartas de leitores:

Revista O Globo – 25 de Abril de 2010

A colecionadora

·   Gostei muito da reportagem sobre as pessoas que colecionam álbuns de figurinhas de futebol. Viajei no tempo, pois, enquanto criança, eu curtia muito, nos anos de Copa do Mundo, trocar figurinhas com os amigos, até completar todo o álbum. Hoje, na idade adulta, continuo colecionando meus álbuns e figurinhas, que, para mim, são uma terapia saudável e divertida.
O circo

·   É com tristeza que constato o depoimento do doutor Márcio Torres dizendo que, na tragédia do circo, “O Hospital Antonio Pedro estava fechado”. O hospital estava em greve. Foi reaberto na marra, sim, mas graças à garra e à coragem do prefeito de então, Dalmo Oberlaender, acompanhado de seu falecido filho, Geraldo Fabiano, e deste escreve, que tinha 11 anos, um pouco depois de ter escapado das chamas.


Vale notar, de passagem, que as cartas são encabeçadas de um título, que sinalizam o tópico do discurso, ou seja, o assunto a que elas se referem. O leitor que se ocupa da leitura destes textos deverá recuperar conhecimentos pertinentes à compreensão ou à construção da coerência deles. Tais conhecimentos dizem respeito às circunstâncias sociopolíticas (como na segunda carta) reconstruídas no texto e evocadas, possivelmente, pela referência a outros textos (outras reportagens que tratavam do assunto em questão). Por exemplo, o leitor deverá saber a que depoimento se refere o autor, quem é o “doutor Márcio Torres”, onde fica o Hospital Antônio Pedro, deve saber algo sobre o prefeito “Dalmo Oberlaender” e sobre o município que governa, sobre que circo é este de que se fala, etc.
Vou-me preocupar, no entanto, com a questão das escolhas linguísticas e as funções que cumprem. Disse, anteriormente, que nada na língua é gratuito; melhor será dizer, nada na língua é por acaso. Há expressões que apontam para atitudes avaliativas dos enunciadores; elas marcam os pontos de vistas desses enunciadores. Eles se fazem presentes na atualização destas marcas. A estas marcas chamamos, em Linguística, de Indicadores atitudinais ou índices de avaliação. Em geral, eles são formas simples, ou seja, formas constituídas de uma só palavra (como “felizmente”, “infelizmente”, francamente, etc.), mas podem também ser representados por estruturas mais complexas, tais como “é com pesar”, “É bom que...”, etc. Os indicadores de atitudes apontam para a forma como o enunciador se representa em face dos enunciados que produz, em termos de estados psicológicos ou sentimentos. Quem diz “Felizmente, tudo deu certo”, manifesta contentamento com a realização de algo. Esse contentamento é depreendido do uso de “felizmente”: é como se disséssemos “estou feliz por tudo ter dado certo”. O enunciador projeta o sentimento de felicidade, uma atitude de satisfação sobre o que enuncia.
Notemos que, na segunda carta, a expressão “é com tristeza” indica a atitude de lamentação do enunciador em face do que disse o doutor Márcio Torres. Ele lamenta o fato de o doutor falar com a verdade em seu depoimento. Ora, se perguntássemos a um aluno o que nos permite afirmar que o enunciador não está satisfeito com o depoimento do doutor Márcio, ele não hesitaria em dizer “o fato de o enunciador demonstrar-se triste”.
Em seguida, o mesmo enunciador, elogiará a ação do prefeito. E a função de elogio se expressa por meio da forma “graças à garra e à coragem...”. Ter garra (determinação, afinco) e coragem (poder de enfrentamento) são atitudes admiráveis, do ponto de vista do enunciador.
Na primeira carta, o enunciador manifesta seu agrado, sua atitude de apreciação positiva sobre a reportagem. Também ele demonstra satisfação, já que a reportagem tratou de uma atividade lúdica que remonta aos tempos de sua infância, que foi bom recordar. Assim, ele diz “eu curtia muito” (sinaliza para sua satisfação, contentamento na atividade) e também recategoriza tal atividade (colecionar álbum de figurinhas) como “uma terapia saudável e divertida”. Nesse ponto, devo dizer que a escolha dos adjetivos é muito importante, na medida em que eles exprimem nossos pontos de vista, nossas formas de avaliar situações, acontecimentos e pessoas de que falamos. Os adjetivos “saudável” e “divertido” situam-se no pólo positivo em termos de avaliação. Trata-se de adjetivos que designam qualidades consideradas benéficas: uma no campo da saúde (saudável); outra no campo do lúdico (causa prazer).
Em suma, todas essas marcas revelam as formas como os enunciadores se relacionam com o conteúdo de seus enunciados, como eles se posicionam sobre estados-de-coisas do mundo. Revelam também como eles operam com a linguagem de modo a satisfazer suas necessidades comunicativas. Revelam como suas vozes se posicionam em relação a outras vozes, acessíveis imediatamente nos textos, ou deles inferíveis. 

"Sinto a vida como quem contempla um exuberante jardim: o encanto é frágil" (BAR)


A minha impressão

"Ontem mesmo, assistindo pela televisão ao trabalho dos bombeiros na remoção dos escombros do prédio que desabou no centro do Rio, ouvi a repórter dizer que, para piorar, a chuva persistia. Claro a chuva torna o trabalho mais difícil, pois os entulhos ficam mais pesados, a remoção é mais trabalhosa. A chuva caia indiferente aos anseios dos homens que tinham de lidar com a nossa tragédia, homens dignos da humanidade, guerreiros incansáveis na luta por encontrar mais sobreviventes... Mas a chuva caía e enquanto caía parecia trazer consigo o silêncio desolador de um universo igualmente indiferente... Como poderia haver um Deus, se nada podia fazer sequer para parar a chuva? A chuva caia ignorando os esforços humanos por resgatar vidas e recolher os mortos... A chuva caía, como deve ser a chuva... e no seu ininterrupto jorrar, em cima só a escuridão da noite e embaixo o barulho das escavadeiras, tratores, viaturas de polícia, ambulâncias e choros... Vez por outra, "um graças a deus" pelas vidas que se salvaram! Cada vez pronunciado, o "graças a deus" abafava as vidas que se perderam, ignorava-as, mascarava a realidade trágica: não há uma força onipotente a intervir por nós, nada semelhante a um deus que está interessado em nós, na vida neste planeta! Um deus que nada pôde fazer quando seus filhos estavam fazendo algo que poderia ter consequências graves? Um deus que é incapaz de evitar que um tsunami provoque a morte de milhares de pessoas, que um terremoto ceife milhares de vida, que vulcões dizimem uma população inteira? Que epidemias se alastrem e aniquilem crianças, jovens, adultos e idosos? Que judeus sejam fuzilados em massa? Que fanáticos lancem aviões contra arranha-céus, matando milhões de pessoas inocentes? Nem o Deus de Abrão, nem o Deus de Jesus, nem o Deus de Maomé... nenhuma dessas dividades, que não passam de representações da imaginação humana, evitou nada disso. A História falseia essas representações, mostrando-nos que a vida humana se desenvolveu sempre por meio de guerras, conflitos, e enfrentamento de nossas tragédias, cuja origem não repousa só no domínio das ações humanas, mas advém da fragilidade de nossos corpos e das condições muito hostis do meio ambiente. "

(BAR)

sábado, 28 de janeiro de 2012

"Só se aprende a ler lendo cada vez mais" (BAR).

                                
                                                 Um convite à leitura       

                                                 A elegância do conteúdo

De ferramentas tecnológicas, qualquer um pode dispor, mas a cereja do bolo se chama conteúdo. É o que todos buscam freneticamente: vossa majestade o conteúdo.
Mas onde ele se esconde?
Dentro das pessoas. De algumas delas.
Fico me perguntando como é que vai ser daqui a um tempo, caso não se mantenha o já parco vínculo familiar com a literatura, caso não se dê mais valor a uma educação cultural, caso todos sigam se comunicando com abreviaturas e sem conseguir concluir um raciocínio. De geração para geração, diminui-se o acesso ao conhecimento histórico, artístico e filosófico. A overdose de informação faz parecer que sabemos tudo, o que é uma ilusão, sabemos muito pouco, e nossos filhos saberão menos ainda. Quem irá optar por ser professor não tendo local decente para trabalhar, nem salário condizente com o ofício, nem respeito suficiente por parte dos alunos? Os minimamente qualificados irão ganhar a vida de outra forma que não numa sala de aula. E sem uma orientação pedagógica de nível e sem informação de categoria, que realmente embase a formação de um ser humano, só o que restará é a vulgaridade e a superficialidade, que já reinam, aliás.
Sei que é uma visão catastrofista e que sempre haverá uma elite intelectual, mas o que deveríamos buscar é justamente a ampliação dessa elite para uma maioria intelectual. A palavra assusta, mas entenda-se como intelectual a atividade pensante, apenas isso, sem rebuscamento.
O fato é que nos tornamos uma sociedade muito irresponsável, que está falhando na transmissão de elegância. Pensar é elegante, ter conhecimento é elegante, ler é elegante, e essa elegância deveria estar ao alcance de qualquer pessoa. Outro dia, conversava com uma taxista que tinha uma ideia muito clara dos problemas do país, e que falava sobre isso num português correto e sem se valer de palavrões ou comentários grosseiros, e sim com argumentos e com tranquilidade, sem querer convencer a mim nem a ninguém sobre o que pensava. (...)
(Marta Medeiros – Revista O Globo, 06/06/2010)

Qualquer estudante de Letras formado hoje em nossas universidades pode contar com uma gama vasta de estudos orientados para a compreensão da forma e funcionamento do texto, dos processos de discursivização (actorialização, temporalização e espacialização), das estratégias linguístico-cognitivas de que se vale o leitor para interpretar e compreender um texto durante a atividade de leitura. Ele poderá valer-se de teorias de orientação pragmática, cognitivista, sociocognitiva-interacionista que se situam no domínio recoberto pela designação Linguística Textual, a fim de que sua prática pedagógica tome o texto para unidade de reflexão e estudo.
Essas teorias o instrumentalizarão para que possa fomentar atividades que envolvam os alunos na prática de leitura e compreensão das tramas do texto. Decerto, o estudante, então professor, que se familiarize com tais teorias, se aperceberá da complexidade de um texto, enquanto objeto teórico. Para os fins desta exposição, refiro-me ao texto tomado em sua modalidade escrita, embora toda e qualquer unidade de comunicação, independentemente de sua extensão, complexidade e modalidade (oral ou escrita), seja um texto. Assim é que uma interjeição como “Oba!”, se pronunciada num dado contexto, por um falante após receber uma notícia que o entusiasmou, será um texto.
O estudante perceberá que o conceito de texto passou por mudanças, segundo as diferentes teorias que se produziram em torno dele. O conceito de texto varia segundo os pressupostos teóricos que orientam a análise. Numa perspectiva formalista, o texto é a frase complexa, a unidade mais alta na hierarquia gramatical. Do ponto de vista da semiótica, é um signo complexo. E as concepções variarão até chegarmos à concepção de base sociocognitivo-interacionista, segundo a qual o texto é lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos (Koch, 2004: XII).
Na sua fase inicial, a Linguística Textual ambicionava construir uma gramática do texto, visto que suas preocupações repousavam nos mecanismos de construção textual. Os estudiosos desse período queriam compreender o que faz de um conjunto complexo de frases um texto. Passaram a falar de textualidade, ou seja, a qualidade que define um texto como texto. Essa textualidade aponta para uma trama, uma teia de relações entre as partes constitutivas. Com a virada pragmática, o contexto é incorporado ao escopo das preocupações dos linguistas que se dedicavam a estudos nessa área. O texto deixa de ser entendido como um objeto autônomo, para ser estudado do ponto de vista de seu funcionamento em eventos comunicativos reais. Essa visão pragmática ressaltava as noções de ação e atividade, daí seu postulado segundo o qual os textos são produtos de ações verbais (ou verbalizáveis) complexas, na base de um projeto de dizer de um falante. Ele têm uma intenção e a materializa ao produzir seus textos. Toda ação verbal é ação social, portanto ação determinada por regras sociais.
Uma nova virada viria a ocorrer, na década de 80 – a virada cognitivista. Observou-se, pois, que toda ação (social ou verbal) é acompanhada de processos cognitivos que se dão no cérebro/mente das pessoas. Estas mobilizam conjuntos complexos de conhecimentos armazenados em sua memória ao realizar tarefas. Esses conjuntos complexos de conhecimentos foram chamados de modelos cognitivos. O texto passou a ser encarado como resultado de processos mentais.
No interior da corrente cognitivista, a partir da observação de que processos cognitivos não se dão apenas no interior da mente de pessoas, tendo o ambiente apenas a função de estimulação, surge a perspectiva sociocognitivo-interacionista e com ela a concepção de que muitos de nossos processos cognitivos ocorrem no âmbito social e resultam da cooperação entre atores sociais. A cognição é, assim, resultado de nossas ações e de nossas capacidades sensório-motoras. Os conceitos emergem das atividades nas quais o organismo ou o corpo se envolve.
Nessa perspectiva, a língua é atividade intersubjetiva, resulta de ações conjuntas. Koch, em Introdução à Linguística Textual (2004), nos ensina:

“Dentro desta perspectiva, as ações verbais são ações conjuntas, já que usar a linguagem é sempre engajar-se em alguma ação em que ela é o próprio lugar onde a ação acontece, necessariamente em coordenação com os outros. Essas ações não são simples realizações autônomas de sujeitos livres e iguais. São ações que se desenrolam em contextos sociais, com finalidades sociais e com papéis distribuídos socialmente”
(pp. 31-32)

O estudante de Letras, então professor, poderá contar também com as contribuições de outra corrente de estudos que, fazendo eco aos estudos de Bakhtin sobre dialogismo, polifonia, ideologia, discurso, encontrará repercussão entre nós pela vertente francesa: é a chamada Análise do Discurso. Trata-se de um campo que, desde seu surgimento, se propôs transdisciplinar, visto que incorpora em seu escopo de análise a História, podendo assim inscrever-se tanto na Linguística quanto no político. As noções de sujeito, formação discursiva, o reconhecimento da inter-relação entre linguagem e exterioridade possibilitam à análise do discurso o diálogo com a Psicanálise, com materialismo histórico, que compreende um conjunto de teorias, de inspiração marxista, que se ocupam da formação e transformação sociais (a História), e com a Linguística (donde surgirá uma teoria do discurso). Convém, no entanto, salientar que a língua, nessa perspectiva, não é tomada como objeto abstrato, mas vista na sua relação constitutiva com a exterioridade – a História. Interessa aqui a determinação histórica dos processos semânticos. O discurso é tomado como um acontecimento sócio-histórico de produção de sentidos.
Para o estudante de Letras, recém-egresso da universidade, a análise do discurso, provavelmente, lhe parecerá um terreno espinhoso e obscuro, já que sua compreensão depende de uma série de rupturas e de uma capacidade maior de fazer abstrações. E eu não estou sugerindo a possibilidade de transpor diretamente as concepções da análise do discurso para a prática de ensino de leitura na escola. Longe disso. Quero apenas dizer que, munido dos conhecimentos trazidos pela análise do discurso sobre linguagem, texto, discurso e a relação destes com a exterioridade constitutiva (já que não se concebe a separação entre o interior e o exterior, ao contrário, a exterioridade se inscreve no interior do discurso), o professor poderá preparar planos de leitura que enriqueçam a visão que os estudantes tem não só sobre a atividade de leitura, bem como sobre a natureza do texto. Eles poderão ser estimulados a “ler para além dos caracteres impressos no papel”. Vejamos, abaixo, alguns postulados que, uma vez conhecidos, ajudarão o professor na árdua mas não menos estimulante tarefa de ensinar a ler:

1p. Um texto prevê múltiplas leituras (embora não todas). E essa multiplicidade de leituras possíveis depende do acúmulo de leituras prévias do leitor e, portanto, dos conhecimentos prévios que ele já traz em sua memória. Tais conhecimentos são produto de suas experiências de mundo (incluindo-se aqui as experiências de leitura).

2p. A produção de sentidos para um texto se dá na inter-relação entre leitor-texto-autor. Durante a leitura (entendida como processo de atribuição de sentidos), o leitor mobiliza uma série de conhecimentos (modelos cognitivos) e estratégias de ordem linguístico-cognitiva (inferências, elaboração de hipóteses, testagem de hipóteses) a fim de construir um sentido para o texto. As chamadas estratégias metacognitivas, mediante as quais o leitor traça objetivos para a leitura, ajudam-no a controlar e avaliar a pertinência/ adequação dos conhecimentos na atividade mesma de produção de sentidos.

3p. Todo texto é um intertexto. Esse princípio nos diz que todo texto encerra ou evoca outros textos com os quais dialoga. As relações entre textos são várias: podem-se caracterizar por oposição, paródia, validação, podem ser do tipo implícita ou explícita, etc. A esse fenômeno chama-se intertextualidade. Pode-se falar ainda em intertextualidade intergenérica (ou seja, entre gêneros textuais).

4p. A intertextualidade que, numa perspectiva discursiva, é entendida como interdiscursividade (o fenômeno pelo qual todo discurso se constrói sobre um já-dito, todo discurso está calcado sobre outros discursos), pressupõe a existência de uma memória social ou discursiva, na base da qual os textos/ discursos podem ser recuperados.

5p. Todo texto assemelha-se a um iceberg – o que fica à tona, isto é, o que é explicitado no texto, é apenas uma pequena parte daquilo que fica submerso, ou seja, implicitado. Compete ao leitor, portanto, buscar os níveis significativos subjacentes, se quiser atingir uma compreensão satisfatória do texto.


A Análise do Discurso, uma vez adotando a concepção de sujeito socio-historicamente situado, destituirá o autor da função de senhor do sentido. Evidentemente, é ele responsável pela unidade semântica do discurso, é um produto institucional. Quem produz o discurso é, no entanto, o sujeito, sempre descentrado e interpelado pela ideologia. O sujeito tem a ilusão de ser a fonte do sentido, mas ele é caracterizado pela dispersão e sempre diz de um lugar determinado socio-historicamente. Ele se inscreve em diferentes formações discursivas e formações ideológicas e é atravessado pela heterogeneidade, pela pluralidade de vozes (polifonia) oriundas de diferentes discursos. O sujeito se insere numa conjuntura sócio-histórico-ideológica, de modo que compreendê-lo é compreender o conjunto de vozes sociais que o constituem.
Tendo em vista o exposto, proponho uma leitura para o texto de Marta Medeiros. Não tenho a intenção de mobilizar todo o instrumental teórico-metodológico da Análise do discurso ou da Linguística Textual, tarefa muito difícil, dados os limites e o propósito deste texto. Vou procurar chamar a atenção para o fenômeno do dialogismo e da argumentação, apontando aqui ou ali observações sobre a produção do sentido por meio das escolhas linguísticas operadas. Vale dizer que a noção de dialogismo, que nos remete à diálogo, consiste nas relações entre um eu e um Outro nos processos discursivos determinados historicamente. Esse eu não é o sujeito abstrato da psicanálise, mas o sujeito social determinado historicamente; assim também o Outro constituí as vozes de um mundo social no qual os sujeitos dialogam. O dialogismo implica interação entre sujeitos de discurso.

Em geral, o leitor incauto pode passar despercebido pelo título de um texto. No entanto, o título revela-se, quando não metaforizado, muito importante para que o leitor comece a formular hipóteses sobre o tema do texto. É apoiando-se no título que o leitor criará expectativas sobre o tema do texto. Senão, vejamos.
Nem sempre é possível inferir apenas do título o assunto do texto, mas a leitura das primeiras linhas do primeiro parágrafo podem já lançar alguma luz. Também importa, é claro, o quanto sabemos sobre o autor (sua formação, sua atuação social). Marta Medeiros é jornalista e escritora. Tendo em conta o que sabemos sobre o autor e o que apreendemos na leitura do primeiro parágrafo, o conteúdo a que se refere a autora não tem nada que ver com significação em linguagem, embora guarde uma relação metafórica com o ‘conteúdo de um copo’. Avançando um pouco mais na leitura, o leitor depreenderá que conteúdo diz respeito à ingrediência intelectual, à profundidade psicológica. Assim, deduzirá o leitor que uma pessoa com conteúdo é uma pessoa capaz de sustentar uma conversa intelectualmente interessante, uma pessoa capaz de se posicionar criticamente acerca de questões de relevância social, independentemente de seu grau de escolaridade.
Essa dedução deverá ser, como dissemos, testada pelo leitor. Será procedente? Plausível? A construção do sentido para o texto se dá, como disse, na interação entre leitor, texto e autor. A interpretação pelo leitor é ancorada nas pistas que o texto lhe dá. Há pistas que apontam para um dado sentido, que o asseguram; e caberá ao leitor reconhecê-las. Vejamos algumas delas.
O que reforça a compreensão que o leitor terá de uma pessoa com conteúdo? Ora, no texto, encontramos menção à importância do convívio com as produções literárias (“o já parco vínculo familiar com a literatura”), a desvalorização da educação cultural (“caso não se dê mais valor a uma educação cultural”), a importância do conhecimento nas dimensões histórico, filosófica e artística. Estas (e outras mais) constituem “pistas” nas quais o leitor se apóia para validar suas hipóteses e empreender sua leitura.
O trabalho interpretativo é um processo sociognitivo-interacional, durante o qual o leitor vai “garimpando” o texto, desvendando-lhe os implícitos, os silenciamentos e buscando “ouvir” as outras vozes que falam através da voz do sujeito do discurso, sempre disperso e descentrado.
O leitor experiente é aquele capaz de apreender as camadas de significação subjacente à superfície textual. Ele não se apega a literalidade das palavras, não fica preso à superfície do texto, mas vai à caça dos implícitos.
Voltando ao título. Vale notar que a palavra elegância, transposta do domínio semântico do vestuário (dizemos de uma pessoa bem vestida que é uma pessoa elegante), para o campo semântico da ‘intelectualidade’, já aponta para um conflito: rejeita-se a futilidade típica do domínio da moda, subverte a ideologia da valorização da aparência, da beleza, ao empregar ‘elegância’ para qualificar a ‘atitude intelectual’ ou ‘atitude crítico-reflexiva’. O que nos diz o sujeito do discurso é: “pode-se ser elegante exibindo uma consciência crítico-reflexiva”; “pode-se ser elegante sendo capaz de sustentar uma conversa sobre temas de relevância sócio-política e cultural”.
Note-se que ao demonstrar insatisfação em relação ao desinteresse generalizado, em nossa sociedade, pela literatura, pela educação e em relação à dificuldade, por conseguinte, de as pessoas elaborarem um raciocínio coerente, o sujeito dialoga com outros sujeitos, evoca outras vozes, traz à cena outros discursos. Embora não estejam explícitos, não parece custoso perceber ecoarem as vozes de segmentos sociais intelectualizados de nossa sociedade, tais como educadores (pedagogos e professores), filósofos, sociólogos, e psicólogos. Adiante, a autora recuperará a voz do professor, da perspectiva de um sujeito que é porta-voz da insatisfação desse profissional. O discurso da luta por melhores condições de trabalho, por melhores salários e formação adequada produzido por professores engajados, reunidos em sindicato, ecoa na voz do sujeito, que agora se posiciona do lugar social ocupado pelo professor. Esse sujeito situado assume a imagem do professor como o principal agente social que possibilitará a resistência às condições socio-culturais que mantêm os indivíduos na superficialidade, na vulgaridade, nas zonas de conformismo.
Cabe observar também que a autora, embora reconheça a dificuldade de resistir ao status quo (sempre vai existir uma elite intelectual) e proponha que ela seja estendida às camadas privadas dos bens culturais a que tem acesso essa elite, é incauta na avaliação que faz daqueles que se “comunicam com abreviaturas”. Possivelmente, se refere aos jovens que, nas interações on-line, se valem de formas abreviadas quando escrevem. O que ela não reconhece é que tais formas não constituem um empobrecimento linguístico, tampouco representam uma ameaça à integridade da língua. Tampouco é correto supor que os jovens possam  vir a transpor as formas que escrevem nestes espaços para outros gêneros textuais, como os que comumente são trabalhados na escola (como a redação escolar). A dificuldade que eles possam ter em expressar-se com clareza e coerência, em ocupar-se em conversas intelectualmente mais interessantes e edificantes, em se posicionar com argumentos sólidos e pertinentes não se deve ao fato de “escrever com abreviaturas”, mas ao fato de não dedicar à leitura um espaço de tempo maior em suas vidas.
Não podemos ignorar o fato de a autora sugerir a extensão da fruição dos bens culturais monopolizados por uma elite aos demais membros que se vêem privado desse privilégio. Claro é que estender esse privilégio é fazer desaparecer a noção de elite. Por definição, a elite é uma minoria dominante, cultural, política e economicamente. Não se trata de ampliar a elite, o que é um contra-senso, mas de diminuir as desigualdades, de trabalhar as contradições, um esforço contínuo de uma sociedade democrática, de modo a viabilizar o acesso dos excluídos aos bens culturais de prestígio (conhecimentos produzidos pela artes, filosofia, literatura, ciências).
Se nos detivermos na leitura dos dois últimos parágrafos (leia-os de novo), conseguiremos “ver” coisas interessantes aí. Atente-se para o enunciado: 
Sei que é uma visão catastrofista e que sempre haverá uma elite intelectual, mas o que deveríamos buscar é justamente a ampliação dessa elite para uma maioria intelectual.”

Ao empregar o verbo “saber”, a autora assume a proposição “é uma visão catastrofista” como factual. Mas ela o faz pressupondo a factualidade. Logo, o conteúdo “é uma visão catastrofista” é pressuposto como factual e, assim, ela se antecipa a uma possível imagem depreciativa que o leitor poderia fazer do momento prévio de seu discurso, já que está claro que ela vinha mostrando-lhe um cenário desalentador. Aqui ela também alerta o leitor para o fato de ela não aderir a uma visão utopista, idealista de mundo (ela reconhece, talvez, resignada, que sempre haverá uma elite intelectual). No que se segue “A palavra assusta, mas entenda-se como intelectual a atividade pensante, apenas isso, sem rebuscamento”, convém ver que o sujeito dialoga com o senso-comum, evoca-o, quando reconhece que a palavra intelectual assusta. Ou seja, há segmentos em nossa sociedade para quem a palavra intelectual é sinônimo de ‘vaidade’, ‘hermetismo’, ‘prolixidade’. A imagem do intelectual, nesse domínio discursivo, é a de uma pessoa que fala difícil, exibe conhecimentos que não compreendemos e está sempre disposto a criticar as tendências mais valorizadas ou os padrões aceitos. Atenta a isso, a autora, assumindo a forma de um sujeito que transita entre o discurso do senso-comum e da elite intelectual, esclarecerá, situada deste último lugar, que o intelectual é apenas aquele que se dedica à reflexão, às atividades do intelecto (analisa, ler, julga, escreve, enfim, pensa criticamente). Esse sujeito traz à baila outra imagem do intelectual, a que lhe parecerá mais adequada, porque não mais forjada no preconceito típico do senso-comum, e também a que atrairá, possivelmente, mais simpatia pelas camadas populares, uma imagem que deveria ser revestida por todos.
Claro está que as possibilidades de explorar os processos de significação do texto não se esgotam nessas reflexões. Há, certamente, muitos aspectos para serem considerados. O texto permite-nos múltiplos olhares. A leitura nunca é vedada, unifocal, mas plurifocal. Isso talvez iniba o professor ao trabalhar com a leitura. O trabalho com a leitura em sala de aula exige, evidentemente, competência por parte do professor, exige embasamento teórico-metodológico, exige que ele exiba uma formação sólida, mas também requer dele, principalmente, que seja um leitor, que tem de enfrentar suas próprias dificuldades quanto mais ler. Só se aprende a ler lendo cada vez mais.